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domingo, 15 de junho de 2025

Diário_2007


31.12.07

O tempo é mais de incerteza que de verdade e, por isso, caruma irá estar mais atenta a tudo o que, apesar de incerto, lhe mereça algum crédito.

Nesse sentido, e para quem me pediu opinião sobre possíveis leituras, aqui deixo uma:

Vale a pena ler Noites de Anto (1988), Alegoria em Sete Quadros, de Mário Cláudio. No entanto, a inteligibilidade do texto depende do nosso conhecimento da vida e da obra de António Nobre.

Há, no entanto, que alertar os mais puritanos para o feminismo e mesmo para a pederastia de Anto, de algum modo legitimada pela Epístola de São Paulo aos Romanos: "Por esse motivo, Deus os entregou a paixões degradantes...»

Um exemplo de incerteza, a pederastia que tanto seduziu os artistas ao longo dos séculos...

Para passagem de ano, esta abordagem não deixa de ser estranha..., mas o tempo é de incerteza perante atos que, na maior parte das situações, põem em causa o "outro". 

30.12.07

Sobre o pessimismo...

Em Noites de Anto, Mário Cláudio cita um guia turístico para assegurar que a praia da Figueira da Foz poderia ser considerada, na perspetiva de António Nobre, a "Rainha das Praias de Portugal". Ora, se eu quiser dar corpo ao sol de Inverno que, nos últimos dias, tem caído sobre a praia de Armação de Pera, atrevo-me a regatear esse prémio pela sua extensão, pelas algas que se atrevem a estender-se ao sol, sem esquecer as falésias em forma de gruta que parecem sair dos campos em volta... como se os brancos prédios disformes não fossem mais do que castelos na areia... sem esquecer a faina do mar de que avisto raias de três quilos e tentaculares polvos que deixam os pescadores cor de alcatrão.

Aqui, o pessimismo perde-se no azul do céu e do mar e deixa-se subornar pela quietude dos velhos alemães, belgas, holandeses que parecem plantados de estaca neste Sul do carpe diem...

 

27.12.07

O Cardeal e o Ateísmo


"Todas as expressões de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade, que tiram todo o sentido ao Natal, que é a exultação e o grito de alegria e de esperança que brotou do reencontro do homem com Deus", destacou José Policarpo, na missa do dia de Natal, na Sé de Lisboa."

Esquecimento ou negação de Deus. Estes comportamentos pressupõem que um dia "encontrámos" Deus. Mas quando e onde? E se, de verdade, isso nunca aconteceