domingo, 15 de junho de 2025

Diário_2006

 

30.12.06

Neste final de 2006...

Neste final de 2006… CARUMA quer despedir-se neste final de 2006 de todos os seus, pacientes, leitores. Tal como o país e, sobretudo, o mundo, andou um pouco à deriva num processo de adaptação que deixou a descoberto o seu fragilizado esqueleto. A aposta na ruptura tem vindo a destruir a memória, querendo dar razão àqueles que defendem o «fim da história». Mas sem memória, secamos as raízes e tornamos absurda a vida. Vários foram os momentos em que o século XX voltou as costas ao passado, recriando pesadelos que eliminaram milhões de vidas. O modernismo relativista transformou-se em individualismo triunfante e as nações submergiram sob totalitarismos expansionistas que ignoram toda e qualquer fronteira. No início do séc. XXI, a fronteira contrai-se e dilata-se ao sabor da vontade dos anónimos conglomerados. O homem pesa cada vez menos face à teia dos interesses. De vez em quando, executa-se um “Sadam” para que a teia possa eliminar mais uma série de obstáculos. Objetivamente, a decisão de execução visa que os súbditos se exterminem, em nome da frágil memória que ainda lhes resta da História. Nestas circunstâncias, CARUMA não pode esperar que 2007 seja mais justo que 2006. O ser humano, depois de ter sido expulso do paraíso, está a ser expulso da terra. A dificuldade não está em determinar o agente da expulsão, mas em saber o que fazer com ele. Porém, a rotunda é a melhor metáfora do que espero para 2007, mas que não desejo a ninguém. Se a memória me não atraiçoa, em tempos idos, de encruzilhadas, o que me fascinava e prendia era a nora e, em particular, os alcatruzes.

26.12.06

O Jardim das Delícias... de João Aguiar

 
«O que Bosch nos mostra com o Jardim das Delícias é um falso paraíso, cuja beleza é passageira e conduz os homens à ruína e à condenação...» Walter Bosing

O mesmo se poderá dizer de "O Jardim das Delícias" (ASA, 2005) de João Aguiar. Trata-se de um romance sobre a União Europeia transformada em "Federação Europeia" no séc. XXI. O federalismo vai destruindo todos os símbolos identitários em nome de uma volúpia económica, conduzida pelos «conglomerados político-financeiros» que de fusão em fusão condicionam consumidores e governos tornando-se indissociáveis do poder político e da própria criação cultural. Perante a destruição das identidades nacionais e regionais surge a reação do integrismo - no caso português (ou do que resta...) - a reação da Sagrada Milícia - a ala combatente do Movimento Integrista Português. E no meio destes dois poderes, o protagonista - o Jornalista João Carlos - procura opor-se à cegueira de uma Europa minada por um duplo cancro... num espaço e num tempo em que a lucidez dificilmente sobrevive à arrebanhadura... Um romance que obriga a pensar o presente, à luz da história recente... raramente problematizada. Não chega a ser um romance profético, a não ser, talvez, nesta sub-região da Ibéria...

21.12.06

Tudo é possível...

«Passo o meu dia a dia aparentemente desligado da literatura e no entanto é literatura do princípio ao fim.» José Luandino Vieira, Público, 5/12/2006

Quando a História se apaga, o campo fica livre para a mentira, a simulação, a ficção. O Ocidente querendo evitar a mentira fez-nos crer na inverosimilhança. Por isso, ensinou-nos pacientemente a distinguir a verdade da verosimilhança. Em tempos de maior rigor, a História exigiu-nos que sacrificássemos a vida em nome da Verdade - única. Tudo o resto era desvario diabólico.... Porém esse desvario arrepiou caminho e relativizou a Verdade - a História entrou em declínio e a verosimilhança começou a impor-nos tantos caminhos quantos os romeiros. De tal modo que facilmente cultivamos a mentira que nos permite limpar as mãos sujas do sangue de todos aqueles que sacrificámos em nome de um realismo socialista que nem sequer se queria utópico.

Tudo é possível num convento em Vila Nova de Cerveira..., contrariando a máxima de que tudo o resto é literatura! Há certamente um domínio onde nem tudo é literatura - a dor. Mas mesmo essa continua a ser literatura se apenas a fingimos. Como os poetas / fingidores deveriam ser felizes!

16.12.06

A paratormona...

Depois da juvenil caça aos gambozinos passei a dedicar-me à descoberta da paratormona. Conheço-a mal, mas os seus efeitos sinto-os bem. Percorre-me o corpo numa voragem intensa e um pouco desorientada... Apesar de tudo, passei a considerá-la - a paratormona - uma nova companheira extremamente exigente: detesta que eu a esqueça, que eu me distraia...

Uma companheira um pouco paradoxal: ao mesmo tempo que ocupa o espaço, absorve-o, criando o vazio...

 

11.12.06

A encenação espanhola do arrependimento...

É a terceira vez que tento publicar um breve comentário não sobre a Igreja de La Preciosa Sangre, em Cárceres, mas sobre a monumentalidade da arquitetura civil e religiosa na Espanha do passado e do presente. Sempre que percorri o casco de algumas cidades espanholas (Toledo, Madrid, Burgos, Barcelona, Sevilha, Ávila, Segóvia, Cárceres) fiquei com a impressão de que os espanhóis têm uma enorme necessidade de expor a força e a crueldade erigindo fortalezas e catedrais. Esta necessidade não é forçosamente do soberano (do estado), é, sobretudo, a afirmação dos "senhores" da conquista - ibérica, europeia ou das américas. Senhores ciosos de afirmarem a sua superioridade perante os vizinhos e que, para efeito, edificam palácios e catedrais lado a lado, transformando o espaço num labirinto de ruas e ruelas, lutando pelos cumes numa clara projeção para os céus… O movimento é sempre ascensional, originando cogumelos de edifícios cuja funcionalidade nos escapa… porque a grandeza, afinal, é simbólica…

Mesmo a associação da grandeza ao poder nem sempre é linear, porque, mais do que expressão de riqueza poderia muito bem tratar-se de uma forma de catarse. Mas não, tudo é encenação, diria pública, não fosse a redundância... O arrependimento da conquista, do sangue derramado, transforma-se em espetáculo em que sangrador e sangrado podem caminhar lado a lado, fugindo ao exame de consciência que a nudez e a elevação das catedrais góticas acabaria por exigir.

Por isso os espanhóis preferem ao despojamento a ostentação, ao isolamento a multidão, à sobriedade a opulência, à linha o volume..., preferem tudo o que os afaste da assunção da responsabilidade, em nome da ocupação do espaço, da encenação do arrependimento...

A encenação da culpa é um sinal dos tempos de que quase todas as cidades espanholas dão testemunho... E paga-se para assistir ao espetáculo!

(Os dois anteriores comentários eram bem diferentes destes. Mostravam que o Barroco não foi mais do que o produto de uma contrarreforma jesuítica que encenava a morte num retábulo roubado aos ameríndios! Mostrava ainda que o barroco nunca foi português nem brasileiro... era simplesmente a expressão da grandeza espanhola na Europa, contra a Europa da Reforma. Felizmente que estes comentários se perderam!)

1.12.06

A linearidade do orçamento...

O orçamento é (ou deve ser) linear.

Inicialmente, o orçamento não era mais do que um instrumento de execução de um projecto... No entanto, à medida que fomos ficando sem projecto, o orçamento tornou-se no grande acontecimento legitimador da governação e da oposição.

Governo e oposição sonham com o orçamento para poderem definir as respetivas estratégias de consolidação ou de luta pelo poder, pelo poder de gerir o orçamento de estado, como se o país se reduzisse à captura de receitas e à sua redistribuição pelas clientelas...

Se quiséssemos construir um projecto nacional, ibérico, europeu, lusófono deveríamos tornar obrigatória, em todas as escolas, a leitura do(s) orçamento(s). Hoje, para o cidadão comum é tão importante interpretar o orçamento como falar inglês.

As aulas de substituição deveriam ter como único tema: o orçamento - pessoal, familiar, plurifamiliar, autárquico, regional, nacional, ibérico... global.

Afinal, o que é que pode haver de mais importante do que o orçamento? Só em Portugal, gastamos dois meses a debatê-lo…

Por causa do orçamento, em 1955, Max Ophüls (1902-1957) sofreu um enorme rombo: o filme Lola Montès naufragou nos baixios da crítica cinematográfica e de costumes. Nem a beleza de Martine Carol (1920-1967) seduziu os espectadores. A encenação luxuriante da ideia de que na vida tudo é movimento, mas que o carrossel para quando menos se espera só mais tarde foi entendida por um mundo ávido de protagonismo, que, no entanto, apenas valoriza o movimento.

Ora, em 1955, Max Ophüls cometera um pequeno crime: rompera com as narrativas lineares. E o orçamento ressentiu-se...

24.11.06

A memória dos rios...

Se a memória não me atraiçoa, estudei em Tomar entre 1971 e 1973. Em 71/72, a chuva caía com abundância. Lembro-me porque, para chegar ao Liceu, percorria de madrugada, numa motorizada CASAL, cerca de 15 Km. Invariavelmente, às 8 horas, chegava ao largo da estação de caminho de ferro, onde se situavam os "anexos" do Liceu. E nesses "anexos", a intempérie obrigava-nos frequentemente a abrir os guarda-chuvas. Para mim, não havia nada de extraordinário: essa chuva que caía sobre mim no percurso e na escola era bem-vinda. Se há alguma coisa que eu prefiro na natureza é, com certeza, a chuva... mais do que a própria água. A água só me fascina sob a forma de corrente tumultuosa. A água parada dos pauis (pessoanos ou não), dos lagos, do próprio oceano, enerva-me!

Antes de conhecer o Nabão, já conhecia o Tejo. Habituara-me a contemplá-lo das escalabitanas Portas do Sol. No entanto, só o procurava em tempo de cheias, quando banhava os pés da ribeirinha Santa Iria. O caudal alargava-se de tal modo que conseguia visualizá-lo, para lá de Almeirim e de Alpiarça, a subir o desconhecido Terreiro do Paço. A ideia de uma capital flutuante seduzia-me, dava sentido ao Portugal das caravelas.

Hoje, quando vejo imagens das cheias do Nabão, sinto uma leve frustração. Nos anos 70, as cheias do Nabão, se comparadas com as do Tejo, eram insignificantes: invadiam duas ruas, ameaçavam um outro café... mas nunca me impediram de cumprir a rotina diária: percorrer 30 Km (ida e volta); abrir o guarda-chuva na sala de aula; assistir às aulas com uma sensação de déjà vu; ler o Diário de Lisboa no café Central(?); pedir as obras de Jean-Paul Sartre na Biblioteca local... para me poder aproximar um pouco de Paris e perceber que o Sena parisiense me causaria náusea.

Hoje não vi nem o Tejo nem o Nabão, vi imagens do Nabão e do Tejo, o que não é a mesma coisa: a sucessão de imagens instantâneas destrói a força da corrente que os meus olhos procuram e, sobretudo, que os meus ouvidos poderiam escutar - e sem essa perceção total, sinto-me desligado do fluxo universal.

Desiludido, continuo sem compreender que haja defensores da construção de barragens que estanquem os caudais... que imobilizem as águas. Se conhecessem os rios, não lhes ocupavam os leitos, deixavam-nos acordar suavemente, deixavam-nos correr orgulhosamente para o grande Oceano.

PS: Já naquele tempo tinha a sensação de que a Literatura maltratava os rios. Eram demasiado românticos, faltava-lhes corrente... à excepção do riacho de Bernardim, tumultuoso, que arrastava a indefesa ave para um mar sem fim... E vou ficar por aqui, porque, em mim, começam a jorrar arroios subterrâneos...

20.11.06

Um futuro de servidão...

Vi-me, hoje, obrigado a cancelar uma ida ao teatro. Um teste impede que os "meus" alunos possam ver a peça "Galileu", na véspera do dia da "Cultura Científica". Segundo argumentaram, precisam de se deitar cedo. O que pensará o velho Galileu deste bom senso em criaturas tão juvenis?

Sem querer imiscuir-me em assunto tão melindroso, creio, no entanto, que os problemas equacionados por Bertolt Brecht os poderiam ajudar a raciocinar e a compreender que a razão soçobra facilmente perante o fanatismo dogmático - religioso ou escolástico.

Esta forma tão ajuizada de estar anuncia um futuro de servidão.

(...) O exame que começou por ser de consciência, exigindo a autoridade do diretor espiritual, aferrolha, hoje, o livre arbítrio, decidindo mecanicamente do destino de cada jovem que ousa olhar o futuro... enquanto Galileu fica no sótão a espreitar o movimento dos astros...

(Cancelar uma ida ao teatro é uma atividade que dá sentido ao funcionário que elimina o desperdício...)

18.11.06

As tentações do funcionário...

Vi, hoje, no cinema S. Jorge, Tatana, Portugal, 2005, 12', 35mm, Ficção. Realização: João Ribeiro; Argumento: João Ribeiro, Mia Couto.

Sinopse: Adaptado de um conto tradicional Makonde, esta é a história de uma velha e de seu neto, Sábado, criança de 12 anos que ela educa desde a morte do pai, quando Sábado tinha apenas 3 anos. Graças a um poder oculto, a velha guarda na cabeça os seus familiares mortos que, de quando em quando, saem fazendo uma grande festa em jeito de cerimónia. Este facto não pode ser descoberto por pessoas que não sejam da família, pois isso faria com que os mortos não encontrassem o caminho de regresso acabando por ficar ao abandono e provocando a morte da velha.

Uma narrativa pedagógica que visa preservar os laços do presente (do jovem Sábado) com o passado, como se o primeiro se tornasse inviável sem o segundo (os antepassados - dos ancestrais aos mais próximos, como o pai e os tios, residentes no poço do quintal). A família continua a ser no imaginário moçambicano o motor da vida.

E de Moçambique passei à Africa do Sul e vi a Carmen de Bizet, em versão de Mark Dornford-May. (Este realizador já anteriormente filmara O Filho do Homem, mostrando-nos Jesus como um negro revolucionário.) M.D.-M. transpôs a ópera para um bairro de lata da atual República Sul Africana. Filme falado e cantado em xhosa (língua da África Austral falada por aproximadamente 8 milhões de locutores sul africanos).

Este filme vale, sobretudo, pela interpretação musical de Khayelitsha (a Carmen) e pela vitalidade das personagens femininas. Os homens, marialvas e machistas, acabam por desempenhar o papel dos fracos.

Na cena festiva e carnavalesca do abate do boi, cheguei a pensar que a Carmen da sevilhana tourada, afinal, teria raízes na África austral.

(Estou sem perceber por que motivo se encontravam na sala 2 ou 3 turmas de alunos do 2º ciclo. Bateram palmas a despropósito; entraram e saíram da sala; correram.... e os professores, alheados do que que se passava, talvez estivessem a praticar para funcionários nesta tarde de Sábado.)

17.11.06

De cidadão a funcionário...

Há uns anos, parecia que ao Estado pouco mais restava do que a recolha de impostos e a sua redistribuição pelas várias clientelas que, entretanto, se tinham formado. A Nação deixara de poder fazer a guerra e, sobretudo, deixara de poder fazer moeda. Alienara as restantes funções, entregando-as a Bruxelas. A Igreja católica cedera o lugar a várias seitas mais ruidosas.

O Bloco Central, mascarado de alternância democrática, ocupava todas as funções de Estado, tornando-se no verdadeiro beneficiário da integração na União Europeia. O clientelismo instalou-se, desarmando a iniciativa, o trabalho e a aprendizagem.

Afastaram-se e substituíram-se os quadros técnicos existentes por correias de transmissão dos partidos; as corporações aumentaram as suas regalias, desinteressando-se completamente dos princípios da justiça e da solidariedade; e a vaidade exposta nos mass media tornou-se no critério eletivo dos governantes...

Progressivamente, um Estado, que vira reduzidas as suas funções, transformava-se num Estado cuja função principal era distribuir os fundos europeus e, que incapaz de controlar a rapina, acabou por se deixar atolar no compadrio, no nepotismo e no amiguismo.

Hoje, esse mesmo Estado, em nome da reposição de uma mítica e salazarista ordem nas finanças públicas, decidiu que a regeneração das instituições passe a ser feita por decreto de personagens cinzentas, nunca escrutinadas, mas que me fazem recordar os militantes maoístas que, cegamente, seguiam o Grande Timoneiro.

E bem sabemos que para o Grande Timoneiro, só a ruptura pode levar à Revolução cultural. E em nome do Partido, o cidadão deve ceder o lugar ao funcionário eficiente que combata o desperdício.

No que me diz respeito, como, obedientemente, tenho vindo a aderir ao novo conceito de 'funcionário', começo a não ter tempo para refletir, para ler e para escrever... O discurso instrucional ocupa-me todo o tempo... E ao escrever cada vez menos estou a combater o desperdício...

10.11.06

Matilha de mentirosos...

Em cenário de greve da função pública, Governo e sindicatos apressam-se em manipular funcionários e opinião pública. De uma assentada, o primeiro procura desmobilizar o movimento de protesto e desvalorizar o impacto da greve, enquanto os segundos procuram precisamente o contrário. Ambos mentem.

Os telejornais manipulam tão descaradamente a informação que o telespectador só pode continuar a pensar que, na Assembleia da República, estamos representados por um bando de energúmenos mentirosos.

Os telespectadores são tão manipuláveis que já não conseguem ver que cada imagem é um argumento mentiroso e, por isso, um simples rosto ou palavra passaram a ser pretexto para uma discussão infindável sobre os preconceitos de cada um. Tudo em nome do direito à liberdade de expressão, hoje, sinónima de indignação. O direito à indignação vulgarizou-se de tal modo que virou mentira.

O cidadão justicialista não podendo controlar os mecanismos colectivos de usurpação do poder, vinga-se em quem estiver mais à mão. A mentira pública torna-se privada.

Se o telespectador voltar a ligar a televisão, rapidamente descobrirá que a sua pequena mentira se tornou pública, passando a fazer parte da matilha de mentirosos...

7.11.06

No país do fado e da morna...

(Descobri recentemente que a norma se relativizou de tal modo que ninguém sabe onde procurá-la. Desolado, dei comigo a pensar que o Instituto da Língua fora demolido deixando para trás uma suave nostalgia. Cheguei mesmo a perguntar aos meus actuais alunos se sentiam alguma nostalgia da norma. Indiferentes, nada responderam.)

Há cerca de 20 anos, uma planificação da disciplina de Português, para além dos conteúdos linguísticos e discursivos, incluía obrigatoriamente conteúdos literários e culturais. O advérbio, nesse tempo, ainda não tinha sido promovido nem a adjunto nem a disjunto!

Creio que obrigatoriamente, já nessa época, seria um advérbio disjunto, pois ele exprimia uma forte convicção do formador com efeito perturbador no formando.

Muitos dos formandos, ao contrário de uma inexplicável minoria que tudo compreendia, silenciavam expressões de rejeição, pois, por mais que explicasse a tipologia, jamais conseguiam produzir uma planificação a médio prazo que integrasse os conteúdos culturais.

Pensava, nessa época, que a aposta nos conteúdos linguísticos, discursivos e literários pressupunha a existência de uma ou mais culturas. E por isso insistia em dar-lhe(s) visibilidade, porque nunca compreendi como é que se processa o diálogo entre culturas invisíveis. Tal como não compreendo como é que se pode aprender, por exemplo, o léxico, desprendendo-o do contexto cultural.

Confesso, também, que uma outra das minhas dificuldades consistia em explicar aos formandos a diferença entre um conteúdo linguístico e um conteúdo discursivo. Por exemplo entre um nome e uma notícia - entre classificar o nome e escrever uma notícia. E não me refiro aos nomes não contáveis não massivos!

Espero, no entanto, que esses professores... quase titulares... estejam, hoje, radiantes com a possibilidade de explicaram aos seus alunos quanto o seu antigo professor estava errado. Para quê a cultura? Para quê a literatura? Para quê a genologia?

Afinal, uns tantos protótipos e, sobretudo, uma boa terminologia linguística decalcada da terminologia anglo-saxónica é quanto basta! A matriz latina que se dane! Por algum motivo, o latim fora excluído do currículo dos Cursos de Letras!

Os mercenários nunca olharam a meios para encher os bolsos... e a cultura sempre foi um empecilho. Nem se percebe por que motivo ainda existe um Ministério da Cultura!

Na próxima remodelação desaparecerá!

4.11.06

O pressuposto

Figura em que deduzimos existir um enunciado implícito anterior ao enunciado explícito. Este processo, geralmente, esconde uma forma de manipulação mais ou menos subtil. De modo a celebrar os seus cinquenta anos, a Fundação Calouste Gulbenkian (1956-2006) está a promover o ciclo: Como o cinema era belo. A ideia é meritória, os bilhetes são baratos (2,50 €), mas o público, pelo menos pela amostra, já passa maioritariamente dos 50…, respirando, só por si, alguma nostalgia. A amostra a que me refiro (re)visitou hoje o filme de Jacques Tourneur ‘Stars in my Crown’ (Estrelas da Minha Coroa), produzido nos Estados Unidos, em 1949. Trata-se de um filme em que um implacável ex-combatente se torna pastor pacifista capaz de converter o mais empedernido ateu; um filme em que o médico e o pastor, após terem exacerbado o conflito entre o corpo e a alma, acabam por se aliar; um filme em que o ambicioso e racista americano branco, capaz de enforcar o negro por um pedaço de minério, acaba por se deixar convencer pela argúcia do pastor. Em 1949/50, nos Estados Unidos, apesar de nem tudo ser belo, o bem acaba sempre por vencer o mal. E o cinema cumpria, assim, a missão de nos convencer que nem a doença, nem o ateísmo, nem o racismo poderiam jamais sair vencedores… Como o cinema era beloNo entanto, não deixa de ser estranho que, em 2006, se possa reiterar a ideia dessa beleza imaculada do cinema de meados do séc. XX. Como justificar a luta de um homem como Martin Luther King, assassinado em 1968? Bem sei que há quem defenda a estética como uma categoria independente da ética ou da ideologia! De qualquer modo, sobra o pressuposto que poderemos enunciar do seguinte modo: O cinema deixou de ser belo ou Hoje, o cinema é grotesco. O que me leva a pensar que o ciclo ‘Como o cinema era belo’ manipula, de facto, o espectador, levando-o a acreditar que o presente é grotesco, ao contrário do passado que seria inevitavelmente sublime… ( Os espectadores de 4 de Novembro de 2006 bateram palmas, algumas tímidas.) A nostalgia das origens emerge das entranhas da Fundação…, que se arrisca tornar-se numa categoria estética desfasada da grotesca realidade, em que a palavra ou o ícone não bastam para resolver os conflitos.

2.11.06

Docere et lectare...

/ O menino experimental ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros. /O menino experimental, declarando superado o manual de 1962, corrige o professor de fenomenologia. /Murilo Mendes

O menino experimental cresceu e, depois de, ao longo de 30 anos, ter assassinado os mestres, prepara-se para declarar superada a etimologia.

Os verbos docere (ensinar) e lectare (ler muito ou muitas vezes), falsos sinónimos, já que o segundo pressupõe um método redutor da inteligência, apelando à repetição, enquanto que o primeiro orienta para a descoberta da sabedoria, acabam de evoluir semanticamente por obra dos meninos(as) experimentais que nos governam.

Os docentes, os lentes (vulgo os professores, de futuro simples ou titulares), no caos terminológico em que habitam, divididos entre atividades letivas e não letivas acabam de ser informados que, afinal, devem, também, aprender a distinguir a atividade letiva da atividade docente.

Em conclusão, o professor metódico vai gerir a sua vida pública em atividade docente (substituição do pessoal administrativo e de limpeza), letiva (implementação do plano nacional de leitura, escrita e cálculo) e não letiva (explicações gratuitas, substituições gratuitas e acréscimo da conflitualidade).

