Preâmbulo da Dissertação de Mestrado

 

            PREÂMBULO

” A primeira tentação do estudante é fazer uma tese que fale de muitas coisas. (...) Estas teses são perigosíssimas. Trata-se de temas que fazem tremer os estudiosos bem mais maduros.” [1]

            A partir do momento em que me propus elaborar esta dissertação e apresentei o anteprojeto ao Senhor Professor Doutor Carlos Reis, a quem publicamente agradeço a disponibilidade e a paciência que manifestou durante todo este tempo, de imediato compreendi que também eu fizera uma opção que me faria correr enormes riscos.

            E o primeiro risco provinha de querer abordar o papel da literatura no âmbito dos estudos interculturais. De modo a obstar à dificuldade da tarefa, optei apenas pelo estudo de uma obra literária - o romance YAKA de Pepetela[2] - numa perspectiva de leitura que, efetivamente, me parecia propor uma metodologia capaz de inserir a literatura no âmbito dos estudos interculturais: a leitura imagológica.

            E este era o segundo grande risco: aplicar uma metodologia de leitura que três meses antes desconhecia e, que, efetivamente, ainda não vi aplicada de forma sistemática por ninguém em Portugal.

            A leitura imagológica do romance YAKA tornou-se, assim, no tema da minha dissertação, o que me obrigou a abordar um vasto conjunto de questões, cada qual a mais complexa: O que é a interculturalidade? Não será mais adequado situar esta reflexão na esfera da intraculturalidade?[3] Como é que a literatura acolhe a presença da identidade e da alteridade que caracterizam o mundo? É a literatura apenas um reflexo do mundo? Pode a literatura agir sobre o mundo? Poderá a literatura ser um motor da angolanidade? Que angolanidade? Qual o lugar das línguas maternas na constituição da angolanidade? E na fundação da literatura angolana? Por que motivo e com que intenção escreveu Pepetela este romance em 1983? Que lugar é que YAKA ocupa no conjunto da obra deste autor? Poderá YAKA desempenhar o papel de mediador cultural? Qual o contributo da literatura para a constituição da lusofonia? Haverá algum elo entre o projecto da lusofonia e o luso-tropicalismo?

            E depois havia YAKA, nome fascinante de objecto e imagem, que revela uma história opaca de relações entre povos, durante cerca de 100 anos, que era precisa percorrer no plano da imaginação constituinte, no plano da ideologia e no plano do cenário.[4]

            Este último foi certamente o maior risco, na medida em que YAKA se apoderou por inteiro dos meus movimentos e me fez percorrer os gestos que discriminam e eliminam o homem, que dissidiam e tornam o homem criador.

            A partir de um certo momento, foi mesmo YAKA... foi a necessidade de interrogar YAKA[5] enquanto proposta de mundo - proposta de um modelo de interculturalidade? -, que determinou a reformulação do projecto inicial.

            É finalmente YAKA que me impede de ocultar os caminhos de imperfeição que atravessam esta dissertação, sobretudo, devido às circunstâncias em que foi redigida: nem YAKA sabe as privações que impôs à minha família e aos meus alunos, embora tenha estado sempre presente!

            Em síntese, o texto desta dissertação revela deliberadamente, em si, muitas das hesitações, fulgurâncias e deceções que o determinaram... e que inevitavelmente reflectem uma iniciação, mas, também, o risco de repetir e de copiar e não de inovar.

 

 



[1]  - Umberto Eco, Como se faz uma tese em Ciências Humanas, p. 31.

[2]  - A leitura desta dissertação revelará, todavia, que, por razões de clarificação da transfiguração sofrida pelo escritor, enquanto guerrilheiro e homem político, as referências ao conjunto da obra, e de modo mais exaustivo à REVOLTA DA CASA DOS ÍDOLOS, se tornaram obrigatórias.

[3]  - De acordo com a lição de Earl Miner, na medida em que se trata de abordar uma questão originada pela colonização e em que a língua do colonizador foi adoptada como língua oficial. Cf. Études comparées interculturelles, Théorie Littéraire (direction de Marc Angenot et alii).

[4]  - Estes três planos só se tornaram conscientes e potencialmente estruturantes quando decidi pôr termo a esta dissertação.

[5]  - Esta interrogação não se dirige apenas a YAKA, dirige-se a Pepetela, e a todas as minorias que insistem em lutar pelas grandes ou pelas pequenas utopias, que tentam dar um sentido à esperança.

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