31.12.07
O
tempo é mais de incerteza que de verdade e, por isso, caruma irá
estar mais atenta a tudo o que, apesar de incerto, lhe mereça algum crédito.
Nesse sentido, e para
quem me pediu opinião sobre possíveis leituras, aqui deixo uma:
Vale a pena ler Noites
de Anto (1988), Alegoria em Sete Quadros, de Mário Cláudio. No
entanto, a inteligibilidade do texto depende do nosso conhecimento da vida e da
obra de António Nobre.
Há, no entanto, que
alertar os mais puritanos para o feminismo e mesmo para a pederastia de Anto,
de algum modo legitimada pela Epístola de São Paulo aos Romanos: "Por
esse motivo, Deus os entregou a paixões degradantes...»
Um exemplo de incerteza,
a pederastia que tanto seduziu os artistas ao longo dos séculos...
Para passagem de ano,
esta abordagem não deixa de ser estranha..., mas o tempo é de incerteza perante
atos que, na maior parte das situações, põem em causa o
"outro".
30.12.07
Em Noites de Anto,
Mário Cláudio cita um guia turístico para assegurar que a praia da Figueira da
Foz poderia ser considerada, na perspetiva de António Nobre, a "Rainha das
Praias de Portugal". Ora, se eu quiser dar corpo ao sol de Inverno que,
nos últimos dias, tem caído sobre a praia de Armação de Pera, atrevo-me a
regatear esse prémio pela sua extensão, pelas algas que se atrevem a
estender-se ao sol, sem esquecer as falésias em forma de gruta que parecem sair
dos campos em volta... como se os brancos prédios disformes não fossem mais do
que castelos na areia... sem esquecer a faina do mar de que avisto raias de
três quilos e tentaculares polvos que deixam os pescadores cor de alcatrão.
Aqui, o pessimismo
perde-se no azul do céu e do mar e deixa-se subornar pela quietude dos velhos
alemães, belgas, holandeses que parecem plantados de estaca neste Sul do carpe
diem...
27.12.07
"Todas as expressões de ateísmo, todas as formas existenciais de
negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade,
que tiram todo o sentido ao Natal, que é a exultação e o grito de alegria e de
esperança que brotou do reencontro do homem com Deus", destacou José
Policarpo, na missa do dia de Natal, na Sé de Lisboa."
Esquecimento ou negação de
Deus. Estes comportamentos pressupõem que um dia "encontrámos" Deus.
Mas quando e onde? E se, de verdade, isso nunca aconteceu? Mais do que esquecer
ou negar, o ateu é aquele que vive "fora" de Deus. E são muitos os
que assim vivem. Será que por esse motivo são causa dos dramas vividos pela
humanidade? Ou simplesmente são seres fúteis que desvalorizam o absoluto,
dando corpo à frivolidade e ao esplendor do momento?
José Policarpo sabe, como
ninguém, que em nome de Deus (qualquer deus) foram (e são) cometidas as maiores
barbaridades contra o homem e contra o planeta. Não necessita que lhe contem a
história das cruzadas, da inquisição ou da colonização / missionação. Sabe
certamente o significado da expressão "guerra santa" e, por isso,
sabe que cruzados, inquiridores, colonizadores e missionários todos lutavam
por/ e / com Deus e que as suas vítimas nem sempre eram ateus a necessitar de
"encontrar" Deus. Muitas das vítimas também tinham os seus deuses,
mas isso não os impediu de lhes destruir os "ídolos".
O Natal não assinala o
reencontro do homem com Deus, mas, sim, a perpetuação do homem. A alegria e a
esperança são legítimas porque saúdam o futuro da humanidade. O
"menino" é mensageiro da vida, mesmo que fútil, e jamais apela à
morte...
Tudo o resto é uma
efabulação que serve o poder e a vaidade de homens fúteis e frívolos.
24.12.07
Apesar de tudo o que aqui
foi referido, a vida impõe-nos alguma atenção a esta vontade de celebrar ou,
melhor, a esta vontade de esquecer. Bem sei que, deste modo, me rendo ao
colaboracionismo de todos aqueles cuja primeira vontade é apagar a História. Se
calhar o que tenho vindo a rejeitar não é mais do que o esquecimento como sinal
de envelhecimento.
Permito-me, no entanto,
celebrar, com todos aqueles que me visitaram, estes dias de euforia, sabendo de
antemão que tempos difíceis nos esperam.
Por isso, para todos, um
BOM NATAL e, em particular, para as "agulhas" que quiseram fazer
parte deste manto de "caruma" que, aos poucos, vai cobrindo o meu
quintal.
PS: No meu caso, não
acredito que valha a pena mudar os ministros, os secretários de estado...,
pois só os escravos podem impor limites ao poder dos senhores... e por enquanto
os senhores ainda não conseguiram regulamentar toda a nossa atividade. Quando
isso acontecer, será a HORA!
23.12.07
Hoje, percebi que o
melhor é estar calado. Qualquer palavra pode despoletar uma guerra. Por mais
que procure estratégias de confluência, uma simples palavra pode transportar em
si uma fúria ancestral de devastação a que não sei responder - apenas a mudez,
mas, por dentro, uma dor dilacerante...
Ah, como começo a
perceber o enigma da Esfinge! Durante todos estes séculos temos atormentado a
Esfinge ao dar-lhe voz.
(Um homem cansado do
teatro da vida tornara-se esfinge na esperança de que o deixassem só... Mas em
vão...)
21.12.07
No Teatro Camões, em dia
de temporal (19.12.2007), assisti à apresentação, pela Companhia Nacional de
Bailado, do Lago dos Cisnes, ballet dramático em 4 actos, com
música de Tchaikovsky e coreografia de Mehemet Balkan. Inspirado numa antiga
lenda alemã, narra a história de Odete, uma princesa transformada em cisne por
um feiticeiro. Esta obra teve a sua estreia fracassada em 20 de fevereiro de
1877. Gostei particularmente dos cenários e dos figurinos assinados por António
Lagarto. Foram, sobretudo, os meus olhos que estiveram naquela magnífica sala
porque o cérebro, esse, não suporta o calor dos corpos e deixa-se cair
facilmente na prostração das melodias repetitivas e arrastadas. A imobilidade
arrastou-o para um delírio onde se cruzaram cenas do quotidiano que naquele
momento bem gostaria de ter dispensado.
Hoje (21.12.2007) voltei
a experimentar a mesma sensação de adormecimento perante o filme Bucareste,
do romeno Corneliu Porumboiu (2006). Mas neste caso, os meus olhos apenas
puderam comprovar o lado negro de um país que perdeu a memória da sua revolução
ou que procura saber onde estava cada um no dia 22 de Dezembro de 1989, oito
minutos depois do meio-dia, naquela cidade a Este de Bucareste.
A reconstituição feita
pelos protagonistas naquele absurdo canal de televisão não passa do desejo de
estar do lado certo da história, quando, de facto, as vidas mostram a pequenez
daquele par de cidadãos.
Espero que ninguém se
lembre de me perguntar onde estava na madrugada de 25.4.1974. Embora, eu saiba
que estava a dormir. E quando acordei, fui ver a revolução que estranhei pela
forma como os militares se dispunham no terreno, esperando que o regime se
rendesse. Quanto aos cidadãos, ainda não sabiam que o eram e, incautos,
assumiam poses de vencedores, dificultando as manobras e pondo as vidas em
risco.
De qualquer modo, o
regime agonizava, nada mais tendo a oferecer. Tal como hoje, apenas a glória da
corrupção, da manobra, da vaidade saloia...
14.12.07
Não é certamente um
espaço assombrado. No entanto, os livros estão fechados à chave. Pertencem a um
tempo envergonhado ou, talvez, sejamos nós que temos vergonha desse tempo. Não
se sabe bem que livros por ali estão naqueles "altas estantes" - ninguém
parece querer saber. No orçamento, não há verbas para recuperação /
encadernação ou para catalogação. Ao certo, também não sabemos se há verbas ou
não.
Ali, ninguém lê os livros
da biblioteca. No melhor dos casos, alguns alunos e professores lêem os seus
próprios manuais e todos sabemos, creio, que os manuais são parecidos com
livros, mas apenas isso.
Profanada a biblioteca,
fazemos dela espaço de reuniões, de palestras, de lazer. Os assuntos abordados
podem ser pertinentes e interessantes, mas raramente arrastam um público
significativo, a não ser que o condicionemos ou o "arrebanhemos",
sujeitando-nos a uma escuta perturbada por conversas paralelas, por entradas e
saídas "fora de tempo".
Sempre ouvi dizer que o
programa deve ser cumprido, mas nunca compreendi se ele é, de facto, lido.
Literalmente, nenhum programa apresenta o jornalista e o cartunista como
conteúdo, mas nada, nele, os inviabiliza como recurso - vivo, autêntico -
capazes de despertar vocações, de expor a transversalidade dos conteúdos, de
nos obrigar a questionar o passado e, em caso de desespero, a rir de nós
próprios.
E a culpa não é
certamente da biblioteca!? Provavelmente, é apenas, uma questão de canal, o
tal, como sentenciou o cartunista Bandeira.
13.12.07
Fundo sem registo, apenas
memória indecifrável. No centro, o prof. Monge da Silva, entusiasmado, traça a
história do andebol no Liceu Camões. Dirige-se aos pioneiros, protagonistas de
um desafio impossível, apesar de, numerosas vezes, a modéstia e o triunfo os
ter guindado à vitória. Pelo meio, a eterna falta de recursos e a astúcia do
regime.
A saga de ontem parece a
saga de hoje. Como é difícil imprimir, a cores ou a preto e branco, uma simples
página de jornal? Parece que temos tudo, mas não. Se olharmos bem: estão lá os
campos e também lá está o Auditório, sem esquecer os computadores, as redes, as
impressoras, mas falta-lhes sempre alguma coisa...
A propaganda assegura-nos
que nada disto é verdade: temos mais equipamentos, os recursos humanos são mais
eficazes, a organização em curso porá fim ao tradicional miserabilismo...
Entretanto, vou escutando as várias intervenções solidárias e, por vezes, um
pouco ásperas: há a saudade dos que partiram e a fraternidade dos presentes; há
a presença inesperada daquele antigo professor, austero e disciplinador que
interpelo, na fútil esperança de que uma centelha nos ilumine. Mas como?
É mais fácil lembrar os
espaços, falar de outras presenças. Podemos atravessar o ginásio encerado,
rever os aparelhos, sentir o peso insuportável dos corpos, esbarrar nos
obstáculos, elogiar a disciplina e a integridade de outros tempos, tolerar a
arbitrariedade e a frieza das vozes, pois, a esta distância, tudo ganha sentido
- afinal, por detrás daquelas muralhas fernandinas habitavam a austeridade, a
frieza e a visão jesuítica. Só que naquele tempo não sabíamos... E, hoje, ouvi
erguer-se o remorso, o medo do castigo eterno... no fundo do ginásio ecoam sons
de uma ordem defunta...
Felizmente, esta
experiência é só minha..., hoje, tudo se passou na Biblioteca e não no Ginásio!
E eu próprio me senti um pioneiro porque, afinal, também eu fui iniciado no
andebol, desporto que eu imaginava muito mais antigo que, de facto, era. No
entanto, a mim faltam-me os companheiros...
9.12.07
A flor do eucalipto
abre-se sobre a cabeça de S. Torpes, libertando um aroma salutar. No solo, os
cogumelos disfarçam a sua presença, eclodindo em pétalas de malmequer prontas a
envenenar enormes baratas incautas que lentamente procuram fontes e cloacas.
As abelhas e as
moscas, sobreviventes de Dezembro, não desdenham a esponja do peixe-espada.
Indiferente à mentira, à
vaidade e à ostentação instaladas no chiquíssimo Parque das Nações, eu fixo o
olhar no que me cerca e tudo são sequelas líticas do passado e também do
futuro: da areia, despontam rochas oceânicas que me desassossegam, incapaz de com
elas dialogar, de lhes narrar o tempo da sobreposição violenta - vulcânica.
Apesar disso, compreendo
que houve um tempo em que os maciços de Sintra, de Sines e de Monchique se
perfilavam, alinhados e altaneiros, sobre o Oceano, mas continuo sem saber se,
nesses tempos, a flor do eucalipto e a pétala do cogumelo já cumpriam o seu
desígnio... e subitamente, sinto que, talvez, o tempo não existisse, porque ele
não será mais do que a medida da mentira, da vaidade e da ostentação humanas.
Antes que o corpo se
separe da cabeça, vou fugir de S. Torpes e evitar Saint Tropez. No entanto,
antes que parta, devo aqui registar o gato preto que, furtivo, se atravessou
três vezes no meu caminho, neste fim de semana.
E ainda me falta
responder a uma intrigante pergunta sobre o que tenho lido nos últimos tempos.
É que há quem se queixe que, apesar de me conhecer há algum tempo, sabe muito
pouco sobre caruma, como se esta tivesse tempo para ler.
29.11.07
Há greve da função
pública...
Mais uma vez, estarei do
lado dos conformistas ou, se epicurista, do lado dos indiferentes... Se não é
verdade, parece.
No entanto, esta semana,
organizei uma visita de estudo ao Palácio Nacional de Mafra, em que a maioria
dos alunos participou de forma empenhada, apesar de alguns terem primado pelo
desrespeito quer dos colegas quer dos guias da visita - ostentam um ar trocista
de aborrecimento e, ao mesmo tempo, de superioridade; não sentem qualquer pejo
em cortar a palavra ou em chegar atrasados...
Amanhã, esses alunos
esperam que os professores façam greve...
Um autocarro ficou sem
embraiagem. Sem ruído, encostou à berma da autoestrada e a autoridade verificou
zelosamente os documentos da viatura, que 30 minutos mais tarde é substituída e
tudo volta ao normal. Entretanto, compreendi que o veículo já partira da sede
da empresa "com problemas"...
Amanhã, os mesmos
veículos continuarão a circular...
Afónico, desde 2ª feira,
insisti em cumprir todas as minhas atividades letivas e não letivas... o que
não impediu que certos alunos se estivessem nas tintas para a dificuldade em
que o professor se encontrava.
E amanhã, esses mesmos
alunos perguntarão se o professor faz greve...
Um pouco por toda a
parte, encontramos quem não queira colaborar, quem não queira partilhar
informação, quem esconda o jogo. E é pena, porque ao lado, há quem esteja
disponível para colaborar na construção de uma sociedade mais esclarecida...
Amanhã, essa disponibilidade
mantém-se, apesar dos olhares reprovadores, das palavras travessas...
Amanhã, serei menos (ou
serei mais?) funcionário público...
21.11.07
Se ainda ouvíssemos os
poderosos, compreenderíamos que eles nos enganam de forma despudorada: Aznar,
Blair, Bush, Barroso foram enganados por serviços de informação que eles
próprios tutelavam. A seu tempo, cada um procura branquear o passado,
fazendo-nos acreditar que o destino os escolhera para uma missão civilizadora,
à data, incompreensível para o comum dos mortais. Vêem-se, a si próprios, como
eleitos, como redentores da humanidade.
Se descêssemos um ou dois
degraus do Olimpo, veríamos como os Putins, os Fidéis e os Chavez troçam de
ricos e pobres, em nome de plebes amorfas, prontas a adular "cabos de
guerra" que prometem esplendorosos paraísos artificiais. Apostam no
veneno, no chiste e na chantagem para se eternizarem no poder. E nós achamo-los
encantadores, paramos para os ouvir como se as suas palavras nos redimissem das
nossas humilhações quotidianas.
Ao abandonarmos o Olimpo,
mergulhamos na terra dos Sarkosy e dos Sócrates que, dia-a-dia, nos prometem um
futuro radioso, se os deixarmos emagrecer o Estado, se os deixarmos programarmo-nos
numa liga de interesses privados transnacionais, que, em nome do pragmatismo,
amontoam cadáveres um pouco por toda a parte. E nós aplaudimos-lhes a altivez,
a convicção e o espírito de missão encenado nos bastidores dos média...
Se descêssemos ao
relvado, veríamos um povo prisioneiro dos gestos manipuladores de um selecionador,
das fintas gratuitas de malabaristas da bola, dos sorrisos dúbios e manhosos
dos fiteiros do costume, prontos a enganar o árbitro, com o aplauso histérico
de turbas para quem a verdade desportiva, ou outra, nada interessa. Quando o
jogo se aproxima do fim, a farsa alastra às bancadas, senta-se nas poltronas...
e deixa-nos com a sensação de dever cumprido e, nesse momento, a manha dos
Bush, dos Chavez, dos Sócrates e dos Scolaris sai vitoriosa...
Todos eles fizeram o
melhor que sabem, em nome de um interesse superior, aliás, como nós que os
acompanhamos...
Lembrei-me, agora, dos
"compagnons de route", sem ofensa para a inocência...
18.11.07
O lugar onde o Tejo e o Zêzere tinham o hábito de
confluir. Agora, estão dependentes das comportas... apesar das divergências, em
Constância, fluem Camões, Vasco Lima Couto, Alexandre O'Neil, Baptista
Bastos... e quantos mais?
16.11.07
Às horas cor de
silêncios e angústias…
Para Fernando Pessoa, o
tempo tinha cor, mas a paleta era apertada, feita de verde, cinzento, por
vezes, azul e quase sempre preto. Por detrás dos óculos, erguia-se um fundo
branco envolto em preto, e nas lentes, lentas partiam as naus noturnas. Não se
sabia se regressavam ao cais, mas se o faziam, as naus apodreciam para lá do
silêncio do horizonte, num poente-cinza. Ele queria que acreditássemos que
naquelas cinzas ainda soprava a chama. No entanto, sabia bem que o fogo (a
alma) quando se extingue se esconde debaixo da pedra, à espera de que o vento
se levante e se incendeie em notas quebradas…, novas vozes feitas naus que
partiram um dia do Cais Absoluto – ideia feita da angústia de quem não aceita
que a vida passe e não passe…
Para Fernando Pessoa, as
palavras tinham a cor da música que ele não sabia bem se ouvira e no não saber
estava toda a angústia que separava a partida da chegada, e na noite do Cais
divino soprava uma vaga e doce aragem.
(Em homenagem a todos
aqueles alunos que nesta noite, entre sonhos de sargaços, procuram compreender
como é que se podia cantar naquele navio encalhado num cais de
perdição...)
11.11.07
A Casa-museu existe um
pouco por toda a parte. Escondida, envergonhada, de tempos a tempos, lá recebe
um visitante, também, ele tímido e um pouco assustado.
A Casa-museu oferece a
privacidade do seu antigo proprietário, quase sempre, ridícula e acanhada.
Espera-se que o homem ou a mulher se tenham conseguido erguer daquelas quatro
paredes e tenham deixado obra, lá longe, na capital, no estrangeiro, no mundo.
Por exemplo, o Alexandre
Herculano de Vale de Lobos (Santarém), surge de pés-de-fora, tal é a pequenez
da cama. Visto daquele lugar não ombreia, de modo nenhum, com o Herculano que
jaz nos Jerónimos. Mas, mesmo lá, a centralidade, é fugaz ao olhar, quase
sempre atraído para um qualquer evento musical. Pelo menos, sempre vai ouvindo
música. Na casa-museu, talvez oiça os pássaros!
Ora, Salazar, tendo em
conta a dimensão do homem, também merece a sua casa-museu, em Santa Comba Dão.
Não irá incomodar ninguém e sempre deixará feliz algum turista ou algum
nostálgico que por ali passe. A memória do homem deve ser
preservada, até para que não se repita.