Os síndicos experimentais estão a ficar vesgos: estão sem perceber o que o futuro lhes reserva.

 

26.10.06

De pouco serve ser voluntarista!

Mesmo que durante algum tempo nos iludamos com o rumo traçado, rapidamente nos apercebemos que os grandes desígnios deixaram de nos motivar. No essencial, nas sociedades laicas não há finalidade que não seja abordada em termos relativos. Apesar do custo, o fundamentalismo acaba por ser uma tentativa de impor um desígnio à sociedade, capaz de a mobilizar contra qualquer tipo de relativismo niilista.

Em termos práticos, nas escolas portuguesas deixou de haver um projeto capaz de mover na mesma direcção todos aqueles que nelas atuam. Ou se existiu, remontará ao Estado Novo! A ideia de comunidade educativa não passa de uma miragem, em que cada um, desejoso de saciar a sua sede de absoluto, acaba por se desinteressar de tudo o resto.

Este desnorte (esta falta de direção, de rumo) acaba por ser aproveitado para, de forma inapelável, destruir o pouco que, de forma voluntarista, fora construído nos últimos anos. Nada é lido, nada é interpretado em termos globais; tudo é decidido em função da vaidade do momento. E nem mesmo esta última é consistente.

Em conclusão, nas sociedades laicas, incapazes de definir desígnios colectivos, deixou de haver lugar para o voluntarismo e, consequentemente, a responsabilização, também, deixa de fazer sentido. "Culpabilizar", "perdoar"; "condenar", "absolver"; "pedir justiça, fazer justiça" - de conceitos passaram a noções ocas...

23.10.06

Uma miragem inquietante...

Os que ainda trabalham começam demasiado tarde e todos ao mesmo tempo, entupindo as ruas como as folhas de Outono entopem as sarjetas.

Os chefes chegam tarde ou não chegam sequer. Qualquer subalterno pode abrir a porta da empresa, da oficina, da escola, do ministério. E se chegam, fazem-no sempre com um ar atarefado, não lhes sobrando tempo para identificar e analisar os problemas. E por isso já deixou de haver agenda, tudo vai correndo sobre rodas inexoráveis...

Se alguma coisa corre mal, a causa é sempre externa. Tornamo-nos vítimas. Comprazemo-nos na lamúria. O passado, os genes, a doença e o estrangeiro explicam tudo. Procuramos na diferença a explicação para a nossa decadência. Vivemos bem com os nossos estereótipos, convencidos da superioridade da nossa presença. Mas, se olhássemos à nossa volta, poderíamos perceber que a nossa sombra nos deixou sós...

A vontade de mudar, de contribuir para a mudança não passa de uma miragem inquietante... com cheiro a século XIX.

17.10.06

O paradigma tropical português...

A insatisfação parece ter chegado à Escola. Hoje, nos pátios, viam-se mais alunos. Outros talvez tenham ficado em casa. Mas alguns dos que encontrei e que, raramente, são visíveis fora da sala de aula... mantinham-se na escola na expectativa de que o professor surgisse. Aproveitavam para fazer os trabalhos de casa e preparar os próximos testes no CRE e na Biblioteca.

De manhã, os professores que lecionavam passavam furtivamente para as salas. Os dirigentes sindicais tornaram-se invisíveis ao contrário do que costumava suceder. O Conselho executivo parecia recolhido... O Conselho Pedagógico foi adiado a pretexto da greve, tal como acontecerá, amanhã, com o Conselho de Diretores de Turma - o mesmo pretexto.

Um ou dois funcionários executavam tarefas de limpeza: varriam as folhas de Outono, despejavam folhas devolutas.

Ultimamente, comecei a perceber que esta Escola, aparentemente, desajustada, corresponde, afinal, ao paradigma tropical português: alguns funcionários, por astúcia dos restantes, vêem-se obrigados a executar todas as tarefas - do apoio (efectivo) no CRE e na Biblioteca à limpeza das casas de banho, dos corredores, das salas de aula e, mesmo, dos pátios... como se não fossem mais do que a típica criadagem do solar nortenho ou do sobrado brasileiro, mais tarde africanizado...

Para que a tropicalização seja completa, os próprios professores (ex-Senhores-de-si-próprios) decidiram que chegou o momento de se sacrificarem, de se cafrealizarem para que o país possa gerar 500 verdadeiros Senhores a quem todos possamos servir zelosamente.

Para quem tenha alguma dúvida, faça o favor de cotejar o investimento na educação e na ciência (Orçamento para 2007). Está lá escrito. Basta um pouco de cálculo: A ciência goza de um investimento senhorial sete vezes superior ao da escrava educação. Mas está certíssimo! O que é que a educação nos poderia trazer de bom?

Dentro de 5 anos, 500 novos senhores dir-nos-ão o que mais nos convém... tal como aconteceu com os mestres de Chicago (e arredores) que nos vêm governando nos últimos 25 anos.

Bem sei que não me deveria pronunciar sobre estes assuntos no meio desta histórica greve. Mas não resisti, depois de ter ouvido uma ministra falar dos bons serviços de um grupo de funcionários públicos que desinteressadamente estabelecem os "quadros de referência" que de 4 em 4 anos permitirão analisar 1200 unidades de ensino (de conta?); um secretário de estado que remata os destacamentos mais estranhos para o ministério do trabalho porque ele só corta ( e se houver algum destacamento foi porque alguma escola o solicitou!?) e, sobretudo, um dirigente sindical que teve a coragem de afirmar que há imensos candidatos ao lugar de coordenador curricular - estou a imaginar uma luta fratricida pela ocupação deste lugar que talvez dê assente no Conselho Pedagógico - órgão particularmente apreciado pelo ME e pelos Conselhos Executivos.

Afastada a ironia, talvez valesse a pena avaliar o trabalho gracioso levado a cabo, neste país, por milhares de conselhos pedagógicos nestes últimos 30 anos. Só que esse trabalho nunca poderá ser realizado por quem insiste em deitar fora a massa crítica que existe no país em todos os domínios.

Foi uma sensação de nulidade que senti, hoje, ao atravessar os corredores da Escola, embora essa sensação fosse contrariada por uma funcionária incapacitada de um braço e que, apesar de continuar a recolher as folhas de Outono, me abriu a porta da sala 34, para mais tarde regressar e me perguntar se, afinal, o computador e a impressora já se articulavam, pois, gostava de aprender a resolver os problemas para poder ajudar os professores. E essa descrença na justiça foi novamente contrariada por um grupo de alunos que me pediu o "manual" e o "caderno de exercícios" para poder fazer os trabalhos de casa - contrariando objetivamente a política do ME...

15.10.06

Será que estou sozinho?

Encontro-me, hoje, numa posição assaz difícil: estou numa terra de ninguém - entre os que querem mudar tudo e os que não querem mudar nada.

Os primeiros decidem a mudança, mas não sabem como fazê-la e, por isso, insistem em avançar às cegas, independentemente das perdas; os segundos não querem mudar nada, pois a manutenção do estado das coisas há muito tempo que os favorece, independentemente de saberem que o abismo se avizinha.

Nos próximos dias, o conflito agudizar-se-á. A greve prevista irá certamente reforçar a convicção dos descontentes e, os governantes, por seu lado, manterão o rumo ancorados na confortável maioria...

O país ficará um pouco mais pobre porque a quem decide falta o saber e a ponderação e a quem protesta sobra a cegueira dos interesses...

E eu, aqui, forçado, no meio.... Será que estou sozinho?

- Já não seria a primeira vez...

 

14.10.06

O que estamos sendo...

(A acumulação de cansaço torna-nos irascíveis, debilita-nos a concentração e pode, mesmo, paralisar-nos. É esse o estado actual da CARUMA que passou a ter dificuldade em caminhar... os movimentos respiratórios vão sendo cada vez mais irregulares... sente-se asfixiar.)

Habitualmente, perguntamos "O que é que te aconteceu?", mas esta pergunta não satisfaz, porque, de facto, raramente, nos acontece alguma coisa... O que estamos sendo é o resultado dum fluxo lento que nos empurra e asfixia, como se o ar fosse rareando...

E esse fluxo é o envelhecimento que, por vezes, chega inopinadamente, outras vezes nos sinaliza o inexorável.... Resta saber se estamos suficientemente atentos.

Quanto à CARUMA... ruma, agora, mais atenta aos sinais não se deixando inebriar por essa prometida longevidade que parece ser a única responsável pela decadência dos povos.

Se Antero de Quental vivesse hoje, escreveria certamente sobre a longevidade, apontando-a como a causa fundamental da decadência dos povos peninsulares!

 

7.10.06

Sob uma pirâmide invertida...

Se os políticos fossem menos demagogos não estaríamos hoje soterrados sob uma pirâmide invertida. Se estes demagogos tivessem pensado menos nos seus interesses não teriam tido tanto empenho em defender o funcionário público, criando-lhe expectativas irrealistas. Agora que mais do que 40% dos funcionários se encontram nos dois últimos escalões, os novos zeladores da res publica decidiram alterar as regras, congelando a progressão nas carreiras, destruindo o statu quo..., enquanto os decisores dos anos 80 e 90 ocupam impunemente as cadeiras de Belém, do Banco de Portugal, da CGD, do BES, do BCP, do BPI, da Assembleia da República, das últimas empresas públicas...

E, infelizmente, ainda ninguém percebeu que a pirâmide pode girar progressivamente sobre si própria, sem ser necessário sobrecarregar / punir mais os velhos, impedindo os mais novos de aceder à vida ativa. Basta que por cada dois reformados se contrate um jovem. Esse jovem, ao entrar na função pública, irá preencher dois horários, ganhando, no início de carreira, 50% do que ganhava apenas um dos reformados.

Por mais estranho que pareça, o país ficaria a ganhar com o rejuvenescimento dos funcionários, com a possibilidade dos jovens quadros encararem a vida com optimismo e segurança, aumentando, consequentemente, a natalidade...

Mas não, a Ministra da Educação, por exemplo, anda feliz porque conseguiu aquilo que ninguém conseguira depois do 25 de Abril de 1974: professores com mais de trinta anos ao serviço da juventude, inclusive da dela, são obrigados a cumprir um horário superior àquele que lhes era distribuído no início de carreira. A Senhora ministra está a impedir o rejuvenescimento dos quadros docentes, quando o ensino mais precisa de um novo impulso. Está a prestar um mau serviço ao país.

E o Governo parece agora apostado na reciclagem da elite universitária gastando, nos próximos anos, mais de 100 milhões de euros, em vez de apostar na formação da base da pirâmide, uma base sólida, jovem, com iniciativa e produtiva.

Parece que o socialismo se converteu ao elitismo norte-americano, substituindo-se, paradoxalmente, à iniciativa privada. Ou talvez não!?

Afinal, a base da pirâmide vai ser entregue à iniciativa privada e não só! As universidades privadas e as universidades públicas (2ª categoria), os politécnicos (3ª categoria), as Escolas superiores de Educação (4ª categoria), vão licenciar centenas de milhares de portugueses de boa vontade, desde que tenham mais de 23 anos e vontade de pagar as propinas...

O futuro da pirâmide promete... só é pena que as dunas se movam tão lentamente!

Não referi os sindicatos. Mas eles não irão esquecer-se de se colocar rapidamente na linha de partida - seja no topo seja na base da pirâmide... lá, onde estiverem os interesses!

 

2.10.06

As estações do homem...

As estações do ano mais não são, para o homem, do que literatura. As estações do homem, como as dos restantes mamíferos, regem-se pela linearidade... E é a essa linearidade que escapa o pinheiro, mas já não a caruma...

A inevitabilidade do fluxo perturba e, por isso, sempre que podemos, fugimos para a estação da fantasia, único lugar onde o refluxo ainda é possível: preferimos o sonho à vida para não termos de enfrentar a morte - esse lugar inexorável onde a ténue linha termina.

1.10.06

No Outono, a caruma...

 Avoluma-se sob o verde, a caruma. As agulhas despedem-se temporariamente das pinhas para lhes prepararem o leito da morte. E lá longe, já perto, ecoa o rugido do oceano... Nada disto é literatura... nada disto é nadaisto é, nada disto é renovação, renascimento, ressurreição... Quando mudamos de estação, quando mudamos de língua tudo se torna mais sombrio... Na literatura, não: podemos fingir, simular que voltamos, outros, atrás...

26.9.06

Um diálogo absurdo?

(Um diálogo sem tom... ou talvez um pouco arrastado e monocórdico) - Minha Senhora, que horas são? - São três e um quarto? -Muito obrigado. (Pausa de 20 segundos) - Meu senhor, que horas são? - São três e 20. - Muito obrigado. (Para a primeira interlocutora) - No relógio daquele senhor são três e vinte! - Pois é! O meu relógio deve estar um pouco atrasado... - Pois é! Muito obrigado. (Pausa de três minutos) - Minha senhora, que horas são? - São três e 20. - Muito obrigado. Ah, mas no relógio daquele senhor são três e 25! - Pois é. Ainda não acertei o relógio! - É pena! Onde é que estamos? - Na paragem do aeroporto. - Muito obrigado. Há aqui um aeroporto? Para quê? Vozes espontâneas: - E se fosse apanhar o avião!?

Há cada vez mais perguntas absurdas, perguntas que não procuram uma resposta. Perguntas que, apenas, servem para experimentar o outro - o amigo, o colega, o vizinho, o estranho, sobretudo o estranho (o sociólogo dirá que a pergunta pode criar uma relação de vizinhança!) ... Perguntas estranhas que servem para assegurar que o outro ainda nos vê ou nos ouve. E o outro, polido, lá vai respondendo monotonamente: - São 17:12 horas... Os outros, sem paciência, já há muito que deixaram de ouvir!

E se deixássemos, todos, de fazer perguntas?

24.9.06

Um sargento de Abrantes...

Lembrou-me agora que há 60 anos, em Abrantes, havia um sargento que gostava de castigar os soldados, obrigando-os a subir um monte com um almude de água às costas para, depois de o esvaziar, repetirem o movimento até à exaustão.

Digamos que, deste modo, o sargento colocava à prova a resistência de homens que, talvez, mais tarde, numa qualquer guerra, lhe ficassem eternamente gratos.

Os sargentos sempre gostaram de se imaginar no papel de Zeus ao condenar o mestre da malícia e dos truques - Sísifo - a rolar a grande pedra de mármore até ao cume da montanha, para depois Zeus a impelir impetuosamente para o vale, recomeçando Sísifo, indefinidamente, o movimento...

E por isso, as tarefas que envolvem esforços inúteis passaram a ser chamadas "trabalhos de Sísifo"...

Creio bem que, hoje, continuamos a ser instruídos por um sargento de Abrantes que, perante a anuência das praças, as condena eternamente aos trabalhos de Sísifo...

 

20.9.06

Não há consciência sem causas...

A Amnistia Internacional decidiu no dia 18 de setembro atribuir a Nelson Mandela o prémio «embaixador da consciência» para o ano de 2006.

O modo como Mandela conduziu a sua vida desde que saiu da prisão em fevereiro de 1990 tornou-o no símbolo do que deve ser um verdadeiro cidadão do mundo. O valor do serviço prestado à causa da liberdade e da justiça na África do Sul (e por arrastamento na África austral) é incalculável.

Apesar do reconhecimento internacional, a vitória sobre o 'apartheid' não significou para Mandela o fim da sua ação, pois a consciência de que a desigualdade é multiface levou-o a empenhar-se numa outra "causa" - a síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA) deve ser encarado como uma questão de direitos humanos. É esse, hoje, o seu maior combate.

(Se me refiro a Nelson Mandela é porque ele é o exemplo de que não há consciência sem causas.)

Ora, nas nossas escolas, há cada vez mais jovens indiferentes ao que os rodeia, sem vontade de procurar um rumo... estão ali, sentados como prisioneiros desalinhados, esperando que os carcereiros os ignorem. E mesmo que a porta se abra, não indiciam qualquer tentativa de fuga. Parece que se sentem bem na caverna, na masmorra.

E porquê? Será que já nascemos sem causas...

 

17.9.06

Rosas-negras e brancas, ainda que vermelhas...

O monólogo "Ventos de Leste", interpretado por Natasha Marjanovic, mostra à saciedade como os "interesses" inconfessados podem dividir o que parece inseparável. E também mostra como o multiculturalismo é frágil. Qualquer faúlha pode gerar um incêndio e toda a caruma é consumida ou obrigada a partir para países distantes onde a língua começa por ser um obstáculo desesperante.

Mas deste ora divertido ora lancinante monólogo resulta também a ideia de que o "estrangeiro" antes de 'aprender a língua' se vê obrigado a 'aprender a terra'. Este último imperativo também devia ser posto em prática pelos nativos.

'Aprender a terra" significou para esta ex-jugoslava confrontar-se com uma série estereótipos bem diferentes dos da pátria de Tito. Parece, hoje, uma imigrante aplaudida, mas, aqui, é apenas uma entre os 360.000 que tiveram de abandonar a ex-Jugoslávia. Em nome do quê? de quem?

- Pergunta sem resposta.

(No solo da Gulbenkian, onde decorreu este espetáculo, estiveram presentes o engenheiro Guterres, esposa e outros familiares ilustres, estes um pouco mais distantes. Curiosa foi a preocupação de um funcionário da Fundação que quis libertar o ilustre espetador do sol tímido que lhe espreitava o couro cabeludo. No entanto, o engenheiro, sorridente, em mangas de camisa, não acedeu a trocar o sol pela sombra..., embora deva ter saído a pensar naqueles anos da sua governação em que a NATO bombardeava indiscriminadamente civis e militares, em vez de se limitar a perseguir "os interesses"...)

De Portugal fica a imagem de um estado folclórico em que a burocracia é tão severa como as bombas da NATO.

O público aplaudiu de pé. O sucesso da imigrante? A performance da atriz? As bombas da NATO? Os mortos de uma guerra fratricida? O jeito que nos dá que haja guerra em qualquer outro lugar que não na 'nossa' terra?

O público aplaudiu. Natasha recebeu rosas-negras e brancas, ainda que vermelhas, contrariando a profecia materna de que em Portugal ela não viria colher rosas.

 

13.9.06

Nenhum tapete é cego...

caruma, ultimamente, tem estado menos reflexiva porque, como tapete que é, não tem podido ir além dos pés que, sorrateiramente, a vão calcando.

Este estatuto de tapete é, no entanto, um privilégio porque liberta a mente e deixa os olhos pousar livremente sobre os sinais do oportunismo e do laxismo que vão grassando nas ruas das cidades e aldeias.

(Se o autocarro está a abarrotar - coisa que não deve ser verdade porque há anos que a Carris vem perdendo clientes! -, o passageiro, em vez de entrar pela porta de entrada, entra pela porta de saída... E o motorista sem nada ver... E atrás de um vão seis ou sete! E os outros, os cumpridores, lá ficam na paragem, surpreendidos, esboçando algumas palavras surdas.)

E os olhos da caruma que, pela sua natureza, podem ver de baixo para cima, andam um pouco desorientados, porque ninguém lhe explica por que motivo é que há tantas cadeiras vazias e, sobretudo, como é que se pode trocar de cadeira sem qualquer tipo de explicação... No meio da dança das cadeiras, quem se amolga é o tapete.

Fica, todavia, o reparo: nenhum tapete é cego.

 

10.9.06

Vai crescendo o saramago....

"Vai crescendo o saramago / embaraçado no trigo / eu queria ser saramago / para abraçar-me contigo..." António Pinto Basto, álbum "rosa branca"

Nesta fase, só interessa ser o "trigo" ou, talvez a "rosa"; o saramago, como a rémora, aproveita a viagem, enleia-se na haste até a sufocar e os poetas chamam-lhe amor... Um amor oportunista sai-lhes da voz, pronto a zarpar à menor dificuldade.

Nesta fase, não vale a pena sorrir... o "trigo" nutre; a "rosa" alenta, mas, ao anoitecer, estiola...

Por isso, nesta fase, de nada serve ser "rosa"... e muito menos "saramago"...

Apenas trigo.

 

4.9.06

Se ao menos pudesse ter a calma necessária...

«Estranho, como uma coisa a fingir, se usada sistematicamente, se pode tornar realidade.» Franz Kafka, Diários, 24/1/1922. 

Lisboa. 41 graus centígrados. Sufoco. O cérebro desloca-se, perplexo, do amigo, confrontado com um eritema nodoso para o desalinho em que caiu o quarto dos fundos… (Ah! Se um quarto exprimisse a alma do seu ocupante! Esperemos que a alma seja bem mais rica, apesar do desalinho!) Ao sair do quarto, em que, de facto, prefere não entrar, o cérebro interroga-se sobre o sentido das depressões passageiras ou, talvez, seja melhor pensar que, também, na depressão pode haver pausas sazonais… E, subterraneamente, continuam activos dois cenários de morte – o da absurda teimosia vingativa que destrói o coração do companheiro de uma vida de 50 anos, sem qualquer manifestação de culpa (só ficou o alheamento mudo!); o do ódio de sangue que emerge de sexualidades travestidas, em que o amor e o ódio se irmanam numa luta de morte pela vida. 

- Se ao menos pudesse ter a calma necessária para não pensar nisto tudo… sem querer fugir disto tudo!

 

3.9.06

Não tem sentido fazer perguntas e esperar...

(…) perguntas que não obtêm respostas no momento exato em que são feitas nunca mais são respondidas. Não há nenhuma distância a separar quem faz a pergunta daquele que lhe responde. Não há distância a transpor. Daí que não tem sentido fazer perguntas e esperar. Franz Kafka, Diários, 28 de setembro de 1915. 

Poder-se-á dizer que este raciocínio deita por terra o velho estratagema do professor que, considerando a pergunta inoportuna, responde ao aluno que aquele não é o momento apropriado. De acordo com Kafka, a pergunta não admite qualquer tipo de espera. E, talvez seja essa a razão por que, muitas vezes, abdicamos de fazer perguntas. 

2 de setembro de 2006. (Vem esta reflexão a propósito de uma situação explosiva, vivida por uma velha mãe (83 anos) e de dois filhos igualmente velhos, apesar dos seus 55 e 57 anos (?), respetivamente.) Nenhum dos três revela qualquer tipo de autodomínio verbal, podendo-se colocar mesmo a hipótese de a violência se transformar ou de já se ter transformado em agressão física. Numa tentativa de mediação e de compreensão da dimensão do problema, o mediador procura confrontar as partes, interrogando-as sobre a verdade das acusações proferidas. E, aqui, surge a grande dificuldade: o interrogado “corta” a pergunta, para, de imediato, encadear uma lista de argumentos que inutilizam qualquer esboço de diálogo. E se, momentaneamente, menos exaltado, ouvir a pergunta na totalidade, recusa-a, no entanto, para retomar histrionicamente a sua lamentação –acusação. E se pensarmos que esta procura de respostas se desenrola, quase sempre, em situações de tensão extrema, podemos compreender como é fundamental a formação dos actores (mediadores) solicitados a intervir nos diversos contextos sociais: escolas (sala de aula), esquadras, gabinetes de psicólogos / psiquiatras, tribunais, lares (de terceira idade e não só…), bairros marginalizados, estabelecimentos prisionais… Hoje, sei, que toda a pergunta merece uma resposta adequada, imediata. Mas também sei que não estamos preparados para ajudar a dar essa resposta. E creio que a dificuldade maior está em não sabermos formular as perguntas. Há, contudo, que ressalvar os cenários de autodestruição, assim como os cenários de egotismo irredutível.

Nestes territórios, o mediador corre o risco de ser abatido.

 

1.9.06

O círculo fantasmático do desencontro...

Absurdamente, estou cercado de discursos ansiosos, de corpos expetantes.

Por isso bem gostaria de saber lidar com a depressão. Não com a depressão abstrata, essa não me interessa. Interessa-me, sim, o círculo fantasmático do desencontro...

Na sociedade ocidental, a depressão é vista como um comportamento individual. Como uma dificuldade de adaptação à velocidade, como se houvesse necessidade de o indivíduo se encaixar na totalidade...

