INTRODUÇÃO
Those who do not remember the past
are condemned to relive it. SANTAYANA |
“A característica comum ao modelo e à ficção é a sua força heurística, quer dizer, a sua capacidade de abrir e de desenvolver novas dimensões da realidade, graças à suspensão da nossa fé numa descrição anterior.”[1] |
Embora a investigação que
suporta as relações interculturais
tenda a centrar-se no estudo das situações de contacto resultantes de processos
migratórios, com o objectivo de delinear políticas capazes de reduzir a
emergência de conflitos sociais,
parece oportuno repensar, numa outra perspectiva, a natureza dos agentes
civilizadores que de forma livre, forçada ou organizada se deslocaram para
África e, neste caso, para Angola, entre 1880 e 1974.
E
essa revisitação é tanto mais importante quanto dela depende, não apenas o
futuro da cooperação e o futuro da língua portuguesa - instrumental ou
identitário -, como a definição do conceito de angolanidade, e, mesmo a
(re)definição da portugalidade, enquanto identidades em construção, eliminando
as tendências xenófobas e racistas que sempre acompanham os processos de
colonização e de descolonização.
Só
a investigação e a instrução poderão criar as condições
necessárias ao diálogo intercultural. Se continuarmos a não assumir o passado,[2] nomeadamente com África, e a deixar na ignorância as gerações
presentes e futuras, o fosso tornar-se-á intransponível. As novas gerações
necessitam de conhecer essa parte oculta - mesmo que traumática -, para que não
se sintam desenraizadas, e possam construir o futuro, explorando todos os
possíveis, independentemente dos excessos que marcaram o colonialismo.
Apesar
da opção europeia e da necessidade de a reforçar, a actual paleta demográfica
portuguesa lembra-nos permanentemente que a nossa identidade continua
profundamente ligada ao Sul - Mediterrâneo, Atlântico e Índico -, e por isso o
conhecimento (des)apaixonado desse contacto[3] assume cada vez maior importância.
O
presente trabalho tem como objectivo contribuir, ainda que modestamente, para
que a memória não se reduza a
estereótipos, e, por isso, propõe-se interrogar o contributo da obra de
arte - e, em particular, da obra literária africana -, no que se reporta, por
um lado, à construção de identidades nacionais e por outro, como expressão e
motor das relações interculturais.
Tem, também, como objectivo “compreender como é que as literaturas
“dependentes” e passando ao estado de literaturas “novas”, “emergentes”,
(“descolonizadas”?) veiculam ainda representações da antiga cultura dominante,
“clichés” do antigo colonizador.”[4] E mais concretamente o
papel de YAKA, romance de PEPETELA,
na revisitação da colonização portuguesa em Angola, e na antevisão de uma
angolanidade, em que a presença portuguesa, em lugar da exclusão, se sinta integrada.
Esta
escolha de YAKA não obstará a que, a
espaços, seja feita referência a outras obras do mesmo autor, por um lado,
porque isso permitirá, de forma mais “tradicional”, explorar o tema estrangeiro - objecto da imagologia,[5] na perspectiva fundadora desta disciplina - e, por outro,
porque só uma visão global da obra de Pepetela permitirá compreender o caminho
percorrido pelo Autor.
Embora
esta opção pela ficção - no âmbito das relações interculturais -, possa parecer
deslocada,[6] há que ter em consideração que:
“O mundo da ficção é um laboratório
de formas no qual ensaiamos configurações possíveis de acção para
experimentar a sua consistência e a sua plausibilidade. (...) O mundo do
texto, porque é mundo, entra necessariamente em colisão com o mundo real,
para o “refazer”, quer o confirme quer o recuse.”[7] |
É
nesta certeza que, como afirma Jacques Chevrier,[8] as literaturas africanas serão
objecto de problematização porque portadoras de visões do mundo decorrentes da colonização e da descolonização,[9] dois dos fenómenos mais importantes da História
contemporânea. Terreno privilegiado para o estudo da relação entre a literatura
e a sociedade ou, ainda, para o estudo do estatuto do escritor,[10] investido de uma “missão” simbólica face ao seu “povo” pela
ideologia da descolonização. Terreno propício aos comparatistas porque estas
literaturas se afirmam na demanda e na (re)conquista de identidades, no espaço
problemático de um imaginário situado na intersecção de uma pluralidade de raças
e de culturas.