Desta vez, tenho de
concordar com o Vasco Pulido Valente, apesar de eu saber que ele detesta o
cheiro a caruma. Detesta tudo o que cheire a campo. O que faria ele, se o
desterrassem para a província? É por isso que ele concorda que Salazar seja
banido para Santa Comba.
7.11.07
Estou a chegar lá! Uma
vida de formulários, convocatórias, regimentos, regulamentos, atas, tabelas...
- tudo ferramentas funcionais, ou melhor do funcionário!
A própria exclamação
perdeu emoção. Está saturada de convenção. Neste momento, fujo da ata, da
convocatória, do regulamento, do plano, mas penso se não seria melhor voltar
lá, se este intervalo não me vai ser cobrado...
De facto, ao funcionário
compete estar permanentemente de plantão. Zelar desinteressadamente pela saúde
do patrão.
E nessas horas - todas as
horas - deixamos de ler, de escrever, de descobrir; deixamos de ser vistos como
uma ameaça, um risco...
(De qualquer modo, já não
necessito de censor - eu próprio exerço esse mester: vou regressar à
convocatória, sabendo, de antemão, que depois desta, outra me espera e que, se
não cumpro a primeira, dificilmente realizarei a segunda.)
É a engrenagem! O cárcere
dos dias e das noites!
3.11.07
"Dei-lhes de graça
meu coração/E o que ele tem." Fernando Pessoa, 10/10/1933
É isso mesmo! Trabalhar
de graça, sob a ameaça rasteira do processo disciplinar, da mobilidade, do
despedimento.
Funcionário, empregado a
tempo inteiro. De dia e de noite. Sem efetiva contagem das horas. Na expetativa
de que morra cedo para sossego da segurança social.
Nem o vento sopra lá
fora.
Só a febre da alma se
agita, insegura, arranhando-me por fora, sem que o coração chegue a saber que
está definitivamente morto.
Lá longe, o barril de
petróleo continua a matar a esperança... e a chuva fustiga impiedosamente os
deserdados...
28.10.07
- Ó, meu senhor, será que
viu por aqui umas vacas? Incrédulo, depois de olhar à direita e à esquerda,
repliquei: - Não é frequente ver vacas num parque campismo! No entanto, ainda
não refeito, perguntei-lhe: Mas o senhor perdeu as suas vacas?
- Não, as vacas não me
interessam; procuro o maioral… E o pobre homem lá deu meia-volta, sem, no
entanto, poder evitar que eu lhe explicasse que seria pouco provável que as
vacas andassem por perto, pois, naquela manhã, os caçadores fizeram uma batida
monte abaixo até à rede do parque. Eu bem os vira do lado de lá da rede, armas
apontadas e canídeos a farejar… Mas o homem desinteressara-se completamente da
minha explicação e seguiu o seu caminho. O problema dos caçadores à porta do
parque de campismo era meu e não dele: eu acordara bem cedo a pensar que, com
tamanho tiroteio, era bem provável que não pudesse mostrar a nascente do
Alviela aos meus convidados…
O que me faz pensar que há longos anos tento explicar o que, de facto, ninguém
me solicitou. O que me pedem é muito simples: - Será que viu, por aqui ou por
ali, umas vacas? E eu conto-lhes a história da domesticação das vacas, do
trigo, da colonização, das fartas e das estéreis caçadas… E o meu interlocutor
deixa de me ouvir porque, afinal, as vacas não passavam dum pretexto. O que ele
procurava era o maioral, a ver se ele lhe pagava um copo…
Se ao menos tivesse
adivinhado! Ter-lhe-ia pagado uma cerveja e, em troca, ele teria dito: - muito
obrigado, meu senhor, forma de esconder uma enorme vontade de zurzir nuns
figurões, uns maiores e outros mais pequenos, que ultimamente têm abusado da
paciência da arraia-miúda. Será que os maiorais já não querem saber das vacas?!
Zus! O lugar onde a
língua acaba.
22.10.07
De que me servem
estes papéis?
São tantos os papéis,
todos empilhados
numa serra fútil
(a aliança salta do dedo
num esgar último)
estes papéis são resposta
a uma única pergunta
cansada de fugas inúteis
De que me servem estes papéis?
Já me vejo arder,
o vento ainda sopra a meu favor,
o cântaro avança sôfrego,
mas eu atravesso os meus papéis
já cinza
De que me servem estes papéis?
21.10.07
Este documentário de
António Escudeiro deixou-me uma estranha emoção. Ao ver aquelas imagens do
passado e do presente do Sul de Angola, senti que também eu regressava a
lugares familiares. Lugares povoados por brancos que construíram cidades, o
pioneiro caminho-de-ferro de Benguela, portos à escala internacional,
pesqueiros… Mas o meu regresso é bem diferente do de António Escudeiro: ele
nasceu lá, filho de engenheiro que chegou a diretor do caminho-de-ferro;
estudou lá, em escolas, onde predominavam os brancos e os mestiços. Nessa
Angola austral, os brancos eram felizes. Hoje, os brancos são raros, o
caminho-de-ferro recupera lentamente, as cidades continuam destruídas; apenas
as autoridades provinciais recuperaram para si alguns palacetes; os negros, esses,
em magotes percorrem todos os caminhos, tentando vender a pouca produção que
vão conseguindo.
António escudeiro vê o
cinema do Huambo arrombado, as máquinas de projetar espreitando, por detrás de
uma parede imorredoura, um horizonte imprevisível, mas ameaçador. E eu, também,
percorro aqueles morros, estupefacto com a cegueira branca, que descobri na
denúncia feita por Pepetela e, sobretudo, por Ruy Mário de Carvalho. Também
eles, brancos-mestiços de Angola. Todos eles brancos de segunda!
E eu que nunca fui a
Angola, tenho cada vez mais a sensação de que lá vivi sempre. Mesmo, agora,
começo a pensar naquele professor de História, de Arlindo Barbeitos, que levou
o aluno preferido a visitar o cemitério para lhe ensinar a ler a história do
colonialismo. Ao ver entrar António Escudeiro no cemitério, pensei, aqui está
um espaço onde a diferença de cor ou de pele não fará sentido. Mas não.
Esquecera que só o branco tinha direito àquele intramuros.
Apesar de tudo, o
documentário "Adeus, Até amanhã" merece ser estudado com atenção pelo
que deixa ver do que aconteceu nos últimos 30 anos na martirizada Angola e,
sobretudo, pela cor dos panos e pelo olhar abismal daqueles milhares de
crianças que espreitavam as câmaras e que respondiam em coro, nas despojadas
salas de aulas.
Por mais que queiramos
esquecer, a Europa é responsável pelo atraso da África…
17.10.07
São muitos os anos,
quando relembro que outrora um médico me assegurou que não chegaria aos 39. Não
lhe recordo o rosto nem a voz, esfumou-se numa enfermaria branca como ele.
O dia foi de sinais
contraditórios: os amigos não esqueceram a palavra ou o gesto solícito; mas
outros (e não sei como classificá-los!) passaram o dia a delimitar o território
como se pudessem correr algum perigo. Mas como se o poder nunca me interessou?
Foi, no entanto, um dia
de surpresas: o conselho pedagógico mostrou-se participativo e reivindicativo,
numa girândola de olhares cruzados e, por vezes, desorientados (pela primeira
vez, a mesa teve dois pólos!) Hoje, os meus neurónios desdobraram-se num movimento
circular inesperado.
Surpreendentemente,
alguém que, por vezes, consegue fazer-me desesperar, na placidez dos dias,
ofereceu-me "A Vida Fragmentada – Ensaios sobre a Moral
Pós-Moderna", de Zygmunt Bauman.
14.10.07
" Um ministério é um grupo casual de
indivíduos, que intrigaram para estar ali." (…) O
país "paga e reza. “Eça de Queiroz, Maio de 1871
Em Torres Vedras, um
grupo mais ou menos casual intriga para conquistar o poder. Em Fátima, a
desavergonhada Igreja desperdiça o suor do povo e ainda o acusa de grosseria.
No Terreiro do Paço, um ministro das finanças corta nas pensões de reforma
acima dos 600 euros, como se 700 ou 800 euros fossem suficientes para pagar a
alimentação, os cuidados de saúde, os lares…
Quem anda por aí, vê, um
pouco por toda a parte, sinais de riqueza…. Riqueza cuja origem é desconhecida
e, portanto, não tributada.
Será assim tão difícil
enviar meia dúzia de polícias a cada marina, a cada imobiliária, a cada banco,
a cada discoteca, a cada catedral? Se o fizessem, os agentes perderiam a
vontade de passar pelas delegações sindicais ou deixariam de ficar parados em
frente dos bancos, das ourivesarias…
(…)
Neste fim-de-semana,
dormi mal. Despertei, várias vezes, a pensar no motivo que nos leva, ao
olharmos para um monumento, a admirá-lo sem nos preocuparmos com a biografia do
arquiteto, se andava triste ou alegre, se bebia ou era abstémio e, ao mesmo
tempo, quando lemos um poema ou um romance, a só querer saber se o poeta ou o
romancista foram infelizes na infância, pederastas, pobres, provincianos ou
cosmopolitas. Que diferença há entre um poema e uma catedral? Entre um Poeta e
um Arquiteto? Será uma questão de escala?
Parece-me que este
desassossego não abona muito a meu favor. Sobretudo do meu fim-de-semana.
E ainda mais grave:
gastei, também, uma boa parte da noite de sábado para domingo, a pensar no
papel do conselho pedagógico na escola atual. E fiquei descoroçoado, sem saber
qual é o campo de ação deste órgão. Acordei com a ideia que me compete pensar a
organização escolar e a atividade docente tendo como único objecto o
crescimento harmonioso de todo e qualquer ser que entre na escola,
independentemente da fase de aprendizagem em que se encontre. A escola deve
preparar o ser para que, no futuro, possa ser um arquiteto, um pedreiro, um
poeta, um linguista, um físico, um cozinheiro, um matemático, um pintor… e não,
um bêbado, um delinquente, um pederasta, um branco, um negro, um indiano, um
fundamentalista…
À escola não interessam
os intriguistas que procuram chegar aos ministérios!
11.10.07
Tenho evitado comentar os
casos do dia: o regresso à escola dos funcionários europeus; o topete dum empregado da
RTP, em tempos de "precisa-se colaborador"; a iniciativa
autoformadora de dois agentes da ordem que confundiram uma delegação sindical
com uma escola; o desaparecimento da ministra da educação; uma basílica que
apenas custou aos crentes 70 milhões de euros; o secretismo das organizações e
o cinismo dos dirigentes; a dor de cotovelo de quase todos; e, sobretudo, a
indiferença e a descrença da maioria…
Inimigos, marchamos, lado
a lado, sobre um campo de minas, sem querer perceber que ainda nos falta
aprender a ler. Que ler pode ser uma atividade permanente, a única capaz de nos
oferecer uma alternativa à "apagada e vil tristeza" do orgulho, da
presunção e da prosápia.
Ler abre-nos a porta da
alteridade… e toda a escrita é uma forma de leitura, de epifania…
(Apesar do ruído e do
grito, da histeria das confrarias…)
5.10.07
Afonso Vaz Botelho
- Que devo eu fazer agora?!
A 1 de Dezembro, a 5 de
Outubro e a 25 de Abril, os que ainda têm trabalho param para celebrar a
refundação da Nação. Primeiramente, libertámo-nos do estrangeiro, em segundo
lugar, pusemos termo ao que restava do Antigo Regime e, finalmente, deixámos
ruir o Império, liquidando, no acto, o Estado Novo.
Qualquer destas datas
assinala o fim de um ciclo, dando início a outro. E por isso em vez de
celebrarmos a libertação – esperança fugaz -, deveríamos reflectir sobre o modo
como os portugueses se empenham na revitalização da coletividade. O que é que,
de facto, nos interessa?
A resposta? - Podemos
encontrá-la no Retrato de Uma Família Portuguesa, de Miguel
Rovisco. Perante o perigo, perante o invasor, a família desmorona-se e uma
parte foge: para o Brasil ou para a Europa, tanto serve!
Nascido em 1959, Miguel
Rovisco suicidou-se em 1987, um ano depois de Portugal ter "entrado"
na União Europeia. Aos 27 anos, já escrevera mais de 20 peças… No plano
existencial, o seu suicídio não se explica – poderia ser um acto gratuito e repentista
de algum existencialista à deriva num universo órfão de Deus! Mas não.
O desespero e a rebeldia
de Miguel Rovisco nada tinham a ver com a divindade. A causa primeira
encontrou-a na indiferença e no alheamento das elites nacionais, incapazes de
compreender a força civilizadora do teatro.
As elites não lêem ou,
pior, se o fazem, não resistem à tentação de censurar a obra alheia,
desvirtuando-a de tal modo que o autor se verá obrigado a renegá-la. Mas Miguel
Rovisco, em vez de desistir ou de renegar a obra, preferiu que um comboio lhe
desfizesse o corpo para que a voz se pudesse ouvir bem alto no palco das
consciências que nos governam…
Hoje, 5 de Outubro de
2007, que novas razões podem impedir os Roviscos desta Nação de se suicidar?
(Lá bem no alto, sobre
os cedros, já avisto 250 altos funcionários da Comissão Europeia que, sem
qualquer razão para se imolarem, se preparam para "regressar à
escola", prometendo um futuro radioso… Mas, ao contrário do que acontece
na maioria dos palcos, apenas teremos direito a um solilóquio…)
2.10.07
E com ele o Outono…
estação ou crepúsculo? Há dias em que o crepúsculo avança sobre o corpo,
deixando-o exaurido. Contra a maré, lutamos porque ainda não é o tempo da
noite…
Se passarmos à Sociedade,
fica-nos a dúvida se também podemos falar de Outono… No entanto, os sinais são
muitos: Mendes perde para Menezes; os pais perdem para os filhos; os
funcionários perdem para a arbitrariedade do Governo que, entretanto, vai
nomeando uma nova classe de carrascos que se encarregará de o substituir na
zelosa missão de redução de custos…; isto sem falar das equipas de futebol que
perdem sistematicamente perante as estrangeiras, salvo raríssimas exceções…
Para nos alegrar, sempre
vão despontando alguns vencedores: a equipa de rugby que terá ganho o
campeonato do mundo, à portuguesa, claro está; Mourinho que lá encontrou
maneira de roubar o Abramovich – mas quem rouba a ladrão tem cem anos de
perdão; Luís Filipe Menezes que, depois de endividar a Câmara de Gaia, se
propõe vender o país por um cêntimo… E Sócrates que nos quer convencer que com
ele ganhamos todos: as grávidas; os velhinhos e as velhinhas; os desempregados;
os jovens; os delinquentes; os empresários; os comentadores políticos e,
sobretudo, os funcionários públicos…
E nem vale a pena falar
de Marcelo Rebelo de Sousa, o Sumo-sacerdote da nação portuguesa, cujo brilho
só poderia ser ofuscado pelo laureado José Saramago, caso ele não tivesse
escolhido o exílio filipino…
Se alguém se der ao
trabalho de ler esta página outonal, peço-lhe que não se esqueça do CONTEXTO,
(CUM+ TEXTUM), o que o obrigará a ler todos os textos mais ou menos coevos.
Caso não o queira fazer, faça como a maioria: torne-se crente de uma qualquer
confraria ou de uma qualquer autoridade.
O Outono chegou.
27.9.07
Quem quer vai, quem não
quer manda.
Tento ignorar a
moralidade do adágio não me sai da cabeça.
Incapaz de esperar, sinto
que avanço desnecessariamente…, mas continuo o caminho como se uma voz me
ordenasse o rumo.
Há quem pense que cultivo
a opacidade quando, de facto, procuro, em mim mesmo, um sentido… talvez mesmo
uma missão. Esta ideia, que me foi inculcada na juventude, acaba por me
infernizar os dias.
Corre-me no sangue um
padrão que me segura ao chão.
O padrão, cultural ou
apenas de pedra, traça-me uma rota em que me perco a cada instante, e continuo
a ver-me lá longe, na foz do Zaire, sem entender o motivo.
Antevejo um imenso
caudal, a coberto de uma sufocante e esplendorosa vegetação, e apesar do tinir
das azagaias sombrias, subo o rio, à procura da nascente da minha infância.
Ao contrário dos rios de
Saramago – O Almonda e o Tejo – que, de tempos a tempos, o cercavam na
Azinhaga, o meu rio, o Zaire, deixava que eu o abraçasse, ficasse a vê-lo… a
ir, a fluir…
E na minha cabeça, corre
o Zaire que me sussurra: Quem quer vai, quem não quer manda.
20.9.07
O trovão expande-se, de
forma arrastada; o relâmpado ziguezagueia faiscante. Do 12º andar, procuro o
Tejo, mas, na noite, ele esconde-se no negrume, insensível à revolta dos
elementos. Fartos dos excessos dos heróis e dos vilões, dos mourinhos e dos Scolaris,
de códigos penais à la carte, do capotamento diário dos camiões, os céus
entraram em fúria e travam lá nos cimos um combate sonoro e luminescente que
ameaça a mesquinhez das nossas rotinas, das nossas vaidades.
E de repente, o contínuo
ribombar do trovão arrasta-me para o final do canto I de Os Lusíadas, e fico a
pensar no Poeta, fascinado e humilde, mas revoltado contra os homens que não
contra a Natura:
No mar tanta tormenta e
tanto dano,
Tantas vezes a morte
apercebida!
Na terra tanta guerra,
tanto engano,
Tanta necessidade
avorrecida!
Onde pode acolher-se um
fraco humano,
Onde terá segura a curta
vida,
Que não se arme o Céu
sereno
Contra um bicho da terra
tão pequeno?
Entretanto, o céu parece
começar a serenar, deixando que um rasto de luz se precipite sobre aquele Tejo
sonolento que eu não vejo, mas que suspeito que continua a correr para o grande
Oceano. Quem me dera partir com ele!
16.9.07
Parece-me que, nesta
última semana, o lagarto atravessou o Atlântico para se rir de mim. Não sei se
tem duas caudas ou apenas uma, mas sei que eu pareço ter duas caras. De facto,
deixei que me elegessem novamente para um cargo a que prometera não voltar. No
entanto, senti que não podia dizer que não. Não podia esconder-me por trás da
memória traiçoeira, nem me refugiar na debilidade que me esgarça os ossos. Esse
tipo de argumentação enoja-me profundamente e, por isso, enquanto puder,
resistirei.
De mim, ninguém poderá
esperar abordagens que não sejam pedagógicas, o que significa colocar-me na
perspectiva de quem defende um ensino mais eficaz, que nunca perca de vista a
valorização humana de cada aluno, mesmo que isso signifique rumar contra o pragmatismo
político, o carreirismo docente e o oportunismo de alguns encarregados de
educação.
A tutela eliminou a
pedagogia das escolas: o currículo e a disciplina substituíram a educação; no
lugar do pedagogo instalou-se o jurista e avança-se com o delegado de
segurança. A palavra de ordem é disciplinar. E para isso a peça essencial é o
"regulamento interno", em permanente atualização…
E o lagarto, trocista,
não deixa de sorrir, mas por enquanto vai ter dificuldade em assustar-me…
10.9.07
De João Ubaldo Ribeiro,
nascido em 1941, na ilha de Itaparica (Bahia, Brasil), o romance " O
Sorriso do Lagarto" descreve-nos um universo brasileiro
desconcertante. Neste romance, a transgressão é a regra: a linguagem de homens
e mulheres é libertina; a sexualidade é ambivalente; a amizade é traiçoeira; a
política é corrupta; a justiça é cega; a religião é dogmática; a feitiçaria é
oportunista; a ciência é irresponsável.