Por outro lado, o diagnóstico do estado depressivo parece pressupor que a totalidade está certa e o indivíduo está errado. Mas será mesmo assim?

Para tratar o problema, existem os psicólogos, os psicanalistas, os psiquiatras, os padres, os exorcistas, os conselheiros, os feiticeiros e outros que tais. Todos se propõem tratar o indivíduo. Todos procuram a causa no indivíduo. Todos propõem /impõem um tratamento mais ou menos drástico ao indivíduo. Nenhum procura a causa no modo como construímos /agimos sobre o cosmos.

A constante aceleração e a constante mudança devoram, a cada segundo, milhares de indivíduos, deixando-os à beira do precipício, senão aniquilando-os ...

Por isso, há cada vez mais indivíduos que procuram «não ter consciência disso», porque «não ter consciência» é um bom remédio para a depressão... Como culpabilizá-los por isso?

E a terceira via parece não ser muito simpática: contra a depressão, contra «não ter consciência disso» só resta a revolta...

E infelizmente para que a revolta faça sentido, ela necessita de recorrer às mesmas armas que provocam a depressão!

(Lá fora, num qualquer palco soa um batuque que vai "secando" a consciência. Ou será que apela à revolta? Entretanto, a depressão alastra, contamina tudo à sua volta...)

 

28.8.06

A "morte" do professor?

«O que parece certo é que a deslegitimação e o predomínio da performatividade são o dobre de finados da era do professor: ele não é mais competente que as redes de memórias para transmitir o saber estabelecido nem que as equipas interdisciplinares para imaginar novos lances ou novos jogos.» Jean-François Lyotard, A Condição Pós-Moderna,3ª edição, Gradiva, 2003.

A minha insistência em algumas das questões abordadas por Jean-François Lyotard pode parecer excessiva, no entanto, ela resulta da tentativa de procurar saber qual é, hoje, o papel do professor. Para Lyotard, o professor detentor e transmissor do saber está condenado a desaparecer. A didática pode ser confiada a máquinas que liguem as bibliotecas e as bases dados a terminais inteligentes postos à disposição dos estudantes. E essa tem sido a opção dos países ricos.

Neste contexto, a aposta no professor é um sinal de pobreza. Apesar disso, ainda sobram algumas tarefas que o professor poderá executar, se for capaz de se adaptar à nova realidade, isto é, à interdisciplinaridade e ao trabalho em equipa.

Ensinar aos estudantes:

  • o uso dos terminais, ou seja, as novas linguagens;
  • o manuseamento mais refinado desse jogo de linguagem que é a interrogação - Qual é a memória pertinente para o que quer saber? Como formular a questão para evitar equívocos?
  • os critérios de validação da aprendizagem: Para que serve? É vendável? É eficaz?
  • a aperfeiçoar e a acelerar a imaginação, enquanto capacidade de articular séries de dados tidos como independentes;
  • a conectar campos de conhecimento que a organização tradicional do saber isola.

Portugal, em vez de imitar os países ricos, deve apostar na formação permanente dos seus professores de modo a ajudá-los na mudança a que necessariamente não podem escapar.

 

26.8.06

O vínculo social e o princípio da performatividade

«O estado e/ou a empresa abandonam a narrativa de legitimação idealista ou humanista para justificar a nova situação: no discurso dos capitalistas de hoje, a única situação merecedora de crédito é o aumento do poderio. Não se pagam sábios, técnicos e aparelhos para saber a verdade, mas para aumentar o poderio Jean-François Lyotard, A Condição Pós-Moderna

Afinal, a decisão de eliminar a abordagem da literatura, em si e numa perspectiva diacrónica, resulta da necessidade de legitimar a decisão do estado e das empresas de apenas apostarem na expansão do poder, deixando cair por terra tudo o que, desde o Renascimento, suportava o vínculo social.

Assim se compreende que o professor tenha cada menos poder de decisão, pois deixou de ser pago para ajudar a criar uma sociedade mais justa, mais verdadeira, mais bela. Hoje é pago segundo o critério da «eficiência»: «um acto «técnico» é bom quando realiza melhor e/ou gasta menos que outro»

A formação do professor obedece cada vez mais a uma lógica em que o princípio da performatividade justifica todas as decisões por mais que elas atentem contra o vínculo social.

 

24.8.06

Em vez da dúvida e da descrença...

«O saber em geral não se reduz à ciência, nem mesmo ao conhecimento. (...) O saber é aquilo que torna qualquer pessoa capaz de proferir "bons" enunciados denotativos, mas também "bons" enunciados prescritivos, "bons" enunciados avaliativos...» Jean-François Lyotard, A Condição Pós-Moderna

Sempre que o regresso à escola se aproxima, desponta a dúvida: Que sei eu que valha a pena partilhar? À medida que os anos passam, essa dúvida é cada vez mais forte: De que lhes poderá servir o meu saber?

Por outro lado, quando os conteúdos culturais são banidos dos programas e substituídos por meras rotinas, a descrença avoluma-se, porque, ao pôr-se em causa o conhecimento, abre-se a porta ao declínio do ser, à morte do saber...

Ora, ao regressar à escola, em vez da dúvida e da descrença, seria bom que o professor o fizesse com a convicção necessária a tornar qualquer pessoa capaz de proferir "bons" enunciados...

O que me vai obrigar a falar menos e a ouvir mais...

 

23.8.06

Os diferentes rumos do cinema

Miami Vice, de Michael Mann, EUA, 2006 Sonhar com Xangai, de Wang Xiaoshuai, China, 2006

(Salas Monumental e King. Na primeira, a aposta é na publicidade e na intoxicação sonora. Na segunda, a publicidade é discreta e o registo sonoro moderado.)

Miami Vice parece não ser mais do que a expressão sofisticada de um mundo onde o único valor é o dinheiro. No entanto, Michael Mann deixa no espectador uma certa simpatia pelos traficantes, deslocando o mal dos cartéis de droga regionais para um inimigo global de rosto árabe. No essencial, é esse o objectivo: mostrar que o novo inimigo dos EUA é filho de Bin Laden.

Por sua vez, Sonhar com Xangai retrata-nos a China interior dos anos 80, onde o Partido Comunista determina a vida dos militantes, tal como o marido determina a vida da mulher ou o pai determina a vida da filha.

Porém, o filme não é tão linear como se poderia pensar: alguns militantes revelam desejos capitalistas (querem regressar a Xangai, contrariando a política oficial); a relação entre marido e mulher pode ser autoritária ou tolerante (dois casais, dois modelos comportamentais); o modelo educativo também pode ser fechado ou aberto...

No essencial, Wang Xiaoshuai não se deixa seduzir pelos estereótipos, porque as filhas dos dois casais que protagonizam a "estória" acabam por sucumbir a uma "força" que reduz a nada os padrões educativos.

De qualquer modo, um dos prevaricadores acaba por ser executado, pois o Partido determina que esse é o castigo para os violadores.

Estes dois filmes acabam por mostrar que, na China, o cinema procura libertar-se da ideologia dominante e que, pelo contrário, nos EUA, o cinema está cada vez mais comprometido com a política republicana.

 

20.8.06

O que o Meco pode ocultar...

 Enquanto a natureza se expõe, imperturbável, tu viajas, com os amigos, lentamente, de Zagreb a Paris, na expectativa de lá chegares a tempo de celebrares os teus 23 anos. E, nós, na expectativa de que assim seja. Embora a paragem em Grenoble tenha retardado esse propósito, acabaste, felizmente, por chegar a Paris ao fim da tarde deste domingo, para ti, inesquecível e, para nós, de ansiedade... E para trás, vão ficando o Rio da Prata, o Cabo Espichel, Vila Nogueira de Azeitão ..., involuntariamente visitados pelo Kafka que adorava Berlim e detestava Viena e, para quem, ironicamente, bastava um quarto e uma dieta vegetariana...

 

As dissonâncias no MECO

 Rio da Prata. Vá lá saber-se porquê? Praia célebre, de difícil acesso. Reserva naturista. O Nu masculino predomina, mesmo que a beleza dos efebos esteja arredia. Esses passam, vestidos, curiosos, provavelmente a identificar as presas.... Há, por ali, cachos de uvas ritualmente lavados nas águas oceânicas ..., a lembrar cenas da Grécia antiga ou da Roma dissoluta. (Estive 2 horas nesta reserva, a observar de soslaio a natureza humana e a ler os Diários de Kafka e fiquei com pena de não ser Kafka para descrever as dissonâncias que se colavam ao areal e, a espaços, invadiam o mar.…)

Cabo Espichel

 Longe da terra, perto do mar, à semelhança do Cabo S. Vicente ou do Cabo Raso. Se no passado os conseguimos dobrar, hoje, não sabemos o que fazer com eles. Triste sina! 

Santuário de Nossa Senhora (Cabo Espichel)

Apesar da igreja ter sido restaurada, os edifícios laterais, à falta de romeiros, estão ao abandono num dos cenários portugueses de céu-e-mar mais fascinantes. A ideia de preservar a beleza, a todo o custo, acaba por inviabilizar a manutenção do património histórico e desertificar um território que poderia ser uma fonte de riqueza.

 

17.8.06

A hipoteca

Quando o tempo começa a escassear, insistimos em olhar para trás, procurando ansiosamente uma explicação para as fragilidades do presente.

Um meio inculto, uma família analfabeta, o caciquismo ignóbil, um pai ausente, uma mãe autoritária, uma avó fantasmática... tudo nos serve para justificar os projectos inacabados, as relações fracassadas...

Passamos a preferir às incertezas do presente e aos medos do futuro as certezas (re)construídas do passado. Damos a vida por elas - as certezas -, hipotecando definitivamente o pouco tempo que nos resta...

Estranhamente, abdicamos de viver... e nem sequer o fazemos como forma de preparar uma outra aurora, essa, sim, primaveril e gloriosa!

 

16.8.06

O interesse dá um passo em frente...

Num local onde começa a sentir-se a pressão para que o plano diretor municipal reconverta os prédios rústicos em urbanos, o fogo atuou de forma inteligente: devorou grande parte de três pequenos prédios rústicos, sem importunar nem a casa (entretanto, ligada à rede elétrica) nem o pomar que os ladeiam. E também deixou incólume, do lado contrário, junto a uma estrada municipal, o posto de distribuição elétrica e a instalação de distribuição de água a uma propriedade onde, ainda, há muito pouco tempo era visível um "pedido" de autorização de construção de uma vivenda.

Por aquilo que qualquer transeunte pode observar, a autorização de construção ainda não foi concedida, mas a "luz" e a "água" já lá estão à espera..., a troco de alguns milhares de euros recebidos por algum funcionário mais zeloso dos serviços municipais e da EDP...

Esta ideia de observar as pequenas alterações da paisagem e dos humores humanos pode ser muito maliciosa, mas, desta vez, a caruma está convencida que o combustível que incendiou o mato, o silvado, aquelas míseras oliveiras, deixou a descoberto o estéril poço e calcinado o tímido ribeiro, foi o interesse que não olha a meios para atingir os seus fins.

Ao desvalorizar a propriedade, o interesse dá um passo em frente para condicionar o plano diretor municipal e, sobretudo, para abocanhar tudo o que cobiça.

Enquanto algumas luminárias continuam preocupadas com as fronteiras que separam (ou não) a literatura do jornalismo, seria bom que este último estivesse mais atento às pequenas (ou grandes) alterações da paisagem e seguisse, de perto, os passos do interesse.

15.8.06

A política dos interesses

Há alguns dias, interrogava-me, aqui, sobre as causas que vêm determinando que a literatura deixe de ser ensinada nas nossas escolas, secundado na palavra de Kafka para quem o conhecimento da literatura (e da sua história) está intimamente relacionado com o fortalecimento da consciência nacional. Talvez o conceito «consciência nacional» mereça ser revisto, pois, a sua legitimação (dos nacionalismos) teve ao longo do século XX elevados custos para as populações. No entanto, a maioria dos conflitos, nos últimos tempos, tem tido como pretexto-máscara a exploração dos antagonismos religiosos e não da «consciência nacional».

Fica, porém, a ideia de que a nossa política externa é a dos interesses, como bem refere Carlos Pacheco (Público, 15/08/2006 - O calcanhar de Aquiles de Portugal em África), quando, citando políticos, banqueiros..., refere que «não há outros valores, foi sempre assim e não é agora que a corrente da história mudará.» E para melhor fundamentar o seu pensamento, Carlos Pacheco recorre às cartas do Padre António Vieira, escritas do Maranhão, em que este denuncia os crimes cometidos contra dois milhões de índios, num período de 40 anos, sem que ninguém tenha sido punido.

Ao cotejar este artigo de Carlos Pacheco com a notícia de que a ministra da cultura, Isabel Pires de Lima, quer mais promoção literária no mundo anglo-saxónico, voltei a aperceber-me que apenas os «interesses» norteiam o pensamento dos nossos dirigentes, pois, afinal, a principal crítica que a ministra faz ao IPLB (Instituto Português do Livro e das Bibliotecas), é que este «tem descurado este mercado» (anglo-saxónico, diga-se) ...

Tudo isto, num país, cuja Lei nº23/2006, de 23 de junho, dá aos alunos do ensino primário, quando constituídos em associação de estudantes, o «direito a emitir pareceres aquando do processo de elaboração de legislação sobre o ensino, designadamente em relação aos seguintes domínios: a) definição, planeamento e financiamento do sistema educativo; b) gestão das escolas; c) acesso ao ensino superior; d) acção social escolar... (artigo 17º). Ver José Dias Urbano, Público, 15/8/2006, Novos disparates educativos, novos caminhos para o insucesso...

Compreende-se, deste modo, que o ensino da literatura (ler o Padre António Vieira das Cartas, por exemplo) já não é apenas uma questão de «consciência nacional», é, sim, uma questão de formação da consciência - o lugar dos valores, do livre-arbítrio...

A alternativa já vigora: a política dos interesses. E os governantes sabem que a literatura é inimiga dos interesses... e que ela devia ser lida nas escolas, em todas as escolas...

12.8.06

Os incêndios que nos devoram a alma...

Franz Kafka pensava, em 1911, que «a memória de uma pequena nação não é mais pequena do que a de uma grande nação e pode por isso digerir melhor o material existente.» Diários

Este calor atrofia o cérebro e devasta a floresta, deixando a caruma reduzida a nada ou, pior ainda, como primeira suspeita da tragédia que, anualmente, empobrece os pobres e fabrica novos-ricos. Estes incêndios estivais são uma boa ajuda à política de emparcelamento que tem vindo a recuperar terreno, deixando no esquecimento o tempo em que se lutava contra os latifúndios. É toda uma literatura que voluntariamente se obnubila!

Por vezes, interrogo-me se esta política educativa que rejeita o ensino da literatura é apenas um sinal da ignorância de quem nos governa, mas, quando observo os lugares onde os incêndios deflagram, dou comigo a pensar que todas estas pequenas courelas vão mudar de mãos - de muitas e humanas mãos para a uma mão anónima e desumana... E, nesse momento, sei que Kafka perdeu a razão ao pensar que defender a literatura era defender a consciência nacional, pois esta é, hoje, um escolho na aposta da globalização. De facto, o destino da memória das pequenas nações já está traçado, desde o fim da 2ª Guerra Mundial.

A globalização é uma efectiva inimiga das literaturas regionais, nacionais e mesmo continentais.

Numa sociedade global não haverá definitivamente alma e por isso, enquanto ardem os campos, a guerra alastra no Médio Oriente - a outra face da luta titânica pela hegemonia global.

9.8.06

Réplica

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Esta seria a 'planta' original da casa em que nasceu Vergílio Ferreira. 

O local em que nasceu Vergílio Ferreira

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As alterações feitas ao edifício original desgostaram profundamente o autor. 

Museu etnográfico de Melo

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O Senhor Luís Filipe, a alma do museu. 

A casa dos pais de Vergílio Ferreira

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Casa construída após terem emigrado para os Estados Unidos da América 

Em Melo, quem diria?

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A árvore dos kiwis na Quinta das Cegonhas

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Um toque de leveza burguelense

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CID EL CAMPEADOR

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O candeeiro e a catedral de Burgos

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Burgos

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Tarbes

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Parcours suspendu na Vallée du Moudang

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Igreja de St-Lary Soulan

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St- Lary Soulan

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7.8.06

Perplexidades de férias

Já, aqui, falei do GPS que, entretanto, resolveu ser bom conselheiro se excetuarmos algum desconhecimento de certos terrenos em que a mão humana terá atuado recentemente. No entanto, estou algo perplexo sobre a utilização deste equipamento já que descobri que um francês e um alemão se encontram presos no Irão, acusados de terem entrado ilegalmente em águas iranianas (ou pelo menos proclamadas como tal!) na posse de um suspeitíssimo GPS. Por outro lado, as autoridades francesas também penalizam severamente os condutores que utilizem este aparelho como meio de “controlar” os seus radares. No meu caso, ainda não descobri como é que posso ludibriar as autoridades (!!?), embora tenho descoberto que o GPS me dá uma indicação sobre a velocidade do veículo mais rigorosa do que o conta-quilómetros – 7 quilómetros abaixo. O que eu ainda não referi é que fui traído pela restante tecnologia. O meu Vodafone mobile connect card, que me devia permitir aceder à Internet, revelou-se um fiasco. Apesar de ter comprado previamente 50 Mbytes de modo a embaratecer o roaming, só uma vez conseguir aceder à Internet em terras de Espanha e de França. Segundo o serviço de apoio ao cliente, a minha versão do software data de 2004 e por isso não suporta esta minha pretensão. O interessante é que vou ter de pagar por um serviço de que não usufrui! Por sua vez, o meu telemóvel (da TMN) deixou de poder ser recarregado, recorrendo, por exemplo, ao sítio online da CGD. E sem saldo, não se pode fazer nada, nem mesmo comunicar com a TMN, apesar dos sms da operadora a lembrar-nos as modalidades de recarregamento, em roaming. E isto aqui tão perto! Imaginem-se as dificuldades em comunicar por telemóvel com uma filha que ora está na Hungria, na Roménia, na Áustria, ora na Eslováquia, na Croácia… E se tivermos a pretensão de mergulharmos, em plenas férias, nos vales pirenaicos espanhóis e franceses, então, mais vale, gastar uma semana das férias a certificarmo-nos que o nosso manual de bordo responde a todos estes escolhos. Entretanto, esta região dos Hautes –Pyrénées é extremamente agradável, apesar de, talvez à semelhança de certas estações de caminho de ferro portuguesas, nos presentear com paragens de autocarro por onde, desde o início de julho até 12 de dezembro, não passa qualquer destes veículos. Quem quiser deslocar-se, só no seu próprio veículo o poderá fazer, e isto quando a gasolina chega a custar 1, 48 euros. A União europeia parece, no serviço ao utente, estar bem afinada. Já em Sória, tive a felicidade de descobrir um centro comercial aberto ao público, tipo “Colombo”, onde o hipermercado só abrirá em dezembro para desconforto e prejuízo dos restantes lojistas! No entanto, o que são estes problemas se comparados com os dos libaneses, dos palestinianos, dos afegãos, dos iraquianos ou dos milhares de africanos que desesperadamente procuram entrar na Europa?

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Quanto ao que vale a pena visitar, registe-se que a cidade de Lannemezan parece de costas voltadas para o turismo. Basta pensar que, lá, é mais fácil comprar flores do que tomar o pequeno-almoço. Nos cafés, não é visível qualquer tipo de pastelaria. Num deles, chegaram a dizer-me que só vendiam bebidas, que fosse à padaria…. Encontra-se, no entanto, um espaço preparado para receber autocaravanas… com eletricidade, sanitários, lavagem de loiça… Tudo muda quando nos aproximamos de Arreau e de St-Lary-Soulan.

Arreau

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Arreau, uma típica cidade pirenaica, entre St-Lary e Lannemezan.

 

6.8.06

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31 de julho e 1 de agosto La Puebla de Castro, Lago Barasona. Calor, muito calor. Os acessos ao vale prometem, mas a água do lago, nesta época do ano, não parece muito cristalina. O extenso parque de campismo está cheio de holandeses que vão estorricando ao sol, depois de uma passagem pela piscina ou pelo lago. De pele branca e cabeleira loira, estas famílias holandesas, que parece que nunca viram o sol, cozinham metodicamente as refeições diárias nos alvéolos, profusamente ocupados pelas respetivas tendas, atrelados e roulottes, para depois se encharcarem em mil e uma bebidas, todas elas coloridas. Alguns franceses e belgas quase não se fazem notar. De portugueses nem vale a pena falar… Os espanhóis ocupam preferencialmente os bungalows (bangalós), não se misturando nestas avenidas neerlandesas. Em alternativa, o percurso pedestre para La Puebla de Castro, mostra, do lado esquerdo, pequenas hortas, onde predominam o tomate, a cebola, o feijão verde, o pimento e o melão, e do lado direito, podemos ver uma zona florestal maltratada, mas que esconde belas e ricas vivendas. À medida que avançamos, o percurso pedregoso torna-se sinuoso e, sob o intenso calor das 17 horas, decidimos voltar para trás pois não encontrámos os vestígios românicos que Uma imagem com relva, ar livre, natureza, paisagem

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o roteiro nos prometia… e La Puebla de Castro esfumou-se… 2 de agosto Vindos de La Puebla de Castro, chegámos à Vallée du Moudang, tendo entrado em França pelo Túnel d’Aragnouet-Bielsa. Este túnel de 3 Km, a 1860 metros de altitude, foi inaugurado em 1976. Há uma diferença significativa em termos de paisagem e de clima. Os verdadeiros Pirenéus parecem estar deste lado. Será? Estamos instalados junto a um sonoro rio, num camping municipal, onde as restrições são muito maiores do que em qualquer camping espanhol. A torrente é fraca, mas pode aumentar a qualquer momento em virtude da abertura das comportas das múltiplas centrais hidroelétricas existentes na região. Ah! Les crues!

30.7.06

O GPS e o caos...

« Les gens ne changent pas. Ce sont les choses qui changent. » Boris Vian, L'écume des Jours

(28 de julho) Em Madrid, o GPS enlouqueceu ao chegar à Avenida de Portugal… O software não estava preparado para responder às alterações criadas pelas obras naquela avenida, na zona Puente del Rey e nas praças vizinhas. Advinham-se, por ali, obras faraónicas. A E90 (NV) morria numa misteriosa encruzilhada, sem que as autoridades dessem qualquer atenção ao trânsito verdadeiramente caótico. Despreocupadamente, ocupavam-se dos múltiplos acidentes que iam ocorrendo. O GPS, por seu lado, ordenava: faz inversão de marcha, vira à esquerda, encosta à esquerda, sai daqui a 200 metros, na próxima rotunda, sai na 5ª saída… Já na autoestrada da Corunha, continuava a ordenar: encosta à esquerda, vira à esquerda, contrariando as regras elementares do código da estrada… Se fosse a obedecer ao GPS, a esta hora estaria, no mínimo, preso… Para sair daquele labirinto, já que a E90 desaparecera de vez, ainda, consegui a proeza de entrar num terminal rodoviário subterrâneo, sem que ninguém se sentisse incomodado. Acabei por obedecer ao GPS que, mal entrei no subterrâneo, ordenou: faz inversão de marcha. De facto, não havia outra alternativa… Farto da Avenida de Portugal e de Madrid, rumei a Segóvia, onde já tarde, parei, finalmente, no camping o “Acueducto”. Curiosamente, Segóvia fazia parte dos meus planos de Páscoa. E ainda há quem negue que Deus escreve direito por linhas tortas! Segóvia Património da Humanidade desde dezembro de 1985. Acueducto-Catedral-Alcazár. E em Segóvia não faltam as igrejas: de San Martin, de Nuestra Señora de l’Asunción y de San Frutos (nome curioso para uma catedral, edificada no século XVI), de San Andrés, de San Esteban, de San Quirce, de La Santísima Trinidad, de San Nicolás, de San Miguel, de la Compaňia de Jesus, de San Sebastián, de San Juán de los Caballeros… e também não faltam os mosteiros e os conventos, para além do imponente e turístico Alcazar e da inevitável Plaza Mayor… E para atenuar um pouco este expressivo e fanático catolicismo, podemos visitar a JUDERÍA, confinada, a partir de 1480, a um bairro a sul da cidade, sobre o Vale del Clamores… Entretanto, na católica Espanha, só os conversos puderam permanecer na cidade após o édito de expulsão, em 1492…

24.7.06

Enquanto ardem as cidades libanesas...

