30.12.06
Neste final de 2006…
CARUMA quer despedir-se neste final de 2006 de todos os seus, pacientes,
leitores. Tal como o país e, sobretudo, o mundo, andou um pouco à deriva num
processo de adaptação que deixou a descoberto o seu fragilizado esqueleto. A
aposta na ruptura tem vindo a destruir a memória, querendo dar razão àqueles
que defendem o «fim da história». Mas sem memória, secamos as raízes e tornamos
absurda a vida. Vários foram os momentos em que o século XX voltou as costas ao
passado, recriando pesadelos que eliminaram milhões de vidas. O modernismo
relativista transformou-se em individualismo triunfante e as nações submergiram
sob totalitarismos expansionistas que ignoram toda e qualquer fronteira. No
início do séc. XXI, a fronteira contrai-se e dilata-se ao sabor da vontade dos
anónimos conglomerados. O homem pesa cada vez menos face à teia dos interesses.
De vez em quando, executa-se um “Sadam” para que a teia possa eliminar mais uma
série de obstáculos. Objetivamente, a decisão de execução visa que os súbditos
se exterminem, em nome da frágil memória que ainda lhes resta da História.
Nestas circunstâncias, CARUMA não pode esperar que 2007 seja mais justo que
2006. O ser humano, depois de ter sido expulso do paraíso, está a ser expulso
da terra. A dificuldade não está em determinar o agente da expulsão, mas em
saber o que fazer com ele. Porém, a rotunda é a melhor metáfora do que espero
para 2007, mas que não desejo a ninguém. Se a memória me não atraiçoa, em
tempos idos, de encruzilhadas, o que me fascinava e prendia era a nora e, em
particular, os alcatruzes.
26.12.06
O Jardim das
Delícias... de João Aguiar
«O que Bosch nos mostra com o Jardim das Delícias é um falso paraíso, cuja
beleza é passageira e conduz os homens à ruína e à condenação...» Walter
Bosing
O mesmo se poderá dizer
de "O Jardim das Delícias" (ASA, 2005) de João Aguiar.
Trata-se de um romance sobre a União Europeia transformada em "Federação
Europeia" no séc. XXI. O federalismo vai destruindo todos os símbolos
identitários em nome de uma volúpia económica, conduzida pelos «conglomerados
político-financeiros» que de fusão em fusão condicionam consumidores e
governos tornando-se indissociáveis do poder político e da própria criação
cultural. Perante a destruição das identidades nacionais e regionais surge a reação
do integrismo - no caso português (ou do que resta...) - a reação
da Sagrada Milícia - a ala combatente do Movimento Integrista
Português. E no meio destes dois poderes, o protagonista - o Jornalista João
Carlos - procura opor-se à cegueira de uma Europa minada por um duplo cancro...
num espaço e num tempo em que a lucidez dificilmente sobrevive à
arrebanhadura... Um romance que obriga a pensar o presente, à luz da história
recente... raramente problematizada. Não chega a ser um romance profético, a
não ser, talvez, nesta sub-região da Ibéria...
21.12.06
«Passo o meu dia a dia
aparentemente desligado da literatura e no entanto é literatura do princípio ao
fim.» José Luandino Vieira, Público, 5/12/2006
Quando a História se
apaga, o campo fica livre para a mentira, a simulação, a ficção. O Ocidente
querendo evitar a mentira fez-nos crer na inverosimilhança. Por isso,
ensinou-nos pacientemente a distinguir a verdade da verosimilhança. Em tempos
de maior rigor, a História exigiu-nos que sacrificássemos a vida em nome da
Verdade - única. Tudo o resto era desvario diabólico.... Porém esse desvario
arrepiou caminho e relativizou a Verdade - a História entrou em declínio e a
verosimilhança começou a impor-nos tantos caminhos quantos os romeiros. De tal
modo que facilmente cultivamos a mentira que nos permite limpar as mãos sujas
do sangue de todos aqueles que sacrificámos em nome de um realismo socialista
que nem sequer se queria utópico.
Tudo é possível num
convento em Vila Nova de Cerveira..., contrariando a máxima de que tudo
o resto é literatura! Há certamente um domínio onde nem tudo é
literatura - a dor. Mas mesmo essa continua a ser literatura se apenas a
fingimos. Como os poetas / fingidores deveriam ser felizes!
16.12.06
Depois da juvenil caça
aos gambozinos passei a dedicar-me à descoberta da paratormona.
Conheço-a mal, mas os seus efeitos sinto-os bem. Percorre-me o corpo numa
voragem intensa e um pouco desorientada... Apesar de tudo, passei a
considerá-la - a paratormona - uma nova companheira
extremamente exigente: detesta que eu a esqueça, que eu me distraia...
Uma companheira um pouco
paradoxal: ao mesmo tempo que ocupa o espaço, absorve-o, criando o vazio...
11.12.06
A
encenação espanhola do arrependimento...
É a terceira vez que
tento publicar um breve comentário não sobre a Igreja de La Preciosa
Sangre, em Cárceres, mas sobre a monumentalidade da arquitetura civil
e religiosa na Espanha do passado e do presente. Sempre que percorri o casco de
algumas cidades espanholas (Toledo, Madrid, Burgos, Barcelona, Sevilha, Ávila,
Segóvia, Cárceres) fiquei com a impressão de que os espanhóis têm uma enorme
necessidade de expor a força e a crueldade erigindo fortalezas e
catedrais. Esta necessidade não é forçosamente do soberano (do estado), é,
sobretudo, a afirmação dos "senhores" da conquista - ibérica,
europeia ou das américas. Senhores ciosos de afirmarem a sua superioridade
perante os vizinhos e que, para efeito, edificam palácios e catedrais lado a
lado, transformando o espaço num labirinto de ruas e ruelas, lutando pelos
cumes numa clara projeção para os céus… O movimento é sempre ascensional,
originando cogumelos de edifícios cuja funcionalidade nos escapa… porque a
grandeza, afinal, é simbólica…
Mesmo a associação da
grandeza ao poder nem sempre é linear, porque, mais do que expressão de riqueza
poderia muito bem tratar-se de uma forma de catarse. Mas não, tudo é encenação,
diria pública, não fosse a redundância... O arrependimento da conquista, do
sangue derramado, transforma-se em espetáculo em que sangrador e sangrado podem
caminhar lado a lado, fugindo ao exame de consciência que a nudez e a elevação
das catedrais góticas acabaria por exigir.
Por isso os espanhóis
preferem ao despojamento a ostentação, ao isolamento a multidão, à sobriedade a
opulência, à linha o volume..., preferem tudo o que os afaste da assunção da
responsabilidade, em nome da ocupação do espaço, da encenação do arrependimento...
A encenação da culpa é um
sinal dos tempos de que quase todas as cidades espanholas dão testemunho... E
paga-se para assistir ao espetáculo!
(Os dois anteriores
comentários eram bem diferentes destes. Mostravam que o Barroco não foi mais do
que o produto de uma contrarreforma jesuítica que encenava a morte num retábulo
roubado aos ameríndios! Mostrava ainda que o barroco nunca foi português nem
brasileiro... era simplesmente a expressão da grandeza espanhola na Europa,
contra a Europa da Reforma. Felizmente que estes comentários se perderam!)
1.12.06
O orçamento é (ou deve
ser) linear.
Inicialmente, o orçamento
não era mais do que um instrumento de execução de um projecto... No entanto, à
medida que fomos ficando sem projecto, o orçamento tornou-se no grande
acontecimento legitimador da governação e da oposição.
Governo e oposição sonham
com o orçamento para poderem definir as respetivas estratégias de consolidação
ou de luta pelo poder, pelo poder de gerir o orçamento de estado, como se o
país se reduzisse à captura de receitas e à sua redistribuição pelas
clientelas...
Se quiséssemos construir
um projecto nacional, ibérico, europeu, lusófono deveríamos tornar obrigatória,
em todas as escolas, a leitura do(s) orçamento(s). Hoje, para o cidadão comum é
tão importante interpretar o orçamento como falar inglês.
As aulas de substituição
deveriam ter como único tema: o orçamento - pessoal, familiar, plurifamiliar,
autárquico, regional, nacional, ibérico... global.
Afinal, o que é que pode
haver de mais importante do que o orçamento? Só em Portugal, gastamos dois
meses a debatê-lo…
Por causa do orçamento,
em 1955, Max Ophüls (1902-1957) sofreu um enorme rombo: o filme Lola
Montès naufragou nos baixios da crítica cinematográfica e de costumes.
Nem a beleza de Martine Carol (1920-1967) seduziu os espectadores. A encenação
luxuriante da ideia de que na vida tudo é movimento, mas que o
carrossel para quando menos se espera só mais tarde foi entendida por
um mundo ávido de protagonismo, que, no entanto, apenas valoriza o movimento.
Ora, em 1955, Max Ophüls
cometera um pequeno crime: rompera com as narrativas lineares. E o orçamento
ressentiu-se...
24.11.06
Se a memória não me
atraiçoa, estudei em Tomar entre 1971 e 1973. Em 71/72, a chuva caía com
abundância. Lembro-me porque, para chegar ao Liceu, percorria de madrugada,
numa motorizada CASAL, cerca de 15 Km. Invariavelmente, às 8 horas, chegava ao
largo da estação de caminho de ferro, onde se situavam os "anexos" do
Liceu. E nesses "anexos", a intempérie obrigava-nos frequentemente a
abrir os guarda-chuvas. Para mim, não havia nada de extraordinário: essa chuva
que caía sobre mim no percurso e na escola era bem-vinda. Se há alguma coisa
que eu prefiro na natureza é, com certeza, a chuva... mais do que a própria
água. A água só me fascina sob a forma de corrente tumultuosa. A água parada dos
pauis (pessoanos ou não), dos lagos, do próprio oceano, enerva-me!
Antes de conhecer o
Nabão, já conhecia o Tejo. Habituara-me a contemplá-lo das escalabitanas Portas
do Sol. No entanto, só o procurava em tempo de cheias, quando banhava os pés da
ribeirinha Santa Iria. O caudal alargava-se de tal modo que conseguia
visualizá-lo, para lá de Almeirim e de Alpiarça, a subir o desconhecido
Terreiro do Paço. A ideia de uma capital flutuante seduzia-me, dava sentido ao
Portugal das caravelas.
Hoje, quando vejo imagens
das cheias do Nabão, sinto uma leve frustração. Nos anos 70, as cheias do
Nabão, se comparadas com as do Tejo, eram insignificantes: invadiam duas ruas,
ameaçavam um outro café... mas nunca me impediram de cumprir a rotina diária:
percorrer 30 Km (ida e volta); abrir o guarda-chuva na sala de aula; assistir
às aulas com uma sensação de déjà vu; ler o Diário de Lisboa no
café Central(?); pedir as obras de Jean-Paul Sartre na Biblioteca local... para
me poder aproximar um pouco de Paris e perceber que o Sena parisiense me
causaria náusea.
Hoje não vi nem o Tejo
nem o Nabão, vi imagens do Nabão e do Tejo, o que não é a mesma coisa: a
sucessão de imagens instantâneas destrói a força da corrente que os meus olhos
procuram e, sobretudo, que os meus ouvidos poderiam escutar - e sem essa perceção
total, sinto-me desligado do fluxo universal.
Desiludido, continuo sem
compreender que haja defensores da construção de barragens que estanquem os
caudais... que imobilizem as águas. Se conhecessem os rios, não lhes ocupavam
os leitos, deixavam-nos acordar suavemente, deixavam-nos correr orgulhosamente
para o grande Oceano.
PS: Já naquele tempo
tinha a sensação de que a Literatura maltratava os rios. Eram demasiado
românticos, faltava-lhes corrente... à excepção do riacho de Bernardim,
tumultuoso, que arrastava a indefesa ave para um mar sem fim... E vou ficar por
aqui, porque, em mim, começam a jorrar arroios subterrâneos...
20.11.06
Vi-me, hoje, obrigado a
cancelar uma ida ao teatro. Um teste impede que os "meus" alunos
possam ver a peça "Galileu", na véspera do dia da "Cultura
Científica". Segundo argumentaram, precisam de se deitar cedo. O que
pensará o velho Galileu deste bom senso em criaturas tão juvenis?
Sem querer imiscuir-me em
assunto tão melindroso, creio, no entanto, que os problemas equacionados por
Bertolt Brecht os poderiam ajudar a raciocinar e a compreender que a razão
soçobra facilmente perante o fanatismo dogmático - religioso ou escolástico.
Esta forma tão ajuizada
de estar anuncia um futuro de servidão.
(...) O exame que
começou por ser de consciência, exigindo a autoridade do diretor
espiritual, aferrolha, hoje, o livre arbítrio, decidindo mecanicamente do
destino de cada jovem que ousa olhar o futuro... enquanto Galileu fica no sótão
a espreitar o movimento dos astros...
(Cancelar uma ida ao
teatro é uma atividade que dá sentido ao funcionário que elimina o
desperdício...)
18.11.06
As
tentações do funcionário...
Vi, hoje, no cinema S.
Jorge, Tatana, Portugal, 2005, 12', 35mm, Ficção. Realização:
João Ribeiro; Argumento: João Ribeiro, Mia Couto.
Sinopse:
Adaptado de um conto tradicional Makonde, esta é a história de uma velha e de
seu neto, Sábado, criança de 12 anos que ela educa desde a morte do pai, quando
Sábado tinha apenas 3 anos. Graças a um poder oculto, a velha guarda na cabeça
os seus familiares mortos que, de quando em quando, saem fazendo uma grande
festa em jeito de cerimónia. Este facto não pode ser descoberto por pessoas que
não sejam da família, pois isso faria com que os mortos não encontrassem o
caminho de regresso acabando por ficar ao abandono e provocando a morte da
velha.
Uma narrativa pedagógica
que visa preservar os laços do presente (do jovem Sábado) com o passado,
como se o primeiro se tornasse inviável sem o segundo (os antepassados - dos
ancestrais aos mais próximos, como o pai e os tios, residentes no poço do
quintal). A família continua a ser no imaginário
moçambicano o motor da vida.
E de Moçambique passei à
Africa do Sul e vi a Carmen de Bizet, em versão de Mark
Dornford-May. (Este realizador já anteriormente filmara O Filho do
Homem, mostrando-nos Jesus como um negro revolucionário.) M.D.-M. transpôs
a ópera para um bairro de lata da atual República Sul Africana. Filme falado e
cantado em xhosa (língua da África Austral falada por
aproximadamente 8 milhões de locutores sul africanos).
Este filme vale,
sobretudo, pela interpretação musical de Khayelitsha (a Carmen) e pela
vitalidade das personagens femininas. Os homens, marialvas e machistas, acabam
por desempenhar o papel dos fracos.
Na cena festiva e
carnavalesca do abate do boi, cheguei a pensar que a Carmen da sevilhana
tourada, afinal, teria raízes na África austral.
(Estou sem perceber por
que motivo se encontravam na sala 2 ou 3 turmas de alunos do 2º ciclo. Bateram
palmas a despropósito; entraram e saíram da sala; correram.... e os
professores, alheados do que que se passava, talvez estivessem a praticar para
funcionários nesta tarde de Sábado.)
17.11.06
Há uns anos, parecia que
ao Estado pouco mais restava do que a recolha de impostos e a
sua redistribuição pelas várias clientelas que, entretanto, se tinham formado.
A Nação deixara de poder fazer a guerra e, sobretudo, deixara de poder fazer
moeda. Alienara as restantes funções, entregando-as a Bruxelas. A Igreja
católica cedera o lugar a várias seitas mais ruidosas.
O Bloco Central,
mascarado de alternância democrática, ocupava todas as funções de Estado,
tornando-se no verdadeiro beneficiário da integração na União Europeia. O
clientelismo instalou-se, desarmando a iniciativa, o trabalho e a aprendizagem.
Afastaram-se e substituíram-se
os quadros técnicos existentes por correias de transmissão dos partidos; as
corporações aumentaram as suas regalias, desinteressando-se completamente dos
princípios da justiça e da solidariedade; e a vaidade exposta
nos mass media tornou-se no critério eletivo dos
governantes...
Progressivamente, um
Estado, que vira reduzidas as suas funções, transformava-se num Estado cuja
função principal era distribuir os fundos europeus e, que incapaz de controlar
a rapina, acabou por se deixar atolar no compadrio, no nepotismo e no amiguismo.
Hoje, esse mesmo Estado,
em nome da reposição de uma mítica e salazarista ordem nas finanças públicas,
decidiu que a regeneração das instituições passe a ser feita por decreto de
personagens cinzentas, nunca escrutinadas, mas que me fazem recordar os militantes
maoístas que, cegamente, seguiam o Grande Timoneiro.
E bem sabemos que para o
Grande Timoneiro, só a ruptura pode levar à Revolução
cultural. E em nome do Partido, o cidadão deve ceder o lugar
ao funcionário eficiente que combata o desperdício.
No que me diz respeito,
como, obedientemente, tenho vindo a aderir ao novo conceito de
'funcionário', começo a não ter tempo para refletir, para ler e para
escrever... O discurso instrucional ocupa-me todo o tempo... E
ao escrever cada vez menos estou a combater o desperdício...
10.11.06
Em cenário de greve da
função pública, Governo e sindicatos apressam-se em manipular funcionários e
opinião pública. De uma assentada, o primeiro procura desmobilizar o movimento
de protesto e desvalorizar o impacto da greve, enquanto os segundos procuram
precisamente o contrário. Ambos mentem.
Os telejornais manipulam
tão descaradamente a informação que o telespectador só pode continuar a pensar
que, na Assembleia da República, estamos representados por um bando de energúmenos
mentirosos.
Os telespectadores são
tão manipuláveis que já não conseguem ver que cada imagem é um argumento
mentiroso e, por isso, um simples rosto ou palavra passaram a ser
pretexto para uma discussão infindável sobre os preconceitos de cada um. Tudo
em nome do direito à liberdade de expressão, hoje, sinónima de indignação.
O direito à indignação vulgarizou-se de tal modo que virou mentira.
O cidadão justicialista não
podendo controlar os mecanismos colectivos de usurpação do poder, vinga-se em
quem estiver mais à mão. A mentira pública torna-se privada.
Se o telespectador voltar
a ligar a televisão, rapidamente descobrirá que a sua pequena mentira se tornou
pública, passando a fazer parte da matilha de mentirosos...
7.11.06
(Descobri recentemente
que a norma se relativizou de tal modo que ninguém sabe onde
procurá-la. Desolado, dei comigo a pensar que o Instituto da Língua fora
demolido deixando para trás uma suave nostalgia. Cheguei mesmo a perguntar aos
meus actuais alunos se sentiam alguma nostalgia da norma. Indiferentes, nada
responderam.)
Há cerca de 20 anos, uma
planificação da disciplina de Português, para além dos conteúdos linguísticos e
discursivos, incluía obrigatoriamente conteúdos literários e
culturais. O advérbio, nesse tempo, ainda não tinha sido promovido nem a
adjunto nem a disjunto!
Creio que obrigatoriamente,
já nessa época, seria um advérbio disjunto, pois ele exprimia uma
forte convicção do formador com efeito perturbador no formando.
Muitos dos formandos, ao
contrário de uma inexplicável minoria que tudo compreendia, silenciavam
expressões de rejeição, pois, por mais que explicasse a tipologia, jamais
conseguiam produzir uma planificação a médio prazo que integrasse os conteúdos
culturais.
Pensava, nessa época, que
a aposta nos conteúdos linguísticos, discursivos e literários pressupunha a
existência de uma ou mais culturas. E por isso insistia em dar-lhe(s)
visibilidade, porque nunca compreendi como é que se processa o diálogo entre
culturas invisíveis. Tal como não compreendo como é que se pode
aprender, por exemplo, o léxico, desprendendo-o do contexto
cultural.
Confesso, também, que uma
outra das minhas dificuldades consistia em explicar aos formandos a diferença
entre um conteúdo linguístico e um conteúdo discursivo. Por exemplo entre
um nome e uma notícia - entre classificar o nome e
escrever uma notícia. E não me refiro aos nomes não contáveis
não massivos!
Espero, no entanto, que
esses professores... quase titulares... estejam, hoje,
radiantes com a possibilidade de explicaram aos seus alunos quanto o seu antigo
professor estava errado. Para quê a cultura? Para quê a literatura? Para quê a genologia?
Afinal, uns tantos
protótipos e, sobretudo, uma boa terminologia linguística decalcada da
terminologia anglo-saxónica é quanto basta! A matriz latina que se dane! Por
algum motivo, o latim fora excluído do currículo dos Cursos de Letras!
Os mercenários nunca
olharam a meios para encher os bolsos... e a cultura sempre foi um empecilho.
Nem se percebe por que motivo ainda existe um Ministério da Cultura!
Na próxima remodelação
desaparecerá!
4.11.06
Figura em que deduzimos
existir um enunciado implícito anterior ao enunciado explícito. Este processo,
geralmente, esconde uma forma de manipulação mais ou menos subtil. De
modo a celebrar os seus cinquenta anos, a Fundação Calouste Gulbenkian
(1956-2006) está a promover o ciclo: Como o cinema era belo. A
ideia é meritória, os bilhetes são baratos (2,50 €), mas o público, pelo menos
pela amostra, já passa maioritariamente dos 50…, respirando, só por si, alguma
nostalgia. A amostra a que me refiro (re)visitou hoje o filme de Jacques
Tourneur ‘Stars in my Crown’ (Estrelas da Minha Coroa),
produzido nos Estados Unidos, em 1949. Trata-se de um filme em que um
implacável ex-combatente se torna pastor pacifista capaz de converter o mais
empedernido ateu; um filme em que o médico e o pastor, após terem exacerbado o
conflito entre o corpo e a alma, acabam por se aliar; um filme em que o
ambicioso e racista americano branco, capaz de enforcar o negro por um pedaço
de minério, acaba por se deixar convencer pela argúcia do pastor. Em 1949/50,
nos Estados Unidos, apesar de nem tudo ser belo, o bem acaba sempre por vencer
o mal. E o cinema cumpria, assim, a missão de nos convencer que nem a doença,
nem o ateísmo, nem o racismo poderiam jamais sair vencedores… Como o
cinema era belo! No entanto, não deixa de ser estranho que, em
2006, se possa reiterar a ideia dessa beleza imaculada do cinema de meados do
séc. XX. Como justificar a luta de um homem como Martin Luther King,
assassinado em 1968? Bem sei que há quem defenda a estética como
uma categoria independente da ética ou da ideologia!
De qualquer modo, sobra o pressuposto que poderemos enunciar
do seguinte modo: O cinema deixou de ser belo ou Hoje,
o cinema é grotesco. O que me leva a pensar que o ciclo ‘Como o
cinema era belo’ manipula, de facto, o espectador, levando-o a
acreditar que o presente é grotesco, ao contrário do passado que seria
inevitavelmente sublime… ( Os espectadores de 4 de Novembro de 2006
bateram palmas, algumas tímidas.) A nostalgia das origens emerge das
entranhas da Fundação…, que se arrisca tornar-se numa categoria
estética desfasada da grotesca realidade, em que a palavra ou o ícone não
bastam para resolver os conflitos.
2.11.06
/ O menino experimental
ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros. /O menino
experimental, declarando superado o manual de 1962, corrige o professor de
fenomenologia. /Murilo Mendes
O menino experimental
cresceu e, depois de, ao longo de 30 anos, ter assassinado os mestres,
prepara-se para declarar superada a etimologia.
Os verbos docere (ensinar)
e lectare (ler muito ou muitas vezes), falsos
sinónimos, já que o segundo pressupõe um método redutor da inteligência,
apelando à repetição, enquanto que o primeiro orienta para a descoberta da
sabedoria, acabam de evoluir semanticamente por obra dos meninos(as)
experimentais que nos governam.
Os docentes, os lentes
(vulgo os professores, de futuro simples ou titulares),
no caos terminológico em que habitam, divididos entre atividades letivas e não
letivas acabam de ser informados que, afinal, devem, também, aprender a
distinguir a atividade letiva da atividade docente.
Em conclusão, o professor
metódico vai gerir a sua vida pública em atividade docente (substituição
do pessoal administrativo e de limpeza), letiva (implementação
do plano nacional de leitura, escrita e cálculo) e não letiva (explicações
gratuitas, substituições gratuitas e acréscimo da conflitualidade).