É
neste terreno que YAKA se situa... e que Pepetela ousou caminhar.
[1] - Paul Ricoeur, Do Texto à acção, Ensaios de Hermenêutica
II, rés ed., Porto.
[2] - A propósito da releitura de Zurara, Mário
António F. Oliveira chama-nos precisamente a atenção para um dos aspectos de
que me ocuparei de aqui em diante:” E isto, porque a sua obra nos surge como
documento fundamental para o estudo do problema das primeiras imagens
que os Europeus difundiram da África Negra e - esse é um dos pontos importantes
do ensino mais recente das relações internacionais - porque a configuração
dessas imagens foi condicionante das formas assumidas pelos contactos
entre europeus e afro-negros, cujas vicissitudes tão largo espaço ocupam na
história que desemboca no nosso presente cheio de problemas ...” in Reler África, Instituto de Antropologia,
Univ. Coimbra, 1990.
[3] - Apesar de devermos interrogar
a natureza desse “contacto”, como o faz, aliás, Aimé Césaire
: “La colonisation a-t-elle vraiment mis
en contact ? Ou, si l’on préfère de toutes les manières d’établir le contact, était-elle la meilleure
?” in Discours sur le Colonialisme,
pp. 9-10.
[4] - Daniel-Henri Pageaux, De
L’Imagerie Culturelle à L’Imaginaire, in Précis de Littérature Comparée, p.
157, (sous la direction de Pierre Brunel et Yvres Chevrel).
[5] - Sem que a palavra
“imagologia” se tivesse imposto, M. F. Guyard (1951) - na sua
obra Littérature Comparée, P.U.F.,
Que sais-je ? - consagra-lhe um capítulo intitulado L’étranger tel qu’on le
voit, onde sintetiza a nova perspectiva que se abre à Literatura Comparada
: “Ne plus poursuivre d’illusoires influences générales, chercher à mieux
comprendre comment s’élaborent et vivent dans les consciences individuelles les
grands mythes nationaux””. p.111.
[6] - Como refere
Jean-Michel Massa, no caso de África, e particularmente na de “expressão”
portuguesa, “as literaturas nascentes são inicialmente didáticas, pedagógicas”,
tendo como “missão principal definir o ser, a identidade dos homens ou das
nações.” in Approche méthodologique du colloque, in Actes du Colloque International - Les Littératures Africaines de Langue
Portugaise (Paris, 28 Nov. a 1 de Dez. de 1984), pp. 41-42.
[7] - Paul Ricoeur, op. cit. p.29.
[8] - Jacques Chevrier, Les
littératures africaines dans le champ de la recherche comparatiste, p.217,
in Précis de Littérature Comparée,
Puf, Paris, 1989.
[9] - Como reconhece Etiemble, o fenómeno da
descolonização é um dos acontecimentos do séc. XX: “il
importera d’examiner dans quelle mesure les langues des colonisateurs ont réagi
sur les langues des colonisés; réciproquement, dans quelle mesure les langues
des colonisés ont réagi sur celle des oppresseurs. Toutes sortes de pays ayant
subi longuement le statut colonial, l’étude du bilinguisme dans ses rapports
avec la création des œuvres littéraires devrait être à l’ordre du jour...”, in Comparaison n’est pas raison, p.89.
[10] - “É preciso estudar a interpretação feita
por cada escritor do duplo problema da identidade individual e da identidade
nacional”, como recomenda Jean-Michel Massa, op. cit., p. 43.
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