«Quando a invasão ardia na Cidade / E as mulheres gritavam, / Dois jogadores de xadrez jogavam / O seu jogo de xadrez.» FP/RR (1/6/1916)

Lá longe, enquanto ardem as cidades libanesas, os grandes eleitores, cinicamenteadiam as tréguas na expectativa de que Israel conclua a devastação que lhes permitirá celebrar a vitória sobre as forças do Mal.

A ignomínia judaico-cristã alastra, obrigando milhões de indefesos a abandonar as casas a que jamais poderão voltar e nós, por aqui, indiferentes, continuamos a armar as nossas pequenas ciladas...

Em 14 dias, nos bastidores, desenhou-se uma nova estratégia e o sentido do voto mudou radicalmente. Os eleitores não fizeram qualquer exigência aos eleitos. E estes também não apresentaram qualquer projecto nem fizeram qualquer promessa.

Terminada a nova eleição, sente-se um alívio generalizado. Como se cada um acabasse de se libertar de um terrível fardo.

O que é que, de verdade, nos move? Será que queremos responder a esta pergunta crucial?

A Escola ainda está a tempo de nos ajudar a responder a estas questões se quiser colocar os olhos na sua única razão de ser: o aluno. Ou, então, mais vale fechar a porta porque os jogadores de xadrez há muito que abdicaram da vida...

E por isso, para aqueles que se possam interrogar sobre o que me move, esclareço que não abdico...

23.7.06

A responsabilidade é francesa...

"Nullum recusare periculum"

O legado romano deixou-nos uma noção de responsabilidade associada ao exercício da autoridade (auctoritas). Se, um dia, o homem peninsular quis(?) limar o seu comportamento teve de pedir auxílio aos franceses ou, melhor, suportar a presença dos franceses que o ensinaram a responder pela terra (a mulher, quase sempre) que ficava a seu cuidado. O vassalo aprende a responsabilidade com o (a) senhor. As cantigas de amor testemunham essa aprendizagem, tal como as cantigas de escárnio e maldizer mostram a dificuldade de o homem peninsular assumir a responsabilidade - a dificuldade em responder pelos seus actos. O homem da cantiga de amigo (o amigo peninsular) parte, sem consciência dos seus actos. Sem dar notícia, deixa a saudade nas ondas, no vento que irrompe pelos pinhais e pelas ermidas...

A assunção da responsabilidade exige que a comunidade não se alheie dos problemas e que não ceda ao capricho da manada...

19.7.06

Cabeças desafinadas...

Neste pequeno mundo harmonioso, em que se cruzam vaidades flamejantes e se disfarçam inépcias, uma pergunta salta violenta:

- Mas então os Coordenadores não têm o direito de votar segundo a sua própria cabeça?

Esta pergunta foi dada como resposta a uma outra pergunta (a melhor defesa é o ataque!):

- Como que é que os membros de cada Departamento irão reagir perante a decisão dos seus Coordenadores de concentrar numa única cabeça os poderes executivo e pedagógico?

(A sereia começa a embalar-nos com o mote: Governar em dita...dura... dita...dura...)

Esta pergunta, para mim, não é uma questão de retórica. A aceitação passiva desta decisão significa que rejeitamos efetivamente qualquer projecto que ouse apelar à participação da comunidade educativa.

"Quando uma pessoa que organiza e orienta um projecto ou atividade de grupo" - o Coordenador - delega essa competência numa cadeira vazia, essa pessoa, se pensasse pela sua cabeça, deixava, também, vazia, a sua cadeira...

 

17.7.06

Um corretor esdrúxulo...

Uns preferem o discurso esdrúxulo, outros o discurso descarnado.

Quando a um examinando de poucas palavras sai um corretor esdrúxulo, podemos dizer que está tramado. E se à concisão juntar uma letra miudinha, seca, tímida - reveladora de uma personalidade introvertida - então, não tem qualquer hipótese. O corretor esdrúxulo prefere a letra garrafal, alongada, pronta a derramar-se num infinito oceano lírico...

Hoje, tive a oportunidade de observar como trabalha o corretor esdrúxulo: rejeita a letra miniatural, embora sublinhe zelosamente os grafemas maiúsculos que histericamente se elevam sobre a imaginária pauta; rejeita a brevidade da resposta sem cuidar de lhe interpretar o sentido (o conteúdo?); rejeita a fria e simples enumeração dos traços da personagem; rejeita a resposta crítica do examinando que, seguindo o autor, entende que D. João V teria feito melhor em investir o ouro do Brasil na construção da passarola do que na construção do convento de Mafra; rejeita a competência argumentativa e o espírito de síntese porque o examinando ao expor a tese (no 1º parágrafo) não explicitou que a exploração espacial possa ter resultado da incapacidade dos políticos resolverem os problemas da sua terra. No entanto, o examinando desenvolveu a tese, argumentando que o egoísmo, o desejo de protagonismo, nos levam frequentemente a cortar com os nossos semelhantes, em nome de uma singularidade e de uma superioridade discutíveis.

Esta fobia do corretor esdrúxulo valeu ao examinando uma surpreendente classificação final de 7,5 valores, perdendo, pelo menos, 4 valores.

Uma parte do problema reside precisamente na falta de qualidade das provas de avaliação e na forma arbitrária como são classificadas...

Ora, esta questão só pode ser resolvida no âmbito da formação inicial e contínua dos professores...

16.7.06

Problema II

I - "Há que evitar que aqueles alunos que leram os autores indicados pelo Programa de Português possam ter melhores resultados do que aqueles que se limitaram a preencher formulários, a fazer relatórios, a digitar mensagens eletrónicas, a desrespeitar os colegas e os professores, a faltar às aulas, a anular a matrícula. E porquê? Porque os primeiros podem ter memorizado os conteúdos sem nada terem compreendido." (Pensamento cavo do presidente da Associação de Professores de Português)

Na perspectiva deste singular teórico do ensino da língua portuguesa, os autores da lusofonia (poetas, romancistas, dramaturgos, ensaístas) são uma maçada que tolhe a inteligência da nossa juventude.

Tal como as nossas escolas merecem um novo modelo de gestão, a APP merece uma direcção orientada para o ensino e para a aprendizagem da língua (sem escamotear a cultura e a literatura lusófonas!), mais preocupada com a formação dos professores...

Não podemos ignorar que o futuro de Portugal passa pelo território da lusofonia. E só conhecendo a alteridade lusófona, poderemos ser aceites como parceiros na construção do futuro.

II - Retomando o Problema I

Quem é que, desde 1974, recusa que as escolas sejam dirigidas por gestores profissionais, enquadrados por um conselho escolar (pedagógico, técnico e administrativo) que trabalhe para que os alunos tenham efectivo sucesso escolar?

Quem é que, em vez de avaliar e corrigir as causas do insucesso educativo, forçou uma revisão curricular posta em causa desde o início? A quem é que serve a actual revisão curricular?

Quem é que dá a mão a Associações espúrias que, em nome de uma globalização paroquial, aposta num conjunto de competências mínimas que impedem que o aluno tenha sucesso escolar e, sobretudo, sucesso na vida?

Quem é que, nos últimos 30 anos, entregou a formação de professores dos ensinos básico e secundário a instituições incapazes de formarem os seus próprios docentes? A formação de professores foi entregue às Escolas Superiores de Educação que rapidamente ocuparam terenos que não eram da sua competência. Foi entregue a departamentos que germinaram nas Universidades, mas que nunca foram avaliados. A formação, nos dois casos, está entregue a professores que desconhecem o terreno que os formandos terão de pisar. Universidades e Institutos privados 'formaram' milhares de professores, sem qualquer enquadramento legal. Muitos dos formadores não eram sequer profissionalizados. Tal como acontece com os mestrados e os doutoramentos em curso, os candidatos a professores eram admitidos desde que pagassem as propinas - o famigerado autofinanciamento do ensino superior tem vindo a gerar prejuízos incalculáveis para as futuras gerações.

III - Algumas soluções

  • Acabar com a separação entre os ministérios da educação e do ensino superior...
  • Criar gabinetes de estudos no interior do ministério da educação.
  • Mudar o modelo de gestão das escolas, reduzindo as estruturas diretivas.
  • Alterar o modelo de formação de professores, criando três ciclos de formação: pré-escolar, 1º ciclo e 2ºciclo; 3º ciclo e secundário; ciclo superior.
  • Apetrechar as escolas com os equipamentos necessários ao funcionamento de cada curso.
  • Não abrir cursos em escolas onde faltem recursos humanos e materiais.
  • Acabar com a promiscuidade entre o ministério da educação, as associações de professores, os sindicatos, as editoras de manuais escolares...
  • Acabar com qualquer tipo de acumulação, remunerada ou não.
  • Diferenciar remuneratoriamente em função dos cargos desempenhados.
  • Criar um modelo de avaliação do docente que tenha em conta o seu estado físico e mental, a sua eficácia pedagógica e não a idade.
  • Evitar todas as medidas avulsas...

 

14.7.06

O problema

No conjunto, os resultados dos exames do secundário não são "nem excecionais nem muito preocupantes". Glória Ramalho, Presidente do Gabinete de Avaliação Educacional (GAVE)

Um novo problema deu à costa: uma boa parte dos alunos não consegue concluir o ensino secundário na 1ª fase e muitos daqueles que o conseguiram não obtiveram os 9,5 necessários para aceder ao ensino superior. No entanto, se para a bem-aventurada Glória Ramalho esta situação não é 'muito preocupante", qual é a origem do problema?

Uma das respostas encontra-se no Ministério do Ensino Superior: O que é que as Universidades públicas e privadas, os Politécnicos, as Escolas Superiores de Educação, os Institutos vão fazer no próximo ano? Fecham as portas, engrossando as prateleiras dos supranumerários?

Inaceitável. A coragem escasseia.

Por isso, já abriu a caça às respostas (bruxas). A óbvia seria o professor. Mas teme-se, no contexto actual, que esse argumento esteja fragilizado. Por conseguinte, ensaiam-se novas respostas: a novidade e a extensão dos programas, os erros científicos e pedagógicos dos manuais, as incorreções das provas de exame, a arbitrariedade (indisposição?) dos corretores, a falta de aplicação dos alunos...

Em muito pouco tempo, criou-se, na comunicação social, um cenário que potencia a ocultação da incompetência dos ministros, dos secretários de estado, dos assessores, dos diretores gerais, dos autores dos programas, dos auditores científicos e pedagógicos, do GAVE, de uma horda de avençados.... Perante o problema, o que pensaram todas estas luminárias?

A título excecional (ou talvez não!), os alunos poderão repetir os exames na 2ª fase e candidatar-se ao ensino superior na primeira época. Como aqueles pretensos atletas que se infiltram na corrida, enganando os juízes de prova...

E porquê? Para não perturbar minimamente os maiores responsáveis pelo fracasso do país e que imperturbavelmente circulam dos corredores das academias para os corredores dos ministérios. Bípedes inteligentes, frequentemente, nem precisam de circular. Jazem, um membro na academia, outro no ministério.

13.7.06

Numa nuvem de poalha...

Uma imagem com pássaro, ar livre, corvo, Gralha-americana

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Desde 1998 que me habituei a observar, logo de manhã cedo, um casal de melros, que saltitavam, indiferentes a quem entrava no vetusto edifício desenhado pelo arquiteto Ventura Terra. Não creio que o casal fosse sempre o mesmo, mas estou certo de que o comportamento, esse, era (e é) o mesmo.

Surpreendentemente, surgiu uma outra ave, de bico forte e curvo, nem sempre negra, mas predadora, que começou a reproduzir-se, de forma intensiva, gerando um bando omnívoro que emite estrategicamente sinais de inteligência, planeamento e comunicação...

Já esta semana, uma dessas experimentadas criaturas sofistas, num golpe de mestre, teve a audácia de se assenhorear do labor de alguns pequenos invertebrados que por ali restam.

(Relembro que o cada vez mais desacreditado S. Freud já explicou que 'um golpe' não é mais do que a repetição do 'golpe original'. Por isso, talvez, ainda valha a pena criar uma «área projeto «cuja única meta estratégica será descobrir o primeiro golpista.)

Mas o mais grave é que esta endémica holopatia alastra das galerias, ladeia os pátios norte e sul, na expectativa de destronar, em 2008, o arquiteto Ventura Terra.

A entronização decorrerá nas caves e, nesse dia, numa nuvem de poalha, estarão presentes todos os ilustríssimos avoengos de bico forte e curvo, já quase todos negros...

Resta-me, porém, a esperança (historicamente infundada!) de que não havendo mais presas, o bando levante voo, de vez...

11.7.06

O que é ser experiente?

«O incêndio deflagrara à hora do almoço. Eram cerca de 13h30 e os bombeiros tratavam de apagar mato, caruma, giestas. De repente, a direcção do vento alterou-se e a ordem ecoou: “Para trás!"(...) e os chilenos avançaram no sentido inverso, à frente do fogo. “Ouve-se dizer que estes sapadores têm muita experiência", por isso o Sérgio foi com eles.» Público, 11.07.2006

Há séculos que alimentamos a ideia de que o que é estrangeiro é bom, é experimentado. Ou, pelo contrário, ressabiados e xenófobos, condenamos liminarmente tudo o que vem de fora ou vive lá fora. Talvez não valha a pena dar exemplos, mas basta pensar na carga de ambiguidade da palavra estrangeirado para perceber como somos capazes de idolatria ou de persecução de tudo o que não é genuinamente português. Agora, estamos numa fase de alguma idolatração do que é estrangeiro, de quem vive e trabalha lá fora. Veja-se o caso do Scolari, dos jogadores da selecção ou mesmo dos emigrantes - que não dos imigrantes! Defendemos modelos estrangeiros: da Irlanda à Finlândia, resignando-nos, mesmo, à cada vez maior presença espanhola em solo lusitano.

E os sapadores chilenos não escapam a esta presunção de experiência. Há vários anos que a comunicação social dá testemunho da sua presença sem a questionar. Sempre em nome da competência que essa, sim, faltará aos nossos bombeiros voluntários, amadores... No entanto, não é a primeira vez que experimentados (?) bombeiros chilenos morrem nas nossas matas porque não obedecem à ordem de arrepiar caminho.

Quando ignoramos as coordenadas do terreno que pisamos, não há experiência que nos valha! O chefe dos bombeiros locais que deu a ordem "Para trás!" é bem mais experimentado que qualquer encartado (diplomado) noutras longínquas paragens.

E este fascínio pelo desajustamento, pelo esquartejar do saber acumulado ao longo de muitas gerações, alastra pelo país como o incêndio de Famalicão da Serra.

9.7.06

Tudo isto cheira a naftalina...

Felizmente, acabou um daqueles torneios em que os artistas estavam proibidos de atuar.

Mais importante do que atacar era defender, já que a sorte parece favorecer, não os audazes, mas os medíocres. Os treinadores e os árbitros, condicionados pelos jogos de bastidores, tudo fizeram corresponder aos superiores interesses do marketing: num ápice valorizaram e desvalorizaram jogadores, seleções, países.... Valeria a pena saber quantos jogadores ficaram com a carreira amordaçada!? Não o iremos saber, a não ser que, um dia, um Zidane, um Figo, um Raúl decida contar tudo o que sabem.

Quanto a Portugal, seria interessante que aqueles técnicos, que melhor conhecem os jovens jogadores portugueses, pudessem formar uma nova selecção, liberta do espírito patrioteiro, corporativo e beato que ultimamente nos invadiu. Um país que se diz membro da União Europeia não pode comportar-se como se ainda vivesse em pleno Estado Novo, com colónias e tudo... O tempo dos sargentos, sem desprimor para os verdadeiros, acabou. Caso contrário, ainda voltaremos ao tempo dos famigerados condottieri ou, numa versão mais provinciana, ao tempo dos «padrinhos».

(Tristes vão os dias, de Timor ao Jamor!)

Tudo isto cheira a naftalina, desde o D. Afonso Henriques retido no túmulo às praias da Caparica cerceadas por paredões inúteis, passando pelo estádio do Jamor - panteão de vaidades oficiais, oficiosas e gratuitas.

E já agora, quem é que acredita que a ministra da cultura não soubesse que estava a ser preparada a abertura do túmulo do rei-fundador? Desculpa esfarrapada, que, caso seja verdade, merece, pelo menos, o despedimento de meia dúzia de assessores.

(Tanta riqueza esbanjada, num país tão pobre, dói.... Quantos portugueses ficaram mais pobres neste último mês? Quantas famílias ficaram sem poder honrar os seus compromissos? E ainda vamos de férias!?)

7.7.06

Entre a pura atividade e a passividade pura...

« Esse est percipere et percipiTese de Berkeley - Ser é perceber e ser percebido.

Separado de um pequeno grupo de caminheiros, entrara no acesso às arribas da Praia Grande (Sintra), quando dei de caras com dois automóveis parados no meio de uma vereda. Ao de leve, coloquei a mão na bagageira do velho Renault 5 vermelho que, de imediato, galopou vertiginosamente sobre as fragas até se despenhar, na vertical, sobre o areal, junto à orla marítima. Surpreso e petrificado no ponto de partida daquele galope esfuziante e horrível, fixei a vista naquele ponto bem distante da praia e, num ápice, um corpo, seminu, masculino, elevou-se à altura do penhasco que separa as águas da terra, para voltar a cair, redondo, sobre o areal. Outros corpos, seminus, cercam-no e eu desperto, aturdido.

Agora, que pareço acordado, continuo sem saber o que fazia naquela hora indistinta na Praia Grande, quem eram aqueles andarilhos que me acompanhavam e de que perdi o rasto, qual era a marca e a cor do veículo que continuou imobilizado, que força acionou o velho Renault 5 vermelho e, sobretudo, se houve uma vítima e quem ela era, de facto.

4.7.06

Os predadores...

«Quando se fizer a lei da responsabilidade ministerial, para as calendas gregas...» Almeida Garrett, Viagens na minha Terra1843

Depois dos ministros Ferreira do Amaral e João Cravinho terem coberto o país de autoestradas, passou a ser tão fácil percorrer o país de lés a lés que alguém, inefável, concluiu que não era mais necessário fazer a lei da responsabilidade ministerial.

E não fosse algum pateta das luminárias levar as céticas palavras de Garrett a rigor, determinou-se que jamais se enfadasse a nossa juventude com algum capítulo daquele folhetim que dá por nome Viagens na minha Terra.

(Apesar de tudo, estou convencido que mais dia menos dia, a TVI acabará por instalar os estúdios lá para os lados da Ribeira de Santarém, bem pertinho da esquecida Santa Iria, presenteando-nos como uma bucólica Joaninha da Real Companhia das Lezírias! É apenas uma questão de tempo: o tempo necessário a que a Joaninha Moura Guedes aprenda a montar.)

Quando o Estado é laxista, a questão da responsabilidade ministerial é fulcral. Como é que se pode alterar este estado de coisas, se os ministros não são solidários com os ministros anteriores? Qualquer novo ministro alija a sua responsabilidade para cima do ministro anterior, revogando-lhe as leis que, na maioria dos casos, não chegaram a ser regulamentadas; e mais recentemente, criou-se o hábito de montar nos mass media um circo, onde os trabalhadores, em geral, e os funcionários do estado, em particular, não passam duns velhacos doentes e preguiçosos que só aspiram a opíparas reformas, exaurindo a burra do estado.

Já que a solidariedade ministerial não existe, poderia, pelo menos, fazer-se justiça: Por exemplo, julgar e prender todos aqueles ministros, secretários de estado, chefes de gabinete, assessores... que deixaram os sindicatos impor-lhes um estatuto (de igualdade remuneratória) da carreira docente, que deixaram os diretores dos centros de formação distribuir verbas incalculáveis por formadores gananciosos que foram acreditando milhares de professores sem, de facto, os avaliar, que aceitaram (e defenderam hipocritamente) o modelo de gestão democrática. Este laxismo ministerial é que gerou os predadores que continuam à solta...

E é para não incomodar os predadores, que já começaram a recolocar-se à mesa do orçamento, que todos os dias o circo ministerial faz cair em descrédito os palhaços de 2006...

3.7.06

Casos na primeira pessoa...

Senhor Provedor da Portugal Telecom A minha filha que se encontra na Hungria, em 22 de junho deixou de poder aceder à sua caixa de correio. Este impedimento criou-lhe uma situação muito desagradável, pois perdeu vários contactos universitários, importantes para a prossecução dos seus estudos na Europa Central. Tal como reservas de avião e de hotel... Entretanto, apesar da minha reclamação diária por telefone 707 22 72 76 e por e-mail (suporte@acesso.sapo.pt), sou simpaticamente convidado a ter paciência porque «estamos a efetuar todos os esforços para que a situação reportada com a identificação 2006-260468 seja resolvida o mais breve possível.» Por outro lado, na página do cliente, obtenho a seguinte inamovível informação: Nº SGS Tema Estado Data de Registo 2006-260468 Problemas técnicos Caixas de Correio Aberto 2006/06/22. Não sei se devo continuar a ter paciência, pois já em dezembro de 2005 tive idêntico problema com a Netcabo, que nunca foi capaz ou quis resolvê-lo. Foram meses de respostas evasivas até que mandei desligar a Netcabo. E nunca a Netcabo assumiu oficialmente qualquer responsabilidade. Como pode deduzir, troquei a Netcabo pela Sapo e, afinal, tudo parece funcionar do mesmo modo. A estrutura técnica parece não estar à altura de resolver as anomalias e, sobretudo, jamais esclarece o cliente sobre a sua incapacidade, para que este possa seguir o seu caminho... O que mais lastimo é a falta de transparência na relação com o cliente. Caso o entenda, gostaria que avaliasse esta espécie de disfuncionamento, pois, imagino que muitos outros clientes serão vítimas deste tipo de arbitrariedade que, penso, inaceitável numa sociedade que aposta cada vez mais nas novas tecnologias de informação.

Pelo menos é esse o desafio do engenheiro Sócrates, a quem peço, daqui, desculpa por o ter tratado, há uns dias, por "mestre", qualificativo desprezível nos tempos que correm... Embora, nesta questão, me sinta um pouco confuso, pois tenho visto engenheiros que o não são, e outros que, apesar do engenho lhes falta a arte. Porém, para me acalmar, o demónio de Sócrates (o da cicuta!), murmura-me ao ouvido: - Impossível. Abandona esses teus lampejos.

Senhor Provedor do Instituto de Seguros de Portugal,

Senhor Ministro da Administração Interna,

Senhor Ministro da Justiça,

Se a lei me permite pagar o seguro de um veículo automóvel até 30 de junho e o faço nessa data, através do multibanco, por que motivo a autoridade policial me pode autuar logo no dia 1 de julho, pois me falta a correspondente carta verde?

E por que motivo, a Império Bonança (e as restantes companhias...) não envia previamente a carta verde a cada um dos seus clientes? Se não confia em mim, não me deveria aceitar como cliente!

Para que a voracidade da autoridade não desabe sobre mim, desloco-me à sede da Companhia a pedir a desditosa carta verde e por lá fico sessenta gloriosos minutos à espera...felizmente, na companhia de outros clientes mal-humorados. Vá lá saber-se porquê? (Durante todo aquele tempo pude contemplar uma senha branca que apenas registava: C63; o meu vizinho do lado, esse por lá ficou com uma senha verde em riste...)