Os síndicos experimentais
estão a ficar vesgos: estão sem perceber o que o futuro lhes reserva.
26.10.06
De
pouco serve ser voluntarista!
Mesmo que durante algum
tempo nos iludamos com o rumo traçado, rapidamente nos apercebemos que os
grandes desígnios deixaram de nos motivar. No essencial, nas sociedades laicas
não há finalidade que não seja abordada em termos relativos. Apesar do custo, o
fundamentalismo acaba por ser uma tentativa de impor um desígnio à sociedade,
capaz de a mobilizar contra qualquer tipo de relativismo niilista.
Em termos práticos, nas
escolas portuguesas deixou de haver um projeto capaz de mover
na mesma direcção todos aqueles que nelas atuam. Ou se existiu, remontará ao
Estado Novo! A ideia de comunidade educativa não passa de uma
miragem, em que cada um, desejoso de saciar a sua sede de absoluto, acaba por
se desinteressar de tudo o resto.
Este desnorte (esta falta
de direção, de rumo) acaba por ser aproveitado para, de forma inapelável,
destruir o pouco que, de forma voluntarista, fora construído nos últimos anos.
Nada é lido, nada é interpretado em termos globais; tudo é decidido em função
da vaidade do momento. E nem mesmo esta última é consistente.
Em conclusão, nas
sociedades laicas, incapazes de definir desígnios colectivos, deixou de haver
lugar para o voluntarismo e, consequentemente, a responsabilização,
também, deixa de fazer sentido. "Culpabilizar", "perdoar";
"condenar", "absolver"; "pedir justiça, fazer
justiça" - de conceitos passaram a noções ocas...
23.10.06
Os que ainda trabalham
começam demasiado tarde e todos ao mesmo tempo, entupindo as ruas como as
folhas de Outono entopem as sarjetas.
Os chefes chegam tarde ou
não chegam sequer. Qualquer subalterno pode abrir a porta da empresa, da
oficina, da escola, do ministério. E se chegam, fazem-no sempre com um ar
atarefado, não lhes sobrando tempo para identificar e analisar os problemas. E
por isso já deixou de haver agenda, tudo vai correndo sobre rodas
inexoráveis...
Se alguma coisa corre
mal, a causa é sempre externa. Tornamo-nos vítimas. Comprazemo-nos na lamúria.
O passado, os genes, a doença e o estrangeiro explicam tudo. Procuramos na
diferença a explicação para a nossa decadência. Vivemos bem com os nossos
estereótipos, convencidos da superioridade da nossa presença. Mas, se olhássemos
à nossa volta, poderíamos perceber que a nossa sombra nos deixou sós...
A vontade de mudar, de
contribuir para a mudança não passa de uma miragem inquietante... com cheiro a
século XIX.
17.10.06
O
paradigma tropical português...
A insatisfação parece ter
chegado à Escola. Hoje, nos pátios, viam-se mais alunos. Outros talvez tenham
ficado em casa. Mas alguns dos que encontrei e que, raramente, são visíveis
fora da sala de aula... mantinham-se na escola na expectativa de que o
professor surgisse. Aproveitavam para fazer os trabalhos de casa e preparar os
próximos testes no CRE e na Biblioteca.
De manhã, os professores
que lecionavam passavam furtivamente para as salas. Os dirigentes sindicais
tornaram-se invisíveis ao contrário do que costumava suceder. O Conselho
executivo parecia recolhido... O Conselho Pedagógico foi adiado a pretexto da
greve, tal como acontecerá, amanhã, com o Conselho de Diretores de Turma - o
mesmo pretexto.
Um ou dois funcionários
executavam tarefas de limpeza: varriam as folhas de Outono, despejavam folhas
devolutas.
Ultimamente, comecei a
perceber que esta Escola, aparentemente, desajustada, corresponde, afinal, ao
paradigma tropical português: alguns funcionários, por astúcia dos restantes,
vêem-se obrigados a executar todas as tarefas - do apoio (efectivo) no CRE e na
Biblioteca à limpeza das casas de banho, dos corredores, das salas de aula e,
mesmo, dos pátios... como se não fossem mais do que a típica criadagem do solar
nortenho ou do sobrado brasileiro, mais tarde africanizado...
Para que a tropicalização
seja completa, os próprios professores (ex-Senhores-de-si-próprios) decidiram
que chegou o momento de se sacrificarem, de se cafrealizarem para que o país
possa gerar 500 verdadeiros Senhores a quem todos possamos servir zelosamente.
Para quem tenha alguma
dúvida, faça o favor de cotejar o investimento na educação e na ciência
(Orçamento para 2007). Está lá escrito. Basta um pouco de cálculo: A ciência
goza de um investimento senhorial sete vezes superior ao da escrava educação. Mas
está certíssimo! O que é que a educação nos poderia trazer de bom?
Dentro de 5 anos, 500
novos senhores dir-nos-ão o que mais nos convém... tal como aconteceu com os
mestres de Chicago (e arredores) que nos vêm governando nos últimos 25 anos.
Bem sei que não me
deveria pronunciar sobre estes assuntos no meio desta histórica greve. Mas não
resisti, depois de ter ouvido uma ministra falar dos bons serviços de um grupo
de funcionários públicos que desinteressadamente estabelecem
os "quadros de referência" que de 4 em 4 anos permitirão
analisar 1200 unidades de ensino (de conta?); um secretário de
estado que remata os destacamentos mais estranhos para o ministério do trabalho
porque ele só corta ( e se houver algum destacamento foi porque alguma escola o
solicitou!?) e, sobretudo, um dirigente sindical que teve a coragem de afirmar
que há imensos candidatos ao lugar de coordenador curricular - estou a imaginar
uma luta fratricida pela ocupação deste lugar que talvez dê assente no Conselho
Pedagógico - órgão particularmente apreciado pelo ME e pelos Conselhos
Executivos.
Afastada a ironia, talvez
valesse a pena avaliar o trabalho gracioso levado a cabo,
neste país, por milhares de conselhos pedagógicos nestes últimos 30 anos. Só
que esse trabalho nunca poderá ser realizado por quem insiste em deitar fora a
massa crítica que existe no país em todos os domínios.
Foi uma sensação de
nulidade que senti, hoje, ao atravessar os corredores da Escola, embora essa
sensação fosse contrariada por uma funcionária incapacitada de um braço e que,
apesar de continuar a recolher as folhas de Outono, me abriu a porta da sala 34,
para mais tarde regressar e me perguntar se, afinal, o computador e a
impressora já se articulavam, pois, gostava de aprender a resolver os problemas
para poder ajudar os professores. E essa descrença na justiça foi novamente
contrariada por um grupo de alunos que me pediu o "manual" e o
"caderno de exercícios" para poder fazer os trabalhos de casa - contrariando
objetivamente a política do ME...
15.10.06
Encontro-me, hoje, numa
posição assaz difícil: estou numa terra de ninguém - entre os que querem mudar
tudo e os que não querem mudar nada.
Os primeiros decidem a
mudança, mas não sabem como fazê-la e, por isso, insistem em avançar às cegas,
independentemente das perdas; os segundos não querem mudar nada, pois a
manutenção do estado das coisas há muito tempo que os favorece,
independentemente de saberem que o abismo se avizinha.
Nos próximos dias, o
conflito agudizar-se-á. A greve prevista irá certamente reforçar a convicção
dos descontentes e, os governantes, por seu lado, manterão o rumo ancorados na
confortável maioria...
O país ficará um pouco
mais pobre porque a quem decide falta o saber e a ponderação e a quem protesta
sobra a cegueira dos interesses...
E eu, aqui, forçado, no
meio.... Será que estou sozinho?
- Já não seria a primeira
vez...
14.10.06
(A acumulação de cansaço
torna-nos irascíveis, debilita-nos a concentração e pode, mesmo, paralisar-nos.
É esse o estado actual da CARUMA que passou a ter dificuldade em caminhar... os
movimentos respiratórios vão sendo cada vez mais irregulares... sente-se
asfixiar.)
Habitualmente,
perguntamos "O que é que te aconteceu?", mas esta pergunta não
satisfaz, porque, de facto, raramente, nos acontece alguma coisa... O que
estamos sendo é o resultado dum fluxo lento que nos empurra e asfixia, como se
o ar fosse rareando...
E esse fluxo é o
envelhecimento que, por vezes, chega inopinadamente, outras vezes nos sinaliza o
inexorável.... Resta saber se estamos suficientemente atentos.
Quanto à CARUMA... ruma, agora,
mais atenta aos sinais não se deixando inebriar por essa
prometida longevidade que parece ser a única responsável pela
decadência dos povos.
Se Antero de Quental
vivesse hoje, escreveria certamente sobre a longevidade, apontando-a como a
causa fundamental da decadência dos povos peninsulares!
7.10.06
Se os políticos fossem
menos demagogos não estaríamos hoje soterrados sob uma pirâmide invertida. Se
estes demagogos tivessem pensado menos nos seus interesses não teriam tido
tanto empenho em defender o funcionário público, criando-lhe expectativas
irrealistas. Agora que mais do que 40% dos funcionários se encontram nos dois
últimos escalões, os novos zeladores da res publica decidiram
alterar as regras, congelando a progressão nas carreiras, destruindo o
statu quo..., enquanto os decisores dos anos 80 e 90 ocupam impunemente as
cadeiras de Belém, do Banco de Portugal, da CGD, do BES, do BCP, do BPI, da
Assembleia da República, das últimas empresas públicas...
E, infelizmente, ainda
ninguém percebeu que a pirâmide pode girar progressivamente
sobre si própria, sem ser necessário sobrecarregar / punir mais os
velhos, impedindo os mais novos de aceder à vida ativa. Basta que por cada
dois reformados se contrate um jovem. Esse jovem, ao entrar na função pública,
irá preencher dois horários, ganhando, no início de carreira, 50% do que
ganhava apenas um dos reformados.
Por mais estranho que
pareça, o país ficaria a ganhar com o rejuvenescimento dos funcionários, com a
possibilidade dos jovens quadros encararem a vida com optimismo e segurança,
aumentando, consequentemente, a natalidade...
Mas não, a Ministra da
Educação, por exemplo, anda feliz porque conseguiu aquilo que ninguém
conseguira depois do 25 de Abril de 1974: professores com mais de trinta anos
ao serviço da juventude, inclusive da dela, são obrigados a cumprir um horário
superior àquele que lhes era distribuído no início de carreira. A Senhora
ministra está a impedir o rejuvenescimento dos quadros docentes, quando o
ensino mais precisa de um novo impulso. Está a prestar um mau
serviço ao país.
E o Governo parece agora
apostado na reciclagem da elite universitária gastando, nos próximos
anos, mais de 100 milhões de euros, em vez de apostar na formação da base
da pirâmide, uma base sólida, jovem, com iniciativa e produtiva.
Parece que o socialismo se
converteu ao elitismo norte-americano, substituindo-se, paradoxalmente, à
iniciativa privada. Ou talvez não!?
Afinal, a base da
pirâmide vai ser entregue à iniciativa privada e não só!
As universidades privadas e as universidades públicas (2ª categoria), os
politécnicos (3ª categoria), as Escolas superiores de Educação (4ª categoria),
vão licenciar centenas de milhares de portugueses de boa
vontade, desde que tenham mais de 23 anos e vontade de pagar as propinas...
O futuro da pirâmide
promete... só é pena que as dunas se movam tão lentamente!
Não referi os sindicatos.
Mas eles não irão esquecer-se de se colocar rapidamente na linha de partida -
seja no topo seja na base da pirâmide... lá, onde estiverem os interesses!
2.10.06
As estações do ano mais
não são, para o homem, do que literatura. As estações do homem,
como as dos restantes mamíferos, regem-se pela linearidade... E é a
essa linearidade que escapa o pinheiro, mas já não a caruma...
A inevitabilidade
do fluxo perturba e, por isso, sempre que podemos, fugimos
para a estação da fantasia, único lugar onde o refluxo ainda é
possível: preferimos o sonho à vida para não termos de enfrentar a morte - esse
lugar inexorável onde a ténue linha termina.
1.10.06
Avoluma-se sob o
verde, a caruma. As agulhas despedem-se temporariamente das pinhas para lhes
prepararem o leito da morte. E lá longe, já perto, ecoa o rugido do oceano...
Nada disto é literatura... nada disto é nada, isto é, nada
disto é renovação, renascimento, ressurreição... Quando mudamos de estação,
quando mudamos de língua tudo se torna mais sombrio... Na literatura, não:
podemos fingir, simular que voltamos, outros, atrás...
26.9.06
(Um diálogo sem tom... ou
talvez um pouco arrastado e monocórdico) -
Minha Senhora, que horas são? - São três e um quarto? -Muito obrigado. (Pausa
de 20 segundos) - Meu senhor, que horas são? - São três e 20. - Muito
obrigado. (Para a primeira interlocutora) - No relógio daquele
senhor são três e vinte! - Pois é! O meu relógio deve estar um pouco
atrasado... - Pois é! Muito obrigado. (Pausa de três minutos) -
Minha senhora, que horas são? - São três e 20. - Muito obrigado. Ah, mas no
relógio daquele senhor são três e 25! - Pois é. Ainda não acertei o relógio! -
É pena! Onde é que estamos? - Na paragem do aeroporto. - Muito obrigado. Há
aqui um aeroporto? Para quê? Vozes espontâneas: - E se fosse
apanhar o avião!?
Há cada vez mais
perguntas absurdas, perguntas que não procuram uma resposta. Perguntas que,
apenas, servem para experimentar o outro - o amigo, o colega,
o vizinho, o estranho, sobretudo o estranho (o sociólogo dirá que a pergunta
pode criar uma relação de vizinhança!) ... Perguntas estranhas que servem
para assegurar que o outro ainda nos vê ou nos ouve. E o
outro, polido, lá vai respondendo monotonamente: - São 17:12 horas... Os
outros, sem paciência, já há muito que deixaram de ouvir!
E se deixássemos, todos,
de fazer perguntas?
24.9.06
Lembrou-me agora que há
60 anos, em Abrantes, havia um sargento que gostava de castigar os soldados,
obrigando-os a subir um monte com um almude de água às costas para, depois de o
esvaziar, repetirem o movimento até à exaustão.
Digamos que, deste modo,
o sargento colocava à prova a resistência de homens que, talvez, mais tarde,
numa qualquer guerra, lhe ficassem eternamente gratos.
Os sargentos sempre
gostaram de se imaginar no papel de Zeus ao condenar o mestre da malícia e dos
truques - Sísifo - a rolar a grande pedra de mármore até ao
cume da montanha, para depois Zeus a impelir impetuosamente para o vale,
recomeçando Sísifo, indefinidamente, o movimento...
E por isso, as tarefas
que envolvem esforços inúteis passaram a ser chamadas "trabalhos de
Sísifo"...
Creio bem que, hoje,
continuamos a ser instruídos por um sargento de Abrantes que, perante
a anuência das praças, as condena eternamente aos trabalhos de Sísifo...
20.9.06
Não
há consciência sem causas...
A Amnistia Internacional
decidiu no dia 18 de setembro atribuir a Nelson Mandela o
prémio «embaixador da consciência» para o ano de 2006.
O modo como Mandela
conduziu a sua vida desde que saiu da prisão em fevereiro de 1990 tornou-o no
símbolo do que deve ser um verdadeiro cidadão do mundo. O valor do
serviço prestado à causa da liberdade e da justiça na África do Sul (e por
arrastamento na África austral) é incalculável.
Apesar do reconhecimento
internacional, a vitória sobre o 'apartheid' não significou para Mandela o fim
da sua ação, pois a consciência de que a desigualdade é
multiface levou-o a empenhar-se numa outra "causa" - a síndrome de imunodeficiência
adquirida (SIDA) deve ser encarado como uma questão de direitos humanos. É
esse, hoje, o seu maior combate.
(Se me refiro a Nelson
Mandela é porque ele é o exemplo de que não há consciência sem causas.)
Ora, nas nossas escolas,
há cada vez mais jovens indiferentes ao que os rodeia, sem vontade de procurar
um rumo... estão ali, sentados como prisioneiros desalinhados, esperando que os
carcereiros os ignorem. E mesmo que a porta se abra, não indiciam qualquer
tentativa de fuga. Parece que se sentem bem na caverna, na masmorra.
E porquê? Será que já
nascemos sem causas...
17.9.06
Rosas-negras
e brancas, ainda que vermelhas...
O monólogo "Ventos
de Leste", interpretado por Natasha Marjanovic, mostra à
saciedade como os "interesses" inconfessados podem dividir o que
parece inseparável. E também mostra como o multiculturalismo é frágil. Qualquer
faúlha pode gerar um incêndio e toda a caruma é consumida ou obrigada a partir
para países distantes onde a língua começa por ser um obstáculo desesperante.
Mas deste ora divertido
ora lancinante monólogo resulta também a ideia de que o "estrangeiro"
antes de 'aprender a língua' se vê obrigado a 'aprender a terra'. Este último
imperativo também devia ser posto em prática pelos nativos.
'Aprender a terra"
significou para esta ex-jugoslava confrontar-se com uma série estereótipos bem
diferentes dos da pátria de Tito. Parece, hoje, uma imigrante aplaudida, mas,
aqui, é apenas uma entre os 360.000 que tiveram de abandonar a ex-Jugoslávia.
Em nome do quê? de quem?
- Pergunta sem resposta.
(No solo da Gulbenkian,
onde decorreu este espetáculo, estiveram presentes o engenheiro Guterres,
esposa e outros familiares ilustres, estes um pouco mais distantes. Curiosa foi
a preocupação de um funcionário da Fundação que quis libertar o ilustre
espetador do sol tímido que lhe espreitava o couro cabeludo. No entanto, o engenheiro,
sorridente, em mangas de camisa, não acedeu a trocar o sol pela sombra...,
embora deva ter saído a pensar naqueles anos da sua governação em que a NATO
bombardeava indiscriminadamente civis e militares, em vez de se limitar a
perseguir "os interesses"...)
De Portugal fica a imagem
de um estado folclórico em que a burocracia é tão severa como as bombas da
NATO.
O público aplaudiu de pé.
O sucesso da imigrante? A performance da atriz? As bombas da NATO? Os mortos de
uma guerra fratricida? O jeito que nos dá que haja guerra em qualquer outro
lugar que não na 'nossa' terra?
O público aplaudiu.
Natasha recebeu rosas-negras e brancas, ainda que vermelhas, contrariando
a profecia materna de que em Portugal ela não viria colher rosas.
13.9.06
A caruma,
ultimamente, tem estado menos reflexiva porque, como tapete que é, não tem
podido ir além dos pés que, sorrateiramente, a vão calcando.
Este estatuto de tapete
é, no entanto, um privilégio porque liberta a mente e deixa os olhos pousar
livremente sobre os sinais do oportunismo e do laxismo que vão grassando nas ruas
das cidades e aldeias.
(Se o autocarro está a
abarrotar - coisa que não deve ser verdade porque há anos que a Carris vem
perdendo clientes! -, o passageiro, em vez de entrar pela porta de entrada,
entra pela porta de saída... E o motorista sem nada ver... E atrás de um vão
seis ou sete! E os outros, os cumpridores, lá ficam na paragem, surpreendidos,
esboçando algumas palavras surdas.)
E os olhos da caruma que,
pela sua natureza, podem ver de baixo para cima, andam um pouco desorientados,
porque ninguém lhe explica por que motivo é que há tantas cadeiras vazias e,
sobretudo, como é que se pode trocar de cadeira sem qualquer tipo de
explicação... No meio da dança das cadeiras, quem se amolga é o tapete.
Fica, todavia, o reparo:
nenhum tapete é cego.
10.9.06
"Vai crescendo o
saramago / embaraçado no trigo / eu queria ser saramago / para abraçar-me
contigo..." António Pinto Basto, álbum "rosa branca"
Nesta fase, só interessa
ser o "trigo" ou, talvez a "rosa"; o saramago, como a
rémora, aproveita a viagem, enleia-se na haste até a sufocar e os poetas
chamam-lhe amor... Um amor oportunista sai-lhes da voz, pronto a zarpar à menor
dificuldade.
Nesta fase, não vale a
pena sorrir... o "trigo" nutre; a "rosa" alenta, mas, ao
anoitecer, estiola...
Por isso, nesta fase, de
nada serve ser "rosa"... e muito menos "saramago"...
Apenas trigo.
4.9.06
Se
ao menos pudesse ter a calma necessária...
«Estranho, como uma coisa
a fingir, se usada sistematicamente, se pode tornar realidade.» Franz
Kafka, Diários, 24/1/1922.
Lisboa. 41 graus
centígrados. Sufoco. O cérebro desloca-se, perplexo, do amigo, confrontado com
um eritema nodoso para o desalinho em que caiu o quarto dos fundos… (Ah! Se
um quarto exprimisse a alma do seu ocupante! Esperemos que a alma seja bem mais
rica, apesar do desalinho!) Ao sair do quarto, em que, de facto, prefere
não entrar, o cérebro interroga-se sobre o sentido das depressões passageiras
ou, talvez, seja melhor pensar que, também, na depressão pode haver pausas
sazonais… E, subterraneamente, continuam activos dois cenários de morte –
o da absurda teimosia vingativa que destrói o coração do companheiro de uma
vida de 50 anos, sem qualquer manifestação de culpa (só ficou o alheamento
mudo!); o do ódio de sangue que emerge de sexualidades travestidas, em que o
amor e o ódio se irmanam numa luta de morte pela vida.
- Se ao menos pudesse ter
a calma necessária para não pensar nisto tudo… sem querer fugir disto tudo!
3.9.06
Não
tem sentido fazer perguntas e esperar...
(…) perguntas que
não obtêm respostas no momento exato em que são feitas nunca mais são
respondidas. Não há nenhuma distância a separar quem faz a pergunta daquele que
lhe responde. Não há distância a transpor. Daí que não tem sentido fazer
perguntas e esperar. Franz Kafka, Diários, 28 de setembro de
1915.
Poder-se-á dizer que este
raciocínio deita por terra o velho estratagema do professor que, considerando a
pergunta inoportuna, responde ao aluno que aquele não é o momento apropriado.
De acordo com Kafka, a pergunta não admite qualquer tipo de espera. E,
talvez seja essa a razão por que, muitas vezes, abdicamos de fazer
perguntas.
2 de setembro de
2006. (Vem esta reflexão a propósito de uma situação explosiva, vivida
por uma velha mãe (83 anos) e de dois filhos igualmente velhos, apesar dos seus
55 e 57 anos (?), respetivamente.) Nenhum dos três revela qualquer
tipo de autodomínio verbal, podendo-se colocar mesmo a hipótese de a violência
se transformar ou de já se ter transformado em agressão física. Numa tentativa
de mediação e de compreensão da dimensão do problema, o mediador procura
confrontar as partes, interrogando-as sobre a verdade das acusações proferidas.
E, aqui, surge a grande dificuldade: o interrogado “corta” a pergunta, para, de
imediato, encadear uma lista de argumentos que inutilizam qualquer esboço de
diálogo. E se, momentaneamente, menos exaltado, ouvir a pergunta na totalidade,
recusa-a, no entanto, para retomar histrionicamente a sua lamentação –acusação.
E se pensarmos que esta procura de respostas se desenrola, quase sempre, em
situações de tensão extrema, podemos compreender como é fundamental a formação
dos actores (mediadores) solicitados a intervir nos diversos contextos sociais:
escolas (sala de aula), esquadras, gabinetes de psicólogos / psiquiatras,
tribunais, lares (de terceira idade e não só…), bairros
marginalizados, estabelecimentos prisionais… Hoje, sei, que toda a pergunta
merece uma resposta adequada, imediata. Mas também sei que não estamos
preparados para ajudar a dar essa resposta. E creio que a dificuldade maior
está em não sabermos formular as perguntas. Há, contudo, que ressalvar os
cenários de autodestruição, assim como os cenários de egotismo irredutível.
Nestes territórios, o
mediador corre o risco de ser abatido.
1.9.06
O
círculo fantasmático do desencontro...
Absurdamente, estou
cercado de discursos ansiosos, de corpos expetantes.
Por isso bem gostaria de
saber lidar com a depressão. Não com a depressão abstrata, essa não me
interessa. Interessa-me, sim, o círculo fantasmático do desencontro...