As personagens
brasileiras dão corpo à transgressão, anunciando um presente e um futuro que
pouco tem a ver com a ética ocidental. O homem, apesar de civilizado, despe-se
das luzes, e volta a dar corpo aos instintos mais baixos, mas não regressa à
barbárie. Tudo parece normalizado. Tudo fica impune. O herói, ainda, é aquele
que se distingue pelas suas acções, só que estas situam-se no vasto território
da delinquência.
Quanto à linguagem de
João Ubaldo Ribeiro, pode-se dizer que é esplêndida, impudica, cirúrgica e
narcísica: nela reflete-se a exuberância do Brasil, feito de perversão, de
hibridismo, de ritmo e morte.
«Era um grande lagarto
esverdeado e iridescente, que pôs a cabeça para fora de uma touceira de
margaridas e o encarou, mostrando e recolhendo a língua repetidamente. O
lagarto de João Pedroso, o lagarto que sorria, o lagarto que ainda ia sorrir
mais? Não era possível que um lagarto sorrisse, mas a verdade é que, depois de
se aproximar mais um pouco, sentiu que realmente havia algo de um sorriso em
torno do bicho e não sorria para ele, mas como que sorria dele.»
op. cit, pág. 362,
editora Nova Fronteira
3.9.07
O ano letivo começa mal:
no regresso, os professores fazem fila para preencher manualmente impressos que
irão ocupar, durante horas, um ou dois funcionários que zelosamente
introduzirão os dados em programas informáticos estanques. Lembra aqueles
cronistas que sempre que lhes cabia narrar a história dos seus
"senhores" recuavam a Adão e Eva… Afinal, para que servem os milhares
de computadores espalhados por todo o país? Por outro lado, o próprio
preenchimento dos formulários parece exigir um manual de instruções… Será,
assim, tão difícil a um licenciado preencher o NIF, o NIB, o nº da ADSE,
confirmar a morada, declarar se de um ano para o outro há alterações?
E quanto ao resto, o
indizível…
Numas escolas, a atividade
letiva começa a 10 noutras a 17, dando expressão à autonomia organizativa de
que usufruem. Os professores e os candidatos a professores manifestam-se um
pouco por todo o país contra a ausência de emprego. Os responsáveis
governativos descartam responsabilidades: a culpa é da reduzida taxa de
natalidade, do abandono escolar precoce.
No entanto, parece
estranho que um país que gasta milhões de euros com o envio de militares para
os Balcãs, para o Líbano, para o Afeganistão, para Timor, não consiga traçar
uma política de cooperação, por exemplo, com Angola ou com Moçambique que dê
escoamento aos milhares de jovens (e não só) que, terminado o curso superior se
encontram à deriva e à mercê de um patronato sem escrúpulos, sobrecarregando as
famílias, já de si cada vez mais pobres. É estranho que este país não aposte na
formação linguística dos milhões de emigrantes que se encontram espalhados um
pouco por todo o mundo, como se a promoção escolar pudesse ser um obstáculo ao
bom desempenho laboral do típico emigrante português: pau-para-toda-a-obra.
Qualquer sociedade, que
seja incapaz de gerar trabalho, abre as portas à delinquência, à violência e,
consequentemente, entra num processo de aniquilamento.
Ainda nem todas as portas
estão fechadas, no entanto é preciso pensar a política de outro modo. A acção
política deve dirigir-se à totalidade, alicerçar-se nas portas que o passado
abriu e perspetivar-se em termos de futuro e não apenas de presente.
2.9.07
Sétimo mês do calendário
romano. Para mim, há muito que Setembro é o primeiro…
Mais uma vez, volto à
escola na expectativa de encontrar jovens sedentos de saber ou que, pelo menos,
eu seja capaz de os motivar. Sei que alguns têm objectivos definidos e que
procuram alcançá-los a qualquer preço. Sei, também, que muitos outros veem na
escola um tempo imposto e inútil e, por isso, cedo mostram o seu desinteresse,
de forma passiva ou activa: os mais activos são os mais inconformados e
rapidamente se tornam indisciplinados. (Diria que a indisciplina, ao contrário
do que muitos pensam, é gerada pela própria escola, pelo próprio sistema
educativo. No limite, todos os sistemas procuram disciplinar, normalizar, fazer
obedecer, e, para o efeito, geram normas que convidam ao desvio, à
delinquência.) Sei, ainda, que são raros os que se apresentam disponíveis para
aprender sem exigir contrapartidas.
Neste contexto, confesso
que me sinto cansado, pois, pela 33ª vez, o sistema me convida a fazer de conta
que é possível modificar a heterogeneidade de atitudes sem alterar minimamente
os objectivos, os programas, as técnicas de avaliação; convida-me a fingir que
se eu for um "bom" professor, qualquer insucesso volverá sucesso;
convida-me a aceitar que o fracasso dos meus alunos é o meu fracasso. Todavia,
ao normalizar-me, o sistema convida-me à indisciplina (ou à desistência?) …
E quando chega Setembro, sinto que os muros se elevam
e começo a ouvir, cada vez mais perto, o poema de Fernando Pessoa:
Tudo que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço –
Um mar onde boiam lentos
Fragmentos de um mar de além…
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
13.09.1933
31.8.07
A propósito do Dr.
Vasco de Campos
Rita Campos
Muito obrigado pelo
esclarecimento. A sua explicação sobre a génese e os objectivos da SPDA é
oportuna e valiosa, pois muitos dos actos do ser humano devem ser vistos
numa perspectiva altruísta e não apenas ideológica, no sentido restrito do termo.
Sou lisboeta de passagem:
raros são os pinheiros que sobrevivem na capital e da "caruma" quase
que já não há rasto.
26.8.07
Ocupavam quase todas as
divisões do duplex da Ferreira Lapa.
Uma mesa branca recusava
abandonar o centro de um gabinete de leitura. Não se sabe como entrou, se foi
construída ali. Era impossível fazê-la passar pela porta. Mesmo desmontá-la
revelou-se uma tarefa insuportável.
Nas estantes jaziam ainda
alguns pacotes de livros enviados pelas editoras, sobretudo, francesas.
Aquele espaço, um pouco
kafkiano, exigia ao ocupante algumas capacidades circenses.
EPC, vítima de doença
extremamente debilitante, mudara-se. Mas "o personagem" ficara. Sei
que ainda voltou para recuperar o correio. Subiu lenta e teimosamente até ao 3º
andar. E quando lhe abriram a porta, só pediu uma cadeira para descansar daquela
ousadia. E lá esteve a explicar, entusiasmado, a sua vida, os seus livros, como
se aquela fosse a última vez…
E era. As estantes,
essas, vão ficar brancas e vazias…
24.8.07
A lei de Deus (do
soberano, do príncipe) é despótica, mas há quem diga que é amor!
A norma é dor! Não quer
saber do amor.
Ultimamente, perdemos a
noção da diferença: a norma vestiu a pele da lei. Novas leis convidam-nos
diariamente a engrossar o campo da delinquência. A lei gera o espectro da
ilegalidade, aumenta a desigualdade.
E sob o rosto do
legislador, espreita o amor do soberano que nos esconde que «é mais prudente
reconhecer que a lei é feita para alguns e se aplica a outros (…); que nos
tribunais não é a sociedade inteira que julga um dos seus membros, mas uma
categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem.»
Michel Foucault, Vigiar e Punir, 1977
E por outro lado, tal
como Foucault receava, os juízes demitem-se cada vez mais de julgar, e a
comunicação social (?) não hesita em apropriar-se do espetáculo da
investigação, vulgarizando-a até que a prova se dilua no ceticismo dos
espectadores…
22.8.07
A D. Isabel, minha
hospedeira, deu dois murros na porta do meu quarto, e gritou para dentro:
“Estão ali a chamá-lo para ir assistir a um parto, na Serra».
Levanto-me estremunhado, visto-me à pressa, e espreito por uma fresta da
janela.
Amanhecia. Dum céu cinzento e calmo, peneirava-se uma chuva miudinha, de molha parvos.
Abro a porta da rua. Um recoveiro com um macho albardado seguro pela arreata,
elucida-me:
— «É para ir tirar uma criança à Ti Maria Farrapeira, lá na Serra...».
Há quanto tempo está em trabalho de parto? Inquiri.
«Trabalho... Trabalho... Há quinze dias que não faz nada. Desde que lhe deram
as dores”. Assim se inicia o livro "SERRA! Caminhos de um médico"
de Vasco de Campos, ed. Moura Pinto.
Sobre este médico (e
escritor) nada sabia até chegar à Ponte das Três Entradas. (Como
não gosto de pontas soltas, aqui deixo algum trabalho de férias.) Ao olhar para
uma placa, na entrada do camping, percebi que o homem se revia no pequeno Alva,
que por ali fluía. Entretanto, ao deslocar-me a Avô, verifiquei que o Centro
Cultural, também, tinha como patrono Vasco de Campos. Por outro lado, descobri
que o município de Oliveira do Hospital não só lhe atribuiu e requalificou uma
praça na sede do concelho, como lá lhe colocou, em 2006, o busto. (…
Entretanto, vou pensando no exemplo da Escola Secundária de Oliveira do
Hospital a cuja BIBLIOTECA ESCOLAR foi dado o nome de Dr. VASCO De CAMPOS… e
naquelas escolas por onde passaram e se formaram tantos ilustres escritores,
embora alguns tenham dificuldade em aceitá-lo... E não entendo a amplitude do
anonimato…) E não me sai da cabeça aquele taxista que me explicou que, noutros
tempos, quando o médico Vasco de Campos residia em Avô ou, mais tarde, na Ponte
das Três Entradas, ele era uma figura insubstituível naqueles vales e montes,
sobretudo nos invernos rigorosos, cavalgando o macho para acudir a um parto, a
uma pneumonia, a uma tuberculose, indiferente à riqueza ou à pobreza do
paciente. E que muitas vezes para além de nada cobrar ainda mandava pagar a
conta na farmácia. No entanto, o tom utilizado pelo taxista ao referir “noutros
tempos” lançou-me numa obscura reflexão sobre a relação do médico com a
comunidade local… Apesar de se adivinhar na voz do taxista a gratidão de quem
também beneficiara do zelo do médico, via-se que algo o preocupava, como se o
imobilismo local também fosse da responsabilidade do ilustre médico, poeta e
pioneiro agrónomo e turístico.
(Num outro registo, ia
ouvindo, na rádio que, em Agosto, em Pedrógão Grande, só havia um médico de
serviço.)
PS: A minha obscura
reflexão desanuviou-se um pouco quando li o seguinte: A Sociedade de Defesa e
Propaganda de Avô (SDPA) está a comemorar as bodas de ouro. Fundada
oficialmente no primeiro dia de Maio de 1957 pelo médico e escritor Vasco de
Campos. Parece, no entanto, que a Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô
evoluiu pois “neste meio século de existência a SDPA tem-se vindo a revelar
como a principal alavanca do desenvolvimento da vila de Avô, sobretudo nos
domínios da cultura e da acção social. Impulsionadora do Centro Cultural Vasco
de Campos, em 19 de Junho de 1993, a SDPA – uma instituição de utilidade
pública - tem-se concentrado ultimamente na área da acção social. Em 2004
inaugurou um lar de idosos na antiga e histórica vila, hoje frequentado por
cerca de 40 utentes. Presidida pelo presidente da Junta de Freguesia local,
Aristides Gonçalves, a SDPA possui ainda um ATL, frequentado por 26 crianças, e
é a entidade gestora da ilha fluvial do Picoto – um dos mais belos espaços de
veraneio do concelho de Oliveira do Hospital. A instituição, que é hoje o maior
empregador local, prepara-se agora para construir o primeiro Lar de Acamados do
concelho. Trata-se de um investimento de cerca de um milhão de euros – com
capacidade para 22 utentes – que a SDPA espera inaugurar num espaço de dois
anos. O novo edifício, com uma área de cerca de 800 metros quadrados, será um
prolongamento do actual lar, passando a serem comuns os serviços aos utentes.
Presente na cerimónia dos 50 anos da instituição avoense, o presidente da
Câmara de Oliveira do Hospital, Mário Alves, comprometeu-se a apoiar o novo
desígnio da SDPA, pois conforme considerou a SDPA "tem estado na primeira
linha da cultura e acção social no concelho". A descoberta desta SDP
lança-me outro desafio: quantas SDP terão sido criadas durante o Estado Novo? E
Onde? E o que é feito dessas “sociedades”?
19.8.07
Museu de Esposende
2007 e Ventura Terra
Ventura Terra
Parece-me que a Escola
Secundária de Lisboa Luís de Camões, que, em breve, celebra os 100
anos da inauguração do edifício, bem poderia estabelecer um protocolo com o
Museu de Esposende para que a actual exposição pudesse ser apresentada em
Lisboa.
6 de Agosto
Rio Alto (Póvoa de Varzim).
Praia a 100 metros,
extensa e convidativa. O vento forte e o frio arruínam completamente a
expectativa do veraneante. O Camping da Orbitur, bem organizado, nada pode
contra as leis da natureza, apesar da piscina.
7 de Agosto
O dia acorda menos
ventoso. Cedo, os campistas acorrem à praia. O vento intensifica-se ao longo do
dia, tornando-se dominante. Fico 35 minutos no areal à espera de que o sol
cumpra o seu papel. Nem o sol consegue vencer este inóspito vento.
Em alternativa, regresso
a As Pequenas Memórias de José
Saramago (16.11.1922 -). Concluo a leitura.
Fica-me uma certa
simpatia pelas memórias do autor. Talvez pela proximidade
ribatejana: o tempo da adolescência, vivido na Azinhaga ou no Carvalhal do
Pombo, não é assim tão diferente. A pobreza, o isolamento e a ignorância
predominam. Na primeira república, apesar de tudo, os jovens parecem gozar de
maior liberdade do que no estado novo. Saramago retrata-nos um jovem sensível,
atento às leis da natureza e da sociedade. Ora, durante o estado novo, a
atenção estava voltada para o cumprimento das regras, em detrimento da
autenticidade. Mas não só o autoritarismo do regime atrofiava a
disponibilidade, mas também o relevo irregular e, sobretudo, o clima seco e
quente.
O retrato de família, em
particular, dos avós aproxima-nos: aquele avô enigmático e antipático parece
ser uma figura comum.
A descrição da vida na
cidade de Lisboa, nos anos 20 e 30, ajuda-nos a compreender as dificuldades
sentidas pelos pequeno-burgueses, semianalfabetos, obrigados a viver em
quartos, num universo de cúmplice e, por vezes, promíscuo. Apesar disso, para
Saramago, esse tempo foi de aprendizagem e, mesmo, de algum triunfo. Um tempo
em que toma consciência, em particular, durante a guerra civil espanhola, da
natureza do regime salazarista. O melhor testemunho é quando procura fugir ao
alistamento na mocidade portuguesa ou, pelo menos, procura evitar a
distribuição da farda verde e castanha no Liceu Camões.
Sente-se, em As Pequenas
Memórias, um certo ajuste de contas. Como se o autor quisesse dizer que
o sucesso pouco tem a ver com a origem social e cultural. De certo modo,
Saramago esforçou-se por aplicar a máxima do avô: «Trabalho que se começa,
acaba-se, a chuva molha, mas ossos não parte.»
8 de Agosto
Deslocação para Fão,
Esposende. Camping lotado, residencial. Enfim, lá se arranjou um simulacro de
alvéolo. A praia a 800 metros. Extensa, com menos vento e menos frio. Ao sol
durante 90 minutos. Apesar de tudo, sinto-me melhor numa sala de aula. Sacrilégio,
eu sei. Mas, está-me nos ossos! Estes ossos que se querem separar de mim.
Talvez, para os ter um pouco mais comigo, suporte este ritual de exposição ao
sol. No entanto, sinto que tanto o calor como o frio me debilitam e me deixam
mal-humorado.
Para enganar estes
rituais de Verão, dedico-me a ler Vigiar e Punir, de Michel
Foucault, em traumatizante tradução brasileira. Personagem principal:
o corpo supliciado, espetáculo oferecido pelo soberano ao povo, mas
que a partir de 1840 cedeu o lugar à alma.
9 de Agosto
Museu de Arte de Fão
(inaugurado em 2004). Apresenta a coleção de Eduardo Nery, O Eterno
Feminino, Emoção e Razão, A Mulher na Arte Africana. Predominam máscaras e
esculturas femininas de países como o Congo, o Níger ou o Mali. Em todas elas a
feminilidade se expõe de forma crua, deixando-me a perguntar se este tipo de
escultura resulta de uma divinização da mater biológica e social ou de uma
idealização da beleza feminina. A responsável pela exposição, por seu lado,
coloca-nos uma outra questão, também ela, interessante: Existe
fronteira entre objetos de arte e "artefactos"?
Passeio pedestre a Ofir e
às margens do rio Cávado. Uma longa avenida, rodeada de casas apalaçadas que
espreitam por entre o pinhal. Algumas em ruínas ou transformadas em discotecas
decadentes. Ao fundo, a praia concessionada, lotada de barracas e fregueses. O
rio, lá longe, separado por estevas (?)
2 horas ao sol na praia
de Fão. Um sol agradável, sem muito vento, com água fresquinha…
À noite, observação dos
astros, em Ofir. Vê-se bem o planeta Júpiter e 4 das suas 21 luas. A sessão
poderia ter sido mais didática e o local deveria estar menos iluminado. O
Ciência Viva por vezes desperdiça as oportunidades!
10 de Agosto
De Fão para Esposende, há
paragens de autocarro, mas ninguém se preocupa em afixar qualquer horário. Com
muita paciência, lá se chega ao destino. Esposende é uma cidade (?), onde as
manchas urbanas se cruzam com zonas rurais e ribeirinhas. Tipo três em um.
Aposta-se mais na frente ribeirinha, mas as obras não têm fim. Tudo
atabalhoado. A destoar, as igrejas de lustrosa talha barroca e o museu, onde
tive o prazer de ver uma exposição da obra do arquiteto Ventura Terra.
11 de Agosto
Ida a pé à Apúlia. 40
minutos para cada lado. Sensação de desleixe. A Câmara de Esposende não parece
primar pelo planeamento. Cada um utiliza os recursos naturais como lhe apraz. E
a Câmara, apesar de tudo, deve viver desafogada. Os moinhos da Apúlia estão
transformados, à excepção de 3 ou 4, em casas de veraneio.
À noite, breve incursão
pelo festival de marisco e pela feira de artesanato de Fão. É extraordinário
como os portugueses apreciam a manjedoura! Se o mundo estivesse a acabar, estes
gastrónomos não desviariam o olhar da travessa de marisco. E este ritual repete-se
um pouco por todo o país: de Olhão a Fão.
12 de Agosto
Do litoral ao interior.
De Fão para a Ponte das Três Entradas, junto ao rio Alva.
Ao longo das estradas,
vende-se um pouco de tudo, em feiras improvisadas. Sobretudo, entre Fão e a
Póvoa do Varzim. Fico com a ideia que a ASAE ainda não percorreu estes
estendais de produtos mal-acondicionados e empoeirados. Por outro lado, vou
percebendo porque é que se diz que o Norte está cada vez mais pobre. Não sei se
está mais pobre, mas percebi que desconhecem a DGCI.
13 de Agosto
Viagem num autocarro
extraordinário ao Santuário de Nossa Senhora das Preces. Bilhetes a 1 euro e 79
cêntimos.
Não esquecer Vasco de
Campos.