Como, entretanto, me lembrei que o actual Ministro da Administração Interna e que já foi Ministro da Justiça, em tempos remotos - logo a seguir ao 25 de Abril - terá sido meu aluno (ou será imaginação minha ou, talvez, do Passos Manuel?) dei comigo a pensar que eu sou o único responsável por esta forma de tratar os constituintes, os eleitores, os utentes, os clientes, os pacientes, os fregueses...

E por isso quero crer que a solução para o déficit está em colocar a CARUMA no quadro dos supranumerários. Um quadro virtual, já se vê, um pouco como o purgatório, essa instituição medieval, criada para que uns tantos virtuosos pudessem acumular capitais sem se verem condenados às penas infernais.

(A estas horas, a culpa judaico-cristã costuma atacar-me de forma violenta e por isso me sinto responsável por toda a impunidade que cresce sob as minhas agulhas noturnas...)

E por isso, quero crer que se a CARUMA fosse colocada no quadro dos supranumerários o problema do déficit ficaria resolvido

1.7.06

Quem não embandeira não petisca...

Ultimamente, as aparas vêm-se avolumando: as boas classificações seja dos exames de Português seja da selecção nacional de futebol escondem os habilidosos que manipulam o sucesso e o nacionalismo serôdio. Bebe-se e grita-se numa linguagem reles contra adversários que deveriam merecer o nosso respeito.

Num tempo em que os habilidosos da política ameaçam correr à pedrada quem lhes contrarie os interesses, e em que outros mecenas autárquicos compram o silêncio dos subsidiados, a encenação da saída do ministro dos negócios estrangeiros, precisamente quando o chauvinismo dos portugueses vive do futebol, é aplaudida como uma jogada de mestre Sócrates.

Cada vez mais a esperteza dos ardilosos, também chamada dos guerreiros, se afirma impunemente como um traço fundamental da cultura portuguesa.

Na escola, no futebol, na política, o truque compensa.

E o que mais arrepia é ver como a juventude tumultuosa está a ser educada no ardil e na baixeza.

(Este comentário agreste não visa retirar mérito a todos aqueles que na respectiva atividade dão sempre o seu melhor sem necessitar de embandeirar. Hoje, mais do nunca, quem não embandeira não petisca!)

27.6.06

Uma oportunidade perdida

«Nos mitos (Ícaro) e nos sonhos, o voo exprime um desejo de sublimação, de procura de harmonia interior, de superação dos conflitos; (...) as grandes nações voam por cima da terra, traindo a psicologia colectiva, pois a vontade de afirmar o poder no céu não é mais do que uma forma de compensar a impotência na terra.» Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, O Dicionário dos Símbolos, Voo.

Num tempo em que a inteligência era perseguida, a Bartolomeu Lourenço (alter ego de Saramago) só restava o sonho de voar para tentar saber como é o sol por dentro, para poder mostrar como é a terra de Mafra (o estaleiro do sonho real!) por dentro.... Só voando por cima - e não para longe! - lhe era possível ter uma perspectiva global da paranoia dos poderosos... No interior da caverna jamais se acede ao círculo exterior!

voo temerário liberto, rasga o horizonte, desloca-nos (pequenos ícaros!) para círculos exteriores cada vez mais amplos que nos mostram o pavor interior da terra, mas, ao aproximarmo-nos do sol, talvez possamos ver a fonte da vida... se observarmos a lição de Dédalo.

24.6.06

Nestes dias de silêncio...

Nestes dias de silêncio, fazem-se ouvir os pássaros que chilreiam ininterruptamente. De repente, um aluno pergunta as horas. Substituíra o relógio pelo silenciado telemóvel!

Talvez, seja útil quantificar o rombo financeiro provocado pelos exames nacionais: 50% dos alunos faltam à 1ª fase, o que significa que metade das provas se tornam desperdício; o mesmo se repete na 2ª fase, pois os alunos inscrevem-se novamente para exame - a floresta sofre! os telemóveis silenciados durante horas-e-horas deixam de engordar as empresas de telecomunicações e o fisco...

Não vejo ninguém que beneficie com os exames, a não ser, talvez, os médicos: sempre passam mais uns atestados e receitam mais umas pílulas para fortalecer os cérebros dos incompreendidos adolescentes.

(...)

Uma vigilante arruma meticulosamente a secretária: ao centro, as folhas de prova; do lado direito, as folhas de rascunho; do lado esquerdo, a pasta azul que guarda a tesoura, o saco dos enunciados sobrantes e a pauta, onde 15 minutos depois do toque, ficaram assinalados todos os que faltaram na expectativa de que a 2ª fase seja mais simples.

O outro vigilante franze o sobrolho. A prova de Filosofia não difere das anteriores, pelo menos, desde 1998: a mesma estrutura, os mesmos autores, as mesmas obras, as mesmas perguntas - gostei, particularmente, do argumento socrático de que «a missão do político é fazer de nós os melhores cidadãos possíveis

(...)

Creio, no entanto, que, apesar dos alunos poderem memorizar previamente 50% das respostas, os autores da prova se esforçaram por testar uma boa parte do programa de Filosofia. O mesmo não poderei dizer dos autores da prova de Português: qualquer 'corretor' sabe que a maioria dos alunos pode obter 60 pontos (em 200) sem escrever uma palavra; e também sabe que, ao contrário do que acontece na disciplina de Filosofia, o aluno não necessitou de ter lido qualquer obra...

Os exames actuais mais não são que um desaproveitamento de recursos... Que impacto podem ter, por exemplo, os exames de Português e de Filosofia na avaliação final do 12º ano dos alunos internos? Haverá alguém que consiga reprovar? Será que estes exames «fazem de nós melhores cidadãos»?

(Tristes vão os dias / de Lisboa a Timor / à mercê de homens sem valor // Alegres vão os dias / de Lisboa a Berlim / num vai-e-vem sem fim/

 

22.6.06

Em que século estamos nós?

Proposta de jogo: Explicite duas das funções das falas contidas neste excerto.

«D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande luneta de oiro, e disse:

- Ó Meneses, aquilo que é?

- São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.

- Em que século estamos nós nesta montanha? - tornou a dama do paço.

- Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.

- Ah! Sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze...»

Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição

_________________________________________

Colocam-se 50 corretores (?) numa sala. Ordena-se-lhes que leiam, comentem e resolvam uma prova, por exemplo, de português. Prisioneiros da Ata, estão obrigados a registar os seus estados de alma. Concluída a praxe, poderão rumar à sala-ao-lado, onde receberão as provas a classificar. Há anos que esta cerimónia se repete!

Ninguém preside ao acto. Agrupamento? GAVE? Recolhidos ..., admitem contacto telefónico, mais tarde. Na sala, durante 15 minutos, uns lêem, outros releem e alguns aproveitam para pôr a conversa em dia com o parceiro de ocasião - há um ano que não se viam! Tudo em lume brando. Entretanto, o tom ciciante torna-se conspirativo - há quem comece a dizer em alta voz o que pensa da prova 639...

Uma jovem corretora, assustada com aquele misto de pasmaceira e de conspiração, procura puxar as rédeas para que o bota-abaixo não tome conta da assembleia: há quem não entenda a formulação das perguntas; não se percebe se a prova foi auditada... e se o foi, quem terá sido o auditor? Há quem tenha deixado de entender o significado da palavra «perceção». Não há tempo para distinguir a perceção sensorial da perceção intelectual. Terá o autor da prova pensado nos modos como se perceciona? O que é que aconteceu à clareza que deve caracterizar a pergunta ou qualquer outra «instrução»?

Apressando a conclusão da ata, e como a maioria das «instruções» era ambígua, os corretores reivindicaram, ali, o direito de «aceitar» todas as respostas, fazendo tábua rasa do princípio da uniformidade de critérios. O país começava e acabava para os lados do Jardim da Estrela!

Já em 1975, no anfiteatro do Liceu Passos Manuel, uma outra assembleia de corretores reivindicara a «aceitação» de todas as respostas, numa rejeição democrática de qualquer pretensão de resposta única. O ensino centrava-se definitivamente no aluno; os professores passavam a ser uma fonte - secundária - do conhecimento; os alunos rivalizavam com os professores, pois todos partilhavam as mesmas fontes.

Hoje, esses alunos de 1975 tornaram-se numa fonte única, elaborando provas que nada testam... visando apenas satisfazer a vaidade dos oportunistas e dos preguiçosos...

Creio, no entanto, que esta geração de 75 está a acabar. Há cada vez mais jovens que procuram o conhecimento e que se sentem traídos, quando colegas, que ao longo de um ciclo de três anos nada fizeram, acabam por ter classificações idênticas ou mesmo superiores.

Esse sentimento de traição começa a separar as águas. É ver como «respondem» ao trabalho que lhes é proposto. Como o fazem com gosto! Como envolvem os amigos e os familiares na pesquisa a que se aventuram! Como se preocupam com a apresentação do trabalho e, sobretudo, com a qualidade!

Entretanto, há quem diga que a geração de 75, num último estertor, decidiu proibir os trabalhos de casa. Afinal, os "TPC" só servem para acentuar as desigualdades!

Será verdade?

 

20.6.06

O sorriso escarninho virou esgar...

(Ao contrário de Alberto Caeiro, quero homenagear todos aqueles que, ainda, não desistiram de procurar o sentido íntimo das coisas...)

Neste tempo de imobilidade, enquanto eles, padronizados, estão aplicados na resolução da prova de sociologia, desloco-me mentalmente na tentativa de compreender o sorriso escarninho que acompanha habitualmente a referência a qualquer ex-seminarista ou ex-padre, como se um ferrete os marcasse definitivamente, tornando-os objecto de uma curiosidade mórbida.

Apesar de se tratar de uma espécie em extinção, o estigma denuncia-os indelevelmente: no modo de falar, no tom, no olhar de soslaio, no andar, no vestir, no excesso do gesto... na forma de estar, retraída ou afetada. Provavelmente, a dissolução provoca sempre um labéu e o sorriso escarninho irrompe sempre que a mancha infamante pede a nossa cumplicidade, nos arrasta para a esquerda de Deus... (asserção que não é possível comprovar na sura!)

(...)

Esse sorriso escarninho, que me persegue desde manhã cedo, virou esgar naquele acampamento de vozes desgrenhadas que clamavam vingança..., mas, à medida que a sombra avança, a caruma recolhe as beatíficas agulhas e regressa à imobilidade inicial...e não raras as vezes ao abjeto torpor do sono efémero...

 

19.6.06

A destruição do sentido... do trabalho...

Bastava ter lido o texto crítico «Memorial do Convento», em Os Sinais e os Sentidos, para não se cair no erro de banalizar o pensamento de Óscar Lopes. Como se a primeira metade do século XVIII fosse, de facto, extraordinária aos olhos de José Saramago ou de Óscar Lopes! O retrato do século XVIII traçado por Saramago é que poderá ser insólito, entre outros motivos, pela «emergência de caracteres populares individualizados no seio de uma grande movimentação multitudinária como que em busca de sentido próprio

A megalomania, a opulência, a hipocondria, a beatice, a libidinagem, o esclavagismo, a xenofobia surge, no romance, como formas ordinárias, previsíveis do absolutismo grotesco que se abateu sobre o séc. XVIII português. Da procissão à tourada, passando pelos autos-de-fé e pelos lupanares conventuais.

Mesmo se não houvesse outro motivo, bastava a pergunta nº4 do I Grupo da Prova de Exame de Português (639) para concluir que o Ministério da Educação prestou um mau serviço aos alunos, a Saramago, a Óscar Lopes... ao País.

Infelizmente, esta Prova de exame também presta um mau serviço à língua portuguesa porque a redação dos enunciados é medíocre: I 1.; 2.1 - «Identifique duas das vozes aí presentes, exemplificando cada uma das vozes por si indicadas com duas transcrições do texto.»; 2.2.; 3.; III «apresente uma reflexão sobre a perspectiva referente à exploração do espaço, expressa no extrato do verbete...»

E, sobretudo, esta Prova de exame não chega a testar 5% do Programa do 12º Ano. Que competências é que são efetivamente postas à prova?

Afinal, quem é que está interessado em valorizar o trabalho daqueles alunos que leram Pessoa, Camões, Saramago, Sttau Monteiro? E também dos que arduamente escreveram e reformularam múltiplos textos, obedecendo a técnicos e a métodos diferenciados? E de todos os que se empenharam em compreender e aplicar as regras do «funcionamento da língua»

Afinal, para que é que serviu a última revisão curricular?

E quanto à dedicação de muitos professores de Português, mais vale nada dizer!

É, contudo, pena que haja professores que se prestem a servir tão mal a Pátria que os viu nascer!

 

17.6.06

Poderia dizer-te...

Poderia dizer-te, qual Marco Polo dos tempos modernos, que a chuva ameaçou cair sobre a cidade, mas isso tu sabes: não passou de uma ameaça...

Poderia dizer-te como é ficar em vez de partir, mas isso tu sabes: são mais as vezes que ficas do que partes...

Poderia dizer-te que o cansaço tomou conta dos corpos, mas tu sabes que isso não é totalmente verdade: há sempre uma buzina, uma bandeira que esvoaça nas avenidas da cidade...; há sempre «uma bola branca em cima da cabeça /Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...»

Poderia dizer-te que a Gabriela Llansol publicou novo romance destinado aos 'legentes', que não aos leitores - "Amigo e Amiga. Curso de Silêncio 2004" -, que Mário Ventura Henriques nos deixou, desgostoso da implosão da sua amada Troia, que David Ferreira não compreende por que motivo o seu saudoso pai - David Mourão Ferreira - foi sendo esquecido ao longo dos últimos dez anos, que Mário Cláudio está convencido que, com o seu 'Camilo Broca', está a prestar um grande serviço à Literatura, transformando o Camilo Castelo Branco numa «caixa de ressonância», talvez num tam-tam... Mas isso tu não queres saber! De que serve sabê-lo? Nem sequer será assunto do exame de Português do próximo dia dezanove! A única coisa que talvez te pudesse interessar seriam as respostas, desde que não fosses obrigado a elaborar as perguntas...

Poderia dizer-te que voltei a ver 'Notorious" (1946) de Alfred Hitchcock, mas isso só serve para me mostrar que a minha memória só se concentra em pormenores, como os da 'chave', da 'adega' e da 'garrafa'. Que mistério é que estes signos poderão esconder-me? Não sei, nem tu podes saber.

Hoje, quero, no entanto, dizer-te que ainda não esqueci o A. Cosme da primeira metade dos anos 80. Hoje, quero, dizer-te que não posso esquecer o grito de dor que me deixou na caixa do correio, em agosto de 1985:

Não sei ao que me disponho

Nesta angústia que me enlaça;

O tempo é só o que a alma passa

E eu só quero viver outro sonho.

Já não sei mais amar esta vida

Nem defender o que ela me oferece;

Minh'alma mora num corpo que arrefece

Favorecendo esta mágoa tão sentida.

Sou uma substância inerte em peso

Cujas qualidades se perderam na viela

Onde supus uma luz, a mais bela,

Mas que escureceu meu coração indefeso.

Já nem sei bem o que é sofrer;

Acabo por não ter o que me enlaça

E, cadáver rejeitado só de massa,

Esqueço a fonte que me fez viver.

Poderia dizer-te que só, hoje, tive coragem para abrir a caixa do correio, mas isso tu preferes que não seja totalmente verdade...

 

15.6.06

O Corpo de Deus e a inteligência lógica

«... por agora vai a procissão em meio, sente-se o calor da manhã adiantada, oito de junho de mil setecentos e dezanove, que é que vem agora aí, vêm as comunidades, mas as pessoas estão desatentas, passam frades e não se dá por eles, nem as irmandades foram todas assinaladas...» José Saramago, Memorial do Convento

Hoje, 15 de junho de 2006, também na minha memória difusa passa a procissão do Corpo de Deus; outros, talvez mais atentos à intempérie, nela tenham participado, integrados nas poucas irmandades que sobraram da laicização racionalista. Nos passeios, movem-se outros postulantes impacientes, capazes de insultar a custódia patriarcal, enquanto as floristas se esforçarão por vender aquela flor que um dia um menino de coro ofertou a um cano de espingarda.

Hoje, 15 de junho de 2006, esse menino de coro, já crescidote, indisponível para acolitar qualquer D. Policarpo, rumou a Sul, na esperança de que o Deus Sol o torne num dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis: «Mas quando a guerra os jogos interrompa, / Esteja o rei sem xeque, / E o de marfim peão mais avançado / Pronto a comprar a torre

O que eu não entendo é que nesta república, em nome da liberdade de culto, se tenha banido o D. Policarpo do protocolo do Estado - ideia que, creio, jamais terá passado pelo cabeça do magnânimo Rei-Papa D. João V - e continuemos a aproveitar matreiramente os santos dias do calendário eclesiástico católico!

Ainda consultei a crónica do Pacheco Pereira, na esperança de que ele questionasse o engenheiro Sócrates sobre a celebração do Corpus Christi num país que, na prática, rejeita as suas raízes, mas ele - P.P., hoje e nos próximos dias, teoriza sobre 'Blogues: a apoteose do presente"... o que me atira, prosternado, para o último parágrafo do Manifesto Técnico da Literatura Futurista (11 de maio de 1912) de F.T. Marinetti: «Depois do reino animal, eis o início do reino mecânico. Com o conhecimento e a amizade da matéria, da qual os cientistas não poderão conhecer senão as reações físico-químicas, nós preparemos a criação do homem mecânico de partes mutáveis. Nós o livramos da ideia da morte e, por conseguinte, da própria morte, suprema definição da inteligência lógica

 

13.6.06

Há dias, há noites...

«Há dias, há noites em que as águas se movem lentas na minha memória. Movem-se?» Eugénio de Andrade, Limiar dos Pássaros

I - Hoje, dia de Santo António, não pensei em nenhum arraial, não segui nenhuma liturgia.

Os ritos dizem-me cada vez menos, num mês em que o indivíduo cede o lugar à tribo - da pátria, do futebol, dos Santos Populares. Junho inicia um ciclo de convite ao lazer, com uma acelerada degradação da produtividade. Sempre que o Estio se aproxima, a economia estiola, apesar da propaganda que defende o turismo como um esteio da nossa economia.

II - Hoje, dia de Eugénio de Andrade e de Álvaro Cunhal, ouvi dizer que deixaram de ser lidos, que os seus biógrafos são mais escutados. Preferimos, de longe, a iconofilia à poética, à ideologia! Não admira: estamos no mês em que o indivíduo cede o lugar à tribo.

III - Hoje, quando passei, os nimbos ameaçavam despenhar-se sobre aquele silêncio de lápides. A tribo, taciturna, ignorava as serpentinas que caíam dos tetos, e seguia vagamente o voo mortífero das moscas...

IV - Amanhã, também é dia: a tribo vai desfilar, mortiça... atenta à iconografia...

 

11.6.06

A força do acontecimento...

Na minha infância não havia "Plano (projecto) nacional de leitura". A força do acontecimento foi de tal ordem que subitamente o jornal "O Século" entrou lá em casa no dia 4 de junho de 1963(?) - morrera, no dia 3 de junho, o santo Papa: o papa João XXIII. Emprestado pelo lojista da aldeia. Creio que, na primeira página, havia uma fotografia..., mas o que me ficou foi o formato daquele jornal. Mais tarde, já no Liceu de Tomar, à época secção do Liceu de Santarém, passei a comprar o jornal (O Diário de Lisboa, o Diário Popular, A República, A Capital...), mas curiosamente nunca me senti atraído pelo formato de 'O Século'. Na escola primária, que me lembre, não entravam jornais. No Seminário de Santarém, lembro-me que os padres liam 'A Capital', cuja perigosidade política era reduzida, apesar dos 'fait-divers" poderem perturbar a alma. Havia, isso sim, muitos jornais de teor religioso que não me interessavam minimamente. Nesse período de reclusão, a força do acontecimento não conseguia perfurar as muralhas que cercavam o antigo Colégio dos Jesuítas. Estávamos protegidos da torpe e imunda maré do mundo exterior!

Na minha infância também não havia Plano (projecto) nacional de escuta radiofónica. Havia a outra, entregue ao cabo da aldeia e, provavelmente, a um dos meus tios que era um polícia muito viajado.... Só, em 1966, a rádio irrompeu pelos meus ouvidos... na taberna vizinha da mercearia, onde me deslocara para comprar um kilo de arroz. Subitamente, foi o delírio: a algazarra dos homens despertou-me para as ondas da rádio: José Torres acabara de marcar um golo, no Portugal - Rússia, aquele jovem que, ainda há pouco tempo, descalço, vendia peixe pelas ruas da aldeia. Era como se todos nós tivéssemos vencido a Rússia, aquela por quem Nossa Senhora tinha vindo pedir a Fátima - «rezem pela salvação da Rússia», a vermelha, porque a branca fora esmagada pelos bolchevistas, ou, então, emigrara, na terceira classe dos navios que José Rodrigues Miguéis tão bem haveria de descrever...

Ali, naquela aldeia, os órgãos de comunicação eram postos ao serviço da comunidade como chamariz... Para que o aldeão pudesse comprar um transístor, era necessário que partisse, primeiro, para a França ou para a Alemanha... e, aí novamente sim, num sinal de riqueza, em casa, as ondas da rádio misteriosamente ocupavam todo o silêncio...

Hoje, parece que está em marcha um Plano (projecto) nacional de leitura, de escuta, de escrita.... Creio, por isso, que, doravante, nenhuma outra criança poderá voltar a queixar-se de falta de informação, de discriminação...

Sobra-me, todavia, uma dúvida: Terá esse Plano (esse acontecimento) a mesma força que a morte do Santo Papa ou que o golo do José Torres?

Bem sei que não devo ter dúvidas, pois não passo de um «experto» em campo de «cientes»!

 

10.6.06

Neste campo de Marte...

(Dirigindo-se a D. Sebastião) «Todos favorecei em seus ofícios, Segundo têm das vidas o talento» Camões, Os Lusíadas, X, 150

Tudo leva a crer que D. Sebastião não era mais judicioso que os actuais governantes. Por mais que Pessoa lhe elogie a «loucura», o aventureirismo da sua decisão arrastou-nos para uma crise que jamais superámos. A decisão política ignora o talento e, sobretudo, mata os novos talentos, sujeitando-os a uma uniformização castradora.

Quais soldados num campo de batalha, os professores podem ser substituídos sem que haja qualquer prejuízo para os alunos, como se a aprendizagem não fosse mais do que a assimilação /repetição de uma instrução. Neste campo de Marte, aluno e professor perderam a identidade... são peças obsoletas de uma engrenagem puramente mecânica... sem alma. E onde não há alma, não há talento...

Hoje, dia de Camões, é de uma grande insensatez evocar não só a arte, mas, sobretudo, o engenho do Poeta. Continuamos a fingir que lhe seguimos o ensinamento, enquanto espezinhamos o talento num campo de Marte voltado para a foz do Douro...

(Kafka dirigindo-se a si próprio)

«Estou mais indeciso do que jamais estive, só sinto a violência da vida. E estou estupidamente vazio.» Diários, 19 de novembro de 1913

A violência da vida, a indecisão, o vazio... o vazio, a indecisão, a violência da vida...

Definitivamente, a vida está a mais! Mas há quanto tempo?

Mas será justo pensar deste modo quando tantos jovens precisam de ajuda para desenvolverem os seus talentos?

Se nos concentrarmos nessa tarefa, não teremos tempo para nos ocuparmos da "loucura" de D. Sebastião, o príncipe que o Poeta pretendia desesperadamente educar: «Tomai conselho só d’experimentados, /Que viram largos anos, largos meses, /Que, posto que em cientes muito cabe, / Mais em particular o experto sabe.» X, 152.

 

8.6.06

Ondaka

«Ouvir, ouvimo-la, mas agarrá-la é impossível - Ondaka, a palavra ou a voz.» Provérbio umbundo

Ultimamente, o ruído tem vindo a aumentar. Deixámos de procurar 'Ondaka'. Não parece sequer que a consigamos ouvir, quanto mais prendê-la.