Na sociedade ocidental, a
depressão é vista como um comportamento individual. Como uma dificuldade de
adaptação à velocidade, como se houvesse necessidade de o indivíduo se encaixar
na totalidade...
Por outro lado, o
diagnóstico do estado depressivo parece pressupor que a totalidade está certa e
o indivíduo está errado. Mas será mesmo assim?
Para tratar o problema,
existem os psicólogos, os psicanalistas, os psiquiatras, os padres, os
exorcistas, os conselheiros, os feiticeiros e outros que tais. Todos se propõem
tratar o indivíduo. Todos procuram a causa no indivíduo. Todos propõem /impõem um
tratamento mais ou menos drástico ao indivíduo. Nenhum procura a causa no modo
como construímos /agimos sobre o cosmos.
A constante aceleração e
a constante mudança devoram, a cada segundo, milhares de indivíduos,
deixando-os à beira do precipício, senão aniquilando-os ...
Por isso, há cada vez
mais indivíduos que procuram «não ter consciência disso», porque «não ter
consciência» é um bom remédio para a depressão... Como culpabilizá-los por
isso?
E a terceira via parece
não ser muito simpática: contra a depressão, contra «não ter consciência disso»
só resta a revolta...
E infelizmente para que a
revolta faça sentido, ela necessita de recorrer às mesmas armas que provocam a
depressão!
(Lá fora, num qualquer
palco soa um batuque que vai "secando" a consciência. Ou será que
apela à revolta? Entretanto, a depressão alastra, contamina tudo à sua volta...)
28.8.06
«O que parece certo é que
a deslegitimação e o predomínio da performatividade são o dobre de finados da
era do professor: ele não é mais competente que as redes de memórias para
transmitir o saber estabelecido nem que as equipas interdisciplinares para imaginar
novos lances ou novos jogos.» Jean-François Lyotard, A Condição
Pós-Moderna,3ª edição, Gradiva, 2003.
A minha insistência em
algumas das questões abordadas por Jean-François Lyotard pode parecer
excessiva, no entanto, ela resulta da tentativa de procurar saber qual é, hoje,
o papel do professor. Para Lyotard, o professor detentor e transmissor do saber
está condenado a desaparecer. A didática pode ser confiada a máquinas
que liguem as bibliotecas e as bases dados a terminais inteligentes postos à
disposição dos estudantes. E essa tem sido a opção dos países ricos.
Neste contexto, a aposta
no professor é um sinal de pobreza. Apesar disso, ainda sobram algumas tarefas
que o professor poderá executar, se for capaz de se adaptar à nova realidade, isto
é, à interdisciplinaridade e ao trabalho em equipa.
Ensinar aos estudantes:
- o uso dos terminais, ou seja, as
novas linguagens;
- o manuseamento mais refinado desse
jogo de linguagem que é a interrogação - Qual é a memória pertinente
para o que quer saber? Como formular a questão para evitar equívocos?
- os critérios de validação da
aprendizagem: Para que serve? É vendável? É eficaz?
- a aperfeiçoar e a acelerar a imaginação,
enquanto capacidade de articular séries de dados tidos como independentes;
- a conectar campos de conhecimento que
a organização tradicional do saber isola.
Portugal, em vez de
imitar os países ricos, deve apostar na formação permanente dos
seus professores de modo a ajudá-los na mudança a que
necessariamente não podem escapar.
26.8.06
O
vínculo social e o princípio da performatividade
«O estado e/ou a
empresa abandonam a narrativa de legitimação idealista ou
humanista para justificar a nova situação: no discurso dos
capitalistas de hoje, a única situação merecedora de crédito é o aumento
do poderio. Não se pagam sábios, técnicos e aparelhos para saber a
verdade, mas para aumentar o poderio.» Jean-François
Lyotard, A Condição Pós-Moderna
Afinal, a decisão de
eliminar a abordagem da literatura, em si e numa perspectiva
diacrónica, resulta da necessidade de legitimar a decisão do estado e das
empresas de apenas apostarem na expansão do poder, deixando cair por terra tudo
o que, desde o Renascimento, suportava o vínculo social.
Assim se compreende que
o professor tenha cada menos poder de decisão, pois deixou de
ser pago para ajudar a criar uma sociedade mais justa, mais verdadeira, mais
bela. Hoje é pago segundo o critério da «eficiência»: «um acto «técnico» é bom
quando realiza melhor e/ou gasta menos que outro»
A formação do professor
obedece cada vez mais a uma lógica em que o princípio da performatividade
justifica todas as decisões por mais que elas atentem contra o vínculo social.
24.8.06
Em
vez da dúvida e da descrença...
«O saber em geral não se
reduz à ciência, nem mesmo ao conhecimento. (...) O saber é aquilo que torna
qualquer pessoa capaz de proferir "bons" enunciados denotativos, mas
também "bons" enunciados prescritivos, "bons" enunciados
avaliativos...» Jean-François Lyotard, A Condição
Pós-Moderna
Sempre que o regresso à escola
se aproxima, desponta a dúvida: Que sei eu que valha a pena
partilhar? À medida que os anos passam, essa dúvida é cada vez mais forte: De
que lhes poderá servir o meu saber?
Por outro lado, quando os
conteúdos culturais são banidos dos programas e substituídos por meras rotinas,
a descrença avoluma-se, porque, ao pôr-se em causa o conhecimento, abre-se a
porta ao declínio do ser, à morte do saber...
Ora, ao regressar à
escola, em vez da dúvida e da descrença, seria bom que o professor o fizesse
com a convicção necessária a tornar qualquer pessoa capaz de proferir
"bons" enunciados...
O que me vai obrigar a
falar menos e a ouvir mais...
23.8.06
Miami Vice, de Michael
Mann, EUA, 2006 Sonhar com Xangai, de Wang
Xiaoshuai, China, 2006
(Salas Monumental e
King. Na primeira, a aposta é na publicidade e na intoxicação sonora. Na
segunda, a publicidade é discreta e o registo sonoro moderado.)
Miami Vice parece
não ser mais do que a expressão sofisticada de um mundo onde o único valor é o
dinheiro. No entanto, Michael Mann deixa no espectador uma
certa simpatia pelos traficantes, deslocando o mal dos
cartéis de droga regionais para um inimigo global de rosto árabe. No essencial,
é esse o objectivo: mostrar que o novo inimigo dos EUA é filho de
Bin Laden.
Por sua vez, Sonhar
com Xangai retrata-nos a China interior dos anos 80, onde o Partido
Comunista determina a vida dos militantes, tal como o marido determina a vida
da mulher ou o pai determina a vida da filha.
Porém, o filme não é tão
linear como se poderia pensar: alguns militantes revelam desejos capitalistas
(querem regressar a Xangai, contrariando a política oficial); a relação entre
marido e mulher pode ser autoritária ou tolerante (dois casais, dois modelos
comportamentais); o modelo educativo também pode ser fechado ou aberto...
No essencial, Wang
Xiaoshuai não se deixa seduzir pelos estereótipos, porque as filhas
dos dois casais que protagonizam a "estória" acabam por sucumbir a
uma "força" que reduz a nada os padrões educativos.
De qualquer modo, um dos prevaricadores
acaba por ser executado, pois o Partido determina que esse é o castigo para os
violadores.
Estes dois filmes acabam
por mostrar que, na China, o cinema procura libertar-se da ideologia dominante
e que, pelo contrário, nos EUA, o cinema está cada vez mais comprometido com a
política republicana.
20.8.06
Enquanto a natureza
se expõe, imperturbável, tu viajas, com os amigos, lentamente,
de Zagreb a Paris, na expectativa de lá chegares a tempo de celebrares os teus
23 anos. E, nós, na expectativa de que assim seja. Embora a paragem em Grenoble
tenha retardado esse propósito, acabaste, felizmente, por chegar a Paris ao fim
da tarde deste domingo, para ti, inesquecível e, para nós, de ansiedade... E
para trás, vão ficando o Rio da Prata, o Cabo Espichel, Vila Nogueira de
Azeitão ..., involuntariamente visitados pelo Kafka que adorava Berlim e
detestava Viena e, para quem, ironicamente, bastava um quarto e uma dieta
vegetariana...
Rio da Prata.
Vá lá saber-se porquê? Praia célebre, de difícil acesso. Reserva naturista. O Nu
masculino predomina, mesmo que a beleza dos efebos esteja arredia. Esses
passam, vestidos, curiosos, provavelmente a identificar as presas.... Há, por
ali, cachos de uvas ritualmente lavados nas águas oceânicas ..., a lembrar
cenas da Grécia antiga ou da Roma dissoluta. (Estive 2 horas nesta reserva,
a observar de soslaio a natureza humana e a ler os Diários de
Kafka e fiquei com pena de não ser Kafka para descrever as dissonâncias que se
colavam ao areal e, a espaços, invadiam o mar.…)
Longe da terra, perto do mar, à semelhança do
Cabo S. Vicente ou do Cabo Raso. Se no passado os conseguimos dobrar, hoje, não
sabemos o que fazer com eles. Triste sina!
Santuário de Nossa
Senhora (Cabo Espichel)
Apesar da igreja ter sido restaurada, os edifícios
laterais, à falta de romeiros, estão ao abandono num dos cenários portugueses
de céu-e-mar mais fascinantes. A ideia de preservar a beleza, a todo o custo,
acaba por inviabilizar a manutenção do património histórico e desertificar um
território que poderia ser uma fonte de riqueza.
17.8.06
Quando o tempo começa a escassear, insistimos em olhar
para trás, procurando ansiosamente uma explicação para as fragilidades do
presente.
Um meio inculto, uma família analfabeta, o caciquismo
ignóbil, um pai ausente, uma mãe autoritária, uma avó fantasmática... tudo nos
serve para justificar os projectos inacabados, as relações fracassadas...
Passamos a preferir às incertezas do presente e aos
medos do futuro as certezas (re)construídas do passado. Damos a vida por elas -
as certezas -, hipotecando definitivamente o pouco tempo que nos resta...
Estranhamente, abdicamos de viver... e nem sequer o
fazemos como forma de preparar uma outra aurora, essa, sim, primaveril e
gloriosa!
16.8.06
O interesse dá um
passo em frente...
Num local onde começa a
sentir-se a pressão para que o plano diretor municipal reconverta os prédios
rústicos em urbanos, o fogo atuou de forma inteligente: devorou grande parte de
três pequenos prédios rústicos, sem importunar nem a casa (entretanto, ligada à
rede elétrica) nem o pomar que os ladeiam. E também deixou incólume, do lado
contrário, junto a uma estrada municipal, o posto de distribuição elétrica e a
instalação de distribuição de água a uma propriedade onde, ainda, há muito
pouco tempo era visível um "pedido" de autorização de construção de
uma vivenda.
Por aquilo que qualquer
transeunte pode observar, a autorização de construção ainda não foi concedida,
mas a "luz" e a "água" já lá estão à espera..., a troco de
alguns milhares de euros recebidos por algum funcionário mais zeloso dos
serviços municipais e da EDP...
Esta ideia de observar as
pequenas alterações da paisagem e dos humores humanos pode ser muito maliciosa,
mas, desta vez, a caruma está convencida que o combustível que
incendiou o mato, o silvado, aquelas míseras oliveiras, deixou a descoberto o
estéril poço e calcinado o tímido ribeiro, foi o interesse que
não olha a meios para atingir os seus fins.
Ao desvalorizar a
propriedade, o interesse dá um passo em frente para
condicionar o plano diretor municipal e, sobretudo, para abocanhar tudo o que
cobiça.
Enquanto algumas
luminárias continuam preocupadas com as fronteiras que separam (ou não) a
literatura do jornalismo, seria bom que este último estivesse mais atento às
pequenas (ou grandes) alterações da paisagem e seguisse, de
perto, os passos do interesse.
15.8.06
Há alguns dias,
interrogava-me, aqui, sobre as causas que vêm determinando que a literatura deixe
de ser ensinada nas nossas escolas, secundado na palavra de Kafka para quem o
conhecimento da literatura (e da sua história) está intimamente relacionado com
o fortalecimento da consciência nacional. Talvez o conceito «consciência
nacional» mereça ser revisto, pois, a sua legitimação (dos
nacionalismos) teve ao longo do século XX elevados custos para as
populações. No entanto, a maioria dos conflitos, nos últimos tempos, tem tido
como pretexto-máscara a exploração dos antagonismos religiosos e não da
«consciência nacional».
Fica, porém, a ideia de
que a nossa política externa é a dos interesses, como bem
refere Carlos Pacheco (Público, 15/08/2006 - O calcanhar de Aquiles de
Portugal em África), quando, citando políticos, banqueiros..., refere que «não
há outros valores, foi sempre assim e não é agora que a corrente da história
mudará.» E para melhor fundamentar o seu pensamento, Carlos Pacheco recorre
às cartas do Padre António Vieira, escritas do Maranhão, em
que este denuncia os crimes cometidos contra dois milhões de índios, num
período de 40 anos, sem que ninguém tenha sido punido.
Ao cotejar este artigo de
Carlos Pacheco com a notícia de que a ministra da cultura, Isabel Pires de
Lima, quer mais promoção literária no mundo anglo-saxónico, voltei a
aperceber-me que apenas os «interesses» norteiam o pensamento dos nossos
dirigentes, pois, afinal, a principal crítica que a ministra faz ao IPLB
(Instituto Português do Livro e das Bibliotecas), é que este «tem descurado
este mercado» (anglo-saxónico, diga-se) ...
Tudo isto, num país, cuja
Lei nº23/2006, de 23 de junho, dá aos alunos do ensino primário,
quando constituídos em associação de estudantes, o «direito a emitir pareceres
aquando do processo de elaboração de legislação sobre o ensino, designadamente
em relação aos seguintes domínios: a) definição, planeamento e financiamento do
sistema educativo; b) gestão das escolas; c) acesso ao ensino superior; d)
acção social escolar... (artigo 17º). Ver José Dias Urbano, Público,
15/8/2006, Novos disparates educativos, novos caminhos para o insucesso...
Compreende-se, deste
modo, que o ensino da literatura (ler o Padre António Vieira das Cartas,
por exemplo) já não é apenas uma questão de «consciência nacional», é, sim, uma
questão de formação da consciência - o lugar dos valores, do livre-arbítrio...
A alternativa já
vigora: a política dos interesses. E os governantes sabem que
a literatura é inimiga dos interesses... e que ela
devia ser lida nas escolas, em todas as escolas...
12.8.06
Os incêndios que
nos devoram a alma...
Franz Kafka pensava, em
1911, que «a memória de uma pequena nação não é mais pequena do que a
de uma grande nação e pode por isso digerir melhor o material existente.» Diários
Este calor atrofia o
cérebro e devasta a floresta, deixando a caruma reduzida
a nada ou, pior ainda, como primeira suspeita da tragédia que, anualmente,
empobrece os pobres e fabrica novos-ricos. Estes incêndios estivais são uma boa
ajuda à política de emparcelamento que tem vindo a recuperar terreno, deixando
no esquecimento o tempo em que se lutava contra os latifúndios. É toda uma
literatura que voluntariamente se obnubila!
Por vezes, interrogo-me
se esta política educativa que rejeita o ensino da literatura é apenas um sinal
da ignorância de quem nos governa, mas, quando observo os lugares onde os
incêndios deflagram, dou comigo a pensar que todas estas pequenas courelas vão
mudar de mãos - de muitas e humanas mãos para a uma mão anónima e desumana...
E, nesse momento, sei que Kafka perdeu a razão ao pensar que defender a literatura era
defender a consciência nacional, pois esta é, hoje, um escolho na
aposta da globalização. De facto, o destino da memória das pequenas
nações já está traçado, desde o fim da 2ª Guerra Mundial.
A globalização é uma
efectiva inimiga das literaturas regionais, nacionais e mesmo continentais.
Numa sociedade global não
haverá definitivamente alma e por isso, enquanto ardem os
campos, a guerra alastra no Médio Oriente - a outra face da
luta titânica pela hegemonia global.
9.8.06
Esta seria a 'planta' original da casa em que nasceu
Vergílio Ferreira.
O local em que
nasceu Vergílio Ferreira
As alterações feitas ao edifício original desgostaram
profundamente o autor.
O Senhor Luís Filipe, a alma do museu.
A casa dos pais de
Vergílio Ferreira
Casa construída após terem emigrado para os Estados
Unidos da América
A árvore dos kiwis
na Quinta das Cegonhas
Um toque de leveza
burguelense
O candeeiro e a
catedral de Burgos
Parcours suspendu na Vallée du Moudang
7.8.06
Já, aqui, falei do GPS
que, entretanto, resolveu ser bom conselheiro se excetuarmos algum
desconhecimento de certos terrenos em que a mão humana terá atuado
recentemente. No entanto, estou algo perplexo sobre a utilização deste
equipamento já que descobri que um francês e um alemão se encontram presos no
Irão, acusados de terem entrado ilegalmente em águas iranianas (ou pelo menos
proclamadas como tal!) na posse de um suspeitíssimo GPS. Por outro lado, as
autoridades francesas também penalizam severamente os condutores que utilizem
este aparelho como meio de “controlar” os seus radares. No meu caso, ainda não
descobri como é que posso ludibriar as autoridades (!!?), embora tenho
descoberto que o GPS me dá uma indicação sobre a velocidade do veículo mais
rigorosa do que o conta-quilómetros – 7 quilómetros abaixo. O que eu ainda não
referi é que fui traído pela restante tecnologia. O meu Vodafone mobile connect
card, que me devia permitir aceder à Internet, revelou-se um fiasco. Apesar de
ter comprado previamente 50 Mbytes de modo a embaratecer o roaming, só uma vez
conseguir aceder à Internet em terras de Espanha e de França. Segundo o serviço
de apoio ao cliente, a minha versão do software data de 2004 e por isso não
suporta esta minha pretensão. O interessante é que vou ter de pagar por um
serviço de que não usufrui! Por sua vez, o meu telemóvel (da TMN) deixou de
poder ser recarregado, recorrendo, por exemplo, ao sítio online da CGD. E sem
saldo, não se pode fazer nada, nem mesmo comunicar com a TMN, apesar dos sms da
operadora a lembrar-nos as modalidades de recarregamento, em roaming. E isto
aqui tão perto! Imaginem-se as dificuldades em comunicar por telemóvel com uma
filha que ora está na Hungria, na Roménia, na Áustria, ora na Eslováquia, na
Croácia… E se tivermos a pretensão de mergulharmos, em plenas férias, nos vales
pirenaicos espanhóis e franceses, então, mais vale, gastar uma semana das
férias a certificarmo-nos que o nosso manual de bordo responde a todos estes
escolhos. Entretanto, esta região dos Hautes –Pyrénées é extremamente
agradável, apesar de, talvez à semelhança de certas estações de caminho de
ferro portuguesas, nos presentear com paragens de autocarro por onde, desde o
início de julho até 12 de dezembro, não passa qualquer destes veículos. Quem
quiser deslocar-se, só no seu próprio veículo o poderá fazer, e isto quando a
gasolina chega a custar 1, 48 euros. A União europeia parece, no serviço ao
utente, estar bem afinada. Já em Sória, tive a felicidade de descobrir um
centro comercial aberto ao público, tipo “Colombo”, onde o hipermercado só
abrirá em dezembro para desconforto e prejuízo dos restantes lojistas! No
entanto, o que são estes problemas se comparados com os dos libaneses, dos
palestinianos, dos afegãos, dos iraquianos ou dos milhares de africanos que
desesperadamente procuram entrar na Europa?
Quanto ao que vale a pena
visitar, registe-se que a cidade de Lannemezan parece de
costas voltadas para o turismo. Basta pensar que, lá, é mais fácil comprar
flores do que tomar o pequeno-almoço. Nos cafés, não é visível qualquer tipo de
pastelaria. Num deles, chegaram a dizer-me que só vendiam bebidas, que fosse à
padaria…. Encontra-se, no entanto, um espaço preparado para receber autocaravanas…
com eletricidade, sanitários, lavagem de loiça… Tudo muda quando nos
aproximamos de Arreau e de St-Lary-Soulan.
Arreau, uma típica cidade pirenaica, entre St-Lary e Lannemezan.
6.8.06
31 de julho e 1 de agosto
La Puebla de Castro, Lago Barasona. Calor, muito calor. Os acessos ao
vale prometem, mas a água do lago, nesta época do ano, não parece muito
cristalina. O extenso parque de campismo está cheio de holandeses que vão
estorricando ao sol, depois de uma passagem pela piscina ou pelo lago. De pele
branca e cabeleira loira, estas famílias holandesas, que parece que nunca viram
o sol, cozinham metodicamente as refeições diárias nos alvéolos, profusamente
ocupados pelas respetivas tendas, atrelados e roulottes, para depois se
encharcarem em mil e uma bebidas, todas elas coloridas. Alguns franceses e
belgas quase não se fazem notar. De portugueses nem vale a pena falar… Os
espanhóis ocupam preferencialmente os bungalows (bangalós), não se misturando
nestas avenidas neerlandesas. Em alternativa, o percurso pedestre para La
Puebla de Castro, mostra, do lado esquerdo, pequenas hortas, onde predominam o
tomate, a cebola, o feijão verde, o pimento e o melão, e do lado direito,
podemos ver uma zona florestal maltratada, mas que esconde belas e ricas
vivendas. À medida que avançamos, o percurso pedregoso torna-se sinuoso e, sob
o intenso calor das 17 horas, decidimos voltar para trás pois não encontrámos
os vestígios românicos que
o roteiro nos prometia… e
La Puebla de Castro esfumou-se… 2 de agosto Vindos de La Puebla de Castro,
chegámos à Vallée du Moudang, tendo entrado em França pelo Túnel
d’Aragnouet-Bielsa. Este túnel de 3 Km, a 1860 metros de altitude, foi
inaugurado em 1976. Há uma diferença significativa em termos de paisagem e de
clima. Os verdadeiros Pirenéus parecem estar deste lado. Será? Estamos
instalados junto a um sonoro rio, num camping municipal, onde as restrições são
muito maiores do que em qualquer camping espanhol. A torrente é fraca, mas pode
aumentar a qualquer momento em virtude da abertura das comportas das múltiplas
centrais hidroelétricas existentes na região. Ah! Les crues!
30.7.06
« Les gens ne
changent pas. Ce sont les choses qui changent. » Boris Vian, L'écume
des Jours
(28 de julho) Em
Madrid, o GPS enlouqueceu ao chegar à Avenida de Portugal… O software não
estava preparado para responder às alterações criadas pelas obras naquela
avenida, na zona Puente del Rey e nas praças vizinhas. Advinham-se, por ali,
obras faraónicas. A E90 (NV) morria numa misteriosa encruzilhada, sem que as
autoridades dessem qualquer atenção ao trânsito verdadeiramente caótico.
Despreocupadamente, ocupavam-se dos múltiplos acidentes que iam ocorrendo. O
GPS, por seu lado, ordenava: faz inversão de marcha, vira à esquerda, encosta à
esquerda, sai daqui a 200 metros, na próxima rotunda, sai na 5ª saída… Já na autoestrada
da Corunha, continuava a ordenar: encosta à esquerda, vira à esquerda,
contrariando as regras elementares do código da estrada… Se fosse a obedecer ao
GPS, a esta hora estaria, no mínimo, preso… Para sair daquele labirinto, já que
a E90 desaparecera de vez, ainda, consegui a proeza de entrar num terminal
rodoviário subterrâneo, sem que ninguém se sentisse incomodado. Acabei por
obedecer ao GPS que, mal entrei no subterrâneo, ordenou: faz inversão de
marcha. De facto, não havia outra alternativa… Farto da Avenida de Portugal e
de Madrid, rumei a Segóvia, onde já tarde, parei, finalmente, no camping o
“Acueducto”. Curiosamente, Segóvia fazia parte dos meus planos de
Páscoa. E ainda há quem negue que Deus escreve direito por linhas tortas!