14 de Agosto
Ida a Oliveira do
Hospital. Perícia do condutor e mau planeamento das localidades, designadamente
de Avô.
15 de Agosto
Chuva na Ponte das Três
Entradas. Almoço no restaurante da Ponte. Falhou a organização: os vizinhos de
mesa, cansados de esperar, abandonaram a refeição; o cozido à portuguesa abusou
da farinheira doce (?). Carote para o serviço prestado. Na Província, há, por
vezes, a preocupação de aproveitar a ocasião.
16 de Agosto
De regresso ao
litoral. S. Pedro de Moel. Praia poluída. Maré cheia, sem areia, com zonas
interditas. Dentro de poucos anos, a praia terá desaparecido. A construção
civil sobre as arribas mantém-se e o oceano torna-se numa enorme cloaca.
17 de Agosto
Verifico que, numa
localidade procurada por milhares de veraneantes, não há uma única caixa multibanco.
Estão anunciadas duas! Ninguém parece reparar nisso. Os CTT abrem, apenas, às
14 horas. Um dos postos clínicos está encerrado para férias!
No parque de campismo da
Orbitur é o salve-se quem puder. O restaurante só serve almoços até às 14
horas. Começo a dar razão àqueles caravanistas franceses que, em Fão, me diziam
que em Espanha e Portugal é tudo igual. É impossível encontrar um lugar
acolhedor e bem organizado.
Continuo a ler Vigiar
e Punir, de Michel Foucault. À medida que avanço na leitura, compreendo
melhor aquela estafada ideia de que os brasileiros subvertem os textos que
traduzem.
18 de Agosto
Como se o destino
existisse, reencontro, em S. Pedro de Moel, dois amigos que não via há 20 anos.
Mas para que isso acontecesse, foi necessário que, simultaneamente, alguém
nascesse e morresse. E para o feito também contribuiu o ruidoso rio Alva que
incomoda o sono leve, que não o meu.
19 de Agosto
Interrupção da viagem. O
Sol, ao contrário do prometido, continua a brilhar sobre a praia poluída de São
Pedro… poluída pela Ribeira dos Milagres. Quem diria?
3.8.07
Para quem nasceu depois
do 25 de Abril de 1974 e sente alguma curiosidade pela euforia revolucionária,
recomendo-lhe que vá ver o filme TORRE BELA, de Thomas Harlan.
Encontramos lá, bem
explícitas, as causas da frustração da classe trabalhadora, mas, sobretudo,
podemos ver por que motivo continuamos a perder terreno em tudo o que respeita
à transformação humanizada da sociedade.
Um filme que mostra como
os portugueses estão habituados a tomar o destino nas mãos sem para isso se
prepararem minimamente. Desde a "arraia-miúda", que içou o mestre de
Avis ao poder, que acreditamos no voluntarismo colectivo ou, em alternativa,
rendemo-nos a todas as formas de messianismo que nos possam libertar deste
desterro acanhado a que orgulhosamente nos agarramos desde o século XII.
Infinitamente pequenos,
sonhamos o infinitamente grande.
O filme TORRE BELA,
apesar de brilhante, por momentos, adormeceu-me o cérebro: sempre que as vozes
se sobrepõem, sempre que o ruído aumenta, a minha atenção recolhe para uma
forma de vigília que me deixa entorpecido. Parece-me uma defesa um pouco
primária, mas que, de facto, me atormenta desde a infância.
Não querendo evocar esse
tempo, fico, contudo, com a sensação de que certas vivências desse tempo
remoto são responsáveis pela minha descrença nos movimentos de massas.
31.7.07
Nas sociedades
democráticas, o exercício do poder está a ganhar músculo… Basta pensarmos na
quantidade de homens e mulheres que cultivam a nobre atividade da musculação…
Ao mesmo tempo que a
legitimidade do poder executivo se esgota em meses, a 'sociedade democrática'
vai definhando. Cientes dessa fatalidade, os executivos rodeiam-se de uma nova
inteligência, defensora de medidas draconianas, apresentadas majestosamente
como redentoras…
Em nome da eficácia, as
antigas corporações são varridas e substituídas por novos "corpos"
(de titulares e outros!) … O puzzle é sedutor, mas esconde as regras ou
deixa-as pingar uma a uma, gerando ansiedade, instalando o desassossego… (Há
quem já não saiba se pode ir de férias!)
Atribui-se ao corpo uma
cabeça e deixa-se que o estômago se alargue. Quanto ao coração, este volta a
ser a sede das atribulações! Tudo bem proporcionado. Mas quando chega a hora da
verdade, escondem-se os resultados, não vá alguém considerar-se mais habilitado
ou mais competente. E porquê?
Porque a inteligência que
nos governa é constituída por vigários que, nas suas dioceses, cultivam o
registo autoritário, deixando aos prelados a palavra redentora. E quando um
desses vigários se excede, o prelado, em vez de o expulsar do rebanho, protege-o
religiosamente da canzoada.
Esta espécie de vigários
(de vígaros?) é colocada estrategicamente em todas as repartições porque é ela
– a espécie – que zelosamente aperta as rédeas à 'irrequieta sociedade'
democrática.
PS: Esta diatribe surge
no dia em que aceitei ser provido como titular.
Resta-me saber do quê. E continuo sem saber qual é a diferença entre ser
titular e "efectivo do quadro de nomeação definitiva". Eu não sei a
diferença, mas uns tantos colegas ficaram a saber porque ao não serem
providos perderam o rasto ao tempo em que integravam o
"QND". Nesta vigariaria nada é definitivo! E estou a referir-me a
pessoas com mais de trinta anos de exercício da profissão docente. Alguns
começaram a exercê-la antes do 25 de Abril, no crepúsculo do Estado Novo.
Tiveram de lidar com a euforia de Abril, vendo-se agora escorraçados… Será
castigo? De facto, as medidas que vêm sendo incrementadas mais não são que um
castigo por um crime que outros cometeram. O crime dos vígaros deste país.
29.7.07
A canícula desfaz-nos
a vertigem e oferece-nos
a aprendizagem da lentidão.
Afogueado, estirei o
pescoço e vi, lá longe, em lenta cavaqueira, o João Barrento com o Eduardo
Prado Coelho.
Compreenderam, ambos, por
viagens distintas, que mais vale fugir da vertigem do Sol.
E eu que, desde criança,
aborreço o Estio, instalo-me na miudeza das letras, à espera que a canícula
cesse… e começo a apreciar a vagueza dos enigmas.
Ultimamente, os enigmas
ou, melhor, os dilemas vêm-me sufocando e, eu, irresponsável, não percebia que
eles me convidavam a reaprender a lentidão, tal como a canícula que se abate
sobre a cidade.
24.7.07
Dorme
ali, num banco de Jardim… na Praça José Fontana
Há dias, sob um lençol de
luz, morto ou vivo, Z dorme indiferente ao ruído da cidade.
- As portadas do Liceu
abrem para os pátios interiores, e simétricos na cegueira, esquecemos…
Interrogo-me, entretanto,
se não será José Fontana quem, descrente da fraternidade, ali repousa…
Quem quer saber quem foi
José Fontana?
Quem quer saber o nome de
quem por ali dorme?
Procurar saber foi em
tempos um dos objetivos da escola pública!
E, hoje, que valores é
que nos orientam, ali, na Praça José Fontana?
20.7.07
Lembram-me os exames de
consciência em que o sujeito oculta deliberadamente a sua preguiça, a sua
má-fé… Os exames escritos deixaram de testar os conteúdos mais complexos,
limitam-se a aspectos marginais e, por isso, os alunos que passaram o ano a
estudar são os mais prejudicados, assim como os professores que procuraram
cumprir os programas.
Como resolver esta
perversão? Criando equipas para a elaboração das provas, independentes da
tutela ministerial. Em matéria de avaliação, não há nada mais nefasto que o
comissário político.
Essas equipas teriam a
função de elaborar as provas de exame, respeitando rigorosamente os objectivos
e os conteúdos dos programas. As equipas de autores e de auditores devem ser
constituídas por professores do ciclo de ensino a que as provas dizem respeito.
A intervenção de professores do ensino superior – desarticulado dos outros
graus – deve ser evitada.
Infelizmente, o caminho
tem sido outro: a irresponsabilidade cresce de ano para ano; os dirigentes
entendem que "é humano errar" e que as culpas são sempre dos outros…
e lá continuam como se ninguém saísse prejudicado…
Há, em Portugal, uma
crença muito conveniente: somos todos igualmente capazes, sobretudo se não for
preciso fazer um esforço… Procuramos a facilidade e odiamos aqueles que
persistem em vencer os obstáculos.
PS: O comissário político
está a alastrar como alastraram, no passado, os frades e depois os barões. Viva
o cacique! Vivam os almirantes!
15.7.07
A propósito de um
pedido de desculpa…
Num país com tão pouca
vontade de trabalhar, como é possível obter boas classificações em disciplinas
que exigem método, disciplina e sacrifício?
Num país em que os poucos
que se esforçam se veem condenados ao desemprego ou, na melhor das hipóteses, a
empregos precários e mal remunerados, o que é que podemos dizer aos jovens que
se prepararam para os exames, estudando os conteúdos mais árduos, e que
acabaram por ver defraudadas as suas expectativas?
A fraude começa no 1º
exame e repete-se até ao final da licenciatura. Uma licenciatura que,
entretanto, deixa de o ser… é apenas o 1º ciclo de um processo inventado para
alimentar clientelas. E essas clientelas são cada vez mais constituídas por
políticos analfabetos! Clientelas que distribuem as prebendas e as comendas
entre si.
Há anos que os exames não
separam o trigo do joio!
E agora ainda inventaram
o critério de avaliação que permite aferir da qualidade do trabalho do
professor pela comparação entre as classificações atribuídas por si e as dos
colegas da mesma escola e, sobretudo, pela comparação com os resultados dos
exames finais. Como é possível comparar o trabalhador honesto e responsável com
o que vive da fraude?
Imaginemos que, numa 6ª
feira, às 19 horas, necessito de atravessar a Ponte 25 de Abril. Parto da Praça
de Espanha, três faixas de rodagem – só a central dá acesso à Ponte. Cumpro
aplicadamente o código. Só por volta das 20:15, ultrapasso a portagem. Entretanto,
à direita e à esquerda, automóveis, autocarros furam, velozes, e gastam menos
30 minutos do que eu a atingir o mesmo destino. Terá valido a pena ter estudado
e aplicado o código da estrada? Em Portugal, não. Para os Ministérios da
Educação e do Ensino Superior, também não!
Todos sabemos que a
fraude existe em todos os sectores da vida nacional e, na área da educação, ela
assume proporções incontornáveis. O polvo deixou de estar escondido e os seus
tentáculos, oportunistas e ignorantes, movem-se continuamente asfixiando a presa.
9.7.07
Estou naquela fase em que
oiço vozes ininteligíveis capazes de destruir qualquer templo… com ou sem
comunhão, esse ritual de disfarçada antropofagia prenunciadora de morte sem
ressurreição. Sei, agora, que há anos que não oiço a voz inconformada do Silva
Carvalho – uma voz, por vezes, claustrofóbica, mas que procurava o silêncio das
paredes para sair daquele corpo pesado e libertar-se em extensas pautas
brancas; uma voz capaz de combater o estereótipo com outro estereótipo. Não lhe
ouço a voz nem lhe percorro as pautas silenciosas que em vão se me oferecem,
como se o compositor não passasse dum excêntrico capaz de percorrer continentes
à procura de uma razão outrora perdida…
E fora dessa razão, as
pautas libertaram-se das amarras e impõem-me que as percorra, tão sozinho como
o Poeta desavindo com a convenção e a tradição do Ocidente:
Que resta do pensamento?
Penso que sinto
o poema como se fosse a
realidade de onde brotou,
penso que me sinto como
se a realidade que sou
não fosse oriunda de
nenhuma realidade,
penso que pensar é um
mundo à parte do mundo
onde se vive como parte
ou partícula
dita tantas vezes
insignificante. Que resta
pois de mim quando nenhum
rosto sai ou entra
na imagem que de mim se
desfaz enquanto perfaço
palavra a palavra,
sentido a sentido, o poema?
Ser é não estar, é passar
como o tempo passa
sem que a passagem seja
presenciada pelo tempo.
É repetir mil vezes a
pergunta fatídica
para que a resposta não
possa ser figurada.
Silva Carvalho,
(29/6/1992) extrato de Os Factos do Pensamento ou a Terrível Figura do
Impensável, Crítica das Representações, Brasília Editora, Porto
PS: Talvez pudesse ter
optado por escrever um lacónico e-mail! E o Silva Carvalho (não confundir com o
Armando), lê-lo-ia pensando: «este gajo não leu nada do que lhe ofereci!» E
teria razão, e é pena, porque esta voz acabará por se levantar dum chão que
nunca calcou, por escorrer das paredes noturnas em pleno meio-dia…
5.7.07
(O fotógrafo suicida pede
desculpa à vida e retira-se para não perder mais paisagens.)
Há quem diga que viajamos
para tirar fotografias. De facto, a viagem e a fotografia, confundem-se, para
mais tarde nos iludirmos.
Da viagem fotografada
fica a sensação de perda irremediável, de desencontro fatal, como se a
imobilidade pudesse adiar a morte. Aí, o fascínio pela imagem – cristal!
Ora a fotografia
imobiliza, toma formas letais sob películas de vitalidade esplendorosa - dos
olhos agigantam-se corpos de areia! E das areias elevam-se cinzas vulcânicas.
Lá ao fundo, à volta do
coreto, um pouco mais adiante, na tímida alameda, o fotógrafo ignora as paredes
de cartão porque quem fixa de frente a morte acaba por cometer suicídio.
4.7.07
«Pelo contrário, os
oficiais medíocres preocupam-se mais em saber se o equipamento está em bom
estado de funcionamento do que o seu pessoal.» Daniel Goleman, Trabalhar
com Inteligência Emocional, Temas e Debates
Hoje, de acordo com
Daniel Goleman, considero-me um "oficial medíocre", pois passei uma
boa parte do dia a fazer um inventário de espaços e equipamentos degradados e
avariados. Devo dizer que o pessoal, na sua maioria, andou por longe, talvez experimentando
os ventos que nos fustigam… Mas é quase sempre assim nesta época do ano!
Apesar de "oficial
medíocre", devo referir que a qualidade do espaço condiciona a
aprendizagem e que por isso o "pessoal" se sente desmotivado para
ensinar e aprender em salas, onde há muito não entram nem pedreiros, nem
carpinteiros, nem pintores, nem…
Quanto ao equipamento
avariado, o que se verifica é que a falta de um habilitado responsável pela sua
manutenção inviabiliza qualquer tentativa de mudança de processos de ensino. É
inútil dar formação ao pessoal se o espaço e os equipamentos se degradam diariamente
sem qualquer esforço de reabilitação.
A liderança passa por uma
atenção muito particular às circunstâncias em que o homem aprende e trabalha,
devendo estar especialmente atenta à qualidade das ferramentas e à sua
distribuição equitativa. Se isso não acontecer, a curto prazo, a liderança torna-se
autoritária e, finalmente, irresponsável, pois acabará por destruir a
instituição, arrastando para o desespero todos aqueles que, em algum momento,
nela acreditaram.
PS: A IGREJA das
"almas" há muito que se preocupa em receber bem os
"corpos"! Atente-se no ar puro e limpo da Igreja matriz de Avis! E,
pelo contrário, observe-se o lado terroso da memória Joanina!
1.7.07
No Maranhão, terra
de maranhas...
Por (de)formação
profissional poder-se ia pensar no lugar onde o Padre António Vieira proferiu o
famoso "Sermão de Santo António aos Peixes" e também donde
enviou as famosas "Cartas do Maranhão" a El-Rei D. João IV, a
partir de 1654. Não. Estou a referir-me à Barragem do Maranhão, situada no
concelho de Avis, a 165 Km de Lisboa.
Lá decorreu, neste fim-de-semana, uma interessante competição de remo,
"patrocinada" pelo Mestre de Avis. Havia dezenas de remadores, de
ambos os sexos, um pouco de toda a parte: Barreiro, Setúbal, Figueira da Foz,
Gondomar, Póvoa do Varzim... O associativismo continua vivo! A organização
local esforçou-se por ultrapassar a falta de meios e de apoio federativo...
Mas, se não fosse assim, não estaríamos em Portugal!
O Parque de Campismo Municipal, em remodelação, oferece sossego e boas
instalações aos campistas, apesar de, por exemplo, para ter pão a um Domingo,
ser necessário requerê-lo à 6ª feira. Mas onde estaríamos nós se não fosse assim?
Lá, no quase deserto Maranhão, ainda é possível observar as aves de rapina,
protegidas pela serra alentejana, e alimentadas por reses desafortunadas e
pelas águas cada vez mais abundantes.
Triste está o casco histórico de Avis, sobretudo no que respeita ao património
medieval. E é pena! A Rua da Mouraria, onde ficaria a casa do Mestre de Avis,
merece ser conservada de outro modo. A não ser que a ligação do Mestre a Avis
não passe de uma patranha ou de uma maranha. Afinal
"maranha" pode significar "intriga", "enredo"
e maranhão "grande mentira". O topónimo consagraria,
deste modo, um lugar em que os seus habitantes seriam dados à arte de
enredar no sentido denotativo e conotativo. E talvez algum dos
habitantes de Avis, aventureiro ou forçado, tenha um dia aportado às terras de
Vera Cruz e dando expressão à maledicência lusa tenha entendido por lá replicar
as maranhas, permitindo que o Padre António Vieira escrevesse ao Rei D. João
IV: «Tudo neste Estado - o Maranhão - tem
destruído a demasiada cobiça dos que governam, e ainda depois de tão acabado
não acabam de continuar os meios de mais o consumir.» - Palavras
visionárias que, afinal, não anunciavam o V Império, mas o saque contínuo dessa
emaranhada raça que persiste por esse mundo fora.
28.6.07
No início dos anos 80,
Alberto Sampaio defendia que o problema português tinha uma causa bem definida:
demasiados portugueses viviam do estado providência - os parasitas e os
preguiçosos; os militares e os polícias; os sindicalistas e os políticos; e,
sobretudo, os velhos e os doentes...Ouvi-lo, afligia, dava vontade de o
esganar.
Ao mesmo tempo, Alberto Sampaio
defendia que os professores perdiam o seu tempo a «lançar pérolas a porcos». -
Como é que um jovem de 15 anos poderia compreender Camões épico? - E o lírico?
- E Antero? De que servia explicar-lhes a tese e a antítese? - Ainda se
aprendessem o ofício de carpinteiro? - Ou de eletricista?...
Alberto Sampaio era
desconcertante, vestia de cinzento, cultivava a altivez e regava religiosamente
uma nogueira que se recusava a crescer, o que o deixava à beira do suicídio.
Tinha especial prazer em dizer e fazer mal à "ursa" que lhe aturava
as caturrices. E para cúmulo defendia que a obra literária do comunista Manuel
da Fonseca era a mais reacionária da literatura portuguesa pós-segunda guerra
mundial.
Várias imagens vívidas de
dor e de velhice lembraram-me, hoje, que o pedagogo
Alberto Sampaio, "ventoinha" encartado, talvez tivesse sido professor
de alguns dos actuais ministros, a começar pelo ministro da saúde e a acabar na
ministra da educação..., especialmente do primeiro que teve uma ideia um pouco
menos radical do que a do mestre, pois este defendia a eliminação pura e
simples dos doentes e dos velhos - o ministro acrescentou-lhe uma pérola: por
que não oferecer aos doentes pobres (e mais ou menos velhos) os
medicamentos que se encontrem fora de prazo?