Querem, agora, que a aprendamos maoisticamente, no pré-escolar e no primeiro ciclo, em sessões de 60 minutos de revolução cultural. Um robot lerá por nós estórias de encantar e nós, religiosamente, escutaremos a maviosa voz que se anichará definitivamente no nosso pequeno cérebro.

Naturalmente, desenvolveremos a competência de escuta difusa - aquela em que a voz robótica se deixa intersecionar pelos olhos azuis-verdes que nos fitam do fundo de um galheteiro esquecido no canto da aranha...

(...)

Mais tarde, aconselhar-nos-ão a procurar um psicólogo que nos explique por que motivo nos recusamos a ler e, sobretudo, que nos ajude a vencer aquela dispersão que nos impede de distinguir as vozes.

(...)

Enquanto o ruído continua a aumentar, uma distante e irremediável voz ecoa em nós...

4.6.06

Educação à la carte...

«Eu não sei se há país da Europa, em que a criatura, que sobre o seu destino e o dos outros ousa meditar, sofra tão miseravelmente a angústia de pregar no deserto (quando prega) ou a de sentir que os outros falam outra língua (quando se cala e os ouve).» Jorge de Sena, Meditações Sobre a Lei Seca.

Pensar a educação em termos nacionais não é prioridade do Ministério da Educação. A senhora ministra, talvez por influência do ministro da saúde, prefere gerir o ministério como um hospital repleto de doentes e em que a maioria dos médicos também se encontra doente. Por isso, para cada situação clínica, avança com um diagnóstico, que pode ir do encerramento da unidade de saúde a uma sanção pecuniária - em casos extremos, algum médico amigo mais saudável poderá receber um bónus a definir... Mas o que lhe interessa, é assinar muitos contratos e protocolos com as forças vivas locais e regionais, esperando que essas forças sejam suficientemente sensatas, honestas e desinteressadas, que ponham o interesse nacional acima do interesse particular...

(Como é sabido, há muito que essas forças minam o subsolo nacional, deixando qualquer estrangeiro estupefacto face à impunidade reinante. Em Portugal, a impunidade tornou-se um dado cultural. E não se diga que vivemos no reino da estupidez ou num jardim inefável! Pobre Jorge de Sena!)

Desde 1974 que na escola portuguesa não há liderança porque o Estado não tem uma política educativa clara. Prefere que cada escola faça a sua escolha, deixando que o critério político, oportunista ou de simples caciquismo local ou regional se sobreponha à execução de um projecto educativo nacional. E fá-lo hipocritamente, porque esse laxismo lhe permite não pagar devidamente a quem deveria gerir as escolas.

Sem mudança no modelo de gestão das escolas, não é possível mudar o modelo organizativo. A escola não pode continuar a depender da iniciativa de indivíduos ou de grupos - do amiguismo -necessita de ser pensada globalmente por um conselho de gestão executivo e pedagógico, suficientemente ágil nas decisões, mas a quem possam ser imputadas responsabilidades... E esse órgão deverá ser remunerado, de forma diferenciada, como acontece em qualquer empresa pública ou privada.

Em fundo, ouço a senhora ministra perorar prolixamente sobre aspectos pontuais. Não lhe ouço, no entanto, qualquer palavra sobre um projecto educativo nacional. E esse é o problema nº1 da educação: o país não sabe o que quer; prefere andar à deriva, ao sabor dos impulsos dos assessores - especialistas (atomistas) que nunca dão a cara e são pagos principescamente!

 

3.6.06

Variante Mbala

Uma imagem com texto, vestuário, arte, capacete

Descrição gerada automaticamente

Querendo fundar uma nova sociedade 'igualitária', os jovens decidem matar os chefes de linhagem - todos os pais (símbolo: cabeça) e todos os tios (símbolo: perna). Passado pouco tempo, e vendo-se perante um animal monstruoso sem cabeça e sem pernas, os jovens decidem restaurar a autoridade dos velhos.

Na situação actual, nem os jovens parecem querer matar os velhos, desde que estes lhes continuem a alimentar os vícios, nem o animal acéfalo e perneta que nos governa parece disposto a prescindir do seu trabalho..., mesmo que lhes reserve uma prateleira supranumerária no disco rígido do ministério da rapina.

Os velhos são os novos escravos do séc. XXI, irremediavelmente sujeitos ao contrato da mobilidade, e totalmente anatemizados se procurarem viver para além dos 65 anos. Não podendo ser suportados pela família que, entretanto, deixou de ser a célula matricial da sociedade, é lhes pedido um esforço derradeiro: - Em nome dos futuros pensionistas, devem continuar nos seus postos de trabalho até morrer!

Paradoxalmente, a maioria dos futuros pensionistas - os jovens, pelo menos, até aos 35 anos de idade - continua desempregada sem mostrar qualquer vontade de eliminar os chefes de linhagem.

Muitos daqueles jovens que entraram na vida activa em 1973-74-75, começaram por colocar a sua juventude ao serviço de um Ideal 'igualitário', suportaram todas as arbitrariedades de preclaras luminárias, para agora estas lhes dizerem: - Sois um fardo que a nação só pode suportar se continuardes a trabalhar, de preferência, até morrer.

Entretanto, os jovens de hoje continuam uma vida virtual, comportando-se como os negreiros...

1.6.06

Um país sem alma!

«Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.» Álvaro de Campos, Ode Triunfal

O Governo em geral (o M.E., em particular) em vez de combater os factores que contribuem para o insucesso do sistema educativo, decidiu encabeçar uma cruzada contra os professores, responsabilizando-os pela insolvência do Estado. Quer, agora, reduzir a massa salarial global despendida com os professores, aumentando aqueles que se encontram no início de carreira (gesto hipócrita de quem não se propõe contratar novos professores!) e aumentando, também, os quadros superiores da Administração Pública ( o que esconde um efectivo aumento das medíocres hostes partidárias que ocupam todos os lugares de relevo - da Assembleia da República aos Ministérios, passando por todas as correias de transmissão...). Quanto aos restantes professores, reformula-lhes as carreiras de modo que progressão seja mais lenta, isto é, reservando os lugares do topo, certamente mais bem remunerados, para aqueles que se disponham a servir, não o Estado, mas os partidos (talvez, se pudesse, aqui, falar em castas!) que controlam a vida política.

O que está em causa não é a reforma da educação, não é a formação dos jovens de modo que se possam integrar cedo na vida activa, contribuindo para o rejuvenescimento laboral, não é ajudar os professores a alterarem os seus métodos de trabalho e, também, não é, ao contrário do que se veicula através das televisões, dar mais intervenção aos encarregados de educação na avaliação do trabalho realizado pelos professores. O que se esconde é a decisão de distribuir a riqueza, nacional ou europeia, por todos aqueles que zelosamente suportam o poder. É a partilha da pimenta, do ouro, do açúcar, da borracha, dos diamantes, do petróleo, das remessas dos emigrantes, dos fundos europeus, dos subsídios, dos impostos... IVA, IRS, IRC...

É o salve-se quem puder num país que nunca conseguiu, por si, equilibrar o deve e o haver, e que não querendo (ou não podendo?) mudar de rumo, decide tudo fazer para desacreditar os seus funcionários...

Um país sem alma!

(Delírio)

E não vale pena dizer que vendemos a alma ao Diabo. Porque o Diabo é muito mais inteligente do que aqueles que, despudoradamente, nos insultam e nos envergonham. É vê-los nos estádios, nas praças, nas televisões... sempre a trabalhar pela nação!

O que vinha a calhar era uma invasão estrangeira! Talvez os galheteiros fossem definitivamente corridos...

Post scriptum: Não sei se posso continuar por muito mais tempo contra-a-corrente. Já começo a sentir-me excedentário!

 

30.5.06

Homens que nunca tiveram escrúpulos...

«As grandes obras constroem-se no silêncio, e a nossa época é barulhenta, terrivelmente indiscreta. Hoje não se erguem catedrais, constroem-se estádios. Não se fazem teatros, multiplicam-se os cinemas. Não se compõem obras, fazem-se livros. Não se procuram ideias, procuram-se imagens.» Salazar, Extrato de entrevista publicada no Diário de Notícias em 16 de outubro de 1938.

A multiplicação dos estádios, dos cinemas, dos livros e das imagens provocou a substituição da 'vida interior' pelo vedetismo, pelo voyeurismo, pela bisbilhotice, pela superficialidade. A morte da "alma" tornou-nos sobranceiros, violentos, maledicentes, vesânicos e, sobretudo, fez-nos perder a integridade.

A sobranceria permite-nos hostilizar grupos profissionais, étnicos e religiosos como se a decadência da nação fosse culpa deles e não dos sucessivos carreiristas sem escrúpulos que nos têm governado em nome de Abril.

Era bom que olhássemos sistemicamente para o interior das instituições de modo a separar o trigo do joio. Caso contrário, corremos o risco de sermos apenas um 'campo de joio'.

O joio alastra asfixiando os poucos grãos de trigo que compõem, por entre os escolhos, obras /ideias que, se lidas /ouvidas, bem nos poderiam ajudar neste implacável tempo de sujeição do homem.

E se não aprendermos a ser íntegros, os jovens responder-nos-ão com a violência, como aconteceu com aqueles que eram jovens em 1975 e que hoje nos governam.

Post Scriptum: A citação de Salazar é propositada. Ignorar o passado é hipotecar o futuro.

 

29.5.06

Exclusão e desertificação

(Expressão clara e revoltada)

Tenho 80 anos. Sou retornada de Angola. Recebo 240 euros de reforma. Tomo conta de um filho que a pátria sacrificou na guerra de Angola. Ele recebe 99 euros de pensão de invalidez. Vive fechado em casa. Não fala com ninguém nem mesmo comigo, a não ser para me dizer que não gosta deste ou daquele prato. Ainda ontem telefonei para a minha filha, não me atendeu. Também telefonei para a minha neta, com o mesmo resultado. Ninguém me ajuda. Há muito tempo que estou doente. A tomar conta deste filho que a pátria sacrificou e esqueceu. Fui à segurança social pedir ajuda, não quiseram saber. Voltei lá, disseram-me que como era dona de um apartamento não me podiam ajudar. Um apartamento que paguei com o suor do meu rosto e do meu marido, já falecido, há muito. Acabaram por me pedir os ordenados de todos os meus filhos. Os meus filhos têm a vida deles. Nasceram em Angola. Procuraram melhor vida na África do Sul. Não tiveram sorte. Partiram para o Brasil, também não. Um deles sei que regressou a Angola. Não sei se já tem emprego. Ele tem muitos filhos. Para que é que a segurança social quer os ordenados deles? Como é que eu posso preencher os papéis, se não sei deles, se eles não me respondem. O senhor presidente, que também serviu a pátria, eu sei, está preocupado com a exclusão daqueles que se encontram nos lares, e eu, senhor presidente, porque é que ninguém se preocupa comigo? Eu tenho 80 anos e o meu filho não tem vida, senhor presidente. O que vai ser de nós? E, sobretudo, dele? A segurança social não quer saber de nós! E o senhor presidente?

(Noturno)

Deixo o carro no cimo do monte, e avanço, a pé, pela vereda que há muito não percorro. Reparo que o trilho está coberto de cartuchos de munições gastas em recentes caçadas. À volta, ergue-se o mato cada vez mais denso. Percorridos 800 metros, sob um calor de maio escaldante, apercebo-me que me encontro na outra extremidade da propriedade que queria visitar. Contemplo-a e apetece-me voltar para trás: o solo ressequido começa a abrir rachas, as figueiras e as oliveiras estão cercadas por silvas asfixiantes. É quase impossível avançar. Penso no futuro daquelas oliveiras, algumas com centenas de anos, e naquelas figueiras que, no passado, tanto odiei - figueiras malditas. E vejo todo trabalho de gerações anteriores à minha a arder!

E, hoje, não tive coragem para me aproximar do poço que se encontra junto à ribeira, seca. Nem sequer o vi, completamente escondido pela exuberante e predadora vegetação.

 

28.5.06

Nunca soube...

Já não sei se parta se fique. Raramente estive na primeira linha e das poucas vezes que lá cheguei compreendi o incómodo de lá estar

Sempre fui um cético a quem exigiam certezas que eu não podia ofertar. Faltava-me conhecer a terra, vivi demasiado tempo longe do mar Só tarde me dispus a voar - as aves já não tinham onde pousar.

27.5.06

 

Os galheteiros

Uma imagem com Solução, serviço de mesa, interior, garrafa

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«O que faz suspeitar que os pedagogos não gostam é dos autores que ficaram no programa, estão a querer comprometê-los aos olhos dos putos e, na próxima reforma, catrapus, tudo dos textos dos media. Para já, a lírica de Camões fica diluída em “aspectos gerais” e “Os Lusíadas” passa a fazer galheteiro com a “Mensagem”, talvez para o Pessoa ser o azeite que ajude a tornar o vinagre do Camões mais palatável, mais actual.» Hélder Macedo, Público 28/09/2001

Tal como as coisas se anunciam, os professores do ensino básico e secundário nem para galheteiros servirão. O caminho mais fácil é fingir que se lê, que se interpreta, que se questiona, que se redige, mas sem que os alunos se confrontem com outras ideias - artistas, escritores, filósofos, cientistas ... para quê? - aquelas ideias que poderiam pôr em causa os interesses instalados.

Nada melhor que o inquérito para elevar o sucesso escolar! Pergunta-se aos encarregados de educação se estão satisfeitos com os professores dos seus educandos. E eles responderão de acordo com as classificações atribuídas...

Apesar do estrebuchar de uns tantos, qual será a reação dos professores(Belíssima catáfora!!!) Lecionar e classificar como, há muito, acontece no ensino privado: aplica-se-lhes a cartilha e sobe-se-lhes as classificações.

1º objectivo: nivelar por baixo.

2º objectivo: criar falsas elites.

3º objectivo: desmobilizar todos aqueles que sempre recusaram o carreirismo.

4º objectivo: ...

No entanto, não se compreende que as luminárias - entenda-se: pessoas de grande saber - que nos governam ainda não tenham perguntado aos (seus) alunos do ensino superior se estão satisfeitos com os respectivos professores. Se esses alunos conhecem, de facto, os professores, se costumam ter aulas e, quantas, por semestre. Se têm a certeza que esses professores lêem os trabalhos, na maioria copiados, as provas de frequência, as provas de exame... Se os professores os conhecem?

(À parte)

Qualquer aluno do ensino, dito, superior poderá responder: a maioria das luminárias continua a papaguear conteúdos mal assimilados enquanto vai redigindo dissertações e teses, numa língua de trapos, que serão aprovadas por catedráticos infalíveis e inamovíveis.

E esse é um dos principais problemas do ensino superior: a infalibilidade e a inamovibilidade dos catedráticos, agregados, extraordinários, auxiliares (vitalícios!), assistentes... conselheiros, adidos, deputados, presidentes de ..., jornalistas, esposas de...

(De regresso)

Estarão as luminárias dispostas a resolver os problemas que lhes chegam às mãos: alunos que não sabem interpretar um enunciado, fazer um cálculo, traçar uma reta... ou, para não perder alunos, e consequentemente o lugar, continuarão a mentir-lhes... a eles, a nós todos. E a culpar os professores do ensino básico e secundário, com a cumplicidade dos encarregados de educação...

Mas de que educação?

Numa escola, onde não há lugar para a formação no terreno, onde objetivamente não há formadores, não é possível responsabilizar qualquer decisor. Por isso castiguem-se os galheteiros!

Paradoxalmente, a figura do galheteiro começa a tornar-se no logótipo do ME: Tal como Fernando Pessoa acolita Camões também os exames acolitarão os encarregados de educação (isto é, as associações de pais).

PS, isto é, Post scriptum: Substituamos a desacreditada caça aos gambozinos pela caça aos pares de galhetas!

 

26.5.06

Ensinar-lhes a mentir...

«Se o meu filho fosse vivo (...) havia de lhe ensinar a mentir, a cuidar mais do fato que da consciência e da bolsa que da alma.» Matilde, in Felizmente Há Luar! de Luís Sttau Monteiro

Estão diante de mim, risonhos, alinhados em conversas privadas. Sorriem-me, acenam-me com a cabeça e, despreocupados, ouvem-me repetir e exemplificar o que são aliterações, assonâncias, catáforas, anáforas (linguísticas com sabor palimpséstico!), pleonasmos e outras redundâncias (in)finitas...

Perante a fastidiosa iteração, interrompem-me para me perguntar se não ficava bem rirmo-nos um pouco dos eufemismos e eu corrijo-os porque o disfemismo é que é a expressão favorita dos 'alarves' que todas as noites vão ao teatro ou ao cinema «fingir nada terem a ver com o que se passa em cena».

(Uns minutos mais tarde...)

Esforçadamente, um aluno lê um monólogo sobre como educar numa sociedade que valoriza a aparência, o dinheiro, a mentira, enquanto outros simulam uma leitura risível, alarve do que se passa em cena, dentro e fora da sala de aula...

(Toca a campainha: sorrateiramente, abandonamos o palco... para acordar na parada do Rock In Rio-Lisboa ou no Parque Tejo com o Super Bock Super Rock)

Post Scriptum: Já sei como explicar a neologia... basta dar-lhes a palavra no nosso próximo encontro... e ficar a ouvi-los, a ouvi-los... e então descobrirei uma nova realidade ou, pelo menos, que as palavras existentes adquiriram significados novos neste fim-de-semana!

 

25.5.06

Ó Terra, a arte está tão perto e eles já o sabem...

«E a primeira cousa que se punha aos amigos na mesa era o sal; costume que ainda agora se usa, posto que se não saiba, em muitas partes, a razão dele, nem a porque se enojam e enfadam os hóspedes de se derramar o sal pola mesa...» Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, 1619

Embora a Caruma seja pouco dada a celebrações e deteste o vedetismo, não pode deixar de assinalar o significado da iniciativa II Concurso Literário Camões 2005/2006, cujos prémios, nas modalidades poesia e conto, foram, hoje, entregues no Auditório Camões. Este tipo de iniciativa mostra que se deve apostar numa escola participativa, onde os alunos surjam como sujeitos capazes de escrever, compor, ler, representar, partilhar, assistir...respeitar os outros. E, hoje, foi possível testemunhar essa nova dinâmica de participação, mesmo que possa parecer incipiente. Esse é o caminho... é o sal da terra!

É, no entanto, fundamental que não se enojem nem se enfadem estes novos hóspedes derramando o sal pela mesa!

 

24.5.06

Escrever é um registo maçónico...

Uma imagem com triângulo, igreja

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Saramago coloca-se, com Memorial do Convento, na rampa iniciática do Grande Arquiteto maçónico, que com o esquadro e o compasso determina a estrutura e os limites do céu e da terra. No entanto, o seu convento não é o convento de D. João V, apesar de ‘João’ ser o nome próprio dos santos padroeiros da maçonaria (S. João Baptista e S. João Evangelista). Santos esses que Saramago poderia ter associado ao deus Jano Bifronte, que tinha a faculdade de ver o passado e o futuro. Porém, o projecto de Saramago era o oposto: mostrar a cegueira do rei ao mandar erigir o convento. O convento é fruto do sonho megalómano de um rei que gostaria de ser o Grande Arquiteto e de um vicioso sonho da província franciscana. D. João V continua, ainda hoje, a construir infantilmente o puzzle da Basílica de S. Pedro de Roma enquanto os franciscanos jamais poderão dar uso às 300 celas que lhes foram destinadas! Para Saramago, a Basílica não se projeta para os céus. O que lhe interessa são as fundações – o que acontece na terra dos homens que, forçados, se veem envolvidos num projecto em que não se reveem. Mas, na outra frente (janela) da obra, encontramos os "franc–maçons" que, de facto, se projetam para os limites do céu: Sebastiana Maria de Jesus, António José da Silva, Domenico Scarlatti, Blimunda (Sete-Luas), Baltasar Mateus (Sete-Sóis), o padre Bartolomeu Lourenço ( o arquiteto-voador). Em qualquer destas figuras, notamos, e de acordo com as suas competências, uma visão niveladora, um gesto criativo, uma vidência letal e regeneradora, um braço fautor de morte e de vida, um espírito torturado e inventivo. A ambição de Saramago é um construir um memorial em cuja pedra se materializem todas as incoerências dos grandes e todos os sonhos dos pequenos. Ele quer ser a voz dos esquecidos, dos perseguidos, dos desterrados, dos executados em todos os autos-de-fé. O Grande Arquiteto.

 

23.5.06

Filha da noite...

Filha da noite e irmã do sono - és tão discreta que se pode dizer que não estamos à tua espera. A ti, qualquer dia te serve. Nós preferíamos um outro olhar menos discreto... O olhar líquido dos nenúfares.

 

22.5.06

Há algo de errado em Al-Kassar!

«Era o ano no mês de Abril, quando enflorescem as árvores, e as aves, que até então estiveram caladas, começam d'andar fazendo suas querelas doutro ano por entre o arvoredo deste vale, que bem podeis ver quejando seria então, pois agora o é tanto.»

Bernardim Ribeiro, Menina e Moça

Embora não tivesse visto, em Al-Kassar, qualquer sombra dos salacianos Bernardim Ribeiro e Pedro Nunes - certamente porque não me esforcei o suficiente! - continuo a pensar que há algo de errado por estas paragens outrora tão interessantes para romanos, árabes e cristãos. A água abundante dos rios Sobrena, Sado, Xarrama e das ribeiras do Areão, Algalé, da Ursa e de S. Domingos deveria atrair mais dos que os cerca de 13 800 habitantes que povoam o concelho de Alcácer do Sal.

Não me parece que o clima mediterrânico possa ser responsabilizado por uma certa atmosfera de incúria: a vegetação já ressequida, em Maio, invade a cidade, tal como o lixo, parecendo anunciar uma próxima abertura de telejornal - Sem se compreender bem, o fogo grassa na cidade de Alcácer, não poupando sequer as moradias...

Ironicamente, o terreno, destinado às futuras instalações dos bombeiros, poderá muito bem ser o rastilho, tal o estado de abandono em que se encontra.

Mas Alcácer é apenas um mau exemplo entre milhares, num país, onde os governadores raramente deixam o ar condicionado dos seus torrões... e continuam, impunemente, na praça pública, a agitar milhões de euros para o combate aos incêndios que eles próprios ateiam...

 

 

 

 

 

 

21.5.06

Alcácer do Sal, em Maio...

Uma imagem com ar livre, céu, cegonha, nuvem

Descrição gerada automaticamenteUma imagem com ar livre, céu, navio, água

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Bucólica localidade, onde múltiplos pequenos pássaros saltitam e chilreiam agradavelmente. As cegonhas brancas estão presentes um pouco por toda a parte e, nesta fase do ano, já terão começado a alimentar os juvenis, o que explica que, quando nos aproximamos, elas emitam um estranho e seco som de alerta...

Esta vida campestre, onde, hoje, ecoam os badalos dos rebanhos, é cingida por um extenso mosaico de águas rasteiras, que esperam o cultivo da oriza sativa (variedade de arroz oriundo da Ásia) ... ou, em alternativa, a salinação.

A cidade de Alcácer, um pouco esquecida do passado, transformou a fortaleza numa pousada e, presentemente, expande-se para a Nova Alcácer num estilo novo-rico, descurando a possibilidade de se transformar num extraordinário miradouro sobre o Sado.

Apesar disso, há nela uma nítida preocupação com os equipamentos sociais, mas tudo num ordenamento bem desordenado.

No entanto, vale a pena visitar a bela igreja de Santiago, rica em azulejos com motivos locais, e algumas das capelas laterais ricamente decoradas. Este edifício foi inaugurado em 1746, no reinado do magnânimo D. João V. E também por aqui há um Convento de S. Francisco!