Segóvia Património da Humanidade desde dezembro de 1985. Acueducto-Catedral-Alcazár. E
em Segóvia não faltam as igrejas: de San Martin, de Nuestra Señora de
l’Asunción y de San Frutos (nome curioso para uma catedral, edificada no século
XVI), de San Andrés, de San Esteban, de San Quirce, de La Santísima Trinidad,
de San Nicolás, de San Miguel, de la Compaňia de Jesus, de San Sebastián, de
San Juán de los Caballeros… e também não faltam os mosteiros e os conventos,
para além do imponente e turístico Alcazar e da inevitável Plaza Mayor… E para
atenuar um pouco este expressivo e fanático catolicismo, podemos visitar a
JUDERÍA, confinada, a partir de 1480, a um bairro a sul da cidade, sobre o Vale
del Clamores… Entretanto, na católica Espanha, só os conversos puderam
permanecer na cidade após o édito de expulsão, em 1492…
24.7.06
Enquanto ardem as
cidades libanesas...
«Quando a invasão
ardia na Cidade / E as mulheres gritavam, / Dois jogadores de xadrez jogavam /
O seu jogo de xadrez.» FP/RR (1/6/1916)
Lá longe, enquanto ardem
as cidades libanesas, os grandes eleitores, cinicamente, adiam
as tréguas na expectativa de que Israel conclua a devastação que lhes
permitirá celebrar a vitória sobre as forças do Mal.
A ignomínia
judaico-cristã alastra, obrigando milhões de indefesos a abandonar as casas a
que jamais poderão voltar e nós, por aqui, indiferentes, continuamos a armar as
nossas pequenas ciladas...
Em 14 dias, nos
bastidores, desenhou-se uma nova estratégia e o sentido do voto mudou
radicalmente. Os eleitores não fizeram qualquer exigência aos eleitos. E estes
também não apresentaram qualquer projecto nem fizeram qualquer promessa.
Terminada a nova eleição,
sente-se um alívio generalizado. Como se cada um acabasse de se libertar de um
terrível fardo.
O que é que, de verdade,
nos move? Será que queremos responder a esta pergunta crucial?
A Escola ainda está a
tempo de nos ajudar a responder a estas questões se quiser colocar os olhos na
sua única razão de ser: o aluno. Ou, então, mais vale fechar a
porta porque os jogadores de xadrez há muito que abdicaram da
vida...
E por isso, para aqueles
que se possam interrogar sobre o que me move, esclareço que não abdico...
23.7.06
A
responsabilidade é francesa...
"Nullum recusare
periculum"
O legado romano
deixou-nos uma noção de responsabilidade associada ao exercício da autoridade (auctoritas). Se,
um dia, o homem peninsular quis(?) limar o seu comportamento teve de pedir
auxílio aos franceses ou, melhor, suportar a presença dos franceses que o
ensinaram a responder pela terra (a mulher, quase
sempre) que ficava a seu cuidado. O vassalo aprende a responsabilidade com o
(a) senhor. As cantigas de amor testemunham essa aprendizagem,
tal como as cantigas de escárnio e maldizer mostram a dificuldade de o homem
peninsular assumir a responsabilidade - a dificuldade em responder pelos seus
actos. O homem da cantiga de amigo (o amigo peninsular) parte, sem consciência dos
seus actos. Sem dar notícia, deixa a saudade nas ondas, no vento que irrompe
pelos pinhais e pelas ermidas...
A assunção da
responsabilidade exige que a comunidade não se alheie dos
problemas e que não ceda ao capricho da manada...
19.7.06
Neste pequeno mundo
harmonioso, em que se cruzam vaidades flamejantes e se disfarçam inépcias, uma pergunta
salta violenta:
- Mas então os
Coordenadores não têm o direito de votar segundo a sua própria cabeça?
Esta pergunta foi dada
como resposta a uma outra pergunta (a melhor defesa é o ataque!):
- Como que é que os
membros de cada Departamento irão reagir perante a decisão dos seus
Coordenadores de concentrar numa única cabeça os poderes executivo e
pedagógico?
(A sereia começa a
embalar-nos com o mote: Governar em dita...dura... dita...dura...)
Esta pergunta, para mim,
não é uma questão de retórica. A aceitação passiva desta decisão
significa que rejeitamos efetivamente qualquer projecto que ouse apelar à participação da
comunidade educativa.
"Quando uma
pessoa que organiza e orienta um projecto ou atividade de grupo" - o
Coordenador - delega essa competência numa cadeira vazia, essa pessoa, se
pensasse pela sua cabeça, deixava, também, vazia, a sua cadeira...
17.7.06
Uns preferem o discurso
esdrúxulo, outros o discurso descarnado.
Quando a um examinando de
poucas palavras sai um corretor esdrúxulo, podemos dizer que está tramado. E se
à concisão juntar uma letra miudinha, seca, tímida - reveladora de uma
personalidade introvertida - então, não tem qualquer hipótese. O corretor
esdrúxulo prefere a letra garrafal, alongada, pronta a derramar-se num infinito
oceano lírico...
Hoje, tive a oportunidade
de observar como trabalha o corretor esdrúxulo: rejeita a letra miniatural,
embora sublinhe zelosamente os grafemas maiúsculos que histericamente se elevam
sobre a imaginária pauta; rejeita a brevidade da resposta sem cuidar de lhe
interpretar o sentido (o conteúdo?); rejeita a fria e simples enumeração
dos traços da personagem; rejeita a resposta crítica do examinando que,
seguindo o autor, entende que D. João V teria feito melhor em investir o ouro
do Brasil na construção da passarola do que na construção do convento de Mafra;
rejeita a competência argumentativa e o espírito de síntese porque o examinando
ao expor a tese (no 1º parágrafo) não explicitou que a exploração espacial
possa ter resultado da incapacidade dos políticos resolverem os problemas da
sua terra. No entanto, o examinando desenvolveu a tese, argumentando que o
egoísmo, o desejo de protagonismo, nos levam frequentemente a cortar com os
nossos semelhantes, em nome de uma singularidade e de uma superioridade discutíveis.
Esta fobia do corretor
esdrúxulo valeu ao examinando uma surpreendente classificação final de 7,5
valores, perdendo, pelo menos, 4 valores.
Uma parte do problema reside
precisamente na falta de qualidade das provas de avaliação e na forma
arbitrária como são classificadas...
Ora, esta questão só pode
ser resolvida no âmbito da formação inicial e contínua dos professores...
16.7.06
I - "Há que
evitar que aqueles alunos que leram os autores indicados pelo Programa de
Português possam ter melhores resultados do que aqueles que se limitaram a
preencher formulários, a fazer relatórios, a digitar mensagens eletrónicas, a
desrespeitar os colegas e os professores, a faltar às aulas, a anular a
matrícula. E porquê? Porque os primeiros podem ter memorizado os
conteúdos sem nada terem compreendido." (Pensamento cavo
do presidente da Associação de Professores de Português)
Na perspectiva deste
singular teórico do ensino da língua portuguesa, os autores da lusofonia
(poetas, romancistas, dramaturgos, ensaístas) são uma maçada que tolhe a
inteligência da nossa juventude.
Tal como as nossas
escolas merecem um novo modelo de gestão, a APP merece uma direcção orientada
para o ensino e para a aprendizagem da língua (sem escamotear a cultura e a
literatura lusófonas!), mais preocupada com a formação dos professores...
Não podemos ignorar que o
futuro de Portugal passa pelo território da lusofonia. E só conhecendo a
alteridade lusófona, poderemos ser aceites como parceiros na construção do
futuro.
II - Retomando o Problema
I
Quem é que, desde 1974,
recusa que as escolas sejam dirigidas por gestores profissionais, enquadrados
por um conselho escolar (pedagógico, técnico e administrativo)
que trabalhe para que os alunos tenham efectivo sucesso escolar?
Quem é que, em vez de
avaliar e corrigir as causas do insucesso educativo, forçou uma revisão
curricular posta em causa desde o início? A quem é que serve a actual revisão
curricular?
Quem é que dá a mão a
Associações espúrias que, em nome de uma globalização paroquial, aposta num
conjunto de competências mínimas que impedem que o aluno tenha sucesso escolar
e, sobretudo, sucesso na vida?
Quem é que, nos últimos
30 anos, entregou a formação de professores dos ensinos básico e secundário a
instituições incapazes de formarem os seus próprios docentes? A formação de
professores foi entregue às Escolas Superiores de Educação que rapidamente ocuparam
terenos que não eram da sua competência. Foi entregue a departamentos que
germinaram nas Universidades, mas que nunca foram avaliados. A formação, nos
dois casos, está entregue a professores que desconhecem o terreno que os
formandos terão de pisar. Universidades e Institutos privados 'formaram'
milhares de professores, sem qualquer enquadramento legal. Muitos dos
formadores não eram sequer profissionalizados. Tal como acontece com os
mestrados e os doutoramentos em curso, os candidatos a professores eram
admitidos desde que pagassem as propinas - o famigerado autofinanciamento do
ensino superior tem vindo a gerar prejuízos incalculáveis para as futuras
gerações.
III - Algumas soluções
- Acabar com a separação entre os
ministérios da educação e do ensino superior...
- Criar gabinetes de estudos no
interior do ministério da educação.
- Mudar o modelo de gestão das escolas,
reduzindo as estruturas diretivas.
- Alterar o modelo de formação de
professores, criando três ciclos de formação: pré-escolar, 1º ciclo e
2ºciclo; 3º ciclo e secundário; ciclo superior.
- Apetrechar as escolas com os
equipamentos necessários ao funcionamento de cada curso.
- Não abrir cursos em escolas onde
faltem recursos humanos e materiais.
- Acabar com a promiscuidade entre o
ministério da educação, as associações de professores, os sindicatos, as
editoras de manuais escolares...
- Acabar com qualquer tipo de
acumulação, remunerada ou não.
- Diferenciar remuneratoriamente em
função dos cargos desempenhados.
- Criar um modelo de avaliação do
docente que tenha em conta o seu estado físico e mental, a sua eficácia
pedagógica e não a idade.
- Evitar todas as medidas avulsas...
14.7.06
No conjunto, os
resultados dos exames do secundário não são "nem excecionais nem muito
preocupantes". Glória Ramalho, Presidente do Gabinete de Avaliação
Educacional (GAVE)
Um novo problema deu
à costa: uma boa parte dos alunos não consegue concluir o ensino secundário na
1ª fase e muitos daqueles que o conseguiram não obtiveram os 9,5 necessários
para aceder ao ensino superior. No entanto, se para a bem-aventurada Glória
Ramalho esta situação não é 'muito preocupante", qual é a origem do problema?
Uma das respostas encontra-se
no Ministério do Ensino Superior: O que é que as Universidades públicas e
privadas, os Politécnicos, as Escolas Superiores de Educação, os Institutos vão
fazer no próximo ano? Fecham as portas, engrossando as prateleiras dos
supranumerários?
Inaceitável. A coragem
escasseia.
Por isso, já abriu a caça
às respostas (bruxas). A óbvia seria o professor. Mas teme-se,
no contexto actual, que esse argumento esteja fragilizado. Por conseguinte,
ensaiam-se novas respostas: a novidade e a extensão dos programas, os erros
científicos e pedagógicos dos manuais, as incorreções das provas de exame, a
arbitrariedade (indisposição?) dos corretores, a falta de aplicação dos
alunos...
Em muito pouco tempo,
criou-se, na comunicação social, um cenário que potencia a
ocultação da incompetência dos ministros, dos secretários de
estado, dos assessores, dos diretores gerais, dos autores dos programas, dos
auditores científicos e pedagógicos, do GAVE, de uma horda de avençados....
Perante o problema, o que pensaram todas estas luminárias?
A título excecional (ou
talvez não!), os alunos poderão repetir os exames na 2ª fase e candidatar-se ao
ensino superior na primeira época. Como aqueles
pretensos atletas que se infiltram na corrida, enganando os juízes de prova...
E porquê? Para não
perturbar minimamente os maiores responsáveis pelo fracasso do país e que
imperturbavelmente circulam dos corredores das academias para
os corredores dos ministérios. Bípedes inteligentes,
frequentemente, nem precisam de circular. Jazem, um membro na academia, outro
no ministério.
13.7.06
Desde 1998 que me
habituei a observar, logo de manhã cedo, um casal de melros, que
saltitavam, indiferentes a quem entrava no vetusto edifício desenhado pelo arquiteto
Ventura Terra. Não creio que o casal fosse sempre o mesmo, mas estou certo de
que o comportamento, esse, era (e é) o mesmo.
Surpreendentemente,
surgiu uma outra ave, de bico forte e curvo, nem sempre negra, mas predadora,
que começou a reproduzir-se, de forma intensiva, gerando um bando omnívoro que
emite estrategicamente sinais de inteligência, planeamento e comunicação...
Já esta semana, uma
dessas experimentadas criaturas sofistas, num golpe de mestre, teve
a audácia de se assenhorear do labor de alguns pequenos
invertebrados que por ali restam.
(Relembro que o cada vez
mais desacreditado S. Freud já explicou que 'um golpe' não é mais do que a
repetição do 'golpe original'. Por isso, talvez, ainda valha a pena criar uma
«área projeto «cuja única meta estratégica será descobrir o primeiro golpista.)
Mas o mais grave é que
esta endémica holopatia alastra das galerias, ladeia os pátios norte e sul, na
expectativa de destronar, em 2008, o arquiteto Ventura Terra.
A entronização decorrerá
nas caves e, nesse dia, numa nuvem de poalha, estarão presentes todos os
ilustríssimos avoengos de bico forte e curvo, já quase todos negros...
Resta-me, porém, a
esperança (historicamente infundada!) de que não havendo mais presas,
o bando levante voo, de vez...
11.7.06
«O incêndio deflagrara
à hora do almoço. Eram cerca de 13h30 e os bombeiros tratavam de apagar
mato, caruma, giestas. De repente, a direcção do vento alterou-se e
a ordem ecoou: “Para trás!"(...) e os chilenos avançaram no sentido
inverso, à frente do fogo. “Ouve-se dizer que estes sapadores têm muita
experiência", por isso o Sérgio foi com eles.» Público,
11.07.2006
Há séculos que
alimentamos a ideia de que o que é estrangeiro é bom, é experimentado. Ou, pelo
contrário, ressabiados e xenófobos, condenamos liminarmente tudo o que vem de
fora ou vive lá fora. Talvez não valha a pena dar exemplos, mas basta pensar na
carga de ambiguidade da palavra estrangeirado para perceber
como somos capazes de idolatria ou de persecução de tudo o que não é
genuinamente português. Agora, estamos numa fase de alguma idolatração do que é
estrangeiro, de quem vive e trabalha lá fora. Veja-se o caso do Scolari, dos
jogadores da selecção ou mesmo dos emigrantes - que não
dos imigrantes! Defendemos modelos estrangeiros: da Irlanda à
Finlândia, resignando-nos, mesmo, à cada vez maior presença espanhola em solo
lusitano.
E os sapadores chilenos
não escapam a esta presunção de experiência. Há vários anos que a comunicação
social dá testemunho da sua presença sem a questionar. Sempre em nome da
competência que essa, sim, faltará aos nossos bombeiros voluntários, amadores...
No entanto, não é a primeira vez que experimentados (?) bombeiros chilenos
morrem nas nossas matas porque não obedecem à ordem de arrepiar caminho.
Quando ignoramos as
coordenadas do terreno que pisamos, não há experiência que nos valha! O chefe
dos bombeiros locais que deu a ordem "Para trás!" é bem mais
experimentado que qualquer encartado (diplomado) noutras longínquas paragens.
E este fascínio pelo
desajustamento, pelo esquartejar do saber acumulado ao longo de muitas
gerações, alastra pelo país como o incêndio de Famalicão da Serra.
9.7.06
Tudo
isto cheira a naftalina...
Felizmente, acabou um
daqueles torneios em que os artistas estavam proibidos de atuar.
Mais importante do que
atacar era defender, já que a sorte parece favorecer, não os audazes, mas os
medíocres. Os treinadores e os árbitros, condicionados pelos jogos de
bastidores, tudo fizeram corresponder aos superiores interesses do marketing:
num ápice valorizaram e desvalorizaram jogadores, seleções, países.... Valeria
a pena saber quantos jogadores ficaram com a carreira amordaçada!? Não o iremos
saber, a não ser que, um dia, um Zidane, um Figo, um Raúl decida contar tudo o
que sabem.
Quanto a Portugal, seria
interessante que aqueles técnicos, que melhor conhecem os jovens jogadores
portugueses, pudessem formar uma nova selecção, liberta do espírito
patrioteiro, corporativo e beato que ultimamente nos invadiu. Um país que se
diz membro da União Europeia não pode comportar-se como se ainda vivesse em
pleno Estado Novo, com colónias e tudo... O tempo dos sargentos, sem desprimor
para os verdadeiros, acabou. Caso contrário, ainda voltaremos ao tempo dos
famigerados condottieri ou, numa versão mais provinciana, ao tempo dos
«padrinhos».
(Tristes vão os dias, de
Timor ao Jamor!)
Tudo isto cheira a
naftalina, desde o D. Afonso Henriques retido no túmulo às praias da Caparica
cerceadas por paredões inúteis, passando pelo estádio do Jamor - panteão de
vaidades oficiais, oficiosas e gratuitas.
E já agora, quem é que
acredita que a ministra da cultura não soubesse que estava a ser preparada a
abertura do túmulo do rei-fundador? Desculpa
esfarrapada, que, caso seja verdade, merece, pelo menos, o despedimento de meia
dúzia de assessores.
(Tanta riqueza esbanjada,
num país tão pobre, dói.... Quantos portugueses ficaram mais pobres neste
último mês? Quantas famílias ficaram sem poder honrar os seus compromissos? E
ainda vamos de férias!?)
7.7.06
Entre
a pura atividade e a passividade pura...
« Esse est percipere et percipi.» Tese de Berkeley -
Ser é perceber e ser percebido.
Separado de um pequeno
grupo de caminheiros, entrara no acesso às arribas da Praia Grande (Sintra),
quando dei de caras com dois automóveis parados no meio de uma vereda. Ao de
leve, coloquei a mão na bagageira do velho Renault 5 vermelho que, de imediato,
galopou vertiginosamente sobre as fragas até se despenhar, na vertical, sobre o
areal, junto à orla marítima. Surpreso e petrificado no ponto de partida
daquele galope esfuziante e horrível, fixei a vista naquele ponto bem distante
da praia e, num ápice, um corpo, seminu, masculino, elevou-se à altura do
penhasco que separa as águas da terra, para voltar a cair, redondo, sobre o
areal. Outros corpos, seminus, cercam-no e eu desperto, aturdido.
Agora, que pareço
acordado, continuo sem saber o que fazia naquela hora indistinta na Praia
Grande, quem eram aqueles andarilhos que me acompanhavam e de que perdi o
rasto, qual era a marca e a cor do veículo que continuou imobilizado, que força
acionou o velho Renault 5 vermelho e, sobretudo, se houve uma vítima e quem ela
era, de facto.
4.7.06
«Quando
se fizer a lei da responsabilidade ministerial, para as calendas gregas...» Almeida
Garrett, Viagens na minha Terra, 1843
Depois dos ministros
Ferreira do Amaral e João Cravinho terem coberto o país de autoestradas, passou
a ser tão fácil percorrer o país de lés a lés que alguém, inefável, concluiu
que não era mais necessário fazer a lei da responsabilidade ministerial.
E não fosse algum pateta
das luminárias levar as céticas palavras de Garrett a rigor, determinou-se que
jamais se enfadasse a nossa juventude com algum capítulo daquele folhetim que
dá por nome Viagens na minha Terra.
(Apesar de tudo, estou
convencido que mais dia menos dia, a TVI acabará por instalar os estúdios lá
para os lados da Ribeira de Santarém, bem pertinho da esquecida Santa Iria,
presenteando-nos como uma bucólica Joaninha da Real Companhia das Lezírias! É apenas
uma questão de tempo: o tempo necessário a que a Joaninha Moura Guedes aprenda
a montar.)
Quando o Estado é
laxista, a questão da responsabilidade ministerial é fulcral. Como é que se
pode alterar este estado de coisas, se os ministros não são solidários com os
ministros anteriores? Qualquer novo ministro alija a sua responsabilidade para
cima do ministro anterior, revogando-lhe as leis que, na maioria dos casos, não
chegaram a ser regulamentadas; e mais recentemente, criou-se o hábito de montar
nos mass media um circo, onde os trabalhadores, em geral, e os funcionários do
estado, em particular, não passam duns velhacos doentes e preguiçosos que só
aspiram a opíparas reformas, exaurindo a burra do estado.
Já que a solidariedade
ministerial não existe, poderia, pelo menos, fazer-se justiça: Por exemplo,
julgar e prender todos aqueles ministros, secretários de estado, chefes de
gabinete, assessores... que deixaram os sindicatos impor-lhes um estatuto (de
igualdade remuneratória) da carreira docente, que deixaram os diretores dos
centros de formação distribuir verbas incalculáveis por formadores gananciosos
que foram acreditando milhares de professores sem, de facto, os avaliar, que
aceitaram (e defenderam hipocritamente) o modelo de gestão democrática. Este
laxismo ministerial é que gerou os predadores que continuam à solta...
E é para não incomodar os
predadores, que já começaram a recolocar-se à mesa do orçamento, que todos os
dias o circo ministerial faz cair em descrédito os palhaços de 2006...
3.7.06
Senhor Provedor da
Portugal Telecom A minha filha que se encontra na
Hungria, em 22 de junho deixou de poder aceder à sua caixa de correio. Este
impedimento criou-lhe uma situação muito desagradável, pois perdeu vários
contactos universitários, importantes para a prossecução dos seus estudos na
Europa Central. Tal como reservas de avião e de hotel... Entretanto, apesar da
minha reclamação diária por telefone 707 22 72 76 e por e-mail (suporte@acesso.sapo.pt),
sou simpaticamente convidado a ter paciência porque «estamos a efetuar todos os
esforços para que a situação reportada com a identificação 2006-260468 seja
resolvida o mais breve possível.» Por outro lado, na página do cliente, obtenho
a seguinte inamovível informação: Nº SGS Tema Estado Data de Registo
2006-260468 Problemas técnicos Caixas de Correio Aberto 2006/06/22. Não sei se
devo continuar a ter paciência, pois já em dezembro de 2005 tive idêntico
problema com a Netcabo, que nunca foi capaz ou quis resolvê-lo. Foram meses de
respostas evasivas até que mandei desligar a Netcabo. E nunca a Netcabo assumiu
oficialmente qualquer responsabilidade. Como pode deduzir, troquei a Netcabo
pela Sapo e, afinal, tudo parece funcionar do mesmo modo. A estrutura técnica
parece não estar à altura de resolver as anomalias e, sobretudo, jamais
esclarece o cliente sobre a sua incapacidade, para que este possa seguir o seu
caminho... O que mais lastimo é a falta de transparência na relação com o
cliente. Caso o entenda, gostaria que avaliasse esta espécie de
disfuncionamento, pois, imagino que muitos outros clientes serão vítimas deste
tipo de arbitrariedade que, penso, inaceitável numa sociedade que aposta cada
vez mais nas novas tecnologias de informação.
Pelo menos é esse o
desafio do engenheiro Sócrates, a quem peço, daqui, desculpa
por o ter tratado, há uns dias, por "mestre", qualificativo
desprezível nos tempos que correm... Embora, nesta questão, me sinta um pouco
confuso, pois tenho visto engenheiros que o não são, e
outros que, apesar do engenho lhes falta a arte.
Porém, para me acalmar, o demónio de Sócrates (o da cicuta!), murmura-me ao
ouvido: - Impossível. Abandona esses teus lampejos.
Senhor Provedor do
Instituto de Seguros de Portugal,
Senhor Ministro da
Administração Interna,
Senhor Ministro da
Justiça,
Se a lei me permite pagar
o seguro de um veículo automóvel até 30 de junho e o faço nessa data, através
do multibanco, por que motivo a autoridade policial me pode autuar logo no dia
1 de julho, pois me falta a correspondente carta verde?
E por que motivo, a
Império Bonança (e as restantes companhias...) não envia previamente a carta
verde a cada um dos seus clientes? Se não confia em mim, não me deveria aceitar
como cliente!
Para que a voracidade da
autoridade não desabe sobre mim, desloco-me à sede da Companhia a pedir a
desditosa carta verde e por lá fico sessenta gloriosos minutos à
espera...felizmente, na companhia de outros clientes mal-humorados. Vá lá
saber-se porquê? (Durante todo aquele tempo pude contemplar uma senha branca
que apenas registava: C63; o meu vizinho do lado, esse por lá ficou com
uma senha verde em riste...)