PS: Sobre a
voluntariosa ministra da educação, prefiro não falar a não ser para dizer que
lhe falta, pelo menos, uma qualidade (competência?) essencial: «Aqueles
que possuem iniciativa agem antes de serem forçados a tal por forças externas.
Isto implica muitas vezes agir por antecipação, para evitar problemas antes de
estes surgirem ou tirar vantagem de oportunidades, antes de estas serem
visíveis para as restantes pessoas. E quanto mais alto estiver situado na
escala executiva, tanto maior é a janela de antecipação...» Daniel
Goleman, Trabalhar com Inteligência Emocional
25.6.07
Farto de rituais,
percorro o corredor à espera do déjà vu: uma ata que faça justiça
aos estados de alma de uma minoria insatisfeita e que se está borrifando para o
princípio da equidade - os mesmos critérios para todos os examinandos; uma ata
que interpele o sistema, mas que não fira a sensibilidade próxima.
Interpelado, quando
observava a Machado de Castro e pensava na irresponsabilidade com que se
encerram, deixam ao abandono e à voracidade dos predadores, um sem número de
edifícios escolares, regresso à sala para ordeiramente, qual ovelha mansa,
assinar a referida ata e, finalmente, poder "levantar" as provas de
exame.
Uma sensação física de
náusea instala-se na pele e esfarela-se nos ossos e, sobretudo, anula-me o
intelecto.
Dias mais tarde, para me
aturdir um pouco mais, soube que a interpelação de que fora objecto resultara
de uma queixa de uma colega ofendida pelo meu
desinteresse e alheamento por aquela cerimónia tão enriquecedora e
prestigiante.
Eu sei que o meu
desinteresse pelos rituais vem, pelo menos, da adolescência. Nesse tempo,
passava horas intermináveis a olhar para os querubins dos tetos, a observar
capelas laterais, sempre com a mesma sensação de vazio, pois os morcegos
raramente abandonavam a noite esfumada da arte sacra. Na repetição dos olhares,
esvaziava-se a visão e prolongavam-se os odores miríficos das açucenas
esmagadas por piruetas de incenso...
Desse tempo monástico,
restam algumas imagens desfocadas, o luxo do silêncio dos lírios e sobra,
também, a ideia de que o meu alheamento não incomodava ninguém. Durante esses
longos cinco anos, nenhum colega - chegaram a ser 300 (?) - apresentou
queixa contra mim... e os extensos corredores convidavam à meditação,
sobretudo aqueles azulejos feridos pelas baionetas napoleónicas...
Acabei, todavia, por ser
polidamente convidado a abandonar o falanstério e a reflectir sobre a minha
(in)capacidade de aculturação, tarefa que ainda não completei... como se vê...
Felizmente, para mim,
naquele tempo ainda não existia a lista dos excedentários, mas, hoje, do fundo
da adolescência começa a erguer-se um cajado que se quer abater sobre a ovelha
delatora...
23.6.07
Os
tanques não são muito diferentes!
O filme da checa Vera
Chytilova, Qualquer Coisa de Diferente (1962), procura
responder à pergunta: "Que sentido tem - se é que existe um sentido -
sacrificar tudo a um objectivo cujo valor é frequentemente imaginário e que não
estamos mesmo certos de atingir?"
A resposta ortodoxa,
mas primaverilmente irónica, diz-nos que o sacrifício da
ginasta Eva Vosakova é compensado pelo triunfo esmagador, pelo reconhecimento
público e oficial. No entanto, no pódio soviético só há lugar para a campeã...
não há medalhas nem de prata nem de bronze!
Num plano mais burguês, a
outra protagonista, Vera, a dona de casa, ignorada, desforra-se nos amantes,
para, no final, se reconciliar com o marido, também ele a viver uma aventura.
Neste filme, o que parece diferente torna-se ortodoxo: Eva Vosakova prepara uma
nova ginasta, aplicando a mesma metodologia que o seu professor; Vera, depois
de uma cena de vitimização, "refaz" o lar...
A fuga - Qualquer
Coisa de Diferente - é anulada antes de os tanques soviéticos
invadirem Praga...
(Depois de ver este
filme, fiquei a pensar se ainda faz sentido sacrificar tudo a um objectivo,
tendo em conta que, a qualquer momento, os "tanques" podem
esmagar-nos, em nome de um pragmatismo económico-financeiro para o qual a
história pessoal e colectiva deixou de fazer sentido.)
17.6.07
Afinal, sempre tinha
razão: a 'portugalidade' foi evocada; a lusofonia nem por isso. Os compadres
das Academias do Bacalhau de Lisboa, do Estoril e de Estremoz continuam a ver
no "Poeta “o fiador da sobrevivência de Portugal. E sintomaticamente,
acrescentaram ao "Luís", o Miguel (Torga), ambos declamados por Vítor
de Sousa. E para além dos Poetas, não faltou o Fado, irmanando erudição e
tradição.
O longo e concorrido
'jantar camoniano' decorreu numa movida euro-tropical, com algumas interrupções
para celebrar o protocolo da ABL com a Associação da Força Aérea Portuguesa,
que acolheu o evento, e, sobretudo, para homenagear os melhores alunos de
Português da Escola Secundária de Camões - Marisa Ferreira e Manuel Pata. Estes
foram presenteados com diversos prémios, que receberam alegre e estoicamente,
sob o olhar "reitoral" do prof. António Figueiredo, que aproveitou a
ocasião para enaltecer a grandeza da instituição camoniana e censurar a
pequenez dos decisores políticos que, ao longo dos anos, destruíram as
'fileiras' comercial e industrial...
Nota pessoal: No que me
diz respeito, não posso dizer que tenha aproveitado mal o tempo, apesar da dor
de cabeça que apanhei. Fiquei com a sensação de que os jovens homenageados
gostaram do evento, tal como os pais da Marisa e o pai do Manuel, isto sem
falar do ar radiante da professora Isabel Alexandrino. E para mim isso basta.
Fiquei, no entanto, sem saber quem são os meus amigos "taveiras" do
Camões, mas essa responsabilidade não a posso atribuir à ABL!
16.6.07
Hoje, às 20 horas, sou
convidado da Academia do Bacalhau de Lisboa, por mérito de dois alunos da
Escola Secundária de Camões: Marisa Ferreira (11ºA) e Manuel Pata (12ºE). No
que à Marisa concerne, devo dizer que o prémio "melhor aluna em Língua
Portuguesa" lhe assenta perfeitamente porque, ao longo dos dois últimos
anos, se revelou uma leitora consistente e metódica, e para quem ler é um acto
de permanente aprendizagem e, sobretudo, de aperfeiçoamento da escrita e do
ser.
Quanto à iniciativa da
Academia do Bacalhau de Lisboa, esta merece louvor por promover a lusofonia,
embora eu queira crer que o verdadeiro objectivo é promover a portugalidade,
tendo em conta a génese e a inserção de muitas das actuais 25 academias do
Bacalhau - as comunidades da diáspora portuguesa e as «ilhas» de portugueses
que um dia pisaram solo africano...
Claro que para muitos não
há diferença entre 'lusofonia' e 'portugalidade', mas, para mim, a lusofonia
pressupõe projectos interculturais de que, infelizmente, andamos arredados. No
entanto, espero que esta cerimónia de entrega de prémios me prove que a minha perceção
deste tipo de iniciativas está errada.
Para além da questão
teórica e cultural que lhe subjaz, daqui agradeço a iniciativa a todos os
compadres da referida Academia, assim como agradeço a abnegada colaboração do
professor António Souto, sem esquecer a aceitação da proposta pelo Conselho
Executivo, nas pessoas dos professores António Figueiredo e Isabel Ramos.
13.6.07
Num tempo em que o poder
privilegia a anglofonia, impondo o Inglês como língua global, começo a pensar
que o silêncio em torno da Casa da Lusofonia é estratégico. Não é raro ver
governantes basbaques, deliciados com as proezas anglófonas das nossas
inocentes criancinhas. Quanto à lusofonia, vemo-la ser desvalorizada a cada
passo: os media desprezam-na; os políticos atropelam-na e os
linguistas e didatas (se é que ainda existem!?) reduziram-na a um sistema de
códigos de que basta conhecer alguns truques para que o locutor seja
considerado habilitado ou, melhor, proficiente.
E para confirmar a nossa
apetência pela res anglo-saxónica basta lembrar a competência de
Guterres, Sampaio ou Durão que falam a língua do império como
se nele tivessem nascido. Também, aqui, poderíamos defender a francofonia, mas
o exemplo que nos sobra desse tempo da hegemonia libertária - Mário Soares -
nunca revelou o mesmo grau de competência dos seus herdeiros. Felizmente!
Em 30 anos, o francês
desapareceu das nossas escolas e se ainda se ouve nas nossas ruas é porque,
ritualmente, os emigrantes regressam para nos lembrar o êxodo dos anos 50 e 60
do século XX. O francês começa a ser uma língua nostálgica como as canções de
Piaff, Ferré ou Brell...
Ora a Casa da Lusofonia é
um pouco como o Museu Imaginário de Malraux - já só existe no cérebro daqueles
que, por força da colonização, desembarcaram/aterraram um dia no Hemisfério
Sul, sonhando que seriam capazes de para lá trasladar o "Portugal dos
Pequeninos". E são certamente esses prisioneiros do antigo império que,
perdidas as terras e as gentes, decidiram reunir-se em academias itinerantes...
ou, mais modestamente, em casas lacustres.
À estratégia deste jogo,
mais aberto ou mais escondido, pouco importa se estamos vigilantes: os
jogadores já pensam no próximo lance...
11.6.07
Hoje, 11 de Junho de
2007, num país de intriguistas, de trânsfugas, peneirentos e interesseiros,
devo registar que ainda há pessoas abnegadas, que tudo fazem para resolver
problemas que outros, impunemente, lhes criaram.
No dia em que termina o
prazo de candidatura para professores titulares, estas pessoas mostraram que se
pode ser titular sem somar pontos.
A injustiça espreita
sempre que deixamos de olhar de frente as pessoas; sempre que as transformamos
em número, em mercadoria.
Passámos a viver num país
de mercancia, que procura a todo o custo integrar o planeta da globalização: um
planeta deserto de pessoas...
Felizmente, ainda, há
algumas pessoas!
9.6.07
Há muita gente que
deveria ver atentamente os filmes de Ernst Lubitsch (Berlim, 1892-Hollywood,
1947), designadamente o filme The Shop Around The Corner /
1940. Na cópia portuguesa, A Loja da Esquina. Um filme sobre a
verdade e a simulação. Nas palavras de João Bénard da Costa, apesar de
sabermos «que Lubitsch era um fingidor, nunca o vimos fingir tão sinceramente.
E por isso também chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. The
Shop Around The Corner inventaria o poema de Pessoa se ele não tivesse
já sido inventado. Mas é diferente em palavras ou em imagens.
Porque estas fingem ainda mais e doem ainda mais.»
Como é que as imagens
fingem ainda mais e doem ainda mais do que as palavras?
A não ser que, propositalmente,
as palavras se tornem inócuas, deixando órfãos os corpos... e dos seus donos
fiquem apenas imagens de incómodo, de fuga, prontas a impor uma nova
verdade..., como se antes nada tivesse acontecido.
A tabula rasa não
é, afinal, mais do que uma estratégia de rejeição da História, em que simulação
e verdade são as faces da mesma moeda.
E todos os dias o
cilindro da tabula rasa avança, triturando direitos,
identidades, vidas... Em nome do quê?
Impunemente...
7.6.07
Desafio
falhado, desafio orquestrado...
Por isso escrevo em meio
/Do que não está ao pé, /Livre do meu enleio/ Sério do que não é. Sentir? Sinta
quem lê! Fernando Pessoa menino guerrilheiro (?)
de
DIANE ARBUS
É mais fácil copiar,
dizer mal, rir... do que procurar!
Como é que as granadas
caíram nas mãos deste audacioso menino?
Para onde é que ele está a olhar? Para nós?
Ou vítima do fotógrafo, limita-se a posar para a objetiva manipuladora do real?
De que modo é que a mediação nos controla os sentidos e nos sabota a razão?
Quem é que está no meio? O menino? O fotógrafo? E nós, onde é que nos
encontramos?
5.6.07
Com granada, não há fome
que atrapalhe! Descubra a foto e comente-a.
2.6.07
Os
nós estão cada vez mais soltos...
A verdade é cada vez mais
impressiva. Já não se alicerça numa crença ou numa certeza. Já não necessita de
fundamentação. Na melhor das hipóteses, exige debate público. Espetáculo.
Encenação. Diversão.
Outrora, não havia
verdade sem autoridade. Hoje, relativiza-se a autoridade. Os pilares da igreja,
da ciência, da educação são arrasados na praça pública.
Todos os dias assistimos
à implosão da autoridade. Por enquanto ainda vamos tomando partido, mas por
pouco tempo. Os nós estão cada vez mais soltos.
Desistimos de explicar os
princípios, eliminámos os objectivos. Passámos a avaliar referenciais de
competências pontuais, transversais... à beira da reciclagem.
A inteligência está a ser
substituída pela competência. A competência das castas! O cerco intensifica-se
a cada dia que passa, e os párias amontoam-se, de portátil debaixo do braço, em
transe...
25.5.07
Hoje, sinto-me incapaz de
classificar a relação semântica entre prosápia e jactância. No entanto, o país
está a ser invadido pelo amor-próprio: via SMS, uma editora diz-nos «esperamos
que goste dos novos projectos da Texto Editores que enviamos especialmente para
si. Com a nossa estima...»; cartazes, na 1ª pessoa, ferem-nos a retina em todas
as esquinas da capital; políticos e comentadores deixaram de ter dúvidas sobre
o que quer que seja, desde a OTA ao POCEIRÃO; há mesmo quem assegure que, no
próximo ano, o Benfica vai ser campeão; a força ilocutória da 1ª pessoa de
certos verbos tem vindo a crescer: eu garanto, eu suspendo, eu homologo, eu
demito, eu delato, eu nego, eu afirmo, eu juro, eu advirto, eu asseguro... uma
perigosa litania verbal que também poderá ser expressa de outro modo:
Eu represento a
divindade, por isso o que eu digo é indiscutível...
Eu sou a própria
divindade e, portanto, eu só posso dizer a verdade...
Eu sei de fonte segura...
Eu nem preciso de fonte!
Eu sou a própria fonte! E
por isso eu decido
quando devo falar
quando devo ficar calado
Eu giro a palavra e o
silêncio a meu belo prazer
Só eu sei quando digo
sei
não sei
e por princípio nego que
alguma vez tenha sabido
Quanto ao outro, só eu
sei!
21.5.07
Casa da Lusofonia
inaugura espaço aberto a culturas 10-05-07 "A
Casa da Lusofonia, um novo espaço de cultura, em três pólos, vai ser inaugurado
em Lisboa no próximo dia 12 de Maio. Trata-se de uma iniciativa da organização
não-governamental Etnia - Cultura e Desenvolvimento com o
apoio da Escola Secundária de Camões, da Junta de Freguesia de S. Jorge de
Arroios e que conta com o apoio de instituições portuguesas e brasileiras.
Haverá uma sessão formal de inauguração com visita às instalações seguida de um
jantar com a gastronomia tradicional dos países da CPLP. E, segundo um dos seus
promotores, Vladimiro Cruz, da Etnia, o objectivo é que haja uma
Casa da Lusofonia em Cabo Verde, na Guiné-Bissau, Brasil e demais países de
língua comum. A participação no espaço será efetuada mediante determinados
critérios e condições patentes no Regulamento de Funcionamento da Casa
da Lusofonia, que está em preparação e que será publicado brevemente. A
Etnia é uma associação que tem parcerias com diversos países, nomeadamente o
Brasil, e tem desenvolvido programas de comunicação, cinematográficos e de
difusão da língua portuguesa, em muitos lugares, como Portugal, Brasil, Cabo
Verde e Guiné-Bissau." Reação ao artigo: Manuel Gomes "Casa
da Lusofonia inaugura espaço aberto a culturas" Não deixa de
ser perturbador que o corpo docente da Escola Secundária de Camões não tenha
sido informado da cedência das "Caves", nem da parceria negociada com
a Junta de Freguesia de S. Jorge de Arroios e com a ONG "ETNIA", sob
os auspícios da CPLP e das autoridades portuguesas (Quais?). Quem quer explicar
o secretismo da iniciativa?
Notas soltas:
1. "De ascendência
cabo-verdiana e nascido na Guiné-Bissau, o autarca João Taveira mostrava,
entusiasmado, às perto de 200 pessoas que o seguiam na visita às catacumbas do
emblemático Liceu Camões, agora escola secundária, o espaço farto, mas ainda nu,
onde crescerá a “Casa da Lusofonia” na capital portuguesa. Este projecto
inédito da “tal” sociedade civil, de quem muito se reivindica em discursos
oficiais, mas quando surgem e se não forem autossustentáveis, acabam caindo
sozinhos ou, senão mesmo, atrofiados por quem explorou a sua criatividade ou
dela usufruiu."
2. "Luís Fonseca,
secretário-executivo da CPLP, considerou “consistente” esta iniciativa da
sociedade civil, contrariamente a outras que têm aparecido, mas que se diluem,
naturalmente, sem meios. O ex-secretário de estado brasileiro da cultura, Paulo
Miguéis, antigo “braço direito “de Gilberto Gil, notou ser esta uma “aventura
que mudará a vivência dos portugueses”. Defende um conceito novo de cultura: “É
preciso levá-la aos locais e deixar que a cultura não seja apenas dos que lêem
muito, mas também de iniciativa de gente simples. Através das suas atividades
estar-se-á a desenvolver a cultura e língua comum”, disse, exemplificando que
preservar o ambiente é um acto de cultura. Observou ser necessário um trabalho
árduo de mecenatos e patrocinadores, à semelhança da empresa brasileira Telemix
celular que aderiu a este projecto e lançou já um concurso lusófono, do melhor
filme por telemóvel, a enviar até Setembro,
para www.telemix@celular.br"
3. Mário Alves,
responsável pela “Etnia” e companheiro de carteira de João Taveira neste mesmo
liceu, instituição-referência onde estudaram destacadas personalidades -
o escritor Manuel Lopes foi uma delas - explicou que a Casa da
Lusofonia é parte de um projecto cuidadosamente elaborado que já vem
desde 2004 e que foi apresentado em Bissau no decurso da Cimeira
Cultural da CPLP, e que foi uma consequência das muitas iniciativas, que esta
organização não governamental tem feito no Brasil.
4. Fonte das notas
soltas: otilia.leitao@gmail.com
PS:
A CPLP quer promover um novo conceito de cultura - a cultura do
lugar... sem leitura! Por isso os responsáveis pela iniciativa não
estabeleceram qualquer contacto com aqueles e aquelas que, sob a égide de
Camões, promovem diariamente a leitura da lusofonia. Bem poderiam ter
aproveitado a cratera que deixaram aberta, junto ao Palácio dos Alfinetes, em
Marvila. Uma cratera em que, há uns anos, uma criança morreu afogada. Que os
arroios, revoltos, não nos afoguem a todos!
18.5.07
Um pouco por todo o lado,
vemos cadeirões ser substituídos por cadeiras, num processo de rejuvenescimento
prometedor.
Claro que me estou a
referir aos assentos de responsabilidade: do Senhor Blair ao Senhor Chirac,
para falar apenas dos mais ilustres... Por cá, o Senhor Costa promete libertar
a capital do cadeiral, e colocá-la no mapa global (versão recente do mapa-mundo).