Em Maio, ficamos com a sensação de que a qualquer momento tudo pode mudar ... tal como na Carrasqueira, a cerca de 20 km de Alcácer do Sal. Fica a sensação de que nesta altura do ano, ainda tudo está por acontecer... embora este fim-de-semana tenha sido bem agradável no renovado parque de campismo... sem residentes e procurado, sobretudo, por ingleses e holandeses. Quem diria?

 

19.5.06

Esta pressa de florescer...

Floriram por engano as rosas bravas

No Inverno: veio o vento desfolhá-las...

Camilo Pessanha

Mágoa mitigada

As rosadas pétalas murcham diante dos meus olhos; não esperam nem pela calma do Estio nem pelas chuvas do Inverno. Têm pressa de viver: inquietas, riem muito, trocam olhares furtivos, fingem preocupações; mas lá no âmago esperam ansiosamente que o gongue se faça ouvir ... para suavemente juncarem o solo da alheia caminhada.

E esta pressa de florescer não lhes deixa tempo para aprender!

 

18.5.06

Gigantes ou anões...

O eterno problema da fronteira

Levámos três séculos a construir a fronteira continental.

Levámos outro século a expandi-la.

Ficámos três séculos e meio a defender a nova fronteira. A cada investida do castelhano, do muçulmano, do otomano, do holandês, do francês, do belga, do alemão, do italiano, do inglês, do russo, do chinês, do americano, do indonésio, retraiu-se a fronteira...

Sacrificámos fazenda, homens, mulheres e crianças e, em nome da divina fronteira ou da fronteira divina, chacinámos outros homens, outras mulheres, outras crianças...

E regressámos ao torrão natal como se nada se tivesse passado... a nossa nova fronteira fora sacrificada em nome da emancipação dos povos, do direito que todos os povos reivindicam de ter o seu torrão original.

Hoje, para deixar que o tempo continue a fluir, fazemos parte da nova fronteira europeia... deixámos de ser o rosto que fitava o atlântico e passámos a ser uma cloaca transfronteiriça, à nossa maneira, temperada de lusofonia...

Defendemos acerrimamente o castelo sem castelão, a paróquia sem pároco, o hospital sem médico nem utente, a câmara sem munícipes, a escola sem estudantes, a caserna sem soldados... e estamos dispostos a não arredar pé em nome da nossa última fronteira... afinal, aquela que nunca conseguimos fixar.

E porquê? Porque nos falta o sentido das proporções - Gigantes ou anões...

 

17.5.06

- Pode ser a sombra de um fulgor!

Palavras afogueadas regressam quebradas de estupor Múrmuras ecoam prantos de dor Cansadas as palavras anoitecem à espera de um rumor - Pode ser a sombra de um fulgor!

 

15.5.06

Estaremos, de facto, a digitar?

Às nove horas, em Miraflores: a classe média, mansamente sentada, espera o momento redentor da análise... e eu, com a cabeça num tinteiro HP21, procuro-o numa rua, onde o lojista há muito desistiu de o vender.

Às 10 horas, no Colombo: encontro o desejado tinteiro, mas fico preso na caixa... uma expedita funcionária telefonava para um lugar aonde outro expedito funcionário deveria ter chegado.

Às 12:30, nos CTT de Torres Novas: 22 outras pessoas esperam pacientemente à minha frente, para pagar as contas da água, da luz e, sobretudo, para receber a pensão. Lentamente, olham para os relógios e para os rostos sombrios dos vizinhos, na expectativa de que falte alguém.

Às 13:30, nos CTT de Torres Novas: sou atendido.

Um acto simples: Para reencaminhar o correio, bastou preencher um impresso, no balcão ao lado, apresentar uma certidão de óbito de um obstinado mensageiro, mostrar uma procuração de..., ouvir a funcionária perguntar se não havia, de facto, alguém que passasse a levantar o correio porque «só os próprios é que poderiam reencaminhar o correio», refutar os argumentos aduzidos; fotocopiar numa secção interior os documentos carreados para um hipotético processo; digitar os dados que eu acabara de registar manualmente no impresso, passar um cheque de 67,20 € - nos CTT não há multibanco!-, esperar que simpaticamente a funcionária me devolvesse uma cópia do meu impresso e digitasse demoradamente um recibo... Sorrir de agradecimento e sair às 14:15 da estação dos CTT de Torres Novas...

Às 15:00, no Lar: Uns parecem não saber o que estão ali a fazer; outros não sabem explicar aquele braço inchado, aqueles dedos pisados... aconteceu de manhã, talvez às 9:00, num turno de que já não há memória... fico ali até às 16:00, à procura de palavras que me permitam uma aproximação a um tempo «felizmente bem diferente deste, onde não havia esta degradação». Infelizmente, não as encontro e saio, mais uma vez, a pensar que, ali, as palavras estão a mais...

Às 19:00, em casa: o tinteiro HP21 lembra-me que me falta reservar lugar em 2 companhias aéreas que permitam à S. viajar entre o Porto e Budapeste, fazendo escala em 2 aeroportos londrinos, em cerca de 12 horas.

Em menos de 30 minutos, as reservas estavam feitas, digitando apenas...

 

14.5.06

E talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!

Uma imagem com ar livre, desporto, pessoa, Vestuário de natação

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Sérgio Tréfaut, nascido em 1965, no Brasil, filho de pai português e de mãe francesa, realizou em Portugal um documentário que deveria ser objecto de estudo nas escolas portuguesas - LISBOETAS, 2004.

Este documentário mostra a vaga de imigrantes que chega a Lisboa e arredores em finais do séc. XX e no início do século XXI. Oriundos da Rússia, da Ucrânia, da Moldávia, da Roménia, do Brasil, de Angola, da Nigéria..., estes imigrantes rapidamente descobrem - felizmente o realizador dá-lhes voz! - a pequenez do país: construtores civis sem escrúpulos, serviços de imigração, onde a hipocrisia e a burocracia rivalizam; olhares xenófobos e concupiscentes; um sistema educativo completamente desfasado da vida activa...

Só a entreajuda lhes permite suprir as múltiplas dificuldades resultantes da clandestinidade a que se veem forçados, apesar do país necessitar deles como de pão para a boca...

Antigo país de escravistas, que gerou no século XX mais de um milhão de incultos e pobres emigrantes, Portugal trata, agora, estes imigrantes (claramente mais instruídos) como os novos escravos de que perdera o rasto, primeiro no Brasil e, posteriormente em África.

O documentário LISBOETAS mostra-nos uma Lisboa desconhecida que acabará por emergir a nossos olhos da pior maneira, caso não se aposte numa política de integração. A não ser que eles, simplesmente, partam cansados da nossa arrogância, do nosso chauvinismo... os que ficarem acabarão por soçobrar em fundamentalismos espúrios, em delinquências noctívagas, caindo nós e eles naquele abismo de peçonha a que Sá de Miranda se referia já no séc. XVI:

«Entrou, dias há, peçonha / clara pelos nossos portos, /sem que remédio se ponha:/ uns dormentes, outros mortos, / alguém pelas ruas sonha. /

Não sei se Sérgio Tréfaut conhece Sá de Miranda, sei, no entanto, que este cáustico documentário me faz sonhar que, apesar de tudo, e com o contributo destes novos imigrantes, poderemos modificar esta enfadonha e miseranda realidade. E talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!

 

13.5.06

Para além da querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura...

«Toda a experiência humana é suscetível de ser transfigurada, vivida num outro plano transumano.» Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, A Essência das Religiões

Se Mircea Eliade se visse confrontado com um grupo de jovens com um difuso conhecimento da essência da religião e como uma visão exacerbada (ou inibida) da sexualidade, como é que abordaria o modo como, por exemplo, José Saramago descreve o misticismo das múltiplas monjas que passaram (e passam) a vida, enclausuradas num qualquer convento?

Tendo como axioma que as monjas o são (ou o foram) por imposição exterior à sua vontade, Saramago não se furta, ao descrever a esperada relação com o sagrado (no caso, Jesus Cristo), apresentá-las como protagonistas de uma sexualidade grotesca disfarçada de misticismo:

«atormentam-na diabos, sacudindo-lhe a cama, e lhe abalando os membros, os superiores em modo de lhe agitarem os seios, os inferiores tanto que freme e transpira a fenda que no corpo há, janela do inferno, se não porta do céu, esta por estar gozando, aquela porque gozou...» Memorial do Convento.

E este tema não é fortuito na obra, se lembrarmos a natureza dissoluta de D. João V, a presença cupidinosa e sádica do infante D. Francisco, o falso angelismo de D. Maria Ana, o profusamente repetido sadomasoquismo das procissões, das touradas e dos autos-de-fé. Tudo parece reduzir-se a uma sexualidade que, proibida pela Igreja inquisitorial, alastra das alcovas reais aos conventos, invade as ruas para confluir num mar de decadência irreversível.

Num país de trevas, sem futuro, há, porém, uma esperança abençoada por um iluminado e sonhador - O Padre Bartolomeu Lourenço: Blimunda (de Jesus!) e Baltasar (Mateus?) - «este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele.» Memorial do Convento

Compreende-se que o autor queira ajustar contas com padrões culturais que são objetivamente responsáveis pela humana predação, mas, no contexto actual, que efeitos poderá ter no jovem leitor a abordagem de uma obra como Memorial do Convento? E se os jovens seguirem o caminho da esperança pregado por José Saramago?

À primeira vista, Baltasar e Blimunda (sem esquecer o Padre Voador) parecem protagonistas de uma experiência humana transfigurada. Mas sê-lo-ão, de facto?

Terá algum dia, o ME refletido sobre os textos que moldam a educação em Portugal? A resposta está para além da querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura.

 

11.5.06

Esta enfadonha realidade

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«O racionalista genuíno não pensa que ele, ou outra pessoa qualquer, está de posse da verdade; nem pensa que a simples crítica como tal ajuda a chegar a novas ideias.» Karl Popper, Sobre a Liberdade, 1958

Popper não conhecia esta nossa enfadonha realidade em que qualquer pessoa, independentemente da idade ou do saber, se pronuncia com o maior à-vontade sobre qualquer obra, sobre qualquer acção, sobre qualquer projecto.

Por exemplo, é comum dizer: “Saramago não sabe escrever.» «Quem lhe atribuiu o Nobel não sabe nada de Literatura». Ao mesmo tempo que não se percebe que qualquer texto narrativo, descritivo, opinativo... obedece a uma regra simples: introdução; desenvolvimento e conclusão. Pelo menos três parágrafos! E não consta que Saramago infrinja este princípio.

Se os parágrafos são longos, se as vírgulas têm o valor de travessões, se a maiúscula pode introduzir o discurso directo é porque as situações são apresentadas recorrendo a uma técnica cinematográfica, a única, até ao momento, capaz de relatar a simultaneidade das situações, acções, das intervenções verbais dos protagonistas e mesmo do vedetismo interventivo, isto é, dos empastelamentos que voluntaria ou involuntariamente caracterizam a acção verbal e gestual humana.

É essa representação da complexidade que atravessa o discurso -e, consequentemente, a gramática - de Saramago. Por mais que se explique que a gramática é um conjunto de normas que regem uma língua e que numa língua se podem inscrever múltiplas sublínguas que com ela interagem e, que, inevitavelmente, numa gramática da língua (portuguesa, por exemplo), se podem inscrever outras gramáticas, geradas por todos aqueles que alicerçam a instituição Literatura, parece que a linearidade mental nos impede de compreender a complexidade do mundo que habitamos.

E por isso o caminho que continuamos a percorrer é o da superficialidade, do reducionismo, do chiste e, de per si, da arrogância inquisitorial que nos permite aniquilar o talento em nome de uma qualquer verdade.

 

9.5.06

Entre a espada e a rosa...

Hoje quase que poderia dizer que foi um dia sem história, não fosse ter-me cruzado com a estátua de D. Afonso Henriques já depois de me ter deslocado ao Hospital Rainha Santa Isabel, em Torres Novas.

Esta falta de consideração pelo regimento régio, outrora severamente punida - pois quem se atreveria a colocar Isabel antes de Afonso, mesmo que santa? - deve ter sido responsável pela informação prestada pelo serviço de atendimento de que o Senhor Doutor C., «por motivos imprevistos», deixara de dar consulta de neurologia no referido hospital. E que, certamente, os CTT se teriam atrasado a dar-me a infausta notícia.

Perante a exclamação da funcionária, fiquei um pouco surpreendido: - «Já ontem não apareceu qualquer doente!» Surpreendido? Só um pouco! pois a data da consulta anterior também fora alterada. E durante a consulta, o doutor fizera-me um cerrado questionário sobre os efeitos psicossomáticos de uma punção lombar.

De facto, devo sofrer de algum distúrbio neurológico: Como é que é possível que eu não tenha ordenado os acontecimentos e tirado a conclusão adequada?

Os Serviços hospitalares no dia 17 de Abril terão redigido a nota que explicava que o Senhor Doutor C dispensava hereticamente as rosas da rainha santa; de imediato, os CTT prontificaram-se a entregar-me os espinhos; os outros doentes avisados já não compareceram na 2ª feira, dia 8 de Maio (mês dos maios e das maias!), e eu, ali, com aquela senhora numa cadeira de rodas! atrevia-me a comparecer, à hora marcada, para uma consulta que todos sabiam, menos eu, que fora definitivamente adiada.

Por um segundo, vi erguer-se a espada de D. Afonso Henriques naquele horto de rosas...

 

8.5.06

Bem sei que a caruma se acama ou combusta facilmente...

Uma imagem com arte, texto, desenho, Artes visuais

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(Se os predicados parecerem insólitos, asseguro que isso é fruto do pouco uso! Absolvidos os predicados, regressemos às coisas difíceis.)

Bem sei que a caruma se acama ou combusta facilmente e, por isso, não se lhe pode exigir que cultive a memória. Mas nem mesmo assim me conformo que não haja uma efectiva aposta no estudo da História dos séculos XIX e XX.

Perante o quadro de Francisco Goya que retrata os desmandos dos exércitos napoleónicos, os alunos do ensino secundário empastelam russos, pides, judeus, nazis, jesuítas, familiares-do-santo-ofício e até cenas de filmes belicistas a-não-ver.

Felizmente, são quase todos contra a guerra, embora desconfiem que sem ela o mundo não avançaria.

E por isso, numa primeira oportunidade, estão prontos a mudar de campo, pois como bem sabemos todo o burro come palha, a questão é saber dar-lha.

 

 

 

7.5.06

A máscara que chora...

Uma imagem com texto, quadro, Cara humana, pessoa

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Finalmente pude ver a exposição "Frida Kahlo 1907 - 1954" no Centro Cultural de Belém. E digo, finalmente, porque procurei a exposição ainda antes da sua inauguração, motivado pelo cartaz que reproduzia o quadro "Coluna Partida", de 1944. Ignoradas as circunstâncias da sua produção, este quadro parece emergir de um delírio de Dalí. Mas não, ele enraíza-se num autodomínio ímpar perante as contrariedades da vida, sobretudo, as constantes limitações de ordem física. Expõe a altivez da consciência perante a fragilidade do corpo, de tal modo que o autorretrato se transforma num meio capaz de capturar aquela parte que de si parece afastar-se, deixando-nos ver a tortura da imobilização, o cansaço e a dor... a dor de si.

E quando deixa de olhar para essa dor de si, vê, em si e naqueles que lhe estão próximos, formas e cores que nos deixam antever um México nativo, onde a vida e a morte se encontram genuinamente ligadas. Onde o culto dos mortos é uma forma de vida, bem diferente da encenação espanhola da morte, inventada pela Contra Reforma.

Na arte de Frida, a máscara não esconde, não finge... a máscara que colocamos quando já não há nada a ocultar, a máscara chora.

 

6.5.06

1961, a preto e branco

A oportunidade de ver, na Cinemateca, o filme Une Femme est une Femme, de Jean-Luc Godard, realizado em 1961 e, apenas, estreado em Portugal a 18 de Novembro de 1975, no desaparecido cinema Estúdio, trouxe-me à memória um conjunto de dados que, aparentemente, nada têm a ver com o referido filme.

Em 1961, começava a frequentar a escola primária e esse início ficou, de imediato, marcado pelo falecimento do professor JL. Da sua presença, resta a ideia de que se tratava de um homem enorme, extremamente severo, que não abdicava do castigo físico para impor a lei da pátria. Um homem temido pelos alunos e reverenciado pelos pais. O professor tinha sempre razão! Tal como o grande timoneiro, o Dr. Oliveira Salazar.

Muito longe dali, na madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de patriotas angolanos atacara a prisão de S. Paulo, o aquartelamento da Companhia Móvel da PSP e a Casa de Reclusão Militar. Os revoltosos perderam 40 elementos e as forças da ordem, sete. Os sobreviventes refugiaram-se nas matas do Norte e Nordeste de Angola. Durante os funerais, colonos brancos em fúria massacraram centenas de negros. Entretanto, a 15 e 16 de Fevereiro de 1961, grupos de camponeses bakongos, enquadrados pela UPA, atacaram postos administrativos, vias de comunicação, povoações e sanzalas, mutilando e matando homens, mulheres e crianças europeus, assim como assimilados negros ou mulatos, considerados agentes dos portugueses. A resposta portuguesa foi rápida e brutal e não se limitou à região dos ataques rebeldes. Foram à pressa formadas e armadas milícias brancas. O reino do terror instalou-se.

Em consequência destes acontecimentos, Salazar remodelou o Governo, chamando para as pastas do Ultramar e dos Estrangeiros, Adriano Moreira e Franco Nogueira, e dando início à guerra do Ultramar como resposta ...

Só muito mais tarde, compreendi que o ano de 1961 - o ano em que entrara na escola primária - fora um ano determinante quanto ao futuro de Portugal e das suas colónias - as províncias ultramarinas - merónimas da gloriosa pátria portuguesa.

E também muito mais tarde, Pepetela (em A Geração da Utopia) ajudou-me a compreender que as mulheres de Lisboa, em 1961, vestiam de negro, com um lenço negro na cabeça. Não se sabia se vinham dum enterro ou do campo. Se traziam luto por familiares mortos em Angola, com o levantamento do Norte...

Em 1961, quando o luto (o negro) se abate sobre Portugal, Jean Luc Godard realiza o seu primeiro filme a cores - Une Femme est une Femme. E hoje, ao vê-lo, percebi melhor os motivos do atraso em que nos encontramos. E talvez tenha, também, percebido a razão da desmemória que me afecta: o filme produzido em 1961, só foi visto em Portugal em 1975 - a diversidade chegara...

Mas será que ainda vamos a tempo de realizar o filme: Portugal é Portugal? Mesmo que seja um Portugal tão gracioso e ingénuo como a Ângela Recamier!

PS: Este filme não deve ser confundido com o do realizador Scolari!

 

5.5.06

Raras e difíceis coisas dignas de atenção

«Omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt.» Espinosa, Ética (Todas as coisas dignas de atenção são tão difíceis quanto raras.)

Se todas as coisas nos merecessem a mesma atenção, o que é que aconteceria à nossa memória? Provavelmente, incapazes de tratar toda a informação, entraríamos em colapso. Deixaríamos de ordenar os dados, de os procurar interpretar, de os valorizar. E finalmente, entraríamos numa deriva nihilista interminável.

E se... se... a hipótese acabada de colocar já for realidade, então teremos perdido a capacidade de nos ocupar das coisas dignas de atenção - as raras e difíceis coisas!

Teremos perdido a capacidade de motivar os outros para essas raras e difíceis coisas dignas de atenção!

E por isso na próxima terça-feira, os meus alunos poderão finalmente perceber que, - tal como muitos já suspeitam - afinal, não há coisas dignas de atenção... pois um outro professor me substituirá com igual (superior!?) proveito, desde que lhe tenha deixado a aula planificada...

Espero, no entanto, que nenhum aluno leia esta observação. Caso isso aconteça, esclareço que a terça-feira, não é a próxima, mas, sim, uma qualquer terça-feira de 2007.

Apesar de tudo, sobra uma dúvida razoável: Se as coisas dignas de atenção são raras e difíceis, ainda haverá alguém para quem a dificuldade seja um estímulo?

 

4.5.06

Explicação

A língua portuguesa, por vezes, é traiçoeira e pode gerar equívocos. Por isso, há dias procurei explicar a disponibilidade da caruma.... E para quem, ainda, não entenda a razão de ser deste blog, quero dizer-lhe que ele tem para mim uma enorme importância, porque obriga-me a registar, ainda que, por vezes, ficcionalmente, ocorrências (ideias!?) que, doutro modo, esqueceria de todo. Sempre tive dificuldade em memorizar rostos, situações, conversas, histórias (estórias). E porque ao longo dos anos tive de lidar com mil e uma pessoas, em contextos diversos, sinto cada vez mais pena de não ter um registo sistemático... E sei que frequentemente caio em situações ridículas, pois, quando abordado por vizinhos, colegas, alunos, familiares, por vezes, não os consigo identificar...

Como quando nasci não vinha preparado para este bulício, tive de queimar muitas etapas, digo agulhas, e a minha esforçada memória, que nunca aprendeu corretamente os mecanismos da articulação frásica, passou a utilizar obscuros critérios arquivísticos... Nesta nova etapa, a escrita de um blog permite-me atrasar esse processo irremediável de desmemória... Eu bem sei que há neurologistas e afins, mas enquanto os puder adiar e, ao mesmo tempo, atrasar o caminho para o mar do absoluto esquecimento, seguirei por essa vereda...

 

3.5.06

Há dias...

Uma imagem com ar livre, Comunidade vegetal, Subarbusto, relva

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«Enfim nestes cansados pensamentos,

Passo esta vida vã que sempre dura.»

Camões

Há dias em que, obliquamente, o desassossego alastra: as máquinas continuam no subsolo a molestar os cérebros imaturos. Impunes! Inexoráveis!...As máquinas?

E as incertezas avolumam-se, não no horizonte pessoano, mas, aqui, na soleira da porta, na valeta do caminho...

As agulhas acastelam-se em penumbra antecipada...

Todavia, ali, na Rua Tomás Ribeiro - o célebre autor do obliterado D. Jaime ou a Dominação de Castela (1862) -, encontro três jovens, que ignoram quem foi Tomás Ribeiro, e indiferentes à invasão espanhola que as sitia, me perguntam se podemos considerar os nomes próprios como deícticos.

E eu, compensando uma manhã de desânimo, respondi-lhes que sim, que os nomes próprios são indicadores, nos situam, individualizam, expressam o tipo de relação que mantemos com o Outro, quando lhe sabemos o nome próprio...

E Tomás Ribeiro, Fontes Pereira de Melo, José Fontana, Ventura Terra, Luís de Camões... a que tipo de deícticos corresponderão?

Aquelas três jovens, porém, estavam pragmaticamente preocupadas em saber se ALMA era ou não um deíctico?

E as agulhas deslocam-se indecisamente...

 

1.5.06

A disponibilidade da caruma

Uma imagem com ar livre, árvore, céu, castelo

Descrição gerada automaticamenteUma imagem com ar livre, relva, vegetação, natureza

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Ao contrário do que parece, a caruma não se oferece nem se vende. Pode ser passenta, a uma escala que nada tem a ver com o tempo de cada ser humano; nem sempre é rasteira; pode ficar suspensa, numa antecipação da queda germinal.

A disponibilidade opõe-se ao fastio, ao tédio, ao preconceito, à opinião; procura sentir hiponimicamente como faziam Almeida Garrett, Cesário Verde, Teixeira de Pascoaes, Alberto Caeiro, Sebastião da Gama, Jorge Barbosa...

A alteridade interessa-lhe porque pode ser uma fonte inesgotável de aprendizagem e, consequentemente de plenitude. Freud e Maquiavel eram reducionistas: defendiam que a plenitude se atingia através da posse, do domínio do outro. E baseavam-se na conquista ou no fracasso para explicar a historicidade do sujeito.