Como, entretanto, me
lembrei que o actual Ministro da Administração Interna e que já foi Ministro da
Justiça, em tempos remotos - logo a seguir ao 25 de Abril - terá sido meu aluno
(ou será imaginação minha ou, talvez, do Passos Manuel?) dei comigo a pensar
que eu sou o único responsável por esta forma de tratar os constituintes, os
eleitores, os utentes, os clientes, os pacientes, os fregueses...
E por isso quero crer que
a solução para o déficit está em colocar a CARUMA no quadro dos
supranumerários. Um quadro virtual, já se vê, um pouco como o purgatório, essa
instituição medieval, criada para que uns tantos virtuosos pudessem acumular
capitais sem se verem condenados às penas infernais.
(A estas horas, a culpa
judaico-cristã costuma atacar-me de forma violenta e por isso me sinto
responsável por toda a impunidade que cresce sob as minhas agulhas noturnas...)
E por isso, quero crer
que se a CARUMA fosse colocada no quadro dos supranumerários o problema do
déficit ficaria resolvido
1.7.06
Quem
não embandeira não petisca...
Ultimamente, as aparas
vêm-se avolumando: as boas classificações seja dos exames de Português seja da
selecção nacional de futebol escondem os habilidosos que manipulam o sucesso e
o nacionalismo serôdio. Bebe-se e grita-se numa linguagem reles contra adversários
que deveriam merecer o nosso respeito.
Num tempo em que os
habilidosos da política ameaçam correr à pedrada quem lhes
contrarie os interesses, e em que outros mecenas autárquicos compram o silêncio
dos subsidiados, a encenação da saída do ministro dos negócios
estrangeiros, precisamente quando o chauvinismo dos portugueses vive do
futebol, é aplaudida como uma jogada de mestre Sócrates.
Cada vez mais a esperteza
dos ardilosos, também chamada dos guerreiros, se afirma impunemente como um
traço fundamental da cultura portuguesa.
Na escola, no futebol, na
política, o truque compensa.
E o que mais arrepia é
ver como a juventude tumultuosa está a ser educada no ardil e na baixeza.
(Este comentário
agreste não visa retirar mérito a todos aqueles que na respectiva atividade dão
sempre o seu melhor sem necessitar de embandeirar. Hoje, mais do
nunca, quem não embandeira não petisca!)
27.6.06
«Nos mitos (Ícaro) e nos
sonhos, o voo exprime um desejo de sublimação, de procura de
harmonia interior, de superação dos conflitos; (...) as grandes nações
voam por cima da terra, traindo a psicologia colectiva,
pois a vontade de afirmar o poder no céu não é mais do que uma forma de
compensar a impotência na terra.» Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, O
Dicionário dos Símbolos, Voo.
Num tempo em que a
inteligência era perseguida, a Bartolomeu Lourenço (alter
ego de Saramago) só restava o sonho de voar para tentar
saber como é o sol por dentro, para poder mostrar como
é a terra de Mafra (o estaleiro do sonho real!) por dentro....
Só voando por cima - e não para longe! -
lhe era possível ter uma perspectiva global da paranoia dos poderosos... No
interior da caverna jamais se acede ao círculo exterior!
O voo
temerário liberto, rasga o horizonte, desloca-nos (pequenos ícaros!) para círculos
exteriores cada vez mais amplos que nos mostram o pavor interior da terra, mas,
ao aproximarmo-nos do sol, talvez possamos ver a fonte da vida...
se observarmos a lição de Dédalo.
24.6.06
Nestes dias de silêncio,
fazem-se ouvir os pássaros que chilreiam ininterruptamente. De repente, um
aluno pergunta as horas. Substituíra o relógio pelo silenciado telemóvel!
Talvez, seja útil
quantificar o rombo financeiro provocado pelos exames nacionais: 50% dos alunos
faltam à 1ª fase, o que significa que metade das provas se tornam desperdício;
o mesmo se repete na 2ª fase, pois os alunos inscrevem-se novamente para exame
- a floresta sofre! os telemóveis silenciados durante horas-e-horas deixam de
engordar as empresas de telecomunicações e o fisco...
Não vejo ninguém que
beneficie com os exames, a não ser, talvez, os médicos: sempre passam mais uns
atestados e receitam mais umas pílulas para fortalecer os cérebros dos
incompreendidos adolescentes.
(...)
Uma vigilante arruma
meticulosamente a secretária: ao centro, as folhas de prova; do lado direito,
as folhas de rascunho; do lado esquerdo, a pasta azul que guarda a tesoura, o
saco dos enunciados sobrantes e a pauta, onde 15 minutos depois do toque, ficaram
assinalados todos os que faltaram na expectativa de que a 2ª fase seja mais
simples.
O outro vigilante franze
o sobrolho. A prova de Filosofia não difere das anteriores, pelo menos, desde 1998:
a mesma estrutura, os mesmos autores, as mesmas obras, as mesmas perguntas -
gostei, particularmente, do argumento socrático de que «a missão do político
é fazer de nós os melhores cidadãos possíveis.»
(...)
Creio, no entanto, que,
apesar dos alunos poderem memorizar previamente 50% das respostas, os autores
da prova se esforçaram por testar uma boa parte do programa de Filosofia. O
mesmo não poderei dizer dos autores da prova de Português: qualquer 'corretor'
sabe que a maioria dos alunos pode obter 60 pontos (em 200) sem escrever uma
palavra; e também sabe que, ao contrário do que acontece na disciplina de
Filosofia, o aluno não necessitou de ter lido qualquer obra...
Os exames actuais mais
não são que um desaproveitamento de recursos... Que impacto podem ter, por
exemplo, os exames de Português e de Filosofia na avaliação final do 12º ano
dos alunos internos? Haverá alguém que consiga reprovar? Será que estes exames «fazem
de nós melhores cidadãos»?
(Tristes vão os dias /
de Lisboa a Timor / à mercê de homens sem valor // Alegres vão os dias / de
Lisboa a Berlim / num vai-e-vem sem fim/
22.6.06
Proposta de jogo:
Explicite duas das funções das falas contidas neste excerto.
«D. Rita, avistando o
préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande luneta de oiro, e
disse:
- Ó Meneses, aquilo que
é?
- São os nossos amigos e
parentes que vêm esperar-nos.
- Em que século estamos
nós nesta montanha? - tornou a dama do paço.
- Em que século?! O
século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
- Ah! Sim? Cuidei que o
tempo parara aqui no século doze...»
Camilo Castelo
Branco, Amor de Perdição
_________________________________________
Colocam-se 50 corretores
(?) numa sala. Ordena-se-lhes que leiam, comentem e resolvam uma prova, por
exemplo, de português. Prisioneiros da Ata, estão obrigados a registar os seus
estados de alma. Concluída a praxe, poderão rumar à sala-ao-lado, onde
receberão as provas a classificar. Há anos que esta cerimónia se repete!
Ninguém preside ao acto.
Agrupamento? GAVE? Recolhidos ..., admitem contacto telefónico, mais tarde. Na
sala, durante 15 minutos, uns lêem, outros releem e alguns aproveitam para pôr
a conversa em dia com o parceiro de ocasião - há um ano que não se viam! Tudo
em lume brando. Entretanto, o tom ciciante torna-se conspirativo - há quem
comece a dizer em alta voz o que pensa da prova 639...
Uma jovem corretora,
assustada com aquele misto de pasmaceira e de conspiração, procura puxar as
rédeas para que o bota-abaixo não tome conta da assembleia: há quem não entenda
a formulação das perguntas; não se percebe se a prova foi auditada... e se o
foi, quem terá sido o auditor? Há quem tenha deixado de entender o significado
da palavra «perceção». Não há tempo para distinguir a perceção sensorial da perceção
intelectual. Terá o autor da prova pensado nos modos como se perceciona? O que
é que aconteceu à clareza que deve caracterizar a pergunta ou
qualquer outra «instrução»?
Apressando a conclusão da
ata, e como a maioria das «instruções» era ambígua, os corretores
reivindicaram, ali, o direito de «aceitar» todas as respostas, fazendo tábua
rasa do princípio da uniformidade de critérios. O país
começava e acabava para os lados do Jardim da Estrela!
Já em 1975, no anfiteatro
do Liceu Passos Manuel, uma outra assembleia de corretores reivindicara a
«aceitação» de todas as respostas, numa rejeição democrática de
qualquer pretensão de resposta única. O ensino centrava-se definitivamente no
aluno; os professores passavam a ser uma fonte - secundária -
do conhecimento; os alunos rivalizavam com os professores, pois todos
partilhavam as mesmas fontes.
Hoje, esses alunos de
1975 tornaram-se numa fonte única, elaborando provas que nada testam... visando
apenas satisfazer a vaidade dos oportunistas e dos preguiçosos...
Creio, no entanto, que
esta geração de 75 está a acabar. Há cada vez mais jovens que procuram o
conhecimento e que se sentem traídos, quando colegas, que ao longo de um ciclo
de três anos nada fizeram, acabam por ter classificações idênticas ou mesmo
superiores.
Esse sentimento de
traição começa a separar as águas. É ver como «respondem» ao trabalho que lhes
é proposto. Como o fazem com gosto! Como envolvem os amigos e os familiares na
pesquisa a que se aventuram! Como se preocupam com a apresentação do trabalho
e, sobretudo, com a qualidade!
Entretanto, há quem diga
que a geração de 75, num último estertor, decidiu proibir os trabalhos de casa.
Afinal, os "TPC" só servem para acentuar as desigualdades!
Será verdade?
20.6.06
O
sorriso escarninho virou esgar...
(Ao contrário de Alberto
Caeiro, quero homenagear todos aqueles que, ainda, não desistiram de procurar o
sentido íntimo das coisas...)
Neste tempo de
imobilidade, enquanto eles, padronizados, estão aplicados na resolução da prova
de sociologia, desloco-me mentalmente na tentativa de compreender o sorriso
escarninho que acompanha habitualmente a referência a qualquer ex-seminarista
ou ex-padre, como se um ferrete os marcasse definitivamente, tornando-os
objecto de uma curiosidade mórbida.
Apesar de se tratar de
uma espécie em extinção, o estigma denuncia-os indelevelmente:
no modo de falar, no tom, no olhar de soslaio, no andar, no vestir, no excesso
do gesto... na forma de estar, retraída ou afetada. Provavelmente, a dissolução
provoca sempre um labéu e o sorriso escarninho irrompe sempre que a mancha
infamante pede a nossa cumplicidade, nos arrasta para a esquerda de Deus...
(asserção que não é possível comprovar na sura!)
(...)
Esse sorriso escarninho,
que me persegue desde manhã cedo, virou esgar naquele
acampamento de vozes desgrenhadas que clamavam vingança..., mas, à medida que a
sombra avança, a caruma recolhe as beatíficas agulhas e
regressa à imobilidade inicial...e não raras as vezes ao
abjeto torpor do sono efémero...
A destruição do
sentido... do trabalho...
Bastava ter lido o texto
crítico «Memorial do Convento», em Os Sinais e os Sentidos,
para não se cair no erro de banalizar o pensamento de Óscar Lopes. Como se a
primeira metade do século XVIII fosse, de facto, extraordinária aos
olhos de José Saramago ou de Óscar Lopes! O retrato do século XVIII traçado por
Saramago é que poderá ser insólito, entre outros motivos, pela «emergência
de caracteres populares individualizados no seio de uma grande movimentação
multitudinária como que em busca de sentido próprio.»
A megalomania, a
opulência, a hipocondria, a beatice, a libidinagem, o esclavagismo, a xenofobia
surge, no romance, como formas ordinárias, previsíveis do absolutismo grotesco
que se abateu sobre o séc. XVIII português. Da procissão à tourada, passando
pelos autos-de-fé e pelos lupanares conventuais.
Mesmo se não houvesse
outro motivo, bastava a pergunta nº4 do I Grupo da Prova de Exame de Português
(639) para concluir que o Ministério da Educação prestou um mau serviço aos
alunos, a Saramago, a Óscar Lopes... ao País.
Infelizmente, esta Prova
de exame também presta um mau serviço à língua portuguesa porque a redação dos
enunciados é medíocre: I 1.; 2.1 - «Identifique duas das vozes
aí presentes, exemplificando cada uma das vozes por si indicadas
com duas transcrições do texto.»; 2.2.; 3.; III «apresente uma
reflexão sobre a perspectiva referente à exploração do espaço, expressa no
extrato do verbete...»
E, sobretudo, esta Prova
de exame não chega a testar 5% do Programa do 12º Ano. Que competências é
que são efetivamente postas à prova?
Afinal, quem é que está
interessado em valorizar o trabalho daqueles alunos que leram Pessoa, Camões,
Saramago, Sttau Monteiro? E também dos que arduamente escreveram e reformularam
múltiplos textos, obedecendo a técnicos e a métodos diferenciados? E de todos
os que se empenharam em compreender e aplicar as regras do «funcionamento da
língua»
Afinal, para que é que
serviu a última revisão curricular?
E quanto à dedicação de
muitos professores de Português, mais vale nada dizer!
É, contudo, pena que haja
professores que se prestem a servir tão mal a Pátria que os viu nascer!
17.6.06
Poderia
dizer-te, qual Marco Polo dos tempos modernos, que a chuva ameaçou cair sobre a
cidade, mas isso tu sabes: não passou de uma ameaça...
Poderia
dizer-te como é ficar em vez de partir, mas isso tu sabes: são mais as vezes
que ficas do que partes...
Poderia
dizer-te que o cansaço tomou conta dos corpos, mas tu sabes que isso não é
totalmente verdade: há sempre uma buzina, uma bandeira que esvoaça nas avenidas
da cidade...; há sempre «uma bola branca em cima da cabeça /Bola branca que
lhe desaparece pelas costas abaixo...»
Poderia
dizer-te que a Gabriela Llansol publicou novo romance destinado aos 'legentes',
que não aos leitores - "Amigo e Amiga. Curso de Silêncio 2004"
-, que Mário Ventura Henriques nos deixou, desgostoso da implosão da sua amada Troia,
que David Ferreira não compreende por que motivo o seu saudoso pai - David
Mourão Ferreira - foi sendo esquecido ao longo dos últimos dez anos, que Mário
Cláudio está convencido que, com o seu 'Camilo Broca', está a
prestar um grande serviço à Literatura, transformando o Camilo Castelo Branco
numa «caixa de ressonância», talvez num tam-tam... Mas isso tu não queres
saber! De que serve sabê-lo? Nem sequer será assunto do exame de Português do
próximo dia dezanove! A única coisa que talvez te pudesse interessar seriam as
respostas, desde que não fosses obrigado a elaborar as perguntas...
Poderia
dizer-te que voltei a ver 'Notorious" (1946) de Alfred
Hitchcock, mas isso só serve para me mostrar que a minha memória só se
concentra em pormenores, como os da 'chave', da 'adega' e da 'garrafa'. Que
mistério é que estes signos poderão esconder-me? Não sei, nem tu podes saber.
Hoje,
quero, no entanto, dizer-te que ainda não esqueci o A. Cosme da primeira metade
dos anos 80. Hoje, quero, dizer-te que não posso esquecer o grito de dor que me
deixou na caixa do correio, em agosto de 1985:
Não
sei ao que me disponho
Nesta
angústia que me enlaça;
O
tempo é só o que a alma passa
E
eu só quero viver outro sonho.
Já
não sei mais amar esta vida
Nem
defender o que ela me oferece;
Minh'alma
mora num corpo que arrefece
Favorecendo
esta mágoa tão sentida.
Sou
uma substância inerte em peso
Cujas
qualidades se perderam na viela
Onde
supus uma luz, a mais bela,
Mas
que escureceu meu coração indefeso.
Já
nem sei bem o que é sofrer;
Acabo
por não ter o que me enlaça
E,
cadáver rejeitado só de massa,
Esqueço
a fonte que me fez viver.
Poderia
dizer-te que só, hoje, tive coragem para abrir a caixa do correio, mas isso tu
preferes que não seja totalmente verdade...
15.6.06
O
Corpo de Deus e a inteligência lógica
«... por agora
vai a procissão em meio, sente-se o calor da manhã adiantada, oito de junho de
mil setecentos e dezanove, que é que vem agora aí, vêm as comunidades, mas as
pessoas estão desatentas, passam frades e não se dá por eles, nem as irmandades
foram todas assinaladas...» José Saramago, Memorial do Convento
Hoje, 15 de junho de
2006, também na minha memória difusa passa a procissão do Corpo de Deus;
outros, talvez mais atentos à intempérie, nela tenham participado, integrados
nas poucas irmandades que sobraram da laicização racionalista. Nos passeios,
movem-se outros postulantes impacientes, capazes de insultar a custódia
patriarcal, enquanto as floristas se esforçarão por vender aquela flor que um
dia um menino de coro ofertou a um cano de espingarda.
Hoje, 15 de junho de
2006, esse menino de coro, já crescidote, indisponível para acolitar qualquer
D. Policarpo, rumou a Sul, na esperança de que o Deus Sol o torne num dos
jogadores de xadrez de Ricardo Reis: «Mas quando a guerra os jogos
interrompa, / Esteja o rei sem xeque, / E o de marfim peão mais avançado /
Pronto a comprar a torre.»
O que eu não entendo é
que nesta república, em nome da liberdade de culto, se tenha banido o D.
Policarpo do protocolo do Estado - ideia que, creio, jamais terá passado pelo
cabeça do magnânimo Rei-Papa D. João V - e continuemos a aproveitar
matreiramente os santos dias do calendário eclesiástico católico!
Ainda consultei a crónica
do Pacheco Pereira, na esperança de que ele questionasse o engenheiro Sócrates
sobre a celebração do Corpus Christi num país que, na prática, rejeita as suas
raízes, mas ele - P.P., hoje e nos próximos dias, teoriza sobre 'Blogues:
a apoteose do presente"... o que me atira, prosternado, para o último
parágrafo do Manifesto Técnico da Literatura Futurista (11 de maio de 1912) de
F.T. Marinetti: «Depois do reino animal, eis o início do reino mecânico. Com
o conhecimento e a amizade da matéria, da qual os cientistas não poderão
conhecer senão as reações físico-químicas, nós preparemos a criação do homem
mecânico de partes mutáveis. Nós o livramos da ideia da morte e, por
conseguinte, da própria morte, suprema definição da inteligência lógica.»
13.6.06
«Há dias, há noites em
que as águas se movem lentas na minha memória. Movem-se?» Eugénio
de Andrade, Limiar dos Pássaros
I - Hoje, dia de Santo
António, não pensei em nenhum arraial, não segui nenhuma liturgia.
Os ritos dizem-me cada
vez menos, num mês em que o indivíduo cede o lugar à tribo -
da pátria, do futebol, dos Santos Populares. Junho inicia um ciclo de convite
ao lazer, com uma acelerada degradação da produtividade. Sempre que o Estio se
aproxima, a economia estiola, apesar da propaganda que defende o turismo como
um esteio da nossa economia.
II - Hoje, dia de Eugénio
de Andrade e de Álvaro Cunhal, ouvi dizer que deixaram de ser lidos, que os
seus biógrafos são mais escutados. Preferimos, de longe, a iconofilia à poética,
à ideologia! Não admira: estamos no mês em que o indivíduo cede o
lugar à tribo.
III - Hoje, quando passei,
os nimbos ameaçavam despenhar-se sobre aquele silêncio de
lápides. A tribo, taciturna, ignorava as serpentinas que caíam dos tetos, e
seguia vagamente o voo mortífero das moscas...
IV - Amanhã, também é
dia: a tribo vai desfilar, mortiça... atenta à iconografia...
11.6.06
Na minha infância não
havia "Plano (projecto) nacional de leitura". A força do
acontecimento foi de tal ordem que subitamente o jornal "O Século"
entrou lá em casa no dia 4 de junho de 1963(?) - morrera, no dia 3 de junho, o
santo Papa: o papa João XXIII. Emprestado pelo lojista da aldeia. Creio que, na
primeira página, havia uma fotografia..., mas o que me ficou foi o formato
daquele jornal. Mais tarde, já no Liceu de Tomar, à época secção do Liceu de
Santarém, passei a comprar o jornal (O Diário de Lisboa, o Diário Popular, A
República, A Capital...), mas curiosamente nunca me senti atraído pelo formato
de 'O Século'. Na escola primária, que me lembre, não entravam jornais. No
Seminário de Santarém, lembro-me que os padres liam 'A Capital', cuja perigosidade
política era reduzida, apesar dos 'fait-divers" poderem perturbar a alma.
Havia, isso sim, muitos jornais de teor religioso que não me interessavam minimamente.
Nesse período de reclusão, a força do acontecimento não conseguia perfurar as
muralhas que cercavam o antigo Colégio dos Jesuítas. Estávamos protegidos da
torpe e imunda maré do mundo exterior!
Na minha infância também
não havia Plano (projecto) nacional de escuta radiofónica. Havia a outra,
entregue ao cabo da aldeia e, provavelmente, a um dos meus tios que era um
polícia muito viajado.... Só, em 1966, a rádio irrompeu pelos meus ouvidos...
na taberna vizinha da mercearia, onde me deslocara para comprar um kilo de
arroz. Subitamente, foi o delírio: a algazarra dos homens despertou-me para as
ondas da rádio: José Torres acabara de marcar um golo, no Portugal - Rússia,
aquele jovem que, ainda há pouco tempo, descalço, vendia peixe pelas ruas da
aldeia. Era como se todos nós tivéssemos vencido a Rússia, aquela por quem
Nossa Senhora tinha vindo pedir a Fátima - «rezem pela salvação da Rússia», a
vermelha, porque a branca fora esmagada pelos bolchevistas, ou, então,
emigrara, na terceira classe dos navios que José Rodrigues Miguéis tão bem haveria
de descrever...
Ali, naquela aldeia, os
órgãos de comunicação eram postos ao serviço da comunidade como chamariz...
Para que o aldeão pudesse comprar um transístor, era necessário que partisse,
primeiro, para a França ou para a Alemanha... e, aí novamente sim, num sinal de
riqueza, em casa, as ondas da rádio misteriosamente ocupavam todo o silêncio...
Hoje, parece que está em
marcha um Plano (projecto) nacional de leitura, de escuta, de escrita.... Creio,
por isso, que, doravante, nenhuma outra criança poderá voltar a queixar-se de
falta de informação, de discriminação...
Sobra-me, todavia, uma
dúvida: Terá esse Plano (esse acontecimento) a mesma força que a morte do Santo
Papa ou que o golo do José Torres?
Bem sei que não devo ter
dúvidas, pois não passo de um «experto» em campo de «cientes»!
10.6.06
(Dirigindo-se a D.
Sebastião) «Todos favorecei em seus
ofícios, Segundo têm das vidas o talento» Camões, Os
Lusíadas, X, 150
Tudo leva a crer que D.
Sebastião não era mais judicioso que os actuais governantes. Por mais que
Pessoa lhe elogie a «loucura», o aventureirismo da sua decisão arrastou-nos
para uma crise que jamais superámos. A decisão política ignora o talento e,
sobretudo, mata os novos talentos, sujeitando-os a uma uniformização
castradora.
Quais soldados num campo
de batalha, os professores podem ser substituídos sem que haja qualquer
prejuízo para os alunos, como se a aprendizagem não fosse mais do que a
assimilação /repetição de uma instrução. Neste campo de Marte, aluno e
professor perderam a identidade... são peças obsoletas de uma engrenagem
puramente mecânica... sem alma. E onde não há alma, não há talento...
Hoje, dia de Camões, é de
uma grande insensatez evocar não só a arte, mas, sobretudo, o engenho do
Poeta. Continuamos a fingir que lhe seguimos o ensinamento, enquanto
espezinhamos o talento num campo de Marte voltado para a foz do Douro...
(Kafka dirigindo-se a si
próprio)
«Estou mais indeciso do
que jamais estive, só sinto a violência da vida. E estou estupidamente vazio.» Diários,
19 de novembro de 1913
A violência da vida, a
indecisão, o vazio... o vazio, a indecisão, a violência da vida...
Definitivamente, a vida
está a mais! Mas há quanto tempo?
Mas será justo pensar
deste modo quando tantos jovens precisam de ajuda para desenvolverem os seus
talentos?