Mas o Senhor Costa já há uns tempos que não lê o seu mentor republicano -
Teófilo Braga - pois, se o fizesse, saberia que antes de olhar para o mundo,
convém descer às caves, arejá-las, antes que as ossadas saiam dos armários e
nos lancem numa batucada de arromba.
No entanto, duvido que o
envernizamento das cadeiras consiga restaurá-las. Não é que eu tenha alguma
coisa contra a limpeza das fachadas. Mas, de facto, falta-lhes o miolo. E
quando este não falta, deve-se sempre mandar analisá-lo, não vá o verniz disfarçar
a ferrugem ou, pior, esconder o bolor.
E a despropósito, vou
citar BOLOR de Carlos de Oliveira: «Os versos/que te
digam/a pobreza que somos/o bolor/nas paredes/deste quarto deserto/os rostos a
apagar-se/num frémito de espelho/e o leito desmanchado/o peito aberto/a que
chamaste/amor.
De facto, onde é que as
cadeiras se cruzam com o leito?
(- Não há por aqui sombra
de contexto!? Ou como perguntava um desencantado professor: Como é possível
começar a dissertar sobre cadeirões e acabar em bolor a desrimar com amor?)
13.5.07
Deixou de se fumar
cachimbo nas varandas… O cigarro sai e entra pelas narinas, ao desafio,
trocista, atravessa os pátios… Eduardo Prado Coelho, no
dia 11 de Maio de 2007, no Público, voltou a referir-se ao
«extraordinário professor», Mário Dionísio que teve no liceu
[Camões], que fumava cachimbo e que teve a tentação de imitar. Mas EPC
desistiu, quando percebeu que o seu «professor David Mourão-Ferreira tinha uma
trabalheira imensa para conservar o hábito do cachimbo…» Será que os
condiscípulos de EPC, Mário de Carvalho e João Aguiar também tiverem a tentação
de imitar os mestres? (Uma pergunta por fazer) Eduardo Lourenço que não
terá passado pelo Liceu Camões, ao escrever, em 1968, Sentido e Forma
da Poesia Neorrealista, não se referiu a Arquimedes Silva Santos, a Mário
Dionísio ou a Manuel da Fonseca porque, apenas,
convivera com os cachimbistas [apesar de não estarem obrigados a ser
portadores do implícito] de Coimbra, designadamente Joaquim Namorado e
Carlos de Oliveira. O que deixa adivinhar que desconhecia a fumaça dos cafés
Bocage e Monte Carlo… E sem fumaça, o intelecto torna-se escorregadio,
heterodoxo…
José Gomes Ferreira, a 30
de Dezembro de 1967 [com e sem cachimbo] interrogava-se indiretamente
sobre o amigo Mário Dionísio (aqui, sem cachimbo!?): «Que toque de simpatia
pública falta a este homem que, no entanto, pode gabar-se de ser amado até à
idolatria pelos alunos dos primeiros anos do liceu [Camões].» Dias
Comuns III, Ponte Inquieta, Publicações D. Quixote. O mesmo José Gomes
Ferreira, Ex Liceu Camões, com o José Bacelar, o Armindo Rodrigues. Sabem de
quem se trata? Dixit: «Foi ali [Gil Vicente], naqueles corredores de ecos
sombrios, sujos de passos apodrecidos de monges, que, liberto dos
mestres-caturras do Liceu Camões (de má memória), se definiu, de maneira
categórica, a minha vocação literária, sustentada por um grupo de professores
que classifico sempre com este adjetivo de anúncio de filmes: sensacional.
Senão, leiam o elenco: Leonardo Coimbra, Newton de Macedo, Ângelo Ribeiro,
Câmara Reys, Damião Peres…»
Fico sem saber se no
Camões se fumava mais ou menos do que no Gil Vicente. E pelos vistos, fumava-se
dentro da sala de aula. Ainda, hoje, recordo esse cachimbista laureado que é o
Álvaro Manuel Machado que nunca encetava o Paradiso do Lezama Lima sem nos
cachimbar o espírito.
(De regresso, a JGF
- A Memória das Palavras ou o gosto de falar de mim, Portugália -
vale a pena ler a nota sobre os professores supranumerários de
1914-1915, cuja missão consistia em velar pela ordem nas turmas durante a
ausência acidental dos efetivos…) Os primeiros não tinham dinheiro para
cachimbadas, mas nem por isso deixavam de ser cachimbados. Quanto aos últimos,
mestres-caturras...
Ao longe, já avisto o
cachimbo de Vergílio Ferreira a vociferar com o cachimbo do Mário Dionísio...
(Se me distraio, ainda
chego aos fumos da Índia...)
12.5.07
- Vou por fora! Entro no
vale titubeante a serra modesta! Ali do restolho emerge um poço - Um sonho! Lá
ao fundo hesitante afasto-me da serra distante A vinha verdece a brenha a ser
cortada - Não, por mim! De súbito eleva-se a distante palmeira, cercam-me em
sufoco gritos refreados, um velho pousado num varandim anoitece. Subo por
dentro linhas cruzadas e decido - Vou pelos semáforos!
7.5.07
De costas para o esforço,
para a persistência - ruidosos - preferimos a lamúria fácil...
Deseducados, ignoramos a
letra e o sentido, e reclamamos, ciosos dos nossos argumentos...
Altivos ou falsamente
humildes, esperamos a cedência, convencidos de que a felicidade beija a fronte
dos futuros deuses...
Pobres deuses para quem o
caminho é sempre inclinado! Em vez de o subirmos, rolamos pela encosta,
sorrindo. Sorrindo sempre, até irrompermos num choro inútil e definitivo.
Pouco falta para que a
Bastilha arda de novo!
No pinhal, os ancinhos já
começaram a juntar a caruma.
5.5.07
«Raramente, somos
justos com os vivos: ou os adulamos, ou ignoramo-los. E mesmo depois de mortos,
temos sobressaltos de carpideiras, para definitivamente colocarmos uma pedra
sobre o assunto...» A Cinemateca Portuguesa presenteou-me, hoje, com
um fantástico filme indiano, PYAASA, realizado em 1957, mas escrito em 1948. Um
filme (musical) do realizador e actor GURU DUTT que interpreta um excelente
poeta, incompreendido, desempregado, rejeitado pelos irmãos, condenado a viver
nas ruas prostituídas e delinquentes de Bombaim. À beira do abismo, Vijay, o
inspirado e mordaz poeta, só encontra algum reconhecimento naqueles(as) que com
ele partilham a miséria – as vítimas desclassificadas de uma sociedade que
apenas preza o dinheiro. Vijay não consegue publicar qualquer verso, vendo
mesmo os seus poemas ser vendidos a peso pelos broncos dos irmãos. Poemas que
foram cair nas mãos de uma romântica prostituta que, mais tarde, tudo fará para
os ver publicados pelo rico editor que, efemeramente, deu emprego a Vijay… Despedido
pelo patrão-editor, rejeitado mais uma vez pela apaixonadíssima namorada
(esposa interesseira do editor) - morta a abnegada e impotente mãe, vítima do
machismo dos outros filhos – Vijay procura o suicídio que acabará,
involuntariamente, por lhe trazer uma morte oficial que o tornará num poeta
celebrizado e adulado por todos, sobretudo por aqueles que o tinham rejeitado
em vida. Morte oficial, mas não real, pois enquanto os corvos se abatiam sobre
os milhões gerados pelos seus versos, ele jazia, sem nome, num hospital
psiquiátrico. Descoberta a sua identidade, tudo foi feito pelo editor, pelos
irmãos e pelos amigos para o apresentar como um impostor. Um ano depois da sua
morte, o editor promoveu uma homenagem ao poeta que denunciava a vilania duma
sociedade que tinha como único valor o dinheiro. O poeta acabou por assistir à
mascarada organizada em seu nome, revelando que, afinal, estava vivo. Mas essa
revelação trouxe um motim que o levou a renegar a sua identidade: naquela magna
e manipulada assembleia em fúria, raríssimos eram os que se interessavam pela
mensagem da sua poesia. Os próprios correligionários foram ao ponto de o raptar
– os poetas. No final, acompanhado de uma casta prostituta que soubera
valorizar os seus versos, Vijay volta as costas a Bombaim (à Índia), e caminha
numa planície enevoada, liberta da escória humana.
Em que é que nos
distinguimos da Bombaim de 1957? Quando penso no tempo que vivi nos anos 50 e
60, fico sempre perturbado com a minha ignorância. E sinto que, também, eu fui
silenciosamente preparado para não me distinguir da escória humana. NOTA: Este
filme foi apresentado pela primeira vez em Portugal, a 22 de Outubro de 1986,
na Cinemateca Portuguesa por ocasião da I Retrospetiva do Cinema Indiano.
4.5.07
À nossa escala, a ideia
de prolongar em mais de 600 km os mais de 2700 que constituem o curso natural
do rio São Francisco é insensata, faraónica, megalómana, mas à escala
brasileira tudo será diferente, mesmo para os 13 milhões de pessoas que irão
ser afectadas. E porquê? Porque a água é um elemento fundamental para a
construção do estado brasileiro. Sem ela, o Brasil desmoronar-se-á.
Portanto, a desmedida,
lá, no Brasil, pode ser justa, enquanto, aqui, é quase sempre sinal de loucura.
A escala condiciona-nos a
razoabilidade: colocamo-nos permanentemente em bicos-dos-pés, quer quando
olhamos para trás quer quando olhamos em frente.
Andamos numa roda-viva a
desfazer. Odiamos a persistência e a consistência. Admiramos o improviso, damos
laudas à boçalidade, à voz grossa. Pagamos para gozar a pequena intriga.
Raramente, somos justos com os vivos: ou os adulamos, ou ignoramo-los. E mesmo
depois de mortos, temos sobressaltos de carpideiras, para definitivamente
colocarmos uma pedra sobre o assunto...
À nossa escala, não
deixamos, no entanto, de praticar a desmedida: O SEF (Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras) perdeu o rasto de 200 caixas de fichas que nos permitiriam a
avaliar (conhecer) o movimento das fronteiras, entre 1919 e 1975. Sem elas,
ficamos impedidos de conhecer os êxodos, as migrações, as capturas, as
deportações, o contrabando, a clandestinidade... o zelo de milhares de
obedientes funcionários. E há anos que estas fichas deveriam ter entrado na
Torre do Tombo!?
A medida da nossa
desmedida é a irresponsabilidade que insiste em guardar ou em assaltar o poder.
3.5.07
A
verdadeira medida da Desmedida...
Num tempo em que me dou
conta da luta diária pelo poder, seja em França, no Iraque, no Irão, nos
Estados Unidos, na Venezuela, em Angola... na Câmara de Lisboa ... ou, mesmo,
na Esc. Sec. de Camões, não posso deixar de reflectir sobre a natureza excessiva
desses combates. Nuns casos, porque os projectos são desmesurados e
irrealistas, noutros porque inexistentes ou, pelo menos, subterrâneos.
Raramente, os destinatários são envolvidos na construção dos projectos que, em
princípio, lhes dizem respeito. Não sei se estamos perante um fenómeno que
possamos classificar como desmedida!?
Sei, no entanto, que Ruy
Duarte de Carvalho publicou, em 2006, um conjunto de crónicas a que deu o nome
de Desmedida. Ler esta obra pode transformar-se numa viagem de
consequências imprevisíveis, pois, cedo, desperta a vontade de seguir os
caminhos do autor em torno do desmesurado rio Francisco. Mas segui-lo, supõe
todo um programa, cujos contornos nos obrigam a viajar do séc. XVI ao séc. XXI,
de modo a perceber por que motivo a colonização do Brasil foi diferente da
angolana, apesar do colonizador ser o mesmo, apesar dos holandeses que
procuraram simultaneamente ocupar os dois territórios, apesar do «brasileiro»
ser fruto da mistura do branco europeu com o negro africano, apesar de, em
momentos vários, o «brasileiro» ter sido atirado para os braços de Angola.
Numa viagem fascinante,
Ruy Duarte de Carvalho dá conta da extensa investigação que fez no terreno,
observando e lendo. Lendo e cruzando: Cadornega, Blaise Cendrars, Sir Richard
Burton, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Euclides da Cunha... o engenheiro Theodoro
Sampaio - verdadeiro protagonista da desmedida brasileira... Tudo para poder
responder às perguntas do velho Paulino e, sobretudo, quando for visitar os
pastores cuvale, pois, há muito que o autor chegou à evidência:
«Quem é analfabeto nada
lê, de facto, e também pouco ou nada lêem aqueles que beneficiaram de
aprendizagens modernas mas evitam, recusam mesmo, porque antes de mais lhes
intimida, toda a escrita que não lhes proponha uma sopa de letras liquidificada
pelas tecnologias da mediatização, ou propostas ditas literárias devidas a
talentos jornalísticos assim-assim que para se imporem chegam até a vigiar-se
de muito perto, não venham a incorrer na desvantagem de querer voar
eventualmente mais alto, o que aliás acabaria, quem sabe, por revelar, também,
a efectiva tibieza dos seus talentos.» op.cit, pág. 225
No que me diz respeito,
creio que, por uns tempos, vou viajar com Ruy Duarte de Carvalho para que ele
me possa guiar pelos sertões da alma humana, à procura da verdadeira medida da
desmedida...
28.4.07
- Por pudor, não. Por
horror. Ando e penso contra o vento. À esquerda, vozes de ontem - promessas cinzas.
À direita, a dúbia Cister - risos dúbios. Estático, sufoco referências. - Por
horror, não. Por pudor.
24.4.07
«A veces en las tardes
una cara nos mira desde el fondo de un espejo; el arte
debe ser como ese espejo que nos revela nuestra propia cara.» Jorge
Luis Borges, Arte Poética
Em Abril de 2007,
escondem-se os espelhos, pois tememos que eles mostrem que, desde o início,
fizemos batota. Uns receavam cada vez mais o campo de batalha e por isso
rebelaram-se em nome do direito à liberdade dos povos oprimidos.
Outros (quando não os
mesmos) aproveitaram a fuga dos títeres para lhes usurpar o lugar.
Multiplicaram-se pelas cadeiras do poder e estão aí, repimpados, fugindo as
caveiras que irrompem do fundo dos espelhos.
Nem uns nem outros
percebem que estamos a acabar.
21.4.07
O
público dos Dias da Música do CCB...
No Grande Auditório, o
respeito e a veneração. No Espaço Aberto, a boçalidade e o cavaco. Porquê?
Quando, no âmbito da
«Música Livre», Quatro Cantos da Casa (com obras inéditas
de Jorge Machado, Eurico Carrapatoso, Carlos Gomes, Paulo Brandão, Ivan Moody,
Eli Camargo Jr.) apresentava o seu espetáculo/concerto, resultante da
associação da Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa com a Escola
Técnica de Imagem e Comunicação (ETIC), algum público, desatento e ruidoso, fez
fracassar o início do programa.
Como é que os jovens
podem respeitar os mais velhos, se desrespeitamos os jovens músicos? Esta
dualidade de critério é inaceitável: a subserviência perante o consagrado e a
indiferença perante aqueles que precisam de público para melhorarem as suas
performances. E para além disso, a dualidade de comportamento também se
manifestou no aplauso, no interior do Grande Auditório. O português
Bernardo Sassetti, com as suas "Improvisões" reveladoras de um
compositor e pianista de recursos ilimitados, perdeu no aplauso para o pianista
turco Huseyin Sermet...
Diria que a substituição
da Festa da Música pelos Dias da Música faz
sentido, pois nem tudo é festa: falta dinheiro e, sobretudo, falta educação...
e esta deveria começar em casa, continuar na escola... Mas como?
19.4.07
Na Escola Secundária de
Camões, no espaço de uma semana, foi possível recuar no tempo e dar a conhecer
aos alunos e, também, aos professores, um tempo que alguns viveram, mas a
maioria desconhece.
A 13 de Abril, o
escritor João Aguiar revisitou o "liceu", que
frequentou entre 1957 e 1961 (?). A 18 de Abril, a professora Madalena Contente
fez-nos revisitar Vergílio Ferreira, que lecionou no Camões, a
partir de 1959 até à sua aposentação.
I
João Aguiar dirigiu-se,
no Auditório, a uma plateia de mais de 250 alunos e professores, evocando o
passado e discorrendo sobre o ofício de escritor. Desse passado, ficou a imagem
da distância que separava os rapazes das raparigas que, quando admitidas no
Liceu, eram fechadas, nos intervalos das aulas, na Biblioteca. Ficou também a
ideia da inacessibilidade do livro, aprisionado nas "altas estantes"
da Biblioteca. O aluno só podia ir à Biblioteca quando algum professor faltava.
E sobretudo, sobrou a imagem do poder do professor e, em
particular, do reitor, perante o qual todos se prostravam. Por
outro lado, nas aulas de Português, poucos professores desenvolviam estratégias
motivadoras da leitura.
João Aguiar recordou dois
professores: Maria da Conceição Caimoto, que lia seletivamente
excertos de obras, acabando por convidar os alunos a continuar a leitura,
e Mário Dionísio, que contextualizava, com tal rigor e clareza de
expressão as épocas literárias e as obras que que as integravam, que aos alunos
bastava estarem atentos e tirar notas, para mais tarde tentarem reproduzir o
pensamento do mestre.
Sobre o ofício de
escritor, João Aguiar deixou no ar a ideia de que o despertar para escrita
resulta mais de uma descoberta pessoal do que de um efeito da Escola. No seu
caso, ela terá surgido por volta dos sete anos de idade e ter-se-á acentuado,
na sequência de uma doença que lhe restringiu os movimentos entre os nove e os
onze anos. Dos seus autores preferidos, citou Eça de Queirós. Dos vivos, pouco
disse, a não ser que o antigo aluno do Camões e "rebelde" António
Lobo Antunes sempre o tratou com grande deferência... E que também apreciava a
obra de Mário de Carvalho, seu condiscípulo. Curiosamente, não referiu Vergílio
Ferreira com quem, eventualmente, se terá cruzado... Mas, como nos prometeu
escrever sobre o tempo que viveu no Liceu Camões, no âmbito da comemoração dos
100 anos do edifício, talvez ainda estejamos a tempo de o ver escrever sobre a
sua relação com Vergílio Ferreira, também ele, grande admirador de Eça de
Queirós...
II
Quanto à rememoração de
Vergílio Ferreira, esta decorreu entre os livros das "altas
estantes", na Biblioteca, que lotou. Entre outros, estiveram
presentes a viúva do escritor, nos seus enérgicos 92 anos de idade; a
professora doutora Maria Joaquina Nobre Júlio que falou sobre a
"Aparição"; a antiga professora do Liceu Camões, Drª Clarisse Santos
que explicou aos presentes quem eram / são as "três colegas",
múltiplas vezes referidas pelo escritor na sua obra; o dr. Luís Filipe Valente
Rosa, antigo aluno do homenageado que dissertou sobre o "pensamento em
Vergílio Ferreira", deixando a mensagem de que a acção (docente, literária
e ensaística ) de V.F. terá sido, muitas vezes, redentora para os alunos e para
os leitores. Deixou-nos também a imagem de um homem cujo objectivo principal
era descobrir a irredutibilidade da pessoa, lutando contra qualquer
totalitarismo, viesse donde viesse... o que lhe terá trazido alguns dissabores,
sobretudo, da crítica de raiz marxista...
Para além das referidas
intervenções, é ainda necessário referir o filme realizado pelas professoras
Madalena Contente e Teresa Almeida, e que, pelo rigor documental, poderá
futuramente ser muito útil na apresentação de V.F. às novas gerações e que, por
outro lado, não deverá ser esquecido na celebração dos 100 anos do edifício da
Escola Secundária de Camões.