Esta caruma não está à espera nem lhe interessa ser utilizada, mesmo que isso aconteça a cada momento; não lhe interessa o poder de Freud ou de Maquiavel. O que procura é a incerta reintegração cósmica!

No entanto, essa reintegração, apesar da disponibilidade, parece bem longínqua como o reconhece o poeta da cabo-verdiana Claridade, Jorge Barbosa:

«Passei um momento no caminho que as flores enchiam de aromas,

que as árvores enchiam de sombra.

E o chão era fofo por causa das folhas caídas.

Mas o perfume não era para mim, nem a frescura da ramagem

Nem para os meus pés o tapete que as folhas deixavam.

Porque o meu caminho é um outro, mais duro e mais longo.»

E para trás ficou, entretanto, o mosteiro (a Arrábida) com o seu inconfundível altar no Outão, um altar de cimento. Curiosamente, «outão» pode significar «parte lateral de um edifício» ou «vento que vem do alto mar». Qualquer um dos significados convém, pois, a Secil Outão produz anualmente mais de 2.000.000 toneladas de cimento cinzento que escoa por terra e por mar, já que também dispõe três cais acostáveis, dotados de meios autónomos de carga e descarga simultâneas.

E a esta hora, a própria caruma se interroga sobre o tipo de relação possível entre o altar da Arrábida e a ara da Secil Outão.

A interrogação é uma das expressões da disponibilidade. Abre. Enquanto a resposta enclausura.

 

30.4.06

Outão

Uma imagem com ar livre, água, céu, lago

Descrição gerada automaticamente«A Reserva Natural do Estuário do Sado é constituída por uma sucessão de água de rio e de água de mar, bancos de areia e de vasa, praias, dunas e sapais. Esta constitui um ecossistema rico e produtivo ao qual se encontram associadas uma flora e fauna diversas. O rio Sado nasce na serra da Vigia, a sueste de Ourique, e percorre 180 km de margens mais ou menos planas, desembocando no oceano, entre o Outão e a ponta de Troia.» Diciopédia 2006

É aqui, diante das torres de Troia, que me encontro desde ontem. E eu que pensava que Troia tinha sido implodida!

Para cá chegar, atravessei toda a Arrábida com a sensação de que há algo de errado por estes lados. Em pleno século XXI, este pobre país continua a não saber explorar as suas riquezas! Em nome de que preconceitos? Quem é que efetivamente é responsável por toda esta reserva? Tem nome? Pode ser responsabilizado?

Chegado ao parque de campismo do Outão - 2ª escolha - verifico que ele está ocupado por residentes que se dedicam à pesca, a passeios de barco (?) ou simplesmente a apanhar sol, e que, quando ausentes, abandonam à natureza as suas acomodações não cuidando minimamente do respetivo alvéolo. A habitual incúria!

Este, parque, que beneficia de uma localização única, não tem, no entanto, condições para servir os muitos campistas e caravanistas que nele poderiam encontrar um abrigo temporário na descoberta de toda esta região.

Um outro exemplo de que há falta de profissionalismo, encontra-se às portas de Sesimbra, no Porto de Abrigo. Sem falar nos inacreditáveis acessos (adivinha-se que ninguém se quer responsabilizar por desfazer aquele emaranhado público-privado de desvios!), ao parque de campismo Forte do Cavalo (classificado com 2 estrelas, em quatro possíveis), descobri quando, finalmente cheguei à receção, que este se encontrava em obras. Imagine-se: este parque fecha anualmente entre 1 de Novembro e 6 de Abril! Não tiveram tempo para realizar as obras, nem encontraram meio de divulgar o atraso. E quem quer lá chegar tem que atravessar uma zona privada! Apesar de tudo não é comparável ao Bojador(!?)

Esqueçamos os contratempos, olhemos os pinheiros, que, também, os há por aqui e não falemos da caruma porque as agulhas ainda não tiveram tempo de amadurecer ou a cimenteira lhes adulterou os hábitos...

 

27.4.06

Para sempre?

Eu pensava que a cor das minhas agulhas era o castanho, mais claro ou mais escuro se no Verão ou no Inverno... nunca me interessara muito pela História e por isso ignorava que antes as minhas agulhas tinham sido verdes. Na realidade, incomodava-me um pouco aquela passagem do tom claro ao escuro porque intuía que a chuva acabaria por me miscigenar com claro proveito da terra...E, sobretudo, temia que um qualquer pirómano me pusesse ao rubro e, nesse caso, de mim só sobraria o fumo. Não sei o que será pior: a miscigenação ou a combustão? Agora que cheguei a esta conclusão, quero acreditar que o ideal seria manter-me sempre verde, ficar presa para sempre a uma qualquer conífera, não precisava sequer de ser um pinheiro! No entanto, a necessidade de concluir precipitou-me numa outra armadilha: Quem quer ficar verde para sempre? Ficar para sempre?

 

 

 

26.4.06

Mas o ancinho já não espera pelo Estio!

Tenha ele - o ancinho - a forma de pente ou de rede, pode-se dizer que ainda é familiar do gancho do Baltasar Sete-Sóis. E a caruma se nunca gostou de ganchos, muito menos gosta de ser penteada ou enleada porque essas meiguices anunciam quase sempre um auto-de-fé em que os hereges deste século, em vez de serem penitenciados ou queimados, veem fechar a escola, o centro de saúde, a capela... e abrir uma autoestrada para, afinal, os desterrar para a capital. E quando, agrilhoados, lá chegam, não veem mais a casa, a horta, o pombal...

Tal como a caruma, os novos hereges são um perigo: pensam que podem envelhecer à sombra hospitaleira do trabalho de uma vida. Mas não. Essa vida vale tanto como a palha da caruma e, por isso, acabarão, em nome de um misterioso desígnio, arrastados por um altivo ancinho, em forma de rede, de pente ou de gancho...

E nesse auto-de-fé da vida nem Blimunda Sete-Luas poderá desenlear a vontade do seu Baltasar Sete-Sóis! É como se... a caruma fosse autófaga, pelo menos sempre que o Estio se aproxima...

Mas o ancinho já não espera pelo Estio!

(Entretanto, começou a soprar uma aragem que deixou a caruma um pouco aborrecida por se ter lembrado do ancinho. Isto há palavras em que já não se pode confiar!)

 

24.4.06

A debilidade no Indie Lisboa

A curta-metragem ÉRAMOS POCOS, de Borja Cobeaga obriga-me a retomar o modo como encaramos a debilidade. Um pai-filho abandonados, respetivamente pela esposa -mãe dirigem-se a um lar para recuperar a sogra-avó que há muito tinham rejeitado. Mal se aproximam do salão repleto de velhos, são abordados por uma idosa que se faz passar pela desejada sogra-avó que se propõe alegremente acompanhá-los a casa.

Num cenário imundo e grotesco, a sogra-avó faz o milagre de de lhes fazer as compras, de lhes preparar uma refeição, de lhes arrumar progressivamente a casa sem que eles desconfiem da verdadeira identidade da velha. E mesmo quando o genro a descobre, prefere o silêncio dos cínicos a perder a criada que, afinal, viera substituir a esposa-mãe.

Esta história mostra-nos que na caruma da velhice, há muita senilidade que o não é e, sobretudo, que há muita debilidade no modo como enfrentamos a doença seja ela física ou mental.

Hoje, no Lar de São Bento, tive mais uma vez a oportunidade de me interrogar sobre o modo como tratamos os mais velhos - ali, sentados, à espera de que lhes sirvam o lanche, em frente duma Escrava Isaura que nas suas memórias dura anos, sem saberem que se trata de uma reposição...

E no meio do lanche, três velhinhas que esperam pela hora de se dirigirem ao refeitório para poderem merendar... E uma delas que exclama: Eu tenho 94 anos, tenho 94 anos... E levanta-se a custo e caminha...

E aquele pai-filho, ali, à espera de que a nova criada, risonhamente, lhes preparasse o jantar!

 

22.4.06

Por vezes, a caruma entra em combustão...

Uma imagem com quadro, ar livre, fogo

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O filme SUGAR de Patrick Jolley e Reynold Reynolds deixou-me em combustão lenta... De regresso ao Surrealismo, este filme joga na criação de uma nova ordem sem qualquer contacto com o mundo exterior. Apostando na ignorância desse mundo - apresenta-o como um universo fantasmático - e, em alternativa quer nos fazer acreditar que a alucinação é a única realidade - a realidade do frigorífico...

Quem mandou a caruma ao INDIE LISBOA 2006?

 

20.4.06

A caruma sente-se perplexa

Hoje, a caruma sente-se perplexa. Está incomodada, pois não sabe em que regime vive. Até há pouco tempo vivia despreocupadamente: nunca pensara na natureza da relação que há longo tempo mantinha com o pinhal ou mesmo com as agulhas em geral e as dos pinheiros em particular... Subitamente, um vento vindo do Continente começou a falar-lhe de relações hierárquicas, de equivalência, de oposição e, sobretudo, de inclusão. As relações hierárquicas nada lhe diziam, pois tinham-se esfumado numa madrugada de Abril; as de equivalência eram-lhe completamente desconhecidas, pois jamais imaginara que alguém a pudesse substituir por «carumba», «carumeira», «carunha» - palavras que, apesar de tão rasteiras como ela, jaziam esquecidas no fundo de um obsoleto dicionário. Para si, as relações de oposição tinham perdido qualquer significado, pois deixara de perceber que diferença havia entre «bem» e «mal», «pobreza» e «riqueza», «direita» e «esquerda» - há muito que o relativismo a deixara sem coragem para tentar ordenar o que quer que fosse. Chegara mesmo a sentir-se bem na periferia, onde, apesar de marginalizada, raros eram os que a pisavam... estava ali, alienada e, quando, em certas horas, pensava na sua condição percebia o que era uma relação de exclusão. Mas, hoje, a caruma está, de facto, perplexa: o vento voltou a falar de inclusão. Ainda perguntou às outras equivalentes - as agulhas - o que era a inclusão, mas estas não lhe souberam responder pois estavam ocupadas em obedecer ao vento que derivava num turbilhão capaz de aterrorizar um qualquer incauto... Valerá mesmo a pena explicar o que são relações hierárquicas, de equivalência, de oposição e, em particular, de INCLUSÃO? Não quereria o vento falar de EXPLOSÃO? de IMPLOSÃO?

 

19.4.06

A caruma dormita

Há alturas em que a caruma dormita sobre a terra, alheia ao murmúrio dos pinheiros. Parece indiferente aos pés que a pisam, apostada apenas em fundir-se com a areia numa mistura contranatura. Apesar disso, quando regressamos, a caruma sumiu-se não se sabe se nas dunas, se nas ondas, se nas raízes das naus de Pessoa. De facto, na estação seguinte, a realidade parece não ter sofrido qualquer alteração: há quem defenda que D. João VI é filho de D. João V, como se a caruma nunca ali tivesse estado. D. José I, Maria I sumiram-se não se sabe se nas dunas, se nas ondas enquanto Pessoa se enfadava no longo areal do seu próprio sonho. Será que ainda vale a pena ordenar os acontecimentos?

 

18.4.06

A caruma não serve de acendalha

Frequentemente, a caruma não serve de acendalha. Há uma perfuradora no subsolo que ruidosamente impede que lhes explique a relação entre a Reforma e a Contra Reforma. Eles já ouviram falar disso, já me ouviram falar disso, mas L pensativamente reconhece que nada lhe ficou na cabeça. L não consegue ler o Memorial do Convento que nada lhe diz, ao contrário daquele falecido rapaz-actor da TVI que lhe desperta a emoção, como a milhares de outros adolescentes que ignoram onde se desenrola uma qualquer guerra ou se estão a ser educados para aceitar placidamente qualquer guerra. Estarão agora a pensar se os seus brinquedos são de guerra ou de paz!? Mas não verão o automóvel do rapaz-actor da TVI como um brinquedo bélico! Que interesse lhes poderá despertar a Contra Reforma? Que relação poderão estabelecer entre os brinquedos, o automóvel, a Contrarreforma e o início de qualquer guerra? Não seria melhor falar-lhes da paz ou deixá-los mesmo em paz?

 

17.4.06

Textos anteriores

Domingo, 16 de Abril de 2006

As respostas débeis 

Hoje, domingo de Páscoa, apesar de ter gastado o dia em múltiplas atividades - assistência à família, análise de portfolios, discussões gratuitas - continuo sem saber como abordar a doença, como distinguir a lucidez da patologia. E se a doença não for mais do que uma desculpa que inventamos para não assumirmos determinados encargos? E se, afinal, a doença não é mais do que a máscara da lucidez? E se a causa do sofrimento não está no outro, mas em nós? Todos os dias, imaginamos mil sintomas que nos ajudam a esconder as nossas dúvidas. Todos os dias, acusamos os outros de intenções que nós próprios ocultamos. A debilidade das respostas resulta de uma mentira entranhada, de mil mentiras legitimadas por rituais milenares em que gostamos de nos escorar. E por isso, creio, que a consciência pesa um pouco mais neste domingo de Páscoa, pois, afinal, a ressurreição não passa de «uma nuvem fechada». 

 

Quarta-feira, 12 de Abril de 2006 A debilidade 

Como lidar com a debilidade? Sobretudo com aquela que aparenta estar lúcida, mas que esquece que não pode - ou será que não quer? - caminhar. Como estabelecer a fronteira entre o poder e o querer? Esse território de indecisão cria em nós um sentimento de impotência, mas também de fingimento de quem aprendeu a acreditar que o jogo é mais do que um espaço de simulação - será mesmo um espaço de superação!? O jogo que oculta a realidade permitir-nos-á ir à antiga casa, ao cemitério, almoçar, como se estes gestos pudessem ter significado. Mas que significado? Um significado de ajuste de contas? de traição? ou apenas de um acto de piedade? A debilidade da resposta é assustadora... 

 

Em torno de Ávila 5 de Abril de 2006 

O percurso até Ávila não se revelou difícil, pelo menos até às imediações. Aí tudo se complicou um pouco - os espanhóis continuam a construir autovias e a cercar as cidades de múltiplas circulares. E quando isso acontece, não há plano de viagem que resista: a carretera 403 tornou-se longínqua, fazendo desaparecer o camping de Sonsoles. Apenas vislumbrei o Santuário de Nossa Senhora do dito cujo, de regresso à 403, direcção Toledo. Estrada de difícil traçado que acabou por nos levar a um curioso camping “Pântano del Burguillo”, situado sobre a carretera C-902 direccion Navaluega. Percurso total: 600 km. Curiosamente, não havia qualquer outro campista. Ficámos sós e fechados no camping, na companhia do léon, um elegante e possante cão de guarda. O dono decidiu ir dormir a casa, deixando-nos o seu telefone de casa para qualquer eventualidade. No entanto, como verificámos, não era possível contactá-lo pois não tínhamos rede nem acesso à Internet. Entretanto, o león começou a ladrar. Vá lá saber-se porquê? 

 

6 de Abril de 2006

Visita à lagoa (embalsa), ao rio e aos rochedos que caracterizam o Pântano del Burguillo. Tudo muito rochoso e agreste. O extraordinário aqui são os salmões (?) que sobem o rio num esforço titânico, lutando contra a impetuosa corrente e os declives que dificultam a subida do rio. A natureza – flora e fauna – dominam neste território onde poucos humanos parecem viver. As águias senhoreiam os penedos, escondendo as crias. Ao fim do dia, chegou uma outra família de campistas que veio ocupar a roulotte que já lá se encontrava. Quanto ao dono (?) do camping, que nasceu em Badajoz e há muitos anos passou férias em Troia, tendo de caminho visitado Lisboa e arredores, continua fascinado com a pequenez das celas do convento dos capuchos em Sintra. O pai dele é que gostava de futebol tendo o hábito de atravessar a fronteira, para assistir aos embates entre o Real Madrid e o Benfica, no Caia. A estadia neste camping foi singular até porque o estalajadeiro estava sempre ausente, nomeando-me mesmo chefe de campo. Talvez por isso, acabei por me livrar duma viagem de barco em que o motor começou a deitar fumo… 

 

7 de Abril de 2006

Percurso: Pântano del Burguillo– Barráco – Ávila – Piedrahita – El Barco de Ávila – Jerfe (Parque natural: Garganta de los Infiernos) – 146 km Entre El Barco de Ávila e Jerfe, a estrada é extremamente sinuosa. Velocidade recomendada: 30 km. Espetáculo deslumbrante de cerejeiras em flor. As encostas da serra nesta época estão completamente brancas. «Os cumes blancos». Ávila Não foi difícil estacionar a autocaravana. Estacionámos perto da porta del Rastro, quase que instintivamente, pois alguns minutos mais tarde já nos encontrávamos no interior da Igreja de Santa Teresa de Jesus. Posteriormente, visitámos o museu de Santa Teresa que corresponde a um espaço desnivelado, aparentemente subterrâneo, composto por várias salas revestidas a tijolo e cujas abóbadas são arqueadas. A vida e a obra de santa Teresa e mesmo de S. João da Cruz estão muito bem representadas, quer através do depósito dos originais quer da obra traduzida em diversas línguas, como o polaco, o chinês, o grego, o alemão… Havia também várias marcas das passagens dos papas Paulo VI e João Paulo II. Na Institucion – “Gran Duque de Alba” vimos a exposição VETTONIA cultura y naturaleza: Qiénes eran los vattones? Los verracos. Significado y cronologia de los verracos; la sociedad vettona… Catedral de Ávila e Museu (mistura de estilos). Recheio riquíssimo. Sobretudo uma enorme custódia em prata do séc. XV… Praça de Santa Teresa Porta del Alcazár Convento de Santa Teresa de Ávila (sobre a casa em que ela tinha nascido) Comboio Turístico – 30 minutos 8 de Abril de 2006 Pernoitámos no camping Valle del Jerte. Foi enchendo ao longo do dia. Visita à reserva natural de Garganta de los Infiernos. Ruta de los pilones - Ida e volta: 2 h e 45 minutos. Percurso acidentado que, nesta época, é muito bonito, pois a natureza desperta, as cerejeiras florescem, vendo-se (e ouvindo-se) os rápidos dos rios que correm impetuosamente em consequência do degelo da Sierra de Tormentos. O percurso termina junto de pequenas cascatas muito procuradas neste fim de semana. Há mesmo uma «fuente» e, também, quem aproveite para fazer pic-nic. 9 de Abril de 2006 Continuamos no camping Valle del Jerte. De manhã, fomos a pé, por entre cerejeiras em flor e ouvindo diversas aves, caso raro, entras elas o cuco, até à localidade de Jerte. 45 minutos para cada lado. Um pueblo simpático com início junto ao rio do mesmo nome, e uma igreja antiga, de pedra, e muito bem decorada. Produtos locais: licor de ginja, sabão de azeite, chocolate de azeite, queijo, também, em azeite…hurdanitos (rebuçados) de mel e pólen de las Hurdes… um domingo tranquilo. Neste fim de semana, tivemos tempo para verificar que a Garganta de los Infiernos é muito procurada por famílias, namorados, grupos de escoteiros e mesmo por um grupo de cerca de 50 pessoas vindas de Huelva (?). Os espanhóis continuam barulhentos, mas revelam-se asseados e amantes da Natureza… não deixam lixo em lado nenhum. Imagine-se o que seria se a Garganta de los Infiernos fosse visitada por portugueses! Um pouco à margem tenho lido um Boris Vian surpreendente, alternando com uma releitura morosa e profissional (?) do Memorial do Convento de Saramago. Creio que a imaginativa de ambos se equivale, embora Saramago se torne mais cansativo. Há em ambos uma nítida vontade de perturbar o leitor, de lhe mostrar o avesso das coisas e dos seres. E a Isabel, atenta às flores, já por aqui encontrou os saramagos, que recentemente tínhamos visto, em abundância, em Aljezur.

10 de Abril de 2006

Ainda não deixámos o camping Valle del Jerte. Entre Jerte e Cabezuela. O percurso pedestre de 4 km revelou-se um fiasco. Afinal, os espanhóis também colocam o entulho («escombros») em lugares protegidos! O que não nos impediu de caminharmos (90 minutos: ida e volta) na direcção de Cabezuela, tendo aproveitado para comprar alguns produtos locais, designadamente separadores de alabastro(?), para estantes de livros. A pedra, no entanto, provém de Saragoça. Hoje, 2ªfeira (lunes), no camping tudo está mais calmo, apesar dos escoteiros continuarem os seus constantes jogos e cantorias. Nos acessos à Garganta de los Infiernos, mantém-se o movimento dos dias anteriores.

11 de Abril de 2006

Regresso a casa. Por muito que estude o mapa, ainda não consegui decidir que percurso vou fazer. Inicialmente, deslocar-me-ei para Plasencia, embora saiba que valeria a pena voltar para trás (direcção de Ávila) para ver mais uma vez as cerejeiras em flor. É uma paisagem deslumbrante, mas o caminho é tão tortuoso! É importante notar que, apesar dos vários choques tecnológicos, aqui, as comunicações são difíceis. Durante todos estes dias não consegui aceder à Internet, nem telefonar para a nossa filha que se encontra em Pécs, na Hungria. Apenas contactámos por SMS. Acabámos por regressar a Portugal através da EXT108, num percurso total de 403 Km. Terça-feira, 4 de Abril de 2006 Portela - Ávila A expectativa é grande. As pedras de Ávila testemunham uma história feita de glória (santidade, valentia) e fanatismo (despotismo e sofrimento). Não sei bem como é que vou encarar esse passado inquisitorial. Vamos partir amanhã - cedo? -, mas sem a obrigação de cumprir um horário. Pernoitarei certamente antes de chegar a Ávila. Resta saber se à beira da estrada ou em algum parque de campismo. Na Castilha - Léon não há muitos parques, sobretudo nas cidades, ao contrário do litoral espanhol. Esqueci-me de dizer que esta descontração resulta de viajar na minha autocaravana. Espero que isso não desperte qualquer sentimento de inveja. Como é que Boris Vian encararia Ávila?

 

3 de Março de 2006

Estranhamente

irrompe das ruas desertas a mudez das casas

Enleia as roseiras a ervagem daninha

Agoniza ao sol de Inverno secreta tubagem

 Estranhamente

procuro o lugar a voz a rosa a calma

 Estranhamente

 ouço o eco da enxada, da gadanha, do arroio

Estranhamente

 caio e fico lá num não-lugar

enleado em mim mesmo.

 

 2/3/2006

Passei por lá e não te vi!

Refletia só a modesta jarra Sombra ténue da tua presença

Passei por lá e só ouvi

Sob a capa da terra

O eterno incómodo dum involuntário queixume

Passei por lá e não senti a força da tua mão

 E saí a procurar flores esquecidas da tua presença

Passei por lá e só vi o olhar vazio do corvo faminto.

 

 1/3/2006

Cercam-me os fios dos teus cabelos noturnos silenciosos

Despontam em números proibitivos os teus ávidos dedos

 Parecem querer aproximar-nos no mar largo que fica para além do Sol

 

 1/3/2006

 Se tu soubesses

Um lugar onde seduz um rosto sem luz

Se tu soubesses

O lugar donde partiste tinhas ficado um pouco mais

Se tu soubesses

As máscaras que nos cercam tinhas ficado um pouco mais

Um lugar onde seduz um rosto sem luz

Se tu soubesses

que as máscaras ensaiam uma dança metálica de espectros

 Se tu soubesses

O lugar que me deixaste tinhas ficado um pouco mais

Um lugar onde seduz um rosto sem luz

 

15/12/2005

Um pouco mais cedo...

Para ti, que lutaste sempre,

Que nunca pensaste que o teu fim estava ali,

naquele lugar branco,

Asséptico.

Que nem sequer esperaste pela meia-noite!

Foste embora um pouco mais cedo...

A morte é sorrateira, apressa-se invisível,

Esconde-se dos sentidos,

destrói numa euforia devastadora.

Em certos casos, no entanto, a morte é mais leve do que a vida.

Anoitece apenas.

A vida, essa, pesa desmesuradamente.

Absurdamente.

 

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