Se nos concentrarmos
nessa tarefa, não teremos tempo para nos ocuparmos da "loucura" de D.
Sebastião, o príncipe que o Poeta pretendia desesperadamente educar: «Tomai
conselho só d’experimentados, /Que viram largos anos, largos meses, /Que,
posto que em cientes muito cabe, / Mais em particular o
experto sabe.» X, 152.
8.6.06
«Ouvir, ouvimo-la, mas
agarrá-la é impossível - Ondaka, a palavra ou
a voz.» Provérbio umbundo
Ultimamente, o ruído tem
vindo a aumentar. Deixámos de procurar 'Ondaka'. Não parece sequer que a
consigamos ouvir, quanto mais prendê-la.
Querem, agora, que
a aprendamos maoisticamente, no pré-escolar e no
primeiro ciclo, em sessões de 60 minutos de revolução
cultural. Um robot lerá por nós estórias de encantar e
nós, religiosamente, escutaremos a maviosa voz que se anichará
definitivamente no nosso pequeno cérebro.
Naturalmente,
desenvolveremos a competência de escuta difusa - aquela em que a voz
robótica se deixa intersecionar pelos olhos azuis-verdes que nos fitam
do fundo de um galheteiro esquecido no canto da aranha...
(...)
Mais tarde,
aconselhar-nos-ão a procurar um psicólogo que nos explique por que motivo nos
recusamos a ler e, sobretudo, que nos ajude a vencer aquela dispersão que nos
impede de distinguir as vozes.
(...)
Enquanto o ruído continua
a aumentar, uma distante e irremediável voz ecoa em nós...
4.6.06
«Eu não sei se há país da
Europa, em que a criatura, que sobre o seu destino e o dos outros ousa meditar,
sofra tão miseravelmente a angústia de pregar no deserto (quando prega) ou a de
sentir que os outros falam outra língua (quando se cala e os ouve).» Jorge
de Sena, Meditações Sobre a Lei Seca.
Pensar a educação
em termos nacionais não é prioridade do Ministério da Educação.
A senhora ministra, talvez por influência do ministro da saúde, prefere gerir o
ministério como um hospital repleto de doentes e em que a maioria dos médicos
também se encontra doente. Por isso, para cada situação clínica, avança com um
diagnóstico, que pode ir do encerramento da unidade de saúde a uma sanção
pecuniária - em casos extremos, algum médico amigo mais saudável poderá receber
um bónus a definir... Mas o que lhe interessa, é assinar muitos contratos e
protocolos com as forças vivas locais e regionais, esperando
que essas forças sejam suficientemente sensatas,
honestas e desinteressadas, que ponham o interesse nacional acima do interesse
particular...
(Como é sabido, há
muito que essas forças minam o subsolo nacional,
deixando qualquer estrangeiro estupefacto face à impunidade reinante.
Em Portugal, a impunidade tornou-se um dado cultural. E não se
diga que vivemos no reino da estupidez ou num jardim inefável! Pobre Jorge de
Sena!)
Desde 1974 que na escola
portuguesa não há liderança porque o Estado não tem uma política educativa
clara. Prefere que cada escola faça a sua escolha, deixando que o critério
político, oportunista ou de simples caciquismo local ou regional se sobreponha à
execução de um projecto educativo nacional. E fá-lo hipocritamente,
porque esse laxismo lhe permite não pagar devidamente a quem deveria gerir as
escolas.
Sem mudança no
modelo de gestão das escolas, não é possível mudar o modelo
organizativo. A escola não pode continuar a depender da iniciativa de
indivíduos ou de grupos - do amiguismo -necessita de ser
pensada globalmente por um conselho de gestão executivo e pedagógico,
suficientemente ágil nas decisões, mas a quem possam ser imputadas
responsabilidades... E esse órgão deverá ser remunerado, de forma diferenciada,
como acontece em qualquer empresa pública ou privada.
Em fundo, ouço a senhora
ministra perorar prolixamente sobre aspectos pontuais. Não lhe ouço, no
entanto, qualquer palavra sobre um projecto educativo nacional. E
esse é o problema nº1 da educação: o país não sabe o que quer; prefere andar à
deriva, ao sabor dos impulsos dos assessores - especialistas (atomistas) que
nunca dão a cara e são pagos principescamente!
3.6.06
Querendo fundar uma nova
sociedade 'igualitária', os jovens decidem matar os chefes de linhagem - todos
os pais (símbolo: cabeça) e todos os tios (símbolo: perna). Passado pouco
tempo, e vendo-se perante um animal monstruoso sem cabeça e sem pernas, os
jovens decidem restaurar a autoridade dos velhos.
Na situação actual, nem
os jovens parecem querer matar os velhos, desde que estes lhes continuem a
alimentar os vícios, nem o animal acéfalo e perneta que nos governa parece
disposto a prescindir do seu trabalho..., mesmo que lhes reserve uma prateleira
supranumerária no disco rígido do ministério da rapina.
Os velhos são os novos
escravos do séc. XXI, irremediavelmente sujeitos ao contrato da mobilidade, e
totalmente anatemizados se procurarem viver para além dos 65 anos. Não podendo
ser suportados pela família que, entretanto, deixou de ser a célula matricial
da sociedade, é lhes pedido um esforço derradeiro: - Em nome dos futuros
pensionistas, devem continuar nos seus postos de trabalho até morrer!
Paradoxalmente, a maioria
dos futuros pensionistas - os jovens, pelo menos, até aos 35 anos de idade -
continua desempregada sem mostrar qualquer vontade de eliminar os chefes de
linhagem.
Muitos daqueles jovens
que entraram na vida activa em 1973-74-75, começaram por colocar a sua
juventude ao serviço de um Ideal 'igualitário', suportaram todas as
arbitrariedades de preclaras luminárias, para agora estas lhes dizerem: - Sois
um fardo que a nação só pode suportar se continuardes a trabalhar, de
preferência, até morrer.
Entretanto, os jovens de
hoje continuam uma vida virtual, comportando-se como os negreiros...
1.6.06
«Fazendo-me um
excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.» Álvaro
de Campos, Ode Triunfal
O Governo em geral (o
M.E., em particular) em vez de combater os factores que contribuem para o
insucesso do sistema educativo, decidiu encabeçar uma cruzada contra os
professores, responsabilizando-os pela insolvência do Estado. Quer, agora,
reduzir a massa salarial global despendida com os professores, aumentando
aqueles que se encontram no início de carreira (gesto hipócrita de quem não se
propõe contratar novos professores!) e aumentando, também, os quadros
superiores da Administração Pública ( o que esconde um efectivo
aumento das medíocres hostes partidárias que ocupam todos os lugares de relevo
- da Assembleia da República aos Ministérios, passando por todas as correias de
transmissão...). Quanto aos restantes professores, reformula-lhes as carreiras de
modo que progressão seja mais lenta, isto é, reservando os lugares do topo,
certamente mais bem remunerados, para aqueles que se disponham a servir, não o
Estado, mas os partidos (talvez, se pudesse, aqui, falar em castas!) que
controlam a vida política.
O que está em causa não é
a reforma da educação, não é a formação dos jovens de modo que se possam
integrar cedo na vida activa, contribuindo para o rejuvenescimento laboral, não
é ajudar os professores a alterarem os seus métodos de trabalho e, também, não
é, ao contrário do que se veicula através das televisões, dar mais intervenção
aos encarregados de educação na avaliação do trabalho realizado pelos
professores. O que se esconde é a decisão de distribuir a riqueza, nacional ou
europeia, por todos aqueles que zelosamente suportam o poder. É a partilha da
pimenta, do ouro, do açúcar, da borracha, dos diamantes, do petróleo, das
remessas dos emigrantes, dos fundos europeus, dos subsídios, dos impostos...
IVA, IRS, IRC...
É o salve-se quem puder
num país que nunca conseguiu, por si, equilibrar o deve e o haver, e que não
querendo (ou não podendo?) mudar de rumo, decide tudo fazer para desacreditar
os seus funcionários...
Um país sem alma!
(Delírio)
E não vale pena dizer que
vendemos a alma ao Diabo. Porque o Diabo é muito mais inteligente do que
aqueles que, despudoradamente, nos insultam e nos envergonham. É vê-los nos
estádios, nas praças, nas televisões... sempre a trabalhar pela nação!
O que vinha a calhar era
uma invasão estrangeira! Talvez os galheteiros fossem definitivamente
corridos...
Post scriptum: Não
sei se posso continuar por muito mais tempo contra-a-corrente. Já começo a
sentir-me excedentário!
30.5.06
Homens
que nunca tiveram escrúpulos...
«As grandes obras
constroem-se no silêncio, e a nossa época é barulhenta, terrivelmente
indiscreta. Hoje não se erguem catedrais, constroem-se estádios. Não se fazem
teatros, multiplicam-se os cinemas. Não se compõem obras, fazem-se livros. Não
se procuram ideias, procuram-se imagens.» Salazar, Extrato de
entrevista publicada no Diário de Notícias em 16 de outubro de 1938.
A multiplicação dos
estádios, dos cinemas, dos livros e das imagens provocou a substituição da
'vida interior' pelo vedetismo, pelo voyeurismo, pela bisbilhotice, pela
superficialidade. A morte da "alma" tornou-nos sobranceiros,
violentos, maledicentes, vesânicos e, sobretudo, fez-nos perder a integridade.
A sobranceria permite-nos
hostilizar grupos profissionais, étnicos e religiosos como se a decadência da
nação fosse culpa deles e não dos sucessivos carreiristas sem escrúpulos que
nos têm governado em nome de Abril.
Era bom que olhássemos
sistemicamente para o interior das instituições de modo a separar o trigo do
joio. Caso contrário, corremos o risco de sermos apenas um 'campo de joio'.
O joio alastra asfixiando
os poucos grãos de trigo que compõem, por entre os escolhos, obras
/ideias que, se lidas /ouvidas, bem nos poderiam ajudar neste
implacável tempo de sujeição do homem.
E se não aprendermos a
ser íntegros, os jovens responder-nos-ão com a violência, como aconteceu com
aqueles que eram jovens em 1975 e que hoje nos governam.
Post Scriptum: A
citação de Salazar é propositada. Ignorar o passado é hipotecar o futuro.
29.5.06
(Expressão clara e
revoltada)
Tenho 80 anos. Sou
retornada de Angola. Recebo 240 euros de reforma. Tomo conta de um filho que a
pátria sacrificou na guerra de Angola. Ele recebe 99 euros de pensão de
invalidez. Vive fechado em casa. Não fala com ninguém nem mesmo comigo, a não
ser para me dizer que não gosta deste ou daquele prato. Ainda ontem telefonei
para a minha filha, não me atendeu. Também telefonei para a minha neta, com o
mesmo resultado. Ninguém me ajuda. Há muito tempo que estou doente. A tomar
conta deste filho que a pátria sacrificou e esqueceu. Fui à segurança social
pedir ajuda, não quiseram saber. Voltei lá, disseram-me que como era dona de um
apartamento não me podiam ajudar. Um apartamento que paguei com o suor do meu
rosto e do meu marido, já falecido, há muito. Acabaram por me pedir os
ordenados de todos os meus filhos. Os meus filhos têm a vida deles. Nasceram em
Angola. Procuraram melhor vida na África do Sul. Não tiveram sorte. Partiram
para o Brasil, também não. Um deles sei que regressou a Angola. Não sei se já
tem emprego. Ele tem muitos filhos. Para que é que a segurança social quer os
ordenados deles? Como é que eu posso preencher os papéis, se não sei deles, se
eles não me respondem. O senhor presidente, que também serviu a pátria, eu sei,
está preocupado com a exclusão daqueles que se encontram nos lares, e eu,
senhor presidente, porque é que ninguém se preocupa comigo? Eu tenho 80 anos e
o meu filho não tem vida, senhor presidente. O que vai ser de nós? E,
sobretudo, dele? A segurança social não quer saber de nós! E o senhor
presidente?
(Noturno)
Deixo o carro no cimo do
monte, e avanço, a pé, pela vereda que há muito não percorro. Reparo que o
trilho está coberto de cartuchos de munições gastas em recentes caçadas. À
volta, ergue-se o mato cada vez mais denso. Percorridos 800 metros, sob um calor
de maio escaldante, apercebo-me que me encontro na outra extremidade da
propriedade que queria visitar. Contemplo-a e apetece-me voltar para trás: o
solo ressequido começa a abrir rachas, as figueiras e as oliveiras estão
cercadas por silvas asfixiantes. É quase impossível avançar. Penso no futuro
daquelas oliveiras, algumas com centenas de anos, e naquelas figueiras que, no
passado, tanto odiei - figueiras malditas. E vejo todo trabalho de gerações
anteriores à minha a arder!
E, hoje, não tive coragem
para me aproximar do poço que se encontra junto à ribeira, seca. Nem sequer o
vi, completamente escondido pela exuberante e predadora vegetação.
28.5.06
Já não sei se parta se
fique. Raramente estive na primeira linha e das poucas vezes que lá cheguei
compreendi o incómodo de lá estar
Sempre fui um cético a
quem exigiam certezas que eu não podia ofertar. Faltava-me conhecer a terra,
vivi demasiado tempo longe do mar Só tarde me dispus a voar - as aves já não
tinham onde pousar.
27.5.06
«O que faz suspeitar que
os pedagogos não gostam é dos autores que ficaram no programa, estão a querer
comprometê-los aos olhos dos putos e, na próxima reforma, catrapus, tudo dos
textos dos media. Para já, a lírica de Camões fica diluída em “aspectos gerais”
e “Os Lusíadas” passa a fazer galheteiro com a “Mensagem”, talvez para o Pessoa
ser o azeite que ajude a tornar o vinagre do Camões mais palatável, mais
actual.» Hélder Macedo, Público 28/09/2001
Tal como as coisas se
anunciam, os professores do ensino básico e secundário nem para galheteiros
servirão. O caminho mais fácil é fingir que se lê, que
se interpreta, que se questiona, que se redige, mas sem que os alunos se
confrontem com outras ideias - artistas, escritores,
filósofos, cientistas ... para quê? - aquelas ideias que poderiam pôr em causa
os interesses instalados.
Nada melhor que o inquérito para
elevar o sucesso escolar! Pergunta-se aos encarregados de educação se estão
satisfeitos com os professores dos seus educandos. E eles responderão de acordo
com as classificações atribuídas...
Apesar do estrebuchar
de uns tantos, qual será a reação dos professores? (Belíssima
catáfora!!!) Lecionar e classificar como, há muito, acontece no ensino
privado: aplica-se-lhes a cartilha e sobe-se-lhes as classificações.
1º objectivo: nivelar por
baixo.
2º objectivo: criar
falsas elites.
3º objectivo:
desmobilizar todos aqueles que sempre recusaram o carreirismo.
4º objectivo: ...
No entanto, não se
compreende que as luminárias - entenda-se: pessoas de
grande saber - que nos governam ainda não tenham perguntado aos (seus) alunos
do ensino superior se estão satisfeitos com os respectivos professores. Se
esses alunos conhecem, de facto, os professores, se costumam ter aulas e,
quantas, por semestre. Se têm a certeza que esses professores lêem os
trabalhos, na maioria copiados, as provas de frequência, as provas de exame...
Se os professores os conhecem?
(À parte)
Qualquer aluno do ensino,
dito, superior poderá responder: a maioria das luminárias continua
a papaguear conteúdos mal assimilados enquanto vai redigindo dissertações e
teses, numa língua de trapos, que serão aprovadas por catedráticos infalíveis e
inamovíveis.
E esse é um dos
principais problemas do ensino superior: a infalibilidade e a inamovibilidade
dos catedráticos, agregados, extraordinários, auxiliares (vitalícios!),
assistentes... conselheiros, adidos, deputados, presidentes de ...,
jornalistas, esposas de...
(De regresso)
Estarão as luminárias dispostas
a resolver os problemas que lhes chegam às mãos: alunos que não sabem
interpretar um enunciado, fazer um cálculo, traçar uma reta... ou, para não
perder alunos, e consequentemente o lugar, continuarão a
mentir-lhes... a eles, a nós todos. E a culpar os professores do ensino básico
e secundário, com a cumplicidade dos encarregados de educação...
Mas de que
educação?
Numa escola, onde não há
lugar para a formação no terreno, onde objetivamente não há formadores, não é
possível responsabilizar qualquer decisor. Por isso castiguem-se os
galheteiros!
Paradoxalmente, a figura
do galheteiro começa a tornar-se no logótipo do ME: Tal como Fernando Pessoa
acolita Camões também os exames acolitarão os encarregados de educação (isto é,
as associações de pais).
PS, isto é, Post
scriptum: Substituamos a desacreditada caça aos gambozinos pela caça aos pares
de galhetas!
26.5.06
«Se o meu filho
fosse vivo (...) havia de lhe ensinar a mentir, a cuidar mais do fato que da
consciência e da bolsa que da alma.» Matilde, in Felizmente Há Luar! de
Luís Sttau Monteiro
Estão diante de mim,
risonhos, alinhados em conversas privadas. Sorriem-me, acenam-me com a cabeça
e, despreocupados, ouvem-me repetir e exemplificar o que são aliterações,
assonâncias, catáforas, anáforas (linguísticas com sabor palimpséstico!),
pleonasmos e outras redundâncias (in)finitas...
Perante a fastidiosa
iteração, interrompem-me para me perguntar se não ficava bem rirmo-nos um pouco
dos eufemismos e eu corrijo-os porque o disfemismo é
que é a expressão favorita dos 'alarves' que todas as noites vão ao teatro ou
ao cinema «fingir nada terem a ver com o que se passa em cena».
(Uns minutos mais
tarde...)
Esforçadamente, um
aluno lê um monólogo sobre como educar numa
sociedade que valoriza a aparência, o dinheiro, a mentira, enquanto
outros simulam uma leitura risível, alarve do que se passa em cena,
dentro e fora da sala de aula...
(Toca a campainha:
sorrateiramente, abandonamos o palco... para acordar na parada do Rock In
Rio-Lisboa ou no Parque Tejo com o Super Bock Super Rock)
Post Scriptum: Já
sei como explicar a neologia... basta dar-lhes a palavra no nosso
próximo encontro... e ficar a ouvi-los, a ouvi-los... e então descobrirei uma
nova realidade ou, pelo menos, que as palavras existentes adquiriram
significados novos neste fim-de-semana!
25.5.06
Ó
Terra, a arte está tão perto e eles já o sabem...
«E a primeira cousa
que se punha aos amigos na mesa era o sal; costume que ainda agora se usa,
posto que se não saiba, em muitas partes, a razão dele, nem a porque se enojam
e enfadam os hóspedes de se derramar o sal pola mesa...» Francisco
Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, 1619
Embora a Caruma seja
pouco dada a celebrações e deteste o vedetismo, não pode deixar de assinalar o
significado da iniciativa II Concurso Literário Camões 2005/2006,
cujos prémios, nas modalidades poesia e conto,
foram, hoje, entregues no Auditório Camões. Este tipo de
iniciativa mostra que se deve apostar numa escola participativa, onde
os alunos surjam como sujeitos capazes de escrever, compor, ler, representar,
partilhar, assistir...respeitar os outros. E, hoje, foi possível testemunhar
essa nova dinâmica de participação, mesmo que possa parecer incipiente. Esse
é o caminho... é o sal da terra!
É, no entanto,
fundamental que não se enojem nem se enfadem estes novos hóspedes derramando o
sal pela mesa!
24.5.06
Escrever
é um registo maçónico...
Saramago coloca-se,
com Memorial do Convento, na rampa iniciática do Grande
Arquiteto maçónico, que com o esquadro e o compasso determina a estrutura e os
limites do céu e da terra. No entanto, o seu convento não é o convento de D.
João V, apesar de ‘João’ ser o nome próprio dos santos padroeiros da maçonaria
(S. João Baptista e S. João Evangelista). Santos esses que Saramago poderia ter
associado ao deus Jano Bifronte, que tinha a faculdade de ver o passado e o
futuro. Porém, o projecto de Saramago era o oposto: mostrar a cegueira do
rei ao mandar erigir o convento. O convento é fruto do sonho megalómano de
um rei que gostaria de ser o Grande Arquiteto e de um vicioso sonho da
província franciscana. D. João V continua, ainda hoje, a construir
infantilmente o puzzle da Basílica de S. Pedro de Roma enquanto os franciscanos
jamais poderão dar uso às 300 celas que lhes foram destinadas! Para Saramago, a
Basílica não se projeta para os céus. O que lhe interessa são as fundações – o
que acontece na terra dos homens que, forçados, se veem envolvidos num projecto
em que não se reveem. Mas, na outra frente (janela)
da obra, encontramos os "franc–maçons" que, de facto, se projetam
para os limites do céu: Sebastiana Maria de Jesus, António José da Silva,
Domenico Scarlatti, Blimunda (Sete-Luas), Baltasar Mateus (Sete-Sóis), o padre
Bartolomeu Lourenço ( o arquiteto-voador). Em qualquer
destas figuras, notamos, e de acordo com as suas competências, uma visão
niveladora, um gesto criativo, uma vidência letal e regeneradora, um braço
fautor de morte e de vida, um espírito torturado e inventivo. A ambição de
Saramago é um construir um memorial em cuja pedra se
materializem todas as incoerências dos grandes e todos os sonhos dos
pequenos. Ele quer ser a voz dos esquecidos,
dos perseguidos, dos desterrados, dos executados em todos os autos-de-fé. O
Grande Arquiteto.
23.5.06
Filha da noite e
irmã do sono - és tão discreta que se pode dizer que não estamos à
tua espera. A ti, qualquer dia te serve. Nós preferíamos um outro olhar menos
discreto... O olhar líquido dos nenúfares.
22.5.06
Há
algo de errado em Al-Kassar!
«Era o ano no mês
de Abril, quando enflorescem as árvores, e as aves, que até então estiveram
caladas, começam d'andar fazendo suas querelas doutro ano por entre o arvoredo
deste vale, que bem podeis ver quejando seria então, pois agora o é tanto.»
Bernardim Ribeiro, Menina
e Moça
Embora não tivesse visto,
em Al-Kassar, qualquer sombra dos salacianos Bernardim Ribeiro e Pedro Nunes -
certamente porque não me esforcei o suficiente! - continuo a pensar que há algo
de errado por estas paragens outrora tão interessantes para romanos, árabes e
cristãos. A água abundante dos rios Sobrena, Sado, Xarrama e das ribeiras do
Areão, Algalé, da Ursa e de S. Domingos deveria atrair mais dos que os cerca de
13 800 habitantes que povoam o concelho de Alcácer do Sal.
Não me parece que o clima
mediterrânico possa ser responsabilizado por uma certa atmosfera de incúria: a
vegetação já ressequida, em Maio, invade a cidade, tal como o lixo, parecendo
anunciar uma próxima abertura de telejornal - Sem se compreender bem, o fogo
grassa na cidade de Alcácer, não poupando sequer as moradias...
Ironicamente, o terreno,
destinado às futuras instalações dos bombeiros, poderá muito bem ser o
rastilho, tal o estado de abandono em que se encontra.
Mas Alcácer é apenas um
mau exemplo entre milhares, num país, onde os governadores raramente deixam o
ar condicionado dos seus torrões... e continuam, impunemente, na praça pública,
a agitar milhões de euros para o combate aos incêndios que eles próprios
ateiam...
21.5.06
Bucólica localidade, onde
múltiplos pequenos pássaros saltitam e chilreiam agradavelmente. As cegonhas
brancas estão presentes um pouco por toda a parte e, nesta fase do ano, já
terão começado a alimentar os juvenis, o que explica que, quando nos
aproximamos, elas emitam um estranho e seco som de alerta...
Esta vida campestre,
onde, hoje, ecoam os badalos dos rebanhos, é cingida por um extenso mosaico de
águas rasteiras, que esperam o cultivo da oriza sativa (variedade
de arroz oriundo da Ásia) ... ou, em alternativa, a salinação.
A cidade de Alcácer, um
pouco esquecida do passado, transformou a fortaleza numa pousada e,
presentemente, expande-se para a Nova Alcácer num estilo novo-rico, descurando
a possibilidade de se transformar num extraordinário miradouro sobre o Sado.
Apesar disso, há nela uma
nítida preocupação com os equipamentos sociais, mas tudo num ordenamento bem
desordenado.