III
1. Se
cruzarmos as duas datas - 13 e 18 de Abril, verificamos que nos falta conhecer
o "diálogo" travado por Mário Dionísio e por Vergílio Ferreira, isto
é, o diálogo entre a escrita de raiz marxista (vulgo neorrealista) e a escrita
que, rejeitando o fascismo, procurava no homem e não na classe (no grupo) o
caminho da sua superação.
2. Estas
iniciativas, seja no Auditório seja na Biblioteca, são de grande utilidade para
ver se aprendemos a ouvir, a respeitar a voz do outro (EU). No Auditório, ainda
houve jovens que não souberam ou não quiseram ouvir, obrigando o convidado a
chamar-lhes a atenção. Na Biblioteca, também houve quem passasse o tempo a
comentar os oradores, querendo deixar nos circunstantes a ideia de que muito do
pensamento de V.F. mais não seria do que plágio.
16.4.07
O
desnorte de certos governantes...
«Encheram a terra de
fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações - a dos vivos
e a do mortos.» (Juca Sabão, citado por Mia Couto, Um Rio
Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra)
Li recentemente que o PSD
de Marques Mendes quer entregar a contratação de professores e restantes
funcionários às Escolas. Quer também que essas Escolas paguem aos funcionários
segundo tabelas próprias.
Certamente que esta
luminosa ideia resulta do brilhante raciocínio de que nas regiões mais pobres,
os funcionários devem receber menos do que nas regiões mais ricas. Ou será ao
contrário?
A nação dará lugar a um
conjunto de cantões, onde o compadrio, o amiguismo e o nepotismo reinarão.
Qual será o objetivo do
Dr. Marques Mendes? Promover a instrução dos portugueses ou criar uma sociedade
em que os portugueses se distribuem por categorias (castas) de 1ª, 2ª, 3ª?
Esta proposta vem de
alguém que tinha a obrigação de saber quais são as funções do Estado.
Alguém que cresceu (?) no interior do aparelho partidário e estatal. No
entanto, parece que o seu objectivo é destruí-lo, colocando-o nas mãos de
caciques locais, trauliteiros, que infestam o país de Norte a Sul, sem esquecer
as Ilhas... destrambelhadas capitanias!
Só não compreendo por que
motivo o Dr. Marques Mendes não propõe a mesma solução para os quartéis. Cada
um contratava a tropa fandanga que quisesse, pagando-lhe de acordo com o saque
de que fosse capaz. Afinal, para que servem as forças militares e de segurança?
Só um Estado, incapaz de
definir um Projeto Educativo, pode tolerar que haja governantes que queiram
instrumentalizar as instituições que o justificam: a Segurança, a Justiça, a
Educação.
A acção de certos
governantes empurra-nos objetivamente para a terra dos mortos...
9.4.07
O ministro Mariano Gago
justificou, hoje, o seu despacho provisório de encerramento compulsivo da Universidade
Independente, baseando-se na actual degradação pedagógica da instituição e pelo
facto responsabiliza os proprietários.
E quem são os
proprietários? Ninguém sabe!
Extraordinário! O Estado
permite o funcionamento de múltiplas instituições de ensino sem conhecer os
proprietários e, sobretudo, sem conhecer o respetivo financiamento. O ministro
reconhece que estamos perante casos de polícia, cujo desfecho é imprevisível...
Por outro lado, Mariano
Gago quer fazer crer que essas instituições - opacas, enredadas em compadrios
de longa data (Estado Novo) - prestaram até há pouco tempo um serviço exemplar.
E a atestá-lo apresenta os relatórios das várias equipas de avaliação que
apenas descobriram pequenas falhas facilmente superáveis. Esses relatórios
jamais registaram qualquer tipo de degradação pedagógica. E porquê?
Porque nessas
instituições nunca houve investigação consistente e, sobretudo, a transmissão
de conhecimento nunca obedeceu a qualquer princípio pedagógico. O ensino
superior (privado e público) detesta a pedagogia, evita a educação. A maior
parte dos docentes nunca teve qualquer preparação pedagógica. E quanto a
educação, basta ouvi-los falar, basta ler as suas dissertações, as suas
teses...
Ao tentar separar o trigo
do joio, Mariano Gago enredou-se numa demonstração inconsistente, pois sabe
muito bem que, há alguns meses, humilhou o professor Adriano Moreira, porque a
avaliação do ensino superior seria inócua.
Lá no fundo, o Senhor
Ministro mostrou, hoje, que a sua grande preocupação é defender o currículo do
aluno José Sócrates em quem devemos admirar a aplicação, a fome de conhecimento
necessários à construção da OBRA.
Um currículo anterior à
degradação pedagógica que atingiu a Universidade Independente.
Toda esta encenação é
mais um caso de polícia. Mas que polícia? Mas que justiça?
8.4.07
Hoje, domingo de Páscoa,
gastei boa parte do dia a elaborar uma matriz para uma prova de equivalência à
frequência e/ou de equivalência a exame nacional, e a ler a legislação sobre os
exames 2006-2007. Em momentos vários, lembrei a notícia de que o Reitor Arouca
terá assinado a certidão de conclusão de curso (o diploma /a carta de curso?)
do engenheiro Sócrates a um Domingo.
Perante a chicana criada
em torno deste facto, decidi tornar pública a minha prevaricação, pois, neste
domingo, lesei o compromisso assumido na pia batismal há mais de 50 anos. Se
tivesse agido em conformidade, teria deixado para melhor momento essa incómoda
matriz. É que já não sei a quem servir: se a Deus se a César...
Afinal, tal como eu, o
Reitor Arouca, ao despachar ao Domingo, vivia o mesmo dilema: não sabia a quem
servir se a Deus se ao futuro querido líder... A não ser que o
Reitor Arouca nunca tenha assumido nenhum compromisso na pia batismal!
Por outro lado, confesso
que trabalhar neste domingo (de ressurreição) me deu algum prazer, porque,
mesmo que não queira, me sinto solidário com o enxame de assessores do primeiro-ministro
e do ministro da Ciência e do Ensino Superior que gastaram este santo fim de
semana a escarafunchar argumentos capazes de ressuscitar o querido
líder.
Viva a Universidade
Independente! Abaixo a Ordem dos Engenheiros!
Se não fosse a
inveja, o querido líder era hoje Primeiro Engenheiro,
ou mesmo Primeiro e Único Arquiteto!
PS: Por onde anda a
Ministra da Educação? Será que a ressurreição do querido líder vai devolver-lhe
a voz?
6.4.07
Armação de Pera, 5 de
Abril de 2007
Fugi da Sombra para o Sol
do Sul. Nestes últimos dias, viajei para o antes do presente (AP). E estive
quase simultaneamente em Lapedo (Leiria) e em Silves. Em primeiro lugar, o
escritor João Aguiar obrigou-me a regressar a 1998: tempo, para mim, de mudança
– de Mem Martins (Sintra) para a Portela (de Loures / Lisboa) e ainda da Escola
Secundária de Santa Maria para a Escola Secundária de Camões; tempo de uma
vizinha e orgulhosa EXPO; tempo de (re)iniciação à doença e à morte; tempo,
talvez por isso, de ignorância da descoberta das ossadas de uma criança que
morreu há 25 000 anos, com a idade de quatro anos e meio – “o menino do
Lapedo”.
Essa descoberta,
reportada /“ficcionada” por João Aguiar na obra LAPEDO, Uma Criança no
Vale (ASA, 2006), parece obrigar à revisão da teoria Out of
Africa – o modelo da Origem Africana Recente – que gerara a perniciosa
ideia de que a humanidade assentaria na acção do «exterminador implacável»,
cuja acção primordial teria consistido no genocídio do Homem de Neandertal, na
medida em que o Homo sapiens e o Neandertal seriam espécies tão diferentes que
a inter-reprodução seria biologicamente impossível.
A investigação pluridisciplinar em torno d “O menino do Lapedo” coloca-nos
perante a hipótese da miscigenação entre “arcaico” e “moderno”, Neandertal e
Sapiens, destruindo, desse modo, a concepção dominante do homem, em grande
parte do século XX.
A obra de João Aguiar, pelo diálogo que estabelece com arqueólogos,
antropólogos, físicos, mitólogos, etc., merece ser lida atentamente porque,
para leigos, como eu, revela-se uma preciosa fonte de conhecimento. Em segundo
lugar, também voltei a Silves, esse lugar onde o antes do presente (AP) árabe
me é mais visível.
As obras de
reconstituição do legado árabe continuam no Castelo de Silves, não sei há
quantos anos. Torna-se claro que ali existiu uma urbe muito bem organizada,
mas, por enquanto, apenas isso… Na parte restaurada pelo PÓLIS, surgiu,
entretanto, uma fonte-jardim em homenagem a IBN Qasi, o governante
muçulmano de Silves, com quem D. Afonso Henriques terá «estabelecido uma
aliança, estratégica, mas possivelmente também espiritual» para proteger os
mouros que ficavam sob o seu domínio» …
O interessante é que li estas palavras de João Aguiar, algumas horas depois de
ter (re)visitado SILVES. Em síntese: a ideia da miscigenação está
inscrita nos ossos e nas pedras da IBÉRIA! Mas também de todas as partes, ao
SUL, por onde ousámos VIAJAR…
Nota de rodapé: No decurso desta viagem ao SUL, CARUMA não deixou de
prestar atenção ao Presente. E pelo que tem lido e conhece dos AROUCAS deste
país, recomenda ao Engenheiro Sócrates que continue obstinado e não deixe de
tomar a cicuta que se impõe nestas circunstâncias. Por muito menos, outros
deixaram o poder, esconderam-se num qualquer conselho de administração e o
país, como é seu timbre, esqueceu-os.
O PS ainda tem no seu seio um ou outro dirigente capaz de formar um Governo,
cuja única regra de governação seja a honestidade. CARUMA espera, agora, que
CAVACO se revele PRESIDENTE. Para isso foi eleito. E não precisa de fazer
barulho!
A reles vaidade mata-nos
a cada dia que passa!
30.3.07
De
Rafael Bordalo Pinheiro a Cesário Verde...
"Nada mudara. A mesma sentinela sonolenta rondava em
torno à estátua triste de Camões. Os mesmos reposteiros
vermelhos, com brasões eclesiásticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O
Hotel Alliance conserva o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo
sol dourava o lajedo; batedores de chapéu à faia, fustigavam as pilecas; três
varinas, de canastra à cabeça, meneavam os quadris, fortes e ágeis na plena
luz. A uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina defronte, na
Havanesa, fumavam também outros vadios, de sobrecasaca,
politicando." Eça de Queirós, Os Maias.
A surpresa de Bordalo,
retratada no Lazareto de Lisboa (1880), é a mesma de
Carlos da Maia (e de Eça) e ambas pressupõem o distanciamento da pátria. O
retorno fugaz ou definitivo introduz uma idealização frustrada, apesar da
sublimação do sol e das varinas de Cesário.
Hoje, sob a estátua
triste de Camões desfila um sem número de automóveis à procura de um alvéolo
insalubre e, à superfície, os mesmos vadios adormecem à sombra
do vate, mergulhados em sal-azar. As sobrecasacas fugiram do Largo, preferem os
gabinetes onde tecem as malhas que nos hão de estrangular.
Entretanto, sob o Camões,
as novíssimas raízes de aço e cimento suportam vaidosas sobrecasacas dúbias...
25.3.07
O Rafael Bordalo Pinheiro
atirou-me para um impasse: os papagaios voam no ar; os
comendadores voam em terra.
Tudo parece de acordo com
a regra natural. No entanto, a ideia de ver os comendadores a voar deixa-me
inquieto.
É um pouco como aqueles
governantes que exigem ter direito à opinião. Sempre pensei que a opinião era
um direito dos governados. Estes pronunciam-se, de acordo com as suas
expectativas (os seus pré-conceitos), sobre a decisão dos governantes. A
opinião é por definição tendenciosa, subjetiva... A opinião é inimiga do
governo, gera, em si própria, a anarquia.
Os governantes, tal como
os comendadores, não deveriam voar. Só lhes é permitido errar ou acertar.
Jamais se deveriam escudar na opinião. Devem ouvi-la para decidir. Mas não
devem decidir a favor da opinião.
Aqui, na terra da
opinião, sinto-me atirado para o lazareto... se é que ele ainda existe.
17.3.07
O
charme descarado dos oligarcas...
Ao passar, hoje, em
frente do Hotel Tivoli (Lisboa) tive uma estranha sensação: os mortos das
guerras de libertação serviram, apenas, para nutrir os mandarins e os querubins
que, despudoradamente, vão vivendo faustosos dias.
Quando minutos mais
tarde, revi O Charme Discreto da Burguesia (1972), de Luis
Buñuel, lembrei-me novamente dos figurões da Avenida da Liberdade, ao ver a
mala diplomática do embaixador de Miranda que transportava 15
kilos de cocaína.
Miranda,
república democrática da América Latina, inventada por Buñuel, obrigou-me a
pensar noutras repúblicas democráticas, onde o petróleo, os diamantes, as
drogas... engordam uma casta predadora que vem fazendo tábua rasa dos
princípios que nortearam as guerras de libertação.
Dessas guerras sobra,
hoje, o charme descarado dos oligarcas.
15.3.07
Em
Sintra, podemos aprender a ler...
Ler pode ser aliciante. E
para alguns de nós, é-o certamente. Mas para outros, a resistência é cada vez
maior. Procurar uma explicação para esta dificuldade não é original, muitas
causas de natureza socio-cultural e, mesmo, psicológica têm sido apontadas. No
entanto, o conhecimento deste tipo de causas não resolve o problema, porque
este se encontra num plano bem distinto.
Há alguns dias,
confrontado com a resistência à leitura de OS Maias, de Eça de
Queirós, levei cerca de 80 alunos a Sintra, para que pudessem, in loco, refazer
o itinerário de Carlos da Maia e de Cruges. Ora, se o
itinerário, na versão de João Rodil, não é muito difícil de percorrer, a
leitura do espaço e da memória de Sintra, apesar de palpáveis, é um
verdadeiro bico-de-obra. E porquê?
Porque não aprendemos a
ler o espaço físico e o espaço simbólico.
Sintra é uma construção
do homem e não uma criatura divina, como é habitual afirmar. Os seus jardins e
os seus monumentos são expressão da vontade humana. Ora genuinamente
construídos ao gosto medievo, manuelino, neoclássico ou ao gosto romântico. Se
o Paço Real foi construído e alargado ao longo de vários séculos e nele podemos
aprender a ler a História das perdidas (e não assinaladas) Casas dos
Templários, situadas no casco do século XII à intervenção joanina ou manuelina,
já o Palácio da Pena, as Quintas do Relógio e da Regaleira são obra revivalista do
século XIX e mesmo do início do século XX.
Foram reis, diplomatas
(por vezes, estrangeiros) artistas e capitalistas (pouco escrupulosos),
seduzidos pelo microclima, pela natureza e pela situação geográfica que
desenharam a parte vegetal e monumental mais opulenta de Sintra. E fizeram-no
em tempo de romantismo serôdio, marcado pela exacerbação competitiva do EU, do
pitoresco, do ecletismo, do sincretismo, em suma de um revivalismo que admite
todos os neos - (árabe, mudéjar, gótico, manuelino, barroco,
oriental...)
Quando se chega a Sintra,
vê-se o todo - a serra, o castelo, os monumentos, o verde, o
azul -, mas dificilmente se ouvem as águas, as aves e se respiram os
perfumes... É mais fácil saborear as queijadas, os travesseiros!
É como se nos
limitássemos a fazer uma leitura global, apressada, definitiva. Ao
não olharmos o relevo, deixamos de ver as fontes, as cascatas, as grutas, os
fios de água que gota-a-gota escorrem pelas paredes vegetais. Ao não olharmos
as árvores, deixamos de lhes saber o nome, a origem, como se o Criador as
tivesse plantado ali definitivamente.
É esta ignorância cómoda,
que nos impede de ler, de gostar de ler, de que, paradoxalmente, os românticos
são os grandes responsáveis ao decidirem abandonar o Émile à sua perspicácia
...
Sintra pode e deve ser
mais do que um "episódio romântico". Em Sintra, podemos aprender a
ler, rumando contra a corrente.
9.3.07
No dia sete de Março de
2007, a peça "Episódios da Vida Romântica”, representada pelo Grupo
dramático "Há Cultura" conseguiu fixar a atenção de 200 alunos no
Auditório "Camões". Apesar da cedência à graça, por vezes, um pouco
rasteira, Eça de Queirós ficou mais perto de ser lido. E, sobretudo, ficou
provado que é possível trazer "o teatro" à Escola.
Há mais de quatro anos
que ansiava por este acontecimento.
Não tenho dúvida de que
se a Escola se abrisse à prática teatral, utilizando os recursos de que dispõe,
dentro de pouco tempo, teríamos alunos a escrever pequenas peças que poderiam
levar à cena no referido Auditório.
O Auditório
"Camões" merece ter um reportório próprio, capaz de se impor como
espaço de cultura aberto à comunidade, à cidade.
Nesta mesma semana,
surgiu um outro sinal que não deveria ser desprezado: os jovens lêem muito mais
do que se pensa, sobretudo, narrativas. Há neles uma grande apetência pelas
"estórias". E gostam de partilhar as suas leituras, ainda que não canónicas...
Esta paixão pelas
"estórias" esconde o desejo de conhecer o sentido da História, de dar
um sentido à VIDA.
No entanto, a Escola
continua escrava do PROGRAMA, limitada ao básico. Sem perceber que
o básico seca o espírito, torna-o estéril, gera a imbecilidade.
A imbecilidade que
horrorizava o Eça..., levando-o à denuncia corrosiva dos Dâmasos e dos
Gouvarinhos...
4.3.07
Ali, a 500 metros da
nascente do Alviela,
sós,
os olhos jorram uma
torrente circular,
um redemoinho virado do
avesso.
A diferença que faz a
água!
Sem ela,
os olhos não passariam
de duas bossas
petrificadas.
Em tempos, passei por
elas,
e quase que não deixavam
qualquer sinal em mim...,
mas, hoje,
os meus olhos secos
procuram naqueles olhos
líquidos
a causa da emoção
que redemoinha dentro de
mim.
2.3.07
Três vozes simultâneas: -
Precisamos de falar consigo. Perante a insistência, procuro isolar aquelas
vozes do arruído circundante. Mas não! O problema é de todos e, por isso todos
querem falar.
Entramos na sala. Espero
que a ansiedade verbal dê lugar ao silêncio para que o diálogo possa começar.
Uma expectativa frustrada: oiço várias vozes sobrepostas que propõem uma
solução precipitada para um problema mal equacionado; oiço uma sinfonia de desânimo
- os interlocutores não dão a devida importância à questão; afinal, ainda não
sabem (ou preferem não saber?) que passos devem dar...
De repente, vejo-me, ali,
em frente de uma horda que procura vingança para todos os fracassos passados ou
anunciados. Já não me ouvem: as palavras enovelam-se e estilhaçam-se contra as
vidraças e atordoam-me ao ponto de me obrigarem a mudar de tema...
E tento explicar-lhes a
natureza revolucionária do romantismo, procuro que compreendam que
o excesso de arruído o reduziu a uma expressão artificial de
sentimentos, de afetos, de emoções... fruídos em cenários de ostentação
hipócrita e reacionária.