No entanto, vale a pena
visitar a bela igreja de Santiago, rica em azulejos com motivos locais, e
algumas das capelas laterais ricamente decoradas. Este edifício foi inaugurado
em 1746, no reinado do magnânimo D. João V. E também por aqui há um Convento de
S. Francisco!
Em Maio, ficamos com a
sensação de que a qualquer momento tudo pode mudar ... tal como na
Carrasqueira, a cerca de 20 km de Alcácer do Sal. Fica a sensação de que nesta
altura do ano, ainda tudo está por acontecer... embora este fim-de-semana tenha
sido bem agradável no renovado parque de campismo... sem residentes e
procurado, sobretudo, por ingleses e holandeses. Quem diria?
19.5.06
Floriram por
engano as rosas bravas
No Inverno: veio o
vento desfolhá-las...
Camilo Pessanha
Mágoa mitigada
As rosadas pétalas
murcham diante dos meus olhos; não esperam nem pela calma do Estio nem pelas
chuvas do Inverno. Têm pressa de viver: inquietas, riem muito, trocam olhares
furtivos, fingem preocupações; mas lá no âmago esperam ansiosamente que o
gongue se faça ouvir ... para suavemente juncarem o solo da alheia caminhada.
E esta pressa de
florescer não lhes deixa tempo para aprender!
18.5.06
O eterno problema da
fronteira
Levámos três séculos a
construir a fronteira continental.
Levámos outro século a
expandi-la.
Ficámos três séculos e
meio a defender a nova fronteira. A cada investida do castelhano, do muçulmano,
do otomano, do holandês, do francês, do belga, do alemão, do italiano, do
inglês, do russo, do chinês, do americano, do indonésio, retraiu-se a
fronteira...
Sacrificámos fazenda,
homens, mulheres e crianças e, em nome da divina fronteira ou da fronteira
divina, chacinámos outros homens, outras mulheres, outras crianças...
E regressámos ao torrão
natal como se nada se tivesse passado... a nossa nova fronteira fora
sacrificada em nome da emancipação dos povos, do direito que todos os povos
reivindicam de ter o seu torrão original.
Hoje, para deixar que o
tempo continue a fluir, fazemos parte da nova fronteira europeia... deixámos de
ser o rosto que fitava o atlântico e passámos a ser uma cloaca
transfronteiriça, à nossa maneira, temperada de lusofonia...
Defendemos acerrimamente
o castelo sem castelão, a paróquia sem pároco, o hospital sem médico nem
utente, a câmara sem munícipes, a escola sem estudantes, a caserna sem
soldados... e estamos dispostos a não arredar pé em nome da nossa última
fronteira... afinal, aquela que nunca conseguimos fixar.
E porquê? Porque nos
falta o sentido das proporções - Gigantes ou anões...
17.5.06
-
Pode ser a sombra de um fulgor!
Palavras afogueadas
regressam quebradas de estupor Múrmuras ecoam prantos de dor Cansadas as
palavras anoitecem à espera de um rumor - Pode ser a sombra de um fulgor!
15.5.06
Estaremos,
de facto, a digitar?
Às nove horas, em
Miraflores: a classe média, mansamente sentada, espera o momento redentor da
análise... e eu, com a cabeça num tinteiro HP21, procuro-o numa rua, onde o
lojista há muito desistiu de o vender.
Às 10 horas, no Colombo:
encontro o desejado tinteiro, mas fico preso na caixa... uma expedita
funcionária telefonava para um lugar aonde outro expedito funcionário deveria
ter chegado.
Às 12:30, nos CTT de
Torres Novas: 22 outras pessoas esperam pacientemente à minha frente, para
pagar as contas da água, da luz e, sobretudo, para receber a pensão.
Lentamente, olham para os relógios e para os rostos sombrios dos vizinhos, na
expectativa de que falte alguém.
Às 13:30, nos CTT de
Torres Novas: sou atendido.
Um acto simples: Para
reencaminhar o correio, bastou preencher um impresso, no balcão ao lado,
apresentar uma certidão de óbito de um obstinado mensageiro, mostrar uma
procuração de..., ouvir a funcionária perguntar se não havia, de facto, alguém
que passasse a levantar o correio porque «só os próprios é que poderiam
reencaminhar o correio», refutar os argumentos aduzidos; fotocopiar numa secção
interior os documentos carreados para um hipotético processo; digitar os dados
que eu acabara de registar manualmente no impresso, passar um cheque de 67,20 €
- nos CTT não há multibanco!-, esperar que simpaticamente a funcionária me
devolvesse uma cópia do meu impresso e digitasse demoradamente um recibo...
Sorrir de agradecimento e sair às 14:15 da estação dos CTT de Torres Novas...
Às 15:00, no Lar: Uns
parecem não saber o que estão ali a fazer; outros não sabem explicar aquele
braço inchado, aqueles dedos pisados... aconteceu de manhã, talvez às 9:00, num
turno de que já não há memória... fico ali até às 16:00, à procura de palavras
que me permitam uma aproximação a um tempo «felizmente bem diferente deste,
onde não havia esta degradação». Infelizmente, não as encontro e saio, mais uma
vez, a pensar que, ali, as palavras estão a mais...
Às 19:00, em casa: o
tinteiro HP21 lembra-me que me falta reservar lugar em 2 companhias aéreas que
permitam à S. viajar entre o Porto e Budapeste, fazendo escala em 2 aeroportos
londrinos, em cerca de 12 horas.
Em menos de 30 minutos,
as reservas estavam feitas, digitando apenas...
14.5.06
E
talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!
Sérgio Tréfaut, nascido
em 1965, no Brasil, filho de pai português e de mãe francesa, realizou em
Portugal um documentário que deveria ser objecto de estudo nas escolas
portuguesas - LISBOETAS, 2004.
Este documentário mostra
a vaga de imigrantes que chega a Lisboa e arredores em finais do séc. XX e no
início do século XXI. Oriundos da Rússia, da Ucrânia, da Moldávia, da Roménia,
do Brasil, de Angola, da Nigéria..., estes imigrantes rapidamente descobrem - felizmente
o realizador dá-lhes voz! - a pequenez do país: construtores civis sem
escrúpulos, serviços de imigração, onde a hipocrisia e a burocracia rivalizam;
olhares xenófobos e concupiscentes; um sistema educativo completamente
desfasado da vida activa...
Só a entreajuda lhes
permite suprir as múltiplas dificuldades resultantes da clandestinidade a que
se veem forçados, apesar do país necessitar deles como de pão para a boca...
Antigo país de
escravistas, que gerou no século XX mais de um milhão de incultos e pobres
emigrantes, Portugal trata, agora, estes imigrantes (claramente mais
instruídos) como os novos escravos de que perdera o rasto, primeiro no Brasil
e, posteriormente em África.
O documentário LISBOETAS mostra-nos
uma Lisboa desconhecida que acabará por emergir a nossos olhos da pior maneira,
caso não se aposte numa política de integração. A não ser que eles,
simplesmente, partam cansados da nossa arrogância, do nosso chauvinismo... os
que ficarem acabarão por soçobrar em fundamentalismos espúrios, em
delinquências noctívagas, caindo nós e eles naquele abismo de peçonha a
que Sá de Miranda se referia já no séc. XVI:
«Entrou, dias há,
peçonha / clara pelos nossos portos, /sem que remédio se ponha:/ uns dormentes,
outros mortos, / alguém pelas ruas sonha. /
Não sei se Sérgio Tréfaut
conhece Sá de Miranda, sei, no entanto, que este cáustico documentário me
faz sonhar que, apesar de tudo, e com o contributo
destes novos imigrantes, poderemos modificar esta enfadonha e miseranda
realidade. E talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!
13.5.06
Para
além da querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura...
«Toda a experiência
humana é suscetível de ser transfigurada, vivida num outro plano transumano.»
Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, A Essência das Religiões
Se Mircea Eliade se visse
confrontado com um grupo de jovens com um difuso conhecimento da essência da
religião e como uma visão exacerbada (ou inibida) da sexualidade, como é que
abordaria o modo como, por exemplo, José Saramago descreve o misticismo das
múltiplas monjas que passaram (e passam) a vida, enclausuradas num qualquer
convento?
Tendo como axioma que as
monjas o são (ou o foram) por imposição exterior à sua vontade, Saramago não se
furta, ao descrever a esperada relação com o sagrado (no caso, Jesus Cristo), apresentá-las
como protagonistas de uma sexualidade grotesca disfarçada de misticismo:
«atormentam-na diabos,
sacudindo-lhe a cama, e lhe abalando os membros, os superiores em modo de lhe
agitarem os seios, os inferiores tanto que freme e transpira a fenda que no
corpo há, janela do inferno, se não porta do céu, esta por estar gozando,
aquela porque gozou...» Memorial do Convento.
E este tema não é
fortuito na obra, se lembrarmos a natureza dissoluta de D. João V, a presença
cupidinosa e sádica do infante D. Francisco, o falso angelismo de D. Maria Ana,
o profusamente repetido sadomasoquismo das procissões, das touradas e dos
autos-de-fé. Tudo parece reduzir-se a uma sexualidade que, proibida pela Igreja
inquisitorial, alastra das alcovas reais aos conventos, invade as ruas para
confluir num mar de decadência irreversível.
Num país de trevas, sem
futuro, há, porém, uma esperança abençoada por um iluminado e
sonhador - O Padre Bartolomeu Lourenço: Blimunda (de Jesus!) e Baltasar
(Mateus?) - «este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não
sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu,
a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele.» Memorial do Convento
Compreende-se que o autor
queira ajustar contas com padrões culturais que são objetivamente responsáveis
pela humana predação, mas, no contexto actual, que efeitos poderá ter no jovem
leitor a abordagem de uma obra como Memorial do Convento? E se os jovens
seguirem o caminho da esperança pregado por José
Saramago?
À primeira vista,
Baltasar e Blimunda (sem esquecer o Padre Voador) parecem protagonistas de uma
experiência humana transfigurada. Mas sê-lo-ão, de facto?
Terá algum dia, o ME refletido
sobre os textos que moldam a educação em Portugal? A resposta está para além da
querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura.
11.5.06
«O racionalista
genuíno não pensa que ele, ou outra pessoa qualquer, está de posse da verdade;
nem pensa que a simples crítica como tal ajuda a chegar a novas ideias.» Karl
Popper, Sobre a Liberdade, 1958
Popper não conhecia esta
nossa enfadonha realidade em que qualquer pessoa, independentemente da idade ou
do saber, se pronuncia com o maior à-vontade sobre qualquer obra, sobre
qualquer acção, sobre qualquer projecto.
Por exemplo, é comum dizer:
“Saramago não sabe escrever.» «Quem lhe atribuiu o Nobel não sabe nada de
Literatura». Ao mesmo tempo que não se percebe que qualquer texto narrativo,
descritivo, opinativo... obedece a uma regra simples: introdução;
desenvolvimento e conclusão. Pelo menos três parágrafos! E não consta que
Saramago infrinja este princípio.
Se os parágrafos são
longos, se as vírgulas têm o valor de travessões, se a maiúscula pode
introduzir o discurso directo é porque as situações são apresentadas recorrendo
a uma técnica cinematográfica, a única, até ao momento, capaz de relatar a
simultaneidade das situações, acções, das intervenções verbais dos
protagonistas e mesmo do vedetismo interventivo, isto é, dos empastelamentos
que voluntaria ou involuntariamente caracterizam a acção verbal e gestual
humana.
É essa representação
da complexidade que atravessa o discurso -e, consequentemente,
a gramática - de Saramago. Por mais que se explique que a
gramática é um conjunto de normas que regem uma língua e que numa língua se
podem inscrever múltiplas sublínguas que com ela interagem e, que,
inevitavelmente, numa gramática da língua (portuguesa, por exemplo), se podem
inscrever outras gramáticas, geradas por todos aqueles que alicerçam a
instituição Literatura, parece que a linearidade mental nos impede de
compreender a complexidade do mundo que habitamos.
E por isso o caminho que
continuamos a percorrer é o da superficialidade, do reducionismo, do chiste e,
de per si, da arrogância inquisitorial que nos permite aniquilar o talento em
nome de uma qualquer verdade.
9.5.06
Hoje quase que poderia
dizer que foi um dia sem história, não fosse ter-me cruzado com a estátua de D.
Afonso Henriques já depois de me ter deslocado ao Hospital Rainha Santa Isabel,
em Torres Novas.
Esta falta de
consideração pelo regimento régio, outrora severamente punida - pois quem se
atreveria a colocar Isabel antes de Afonso, mesmo que santa? - deve ter sido
responsável pela informação prestada pelo serviço de atendimento de que o
Senhor Doutor C., «por motivos imprevistos», deixara de dar consulta de
neurologia no referido hospital. E que, certamente, os CTT se teriam atrasado a
dar-me a infausta notícia.
Perante a exclamação da
funcionária, fiquei um pouco surpreendido: - «Já ontem não apareceu qualquer
doente!» Surpreendido? Só um pouco! pois a data da consulta anterior também
fora alterada. E durante a consulta, o doutor fizera-me um cerrado questionário
sobre os efeitos psicossomáticos de uma punção lombar.
De facto, devo sofrer de
algum distúrbio neurológico: Como é que é possível que eu não tenha ordenado os
acontecimentos e tirado a conclusão adequada?
Os Serviços hospitalares
no dia 17 de Abril terão redigido a nota que explicava que o Senhor Doutor C
dispensava hereticamente as rosas da rainha santa; de imediato, os CTT
prontificaram-se a entregar-me os espinhos; os outros doentes avisados já não
compareceram na 2ª feira, dia 8 de Maio (mês dos maios e das maias!), e eu,
ali, com aquela senhora numa cadeira de rodas! atrevia-me a comparecer, à hora
marcada, para uma consulta que todos sabiam, menos eu, que fora definitivamente
adiada.
Por um segundo, vi
erguer-se a espada de D. Afonso Henriques naquele horto de rosas...
8.5.06
Bem
sei que a caruma se acama ou combusta facilmente...
(Se os predicados
parecerem insólitos, asseguro que isso é fruto do pouco uso! Absolvidos os
predicados, regressemos às coisas difíceis.)
Bem sei que a caruma se
acama ou combusta facilmente e, por isso, não se lhe pode exigir que cultive a
memória. Mas nem mesmo assim me conformo que não haja uma efectiva aposta no
estudo da História dos séculos XIX e XX.
Perante o quadro de
Francisco Goya que retrata os desmandos dos exércitos napoleónicos, os alunos
do ensino secundário empastelam russos, pides, judeus, nazis, jesuítas,
familiares-do-santo-ofício e até cenas de filmes belicistas a-não-ver.
Felizmente, são quase
todos contra a guerra, embora desconfiem que sem ela o mundo não avançaria.
E por isso, numa primeira
oportunidade, estão prontos a mudar de campo, pois como bem sabemos todo
o burro come palha, a questão é saber dar-lha.
7.5.06
Finalmente pude ver a
exposição "Frida Kahlo 1907 - 1954" no Centro Cultural de Belém. E
digo, finalmente, porque procurei a exposição ainda antes da sua inauguração,
motivado pelo cartaz que reproduzia o quadro "Coluna Partida", de 1944.
Ignoradas as circunstâncias da sua produção, este quadro parece emergir de um
delírio de Dalí. Mas não, ele enraíza-se num autodomínio ímpar perante as
contrariedades da vida, sobretudo, as constantes limitações de ordem física.
Expõe a altivez da consciência perante a fragilidade do corpo, de tal modo que
o autorretrato se transforma num meio capaz de capturar aquela parte que de si
parece afastar-se, deixando-nos ver a tortura da imobilização, o cansaço e a
dor... a dor de si.
E quando deixa de olhar
para essa dor de si, vê, em si e naqueles que lhe estão próximos, formas e
cores que nos deixam antever um México nativo, onde a vida e a morte se
encontram genuinamente ligadas. Onde o culto dos mortos é uma forma de vida,
bem diferente da encenação espanhola da morte, inventada pela Contra Reforma.
Na arte de Frida, a máscara não
esconde, não finge... a máscara que colocamos quando já não há nada a ocultar,
a máscara chora.
6.5.06
A oportunidade de ver, na
Cinemateca, o filme Une Femme est une Femme, de Jean-Luc
Godard, realizado em 1961 e, apenas, estreado em Portugal a 18 de Novembro de
1975, no desaparecido cinema Estúdio, trouxe-me à memória um conjunto de dados
que, aparentemente, nada têm a ver com o referido filme.
Em 1961, começava a
frequentar a escola primária e esse início ficou, de imediato, marcado pelo
falecimento do professor JL. Da sua presença, resta a ideia de que se tratava
de um homem enorme, extremamente severo, que não abdicava do castigo físico
para impor a lei da pátria. Um homem temido pelos alunos e reverenciado pelos
pais. O professor tinha sempre razão! Tal como o grande timoneiro, o Dr.
Oliveira Salazar.
Muito longe dali, na
madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de patriotas angolanos atacara a
prisão de S. Paulo, o aquartelamento da Companhia Móvel da PSP e a Casa de
Reclusão Militar. Os revoltosos perderam 40 elementos e as forças da ordem, sete.
Os sobreviventes refugiaram-se nas matas do Norte e Nordeste de Angola. Durante
os funerais, colonos brancos em fúria massacraram centenas de negros.
Entretanto, a 15 e 16 de Fevereiro de 1961, grupos de camponeses bakongos,
enquadrados pela UPA, atacaram postos administrativos, vias de comunicação,
povoações e sanzalas, mutilando e matando homens, mulheres e crianças europeus,
assim como assimilados negros ou mulatos, considerados agentes dos portugueses.
A resposta portuguesa foi rápida e brutal e não se limitou à região dos ataques
rebeldes. Foram à pressa formadas e armadas milícias brancas. O reino do terror
instalou-se.
Em consequência destes
acontecimentos, Salazar remodelou o Governo, chamando para as pastas do
Ultramar e dos Estrangeiros, Adriano Moreira e Franco Nogueira, e dando início
à guerra do Ultramar como resposta ...
Só muito mais tarde,
compreendi que o ano de 1961 - o ano em que entrara na escola primária - fora
um ano determinante quanto ao futuro de Portugal e das suas colónias - as
províncias ultramarinas - merónimas da gloriosa pátria portuguesa.
E também muito mais
tarde, Pepetela (em A Geração da Utopia) ajudou-me a
compreender que as mulheres de Lisboa, em 1961, vestiam de negro, com
um lenço negro na cabeça. Não se sabia se vinham dum enterro ou do
campo. Se traziam luto por familiares mortos em Angola, com o levantamento
do Norte...
Em 1961, quando o luto (o
negro) se abate sobre Portugal, Jean Luc Godard realiza o seu primeiro filme a
cores - Une Femme est une Femme. E hoje, ao vê-lo, percebi
melhor os motivos do atraso em que nos encontramos. E talvez tenha, também,
percebido a razão da desmemória que me afecta: o filme produzido em 1961, só
foi visto em Portugal em 1975 - a diversidade chegara...
Mas será que ainda vamos
a tempo de realizar o filme: Portugal é Portugal? Mesmo que seja um Portugal
tão gracioso e ingénuo como a Ângela Recamier!
PS: Este filme não deve
ser confundido com o do realizador Scolari!
5.5.06
Raras
e difíceis coisas dignas de atenção
«Omnia praeclara tam
difficilia quam rara sunt.» Espinosa, Ética (Todas as coisas dignas de
atenção são tão difíceis quanto raras.)
Se todas as coisas nos
merecessem a mesma atenção, o que é que aconteceria à nossa memória?
Provavelmente, incapazes de tratar toda a informação, entraríamos em colapso.
Deixaríamos de ordenar os dados, de os procurar interpretar, de os valorizar.
E finalmente, entraríamos numa deriva nihilista interminável.
E se... se... a hipótese
acabada de colocar já for realidade, então teremos perdido a capacidade de nos
ocupar das coisas dignas de atenção - as raras e difíceis coisas!
Teremos perdido a
capacidade de motivar os outros para essas raras e difíceis coisas dignas de
atenção!
E por isso na próxima
terça-feira, os meus alunos poderão finalmente perceber que, - tal como muitos
já suspeitam - afinal, não há coisas dignas de atenção... pois um outro
professor me substituirá com igual (superior!?) proveito, desde que lhe tenha
deixado a aula planificada...
Espero, no entanto, que
nenhum aluno leia esta observação. Caso isso aconteça, esclareço que a
terça-feira, não é a próxima, mas, sim, uma qualquer terça-feira de 2007.
Apesar de tudo, sobra uma
dúvida razoável: Se as coisas dignas de atenção são raras e difíceis, ainda
haverá alguém para quem a dificuldade seja um estímulo?
4.5.06
A língua portuguesa, por
vezes, é traiçoeira e pode gerar equívocos. Por isso, há dias procurei explicar
a disponibilidade da caruma.... E para quem, ainda, não entenda a
razão de ser deste blog, quero dizer-lhe que ele tem para mim uma enorme
importância, porque obriga-me a registar, ainda que, por vezes, ficcionalmente,
ocorrências (ideias!?) que, doutro modo, esqueceria de todo. Sempre tive
dificuldade em memorizar rostos, situações, conversas, histórias (estórias). E
porque ao longo dos anos tive de lidar com mil e uma pessoas, em contextos
diversos, sinto cada vez mais pena de não ter um registo sistemático... E sei
que frequentemente caio em situações ridículas, pois, quando abordado por
vizinhos, colegas, alunos, familiares, por vezes, não os consigo identificar...
Como quando nasci não
vinha preparado para este bulício, tive de queimar muitas etapas, digo agulhas,
e a minha esforçada memória, que nunca aprendeu corretamente os mecanismos da
articulação frásica, passou a utilizar obscuros critérios arquivísticos...
Nesta nova etapa, a escrita de um blog permite-me atrasar esse processo
irremediável de desmemória... Eu bem sei que há neurologistas e afins, mas
enquanto os puder adiar e, ao mesmo tempo, atrasar o caminho para o mar do
absoluto esquecimento, seguirei por essa vereda...
3.5.06
«Enfim nestes cansados
pensamentos,
Passo esta vida vã que
sempre dura.»
Camões
Há dias em que,
obliquamente, o desassossego alastra: as máquinas continuam no subsolo a
molestar os cérebros imaturos. Impunes! Inexoráveis!...As máquinas?
E as incertezas
avolumam-se, não no horizonte pessoano, mas, aqui, na soleira da porta, na
valeta do caminho...
As agulhas acastelam-se
em penumbra antecipada...
Todavia, ali, na Rua
Tomás Ribeiro - o célebre autor do obliterado D. Jaime ou a Dominação
de Castela (1862) -, encontro três jovens, que ignoram quem foi Tomás
Ribeiro, e indiferentes à invasão espanhola que as sitia, me perguntam se
podemos considerar os nomes próprios como deícticos.
E eu, compensando uma
manhã de desânimo, respondi-lhes que sim, que os nomes próprios são
indicadores, nos situam, individualizam, expressam o tipo de relação que
mantemos com o Outro, quando lhe sabemos o nome próprio...
E Tomás Ribeiro, Fontes
Pereira de Melo, José Fontana, Ventura Terra, Luís de Camões... a que tipo de
deícticos corresponderão?
Aquelas três jovens,
porém, estavam pragmaticamente preocupadas em saber se ALMA era ou não um
deíctico?
E as agulhas deslocam-se
indecisamente...
1.5.06
Ao contrário do que
parece, a caruma não se oferece nem se vende. Pode ser passenta, a uma escala
que nada tem a ver com o tempo de cada ser humano; nem sempre é rasteira; pode ficar
suspensa, numa antecipação da queda germinal.
A disponibilidade opõe-se
ao fastio, ao tédio, ao preconceito, à opinião; procura sentir hiponimicamente
como faziam Almeida Garrett, Cesário Verde, Teixeira de Pascoaes, Alberto
Caeiro, Sebastião da Gama, Jorge Barbosa...
A alteridade
interessa-lhe porque pode ser uma fonte inesgotável de aprendizagem e,
consequentemente de plenitude. Freud e Maquiavel eram reducionistas: defendiam
que a plenitude se atingia através da posse, do domínio do outro. E baseavam-se
na conquista ou no fracasso para explicar a historicidade do sujeito.
Esta caruma não está à
espera nem lhe interessa ser utilizada, mesmo que isso aconteça a cada momento;
não lhe interessa o poder de Freud ou de Maquiavel. O que procura é a incerta
reintegração cósmica!
No entanto, essa
reintegração, apesar da disponibilidade, parece bem longínqua como o reconhece
o poeta da cabo-verdiana Claridade, Jorge Barbosa:
«Passei um momento no
caminho que as flores enchiam de aromas,
que as árvores enchiam de
sombra.
E o chão era fofo por
causa das folhas caídas.
Mas o perfume não era
para mim, nem a frescura da ramagem
Nem para os meus pés o
tapete que as folhas deixavam.
Porque o meu caminho é um
outro, mais duro e mais longo.»
E para trás ficou,
entretanto, o mosteiro (a Arrábida) com o seu inconfundível altar no Outão, um
altar de cimento. Curiosamente, «outão» pode significar «parte lateral de um
edifício» ou «vento que vem do alto mar». Qualquer um dos significados convém, pois,
a Secil Outão produz anualmente mais de 2.000.000 toneladas de cimento cinzento
que escoa por terra e por mar, já que também dispõe três cais acostáveis,
dotados de meios autónomos de carga e descarga simultâneas.
E a esta hora, a própria
caruma se interroga sobre o tipo de relação possível entre o altar da Arrábida
e a ara da Secil Outão.
A interrogação é uma das
expressões da disponibilidade. Abre. Enquanto a resposta enclausura.
30.4.06
«A Reserva Natural
do Estuário do Sado é constituída por uma sucessão de água de rio e de água de
mar, bancos de areia e de vasa, praias, dunas e sapais. Esta constitui um
ecossistema rico e produtivo ao qual se encontram associadas uma flora e fauna
diversas. O rio Sado nasce na serra da Vigia, a sueste de Ourique, e percorre
180 km de margens mais ou menos planas, desembocando no oceano, entre o Outão e
a ponta de Troia.» Diciopédia 2006
É aqui, diante das torres
de Troia, que me encontro desde ontem. E eu que pensava que Troia tinha sido
implodida!
Para cá chegar,
atravessei toda a Arrábida com a sensação de que há algo de errado por estes
lados. Em pleno século XXI, este pobre país continua a não saber explorar as
suas riquezas! Em nome de que preconceitos? Quem é que efetivamente é
responsável por toda esta reserva? Tem nome? Pode ser responsabilizado?
Chegado ao parque de
campismo do Outão - 2ª escolha - verifico que ele está ocupado por residentes
que se dedicam à pesca, a passeios de barco (?) ou simplesmente a apanhar sol,
e que, quando ausentes, abandonam à natureza as suas acomodações não cuidando
minimamente do respetivo alvéolo. A habitual incúria!
Este, parque, que
beneficia de uma localização única, não tem, no entanto, condições para servir
os muitos campistas e caravanistas que nele poderiam encontrar um abrigo
temporário na descoberta de toda esta região.
Um outro exemplo de que
há falta de profissionalismo, encontra-se às portas de Sesimbra, no Porto de
Abrigo. Sem falar nos inacreditáveis acessos (adivinha-se que ninguém se quer
responsabilizar por desfazer aquele emaranhado público-privado de desvios!), ao
parque de campismo Forte do Cavalo (classificado com 2 estrelas, em quatro
possíveis), descobri quando, finalmente cheguei à receção, que este se
encontrava em obras. Imagine-se: este parque fecha anualmente entre 1 de
Novembro e 6 de Abril! Não tiveram tempo para realizar as obras, nem
encontraram meio de divulgar o atraso. E quem quer lá chegar tem que atravessar
uma zona privada! Apesar de tudo não é comparável ao Bojador(!?)
Esqueçamos os
contratempos, olhemos os pinheiros, que, também, os há por aqui e não falemos
da caruma porque as agulhas ainda não tiveram tempo de amadurecer ou a
cimenteira lhes adulterou os hábitos...
27.4.06
Eu pensava que a cor das
minhas agulhas era o castanho, mais claro ou mais escuro se no Verão ou no
Inverno... nunca me interessara muito pela História e por isso ignorava que
antes as minhas agulhas tinham sido verdes. Na realidade, incomodava-me um pouco
aquela passagem do tom claro ao escuro porque intuía que a chuva acabaria por
me miscigenar com claro proveito da terra...E, sobretudo, temia que um qualquer
pirómano me pusesse ao rubro e, nesse caso, de mim só sobraria o fumo. Não sei
o que será pior: a miscigenação ou a combustão? Agora que cheguei a esta
conclusão, quero acreditar que o ideal seria manter-me sempre verde, ficar
presa para sempre a uma qualquer conífera, não precisava sequer de ser um
pinheiro! No entanto, a necessidade de concluir precipitou-me numa outra
armadilha: Quem quer ficar verde para sempre? Ficar para sempre?
26.4.06
Mas
o ancinho já não espera pelo Estio!
Tenha ele - o ancinho - a
forma de pente ou de rede, pode-se dizer que ainda é familiar do gancho do
Baltasar Sete-Sóis. E a caruma se nunca gostou de ganchos, muito menos gosta de
ser penteada ou enleada porque essas meiguices anunciam quase sempre um auto-de-fé
em que os hereges deste século, em vez de serem penitenciados ou queimados, veem
fechar a escola, o centro de saúde, a capela... e abrir uma autoestrada para,
afinal, os desterrar para a capital. E quando, agrilhoados, lá chegam, não veem
mais a casa, a horta, o pombal...
Tal como a caruma, os
novos hereges são um perigo: pensam que podem envelhecer à sombra hospitaleira
do trabalho de uma vida. Mas não. Essa vida vale tanto como a palha da caruma
e, por isso, acabarão, em nome de um misterioso desígnio, arrastados por um
altivo ancinho, em forma de rede, de pente ou de gancho...
E nesse auto-de-fé da
vida nem Blimunda Sete-Luas poderá desenlear a vontade do seu Baltasar
Sete-Sóis! É como se... a caruma fosse autófaga, pelo menos sempre que o Estio
se aproxima...
Mas o ancinho já não
espera pelo Estio!
(Entretanto, começou a
soprar uma aragem que deixou a caruma um pouco aborrecida por se ter lembrado
do ancinho. Isto há palavras em que já não se pode confiar!)
24.4.06
A curta-metragem ÉRAMOS
POCOS, de Borja Cobeaga obriga-me a retomar o modo como encaramos a debilidade.
Um pai-filho abandonados, respetivamente pela esposa -mãe dirigem-se a um lar
para recuperar a sogra-avó que há muito tinham rejeitado. Mal se aproximam do
salão repleto de velhos, são abordados por uma idosa que se faz passar pela
desejada sogra-avó que se propõe alegremente acompanhá-los a casa.
Num cenário imundo e
grotesco, a sogra-avó faz o milagre de de lhes fazer as compras, de lhes
preparar uma refeição, de lhes arrumar progressivamente a casa sem que eles
desconfiem da verdadeira identidade da velha. E mesmo quando o genro a
descobre, prefere o silêncio dos cínicos a perder a criada que, afinal, viera
substituir a esposa-mãe.
Esta história mostra-nos
que na caruma da velhice, há muita senilidade que o não é e, sobretudo, que há
muita debilidade no modo como enfrentamos a doença seja ela física ou mental.
Hoje, no Lar de São
Bento, tive mais uma vez a oportunidade de me interrogar sobre o modo como
tratamos os mais velhos - ali, sentados, à espera de que lhes sirvam o lanche,
em frente duma Escrava Isaura que nas suas memórias dura anos, sem saberem que
se trata de uma reposição...
E no meio do lanche, três
velhinhas que esperam pela hora de se dirigirem ao refeitório para poderem
merendar... E uma delas que exclama: Eu tenho 94 anos, tenho 94 anos... E
levanta-se a custo e caminha...
E aquele pai-filho, ali,
à espera de que a nova criada, risonhamente, lhes preparasse o jantar!
22.4.06
Por
vezes, a caruma entra em combustão...
O filme SUGAR de Patrick Jolley e Reynold Reynolds deixou-me em combustão
lenta... De regresso ao Surrealismo, este filme joga na criação de uma nova
ordem sem qualquer contacto com o mundo exterior. Apostando na ignorância desse
mundo - apresenta-o como um universo fantasmático - e, em alternativa quer nos
fazer acreditar que a alucinação é a única realidade - a realidade do
frigorífico...
Quem mandou a caruma ao
INDIE LISBOA 2006?
20.4.06
Hoje, a caruma sente-se
perplexa. Está incomodada, pois não sabe em que regime vive. Até há pouco tempo
vivia despreocupadamente: nunca pensara na natureza da relação que há longo
tempo mantinha com o pinhal ou mesmo com as agulhas em geral e as dos pinheiros
em particular... Subitamente, um vento vindo do Continente começou a falar-lhe
de relações hierárquicas, de equivalência, de oposição e, sobretudo, de
inclusão. As relações hierárquicas nada lhe diziam, pois tinham-se esfumado
numa madrugada de Abril; as de equivalência eram-lhe completamente
desconhecidas, pois jamais imaginara que alguém a pudesse substituir por
«carumba», «carumeira», «carunha» - palavras que, apesar de tão rasteiras como
ela, jaziam esquecidas no fundo de um obsoleto dicionário. Para si, as relações
de oposição tinham perdido qualquer significado, pois deixara de perceber que
diferença havia entre «bem» e «mal», «pobreza» e «riqueza», «direita» e
«esquerda» - há muito que o relativismo a deixara sem coragem para tentar
ordenar o que quer que fosse. Chegara mesmo a sentir-se bem na periferia, onde,
apesar de marginalizada, raros eram os que a pisavam... estava ali, alienada e,
quando, em certas horas, pensava na sua condição percebia o que era uma relação
de exclusão. Mas, hoje, a caruma está, de facto, perplexa: o vento voltou a
falar de inclusão. Ainda perguntou às outras equivalentes - as agulhas - o que
era a inclusão, mas estas não lhe souberam responder pois estavam ocupadas em
obedecer ao vento que derivava num turbilhão capaz de aterrorizar um qualquer
incauto... Valerá mesmo a pena explicar o que são relações hierárquicas, de
equivalência, de oposição e, em particular, de INCLUSÃO? Não quereria o vento
falar de EXPLOSÃO? de IMPLOSÃO?
19.4.06
Há alturas em que a
caruma dormita sobre a terra, alheia ao murmúrio dos pinheiros. Parece
indiferente aos pés que a pisam, apostada apenas em fundir-se com a areia numa
mistura contranatura. Apesar disso, quando regressamos, a caruma sumiu-se não
se sabe se nas dunas, se nas ondas, se nas raízes das naus de Pessoa. De facto,
na estação seguinte, a realidade parece não ter sofrido qualquer alteração: há
quem defenda que D. João VI é filho de D. João V, como se a caruma nunca ali
tivesse estado. D. José I, Maria I sumiram-se não se sabe se nas dunas, se nas
ondas enquanto Pessoa se enfadava no longo areal do seu próprio sonho. Será que
ainda vale a pena ordenar os acontecimentos?
18.4.06
A
caruma não serve de acendalha
Frequentemente, a caruma
não serve de acendalha. Há uma perfuradora no subsolo que ruidosamente impede
que lhes explique a relação entre a Reforma e a Contra Reforma. Eles já ouviram
falar disso, já me ouviram falar disso, mas L pensativamente reconhece que nada
lhe ficou na cabeça. L não consegue ler o Memorial do Convento que nada lhe
diz, ao contrário daquele falecido rapaz-actor da TVI que lhe desperta a
emoção, como a milhares de outros adolescentes que ignoram onde se desenrola
uma qualquer guerra ou se estão a ser educados para aceitar placidamente
qualquer guerra. Estarão agora a pensar se os seus brinquedos são de guerra ou
de paz!? Mas não verão o automóvel do rapaz-actor da TVI como um brinquedo
bélico! Que interesse lhes poderá despertar a Contra Reforma? Que relação
poderão estabelecer entre os brinquedos, o automóvel, a Contrarreforma e o
início de qualquer guerra? Não seria melhor falar-lhes da paz ou deixá-los
mesmo em paz?
17.4.06
Domingo, 16 de Abril de
2006
As respostas débeis
Hoje, domingo de Páscoa,
apesar de ter gastado o dia em múltiplas atividades - assistência à família,
análise de portfolios, discussões gratuitas - continuo sem saber como abordar a
doença, como distinguir a lucidez da patologia. E se a doença não for mais do
que uma desculpa que inventamos para não assumirmos determinados encargos? E
se, afinal, a doença não é mais do que a máscara da lucidez? E se a causa do
sofrimento não está no outro, mas em nós? Todos os dias, imaginamos mil
sintomas que nos ajudam a esconder as nossas dúvidas. Todos os dias, acusamos
os outros de intenções que nós próprios ocultamos. A debilidade das respostas
resulta de uma mentira entranhada, de mil mentiras legitimadas por rituais
milenares em que gostamos de nos escorar. E por isso, creio, que a consciência
pesa um pouco mais neste domingo de Páscoa, pois, afinal, a ressurreição não
passa de «uma nuvem fechada».
Quarta-feira, 12 de Abril
de 2006 A debilidade
Como lidar com a
debilidade? Sobretudo com aquela que aparenta estar lúcida, mas que esquece que
não pode - ou será que não quer? - caminhar. Como estabelecer a fronteira entre
o poder e o querer? Esse território de indecisão cria em nós um sentimento de
impotência, mas também de fingimento de quem aprendeu a acreditar que o jogo é
mais do que um espaço de simulação - será mesmo um espaço de superação!? O jogo
que oculta a realidade permitir-nos-á ir à antiga casa, ao cemitério, almoçar,
como se estes gestos pudessem ter significado. Mas que significado? Um
significado de ajuste de contas? de traição? ou apenas de um acto de piedade? A
debilidade da resposta é assustadora...
Em torno de Ávila 5 de
Abril de 2006
O percurso até Ávila não
se revelou difícil, pelo menos até às imediações. Aí tudo se complicou um pouco
- os espanhóis continuam a construir autovias e a cercar as cidades de
múltiplas circulares. E quando isso acontece, não há plano de viagem que
resista: a carretera 403 tornou-se longínqua, fazendo desaparecer o camping de
Sonsoles. Apenas vislumbrei o Santuário de Nossa Senhora do dito cujo, de regresso
à 403, direcção Toledo. Estrada de difícil traçado que acabou por nos levar a
um curioso camping “Pântano del Burguillo”, situado sobre a carretera C-902
direccion Navaluega. Percurso total: 600 km. Curiosamente, não havia qualquer
outro campista. Ficámos sós e fechados no camping, na companhia do léon, um
elegante e possante cão de guarda. O dono decidiu ir dormir a casa,
deixando-nos o seu telefone de casa para qualquer eventualidade. No entanto,
como verificámos, não era possível contactá-lo pois não tínhamos rede nem
acesso à Internet. Entretanto, o león começou a ladrar. Vá lá saber-se
porquê?
6 de Abril de 2006
Visita à lagoa (embalsa),
ao rio e aos rochedos que caracterizam o Pântano del Burguillo. Tudo muito
rochoso e agreste. O extraordinário aqui são os salmões (?) que sobem o rio num
esforço titânico, lutando contra a impetuosa corrente e os declives que
dificultam a subida do rio. A natureza – flora e fauna – dominam neste
território onde poucos humanos parecem viver. As águias senhoreiam os penedos,
escondendo as crias. Ao fim do dia, chegou uma outra família de campistas que
veio ocupar a roulotte que já lá se encontrava. Quanto ao dono (?) do camping,
que nasceu em Badajoz e há muitos anos passou férias em Troia, tendo de caminho
visitado Lisboa e arredores, continua fascinado com a pequenez das celas do
convento dos capuchos em Sintra. O pai dele é que gostava de futebol tendo o
hábito de atravessar a fronteira, para assistir aos embates entre o Real Madrid
e o Benfica, no Caia. A estadia neste camping foi singular até porque o
estalajadeiro estava sempre ausente, nomeando-me mesmo chefe de campo. Talvez por
isso, acabei por me livrar duma viagem de barco em que o motor começou a deitar
fumo…
7 de Abril de 2006
Percurso: Pântano del
Burguillo– Barráco – Ávila – Piedrahita – El Barco de Ávila – Jerfe (Parque
natural: Garganta de los Infiernos) – 146 km Entre El Barco de Ávila e Jerfe, a
estrada é extremamente sinuosa. Velocidade recomendada: 30 km. Espetáculo deslumbrante
de cerejeiras em flor. As encostas da serra nesta época estão completamente
brancas. «Os cumes blancos». Ávila Não foi difícil estacionar a autocaravana.
Estacionámos perto da porta del Rastro, quase que instintivamente, pois alguns
minutos mais tarde já nos encontrávamos no interior da Igreja de Santa Teresa
de Jesus. Posteriormente, visitámos o museu de Santa Teresa que corresponde a
um espaço desnivelado, aparentemente subterrâneo, composto por várias salas
revestidas a tijolo e cujas abóbadas são arqueadas. A vida e a obra de santa
Teresa e mesmo de S. João da Cruz estão muito bem representadas, quer através
do depósito dos originais quer da obra traduzida em diversas línguas, como o
polaco, o chinês, o grego, o alemão… Havia também várias marcas das passagens
dos papas Paulo VI e João Paulo II. Na Institucion – “Gran Duque de Alba” vimos
a exposição VETTONIA cultura y naturaleza: Qiénes eran los vattones? Los
verracos. Significado y cronologia de los verracos; la sociedad vettona…
Catedral de Ávila e Museu (mistura de estilos). Recheio riquíssimo. Sobretudo
uma enorme custódia em prata do séc. XV… Praça de Santa Teresa Porta del
Alcazár Convento de Santa Teresa de Ávila (sobre a casa em que ela tinha
nascido) Comboio Turístico – 30 minutos 8 de Abril de 2006 Pernoitámos no
camping Valle del Jerte. Foi enchendo ao longo do dia. Visita à reserva natural
de Garganta de los Infiernos. Ruta de los pilones - Ida e volta: 2 h e 45
minutos. Percurso acidentado que, nesta época, é muito bonito, pois a natureza
desperta, as cerejeiras florescem, vendo-se (e ouvindo-se) os rápidos dos rios
que correm impetuosamente em consequência do degelo da Sierra de Tormentos. O
percurso termina junto de pequenas cascatas muito procuradas neste fim de
semana. Há mesmo uma «fuente» e, também, quem aproveite para fazer pic-nic. 9
de Abril de 2006 Continuamos no camping Valle del Jerte. De manhã, fomos a pé,
por entre cerejeiras em flor e ouvindo diversas aves, caso raro, entras elas o
cuco, até à localidade de Jerte. 45 minutos para cada lado. Um pueblo simpático
com início junto ao rio do mesmo nome, e uma igreja antiga, de pedra, e muito
bem decorada. Produtos locais: licor de ginja, sabão de azeite, chocolate de
azeite, queijo, também, em azeite…hurdanitos (rebuçados) de mel e pólen de las
Hurdes… um domingo tranquilo. Neste fim de semana, tivemos tempo para verificar
que a Garganta de los Infiernos é muito procurada por famílias, namorados,
grupos de escoteiros e mesmo por um grupo de cerca de 50 pessoas vindas de
Huelva (?). Os espanhóis continuam barulhentos, mas revelam-se asseados e
amantes da Natureza… não deixam lixo em lado nenhum. Imagine-se o que seria se
a Garganta de los Infiernos fosse visitada por portugueses! Um pouco à margem
tenho lido um Boris Vian surpreendente, alternando com uma releitura morosa e
profissional (?) do Memorial do Convento de Saramago. Creio que a imaginativa
de ambos se equivale, embora Saramago se torne mais cansativo. Há em ambos uma
nítida vontade de perturbar o leitor, de lhe mostrar o avesso das coisas e dos
seres. E a Isabel, atenta às flores, já por aqui encontrou os saramagos, que
recentemente tínhamos visto, em abundância, em Aljezur.
10 de Abril de 2006
Ainda não deixámos o
camping Valle del Jerte. Entre Jerte e Cabezuela. O percurso pedestre de 4 km
revelou-se um fiasco. Afinal, os espanhóis também colocam o entulho
(«escombros») em lugares protegidos! O que não nos impediu de caminharmos (90
minutos: ida e volta) na direcção de Cabezuela, tendo aproveitado para comprar
alguns produtos locais, designadamente separadores de alabastro(?), para
estantes de livros. A pedra, no entanto, provém de Saragoça. Hoje, 2ªfeira
(lunes), no camping tudo está mais calmo, apesar dos escoteiros continuarem os
seus constantes jogos e cantorias. Nos acessos à Garganta de los Infiernos,
mantém-se o movimento dos dias anteriores.
11 de Abril de 2006
Regresso a casa. Por
muito que estude o mapa, ainda não consegui decidir que percurso vou fazer.
Inicialmente, deslocar-me-ei para Plasencia, embora saiba que valeria a pena
voltar para trás (direcção de Ávila) para ver mais uma vez as cerejeiras em
flor. É uma paisagem deslumbrante, mas o caminho é tão tortuoso! É importante
notar que, apesar dos vários choques tecnológicos, aqui, as comunicações são
difíceis. Durante todos estes dias não consegui aceder à Internet, nem
telefonar para a nossa filha que se encontra em Pécs, na Hungria. Apenas
contactámos por SMS. Acabámos por regressar a Portugal através da EXT108, num
percurso total de 403 Km. Terça-feira, 4 de Abril de 2006 Portela - Ávila A
expectativa é grande. As pedras de Ávila testemunham uma história feita de
glória (santidade, valentia) e fanatismo (despotismo e sofrimento). Não sei bem
como é que vou encarar esse passado inquisitorial. Vamos partir amanhã - cedo? -,
mas sem a obrigação de cumprir um horário. Pernoitarei certamente antes de
chegar a Ávila. Resta saber se à beira da estrada ou em algum parque de
campismo. Na Castilha - Léon não há muitos parques, sobretudo nas cidades, ao
contrário do litoral espanhol. Esqueci-me de dizer que esta descontração
resulta de viajar na minha autocaravana. Espero que isso não desperte qualquer
sentimento de inveja. Como é que Boris Vian encararia Ávila?
3 de Março de 2006
Estranhamente
irrompe das ruas desertas
a mudez das casas
Enleia as roseiras a
ervagem daninha
Agoniza ao sol de Inverno
secreta tubagem
Estranhamente
procuro o lugar a voz a
rosa a calma
Estranhamente
ouço o eco da enxada, da gadanha, do arroio
Estranhamente
caio e fico lá num não-lugar
enleado em mim mesmo.
2/3/2006
Passei por lá e não te
vi!
Refletia só a modesta
jarra Sombra ténue da tua presença
Passei por lá e só ouvi
Sob a capa da terra
O eterno incómodo dum
involuntário queixume
Passei por lá e não senti
a força da tua mão
E saí a procurar flores esquecidas da tua
presença
Passei por lá e só vi o
olhar vazio do corvo faminto.
1/3/2006
Cercam-me os fios dos
teus cabelos noturnos silenciosos
Despontam em números
proibitivos os teus ávidos dedos
Parecem querer aproximar-nos no mar largo que
fica para além do Sol
1/3/2006
Se tu soubesses
Um lugar onde seduz um
rosto sem luz
Se tu soubesses
O lugar donde partiste
tinhas ficado um pouco mais
Se tu soubesses
As máscaras que nos
cercam tinhas ficado um pouco mais
Um lugar onde seduz um
rosto sem luz
Se tu soubesses
que as máscaras ensaiam
uma dança metálica de espectros
Se tu soubesses
O lugar que me deixaste
tinhas ficado um pouco mais
Um lugar onde seduz um
rosto sem luz
15/12/2005
Um pouco mais cedo...
Para ti, que lutaste
sempre,
Que nunca pensaste que o
teu fim estava ali,
naquele lugar branco,
Asséptico.
Que nem sequer esperaste
pela meia-noite!
Foste embora um pouco
mais cedo...
A morte é sorrateira,
apressa-se invisível,
Esconde-se dos sentidos,
destrói numa euforia
devastadora.
Em certos casos, no
entanto, a morte é mais leve do que a vida.
Anoitece apenas.
A vida, essa, pesa
desmesuradamente.
Absurdamente.
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