Esperava que entendessem
o significado da revolução romântica: acabar com os súbditos,
abrindo o caminho da cidadania.
Mas não! os românticos estavam
apenas preocupados em acabar com a tirania, em acabar com os déspotas...cegos para
os tiranetes que germinavam sob a poeira lunar.
E os tiranetes não param
de se multiplicar, abafando o silêncio apolíneo da dor incandescente.
26.2.07
MEJOR PELÍCULA EN LENGUA
EXTRANJERA: "La vida de los otros" (Alemania).
Tal como referi há uns
dias, este filme mostra bem como os regimes totalitários retiram ao cidadão
qualquer veleidade de os combater.
No entanto, o muro
abre brechas por onde os sacerdotes mais zelosos acabam por colaborar com o
inimigo - a liberdade.
Desta vez, na América de
Bush, Hollywood roeu a corda.
20.2.07
1984, RDA. A missão da
STASI é saber tudo sobre a vida das pessoas, através de uma vasta cadeia de
informadores/denunciadores. O filme "AS VIDAS DOS OUTROS" de Florian
Henckel von Donnersmarck mostra a gradual desilusão do capitão Wiesler, um oficial
altamente credenciado da polícia política, cuja missão é espiar o famoso
escritor, George Dreyman, e a sua esposa, a atriz Christa-Maria Sieland.
A intriga tem todos os
condimentos para seduzir o espectador. No entanto, o que mais impressiona é o modo
como o poder totalitário controla o cidadão, deixando-o
incapaz de qualquer defesa, tornando-o num bufo. E deixa ainda perceber que em
ditadura, a oposição organizada cai facilmente nas malhas estéreis da soberba e
da vaidade.
Este filme ajuda-nos a
compreender que a queda do Muro de Berlim, em 1989, era inevitável: o capitão
Wiesler representa todos aqueles que de dentro descobriam a
arbitrariedade do poder e que fascinados pela pureza da ideologia traída
acabaram por passar para o lado de lá... apesar de a História os ignorar,
reduzindo-os ao papel de carteiro, como acontece no romance de George Dreyman.
Em Portugal, não há
registo do capitão Wiesler. Mas ele existiu nos últimos anos do marcelismo... A
PIDE não era diferente da STASI e por isso ver o filme AS VIDAS DOS OUTROS é
ainda mergulhar na nossa vida. Uma vida escondida que nos comprazemos em ignorar,
talvez porque como refere Anthony Giddens (Sociologia,
pág.597) "uma sociedade, onde um movimento que tenha tomado o
poder se revela posteriormente incapaz de governar com eficácia, não pode ser
considerada como tendo passado por uma revolução e é mais provável que seja uma
sociedade caótica ou em risco de se desintegrar."
16.2.07
Com os olhos secos -
estrelas de brilho inevitável através do corpo através do espírito sobre
os corpos inânimes dos mortos sobre a solidão das vontades inertes nós
voltamos (...) Agostinho Neto
O poeta,
futuro-presidente, acreditava que, apesar do sofrimento estancar as lágrimas,
instaurando o desespero e a desistência, o regresso à fonte da vida era
possível. Mesmo que ele não voltasse, o tu substitui-lo-ia
na concretização da esperança.
No entanto, a
substituição é impossível... o outro jamais realizará a utopia
do eu. Só no tempo dos espelhos, alguém pode crer que o
filho é o reflexo do pai, do avô... ou mesmo do bisavô, sobretudo se o bisavô
tiver sido presidente!
Júlio Machado Vaz,
confrontado com a inevitabilidade do envelhecimento e com a degradação da
pessoa, sai do divã para Cantelães, à espera que o tempo não pare na
Cabreira...
O narcisismo é
demolidor... deixa o chão juncado de vítimas incapazes de nos substituir.
9.2.07
Li algures que o escritor
Rui Nunes encetou um combate contra o despotismo da palavra. Não sei se será
bem assim, mas não me admira muito que isso se tenha tornado na sua derradeira
tarefa neste mundo. Lembro-me dele, há uns anos, numa sala de professores, em
Sintra, um pouco distante de todos, embrenhado numa leitura profunda, como
seria de esperar de um filósofo. Procurava no código genético uma explicação
para a degradação da raça humana. Nesse tempo, talvez ele se preocupasse mais
com o seu próprio envelhecimento do que com a baixeza humana. Lembro-me que substituíra,
de vez, a carne pelo peixe. De preferência da lote de Sesimbra.
As palavras que com ele
troquei foram sempre afáveis, embora tímidas, respeitadoras daquela ilha de
silêncio que a sua presença parecia impor.
Cada vez admiro mais
essas ilhas de silêncio que procuram ignorar os circos verborreicos, onde a
vaidade, a bazófia e as acusações grosseiras alastram descaradamente: jovens
que procuram tirar desforço dos mais velhos, acusando-os de torpes vilanias;
mais velhos, intrépidos defensores da lei, que deixaram de saber ouvir e que
acreditam que, por falarem mais alto, conseguem silenciar os mais novos.
Nos últimos dias, a
palavra tornou-se grito... não de denúncia ponderada, mas do poder mais vil de
que o homem é capaz, independentemente da idade ou do lugar...
Cada palavra, uma
acusação... uma espada de destruição!
Dá vontade de perder a
voz e ficar a ler um livro, desses que trazem uma explicação para a nossa
ignomínia...
2.2.07
Há
por aí (ou por aqui?) muitos falangistas...
A caruma começa
a não entender por que motivo há tantas pessoas simpáticas, desinteressadas e
capazes de trabalhar gratuitamente para os ministérios da saúde e da educação.
E provavelmente para os restantes…
Os estudos - tão
acarinhados pelos nossos governantes - deixaram de ser feitos
pelos técnicos dos ministérios; também já não são encomendados a especialistas
opiparamente remunerados; são gratuitamente elaborados por nichos de
falangistas que, à ribalta, preferem os bastidores. Porquê?
Lembram-me aqueles
políticos e aqueles juristas, magnânimos, que durante décadas lecionaram nas
Universidades portuguesas sem receber um vintém.
A caruma ainda
menos entende por que motivo ninguém exige conhecer as verdadeiras motivações
destes anónimos trabalhadores intelectuais e, sobretudo, se a sua abnegação não
lhes porá a saúde em risco.
Apesar das ideologias coletivistas
terem mergulhado numa profunda crise, ainda há falanstérios... e nunca me
constou que algum discípulo de Fourier tenha morrido à FOME...ou se tenha
queixado do baixo salário...
30.1.07
Este tempo frio bem pode
servir-me de desculpa para o silêncio em que caí nos últimos dias. Parece que a caruma embotou.
E não é para menos: Salazar ressuscitou, acolitado por Álvaro Cunhal. A
nostalgia totalitária está de regresso. A Grã-Bretanha escolheu o Churchill, a
França De Gaulle... e nós, se a memória não vai além da Segunda guerra mundial,
quem poderíamos escolher? A Esfinge que nos "salvou"
da guerra e nos atirou para a guerra colonial... Mas desta guerra não há
memória, não há memória de qualquer guerra travada em África, nem das suas
vítimas nem dos seus "heróis” …; não há memória dos milhões de emigrantes
que não suportaram o saneamento das finanças...
Continuamos por aqui,
movidos pela Contra Reforma... pelo menos até 11 de Fevereiro!
23.1.07
Desde cedo que tudo me
parece contingente. Esta palavra sempre me fascinou, não que ela,
em si, deslumbre. A razão não é estética: uma palavra com quatro sílabas surdas
é quase tão pesada como eu. E, apesar de tudo o que se diz, eu prefiro a
sonoridade da insustentável leveza do ser...
A contingência agrada-me
porque me obriga a olhar para dentro das ténues linhas que separam a certeza da incerteza.
E eu, desde que penso nisso, não consigo encontrar nenhuma explicação para os
caminhos que percorri... tudo me soa a aleatório, a decisão esquiva...
Falta-me uma explicação
plausível, lógica, ancorada numa certeza...
O meu ser vem da
milenar heresia, incapaz de conviver com qualquer ortodoxia, e só
ouve as palavras soltas da voz.
Se a memória estivesse
por perto talvez me exigisse algum exemplo, mas ele há tantos maus
exemplos que prefiro abster-me de os referir. E de que serve um exemplo
no reino da contingência?
18.1.07
Estragon - On trouve toujours quelque chose, hein, Didi,
pour nous donner l'impression d’exister ?
Esperei todo o dia por
uma porta que não chegou. Está dois meses atrasada. Habitualmente, nestas
situações, relembro o título de Samuel Beckett, En attendant Godot.
De acordo com o carpinteiro, é incompreensível que a porta ainda não tenha
regressado, porque, na arrumação em que se encontra, ela já incomoda, e, em
casa, parece fazer falta. - Não, passa de amanhã - garantiu o carpinteiro. No
entanto, não estou convencido, eu que pensava tê-la visto passar em direcção ao
aeroporto da Portela, facto / ilusão que não me surpreendeu, pois, às 8 da
manhã, recebera a informação inopinada e espontânea de que, depois de passar
pelo aeroporto, a porta seria devolvida às dobradiças que, chorosas, a aguardam
pacientemente...
Entretanto, enquanto
(des)esperava pela porta, assisti e, de certo modo, participei, pondo em risco
o esqueleto na substituição de uma cozinha... Mas, também, aqui, tudo está
atrasado e, principalmente, desajustado. As medidas nunca correspondem. E, portanto,
vai ser necessário improvisar... Apesar de tudo, neste caso, o carpinteiro,
ainda novo, parece ser competente... Vamos lá ver se tem os conhecimentos
necessários à resolução dos problemas criados por uma incompetente
agrimensora...
Começo a resvalar num
terreno escorregadio, aquele em que uns tantos - muitos - substituíram com
naturalidade os conhecimentos pelas competências, mudando do paradigma da
incerteza para o da estupidez...
Voltando à atipia, este
meu dia foi ainda atravessado por «mastros» alarmistas que me deixam à espera
de Godot para que ele me explique por que motivo é tudo tão lento, tão
desafinado e negligente. Apenas o maldito romeiro vai
cumprindo a promessa de voltar vivo ou morto, ainda que a horas tardias, para
além de que hoje o Camões não me telefonou: «Um momento, é
do Camões, vou passar a chamada...»
14.1.07
The Straight Story (1999)
de David Lynch, que voltei a ver, ontem, no Ciclo Como o Cinema era
Belo da F. C. Gulbenkian, é um belo filme sobre a teimosia e a
persistência de um velho de 73 anos, fragilizado pela osteoporose, que decide
reconciliar-se com o irmão Lyle, igualmente velho e doente, a viver a mais de
500 km de distância - entre Lauren no Iowa e Mount Zion no Wisconsin.
Alvin, quase cego e a
precisar de uma anca nova, amparado a duas bengalas, sem carta de condução e
com pouco dinheiro, decide adaptar o seu velho e ferrugento corta-relva
transformando-o numa "mobile-home", e fazer-se à estrada para espanto
dos seus incrédulos vizinhos.
A viagem, a 5 Km/hora,
naquela impossível caranguejola, dá-nos momentos de ternura e bondade
inesquecíveis e mostra-nos uma paisagem de searas ígneas deslumbrantes - o fogo
purificador!
Apesar da
inverosimilhança de algumas cenas, David Lynch inicia-nos na superação da
fraqueza, do acessório e do medo. Prepara-nos para a morte apaziguante...
Para mim, esta
revisitação do filme não deixa de ser perturbante, pois da primeira vez que
vira o filme sei, hoje, que a força da emoção sentida me obrigara a escondê-la
bem fundo, num recanto para onde atiro as emoções que me perturbam a razão.
12.1.07
Herdeiros
da abulia e do ópio...
Diz-me o João Goes que um
dia terei de lhe explicar o que escrevo. Tudo lhe parece "filosofia".
Não sei se ele tem em grande conta a filosofia. Parece-me que não. Ou, talvez,
a filosofia encerre para ele um mundo misterioso a que só os iniciados ou,
melhor, os lunáticos têm acesso.
O João não é caso único.
Já não é apenas a filosofia que enfastia, é a escrita - toda e qualquer
escrita. Textos que ainda há pouco tempo não ofereciam dificuldade de
interpretação são hoje objecto de rejeição geral, a começar pelos
"programadores" do m.e.., assim mesmo com letra minúscula.
Os poucos textos que
sobreviveram, nas escolas, ao revisionismo dos últimos 30 anos foram expulsos
da diacronia, pairam no firmamento escolar quais estrelas cadentes. E os alunos
olham para eles como se de uma muralha se tratasse - opacos, intransponíveis.
Lê-los cansa.
Tal como cansa
contemplar, meditar, descrever, comentar. Aparentemente só a acção deslumbra.
Mas por pouco tempo. Herdeiros da abulia e do ópio, preferimos fingir que
compreendemos.
Num tempo em que
predominam a velocidade e o ruído, ficar sentado a ouvir, a dialogar ou a
escrever contraria as leis da física moderna.
PS: Ainda não será desta
que o João vai ficar satisfeito com a minha explicação da inteligibilidade das
palavras e das coisas.
8.1.07
Continuo
sem subir ao cimo do monte Sinai...
O Último Papa (2004),
de David Osborn Um romance que mostra de forma clara a intriga que corrói
o Vaticano. Com a morte de Gregório XVIII, um papa humilde e amado pelos fiéis,
os cardeais reúnem nas caves secretas da Basílica para eleger o sucessor. A
luta que se gera entre os candidatos coloca face a face o cardeal Mancini,
italiano, manipulador da intriga cardinalícia, bem acolitado por figuras dúbias
e menores, e o cardeal americano Ignatius Heriot, atormentado pelo desejo, pelo
ciúme e pela raiva e, sobretudo, por sonhos e pesadelos que o tornam “culpado”
de um crime que ignora, apesar de tudo fazer para descobrir a sua origem. Em
pleno conclave, Ignatius, combate a calúnia recorrendo ao argumento de que a
maioria dos presentes, a começar por ele próprio, são verdadeiros Judas e, que,
consciente da sua traição, se propõe, caso seja eleito, reformar a igreja
católica de acordo com os “heréticos” ensinamentos do Padre John Zacharias,
cuja palavra reformista começou a atrair centenas de milhares de discípulos nos
Estados Unidos. Um romance de intriga, a que não faltam os temas tradicionais:
homossexualidade, pedofilia, prostituição, corrupção. E lá se encontram também
a Madalena (Francesca) e a Virgem (a Irmã Jessica), sem descurar a secular
questão do celibato, para além da cada vez menos consistente infalibilidade
papal. Um romance que retrata uma Igreja Católica ensimesmada, longe da miséria
em que lançara as suas raízes. Para David Osborn, a salvação dessa Igreja está
nas mãos de Ignatius Heriot, Gregório XIX. Sintomaticamente, hoje, na
Polónia, o novo arcebispo de Varsóvia, pressionado pelo Vaticano, pediu a
demissão por, alegadamente, ter colaborado com a antiga polícia secreta
comunista. Mas quem sou eu para julgar a Igreja? A mesma igreja que em tempos
me aconselhou a clarificar as minhas dúvidas sobre a consistência dos
argumentos que ela diariamente me apresentava. Ainda, hoje, continuo sem subir
ao cimo do monte Sinai …
6.1.07
Assim até mim chegam vozes que
pertenceram a corpos tantas vezes nomeados (...) Gastão
Cruz
De mim partem vozes de
corpos tantas vezes ignorados Já só partem vozes E mesmo assim ecoam por mim
vozes distantes
3.1.07
Construir uma personagem
poderia ser uma tarefa nobilitante, pois pressupõe que se olhe em redor e que
se selecione um conjunto de traços verosímeis, tanto físicos como de carácter.
Com esses traços, poderíamos construir uma figura mais ou menos emblemática.
No entanto, para que a
construção da personagem resulte não basta olhar, é preciso saber escutar. E,
aqui, coloca-se o maior problema: o que fazer com o que escutamos? Se optarmos
pela "reprodução das vozes", a personagem torna-se medíocre, reles,
pois as "palavras" para além de pobres são cada vez mais ignóbeis,
retratando uma sociedade decadente, alheada das grandes questões colectivas...
Desde o realismo que
a tendência para que a personagem decalque o carácter se vem
acentuando, gerando mimeticamente um homem cada vez mais desumanizado e,
concomitantemente, pondo em causa a força educativa da personagem.
A personagem deveria
ajudar o homem a melhorar a sua linguagem, o seu comportamento; a personagem
deveria ajudá-lo a superar as suas fraquezas... a construir a cidade dos
«homens bons».
Mas não, hoje preferimos
a caricatura, preferimos o coro das harpias... e onde há coro dificilmente há
democracia!
30.12.06
CARUMA quer despedir-se
neste final de 2006 de todos os seus, pacientes, leitores. Tal como o país e,
sobretudo, o mundo, andou um pouco à deriva num processo de adaptação que
deixou a descoberto o seu fragilizado esqueleto. A aposta na ruptura tem vindo
a destruir a memória, querendo dar razão àqueles que defendem o «fim da
história». Mas sem memória, secamos as raízes e tornamos absurda a vida. Vários
foram os momentos em que o século XX voltou as costas ao passado, recriando
pesadelos que eliminaram milhões de vidas. O modernismo relativista
transformou-se em individualismo triunfante e as nações submergiram sob
totalitarismos expansionistas que ignoram toda e qualquer fronteira. No início
do séc. XXI, a fronteira contrai-se e dilata-se ao sabor da vontade dos
anónimos conglomerados. O homem pesa cada vez menos face à teia dos interesses.
De vez em quando, executa-se um “saddam” para que a teia possa eliminar mais
uma série de obstáculos. Objetivamente, a decisão de execução visa que os
súbditos se exterminem, em nome da frágil memória que ainda lhes resta da
História. Nestas circunstâncias, CARUMA não pode esperar que 2007 seja mais
justo que 2006. O ser humano, depois de ter sido expulso do paraíso, está a ser
expulso da terra. A dificuldade não está em determinar o agente da expulsão,
mas em saber o que fazer com ele. Porém, a rotunda é a melhor metáfora do que
espero para 2007, mas que não desejo a ninguém. Se a memória me não atraiçoa,
em tempos idos, de encruzilhadas, o que me fascinava e prendia era a nora e, em
particular, os alcatruzes.
26.12.06
Os
conglomerados no Jardim das Delícias...
«O que Bosch nos mostra com o Jardim das Delícias é um falso paraíso, cuja
beleza é passageira e conduz os homens à ruína e à condenação...», Walter
Bosing
O mesmo se poderá dizer
de "O Jardim das Delícias" (ASA, 2005) de João Aguiar.
Trata-se de um romance
sobre a União Europeia transformada em "Federação Europeia" no séc.
XXI.
O federalismo vai
destruindo todos os símbolos identitários em nome de uma volúpia económica,
conduzida pelos «conglomerados político-financeiros» que de fusão em
fusão condicionam consumidores e governos tornando-se indissociáveis do poder
político e da própria criação cultural (pág.130).
Perante a destruição das
identidades nacionais e regionais surge a reação do integrismo -
no caso português (ou do que resta...) - a reação da Sagrada Milícia -
a ala combatente do Movimento Integrista Português.
E no meio destes dois
poderes, o protagonista - o Jornalista João Carlos - procura opor-se à cegueira
de uma Europa minada por um duplo cancro... num espaço e num tempo em que a
lucidez dificilmente sobrevive à arrebanhadura...
Um romance que obriga a
pensar o presente, à luz da história recente... raramente problematizada. Não
chega a ser um romance profético, a não ser, talvez, nesta sub-região da
Ibéria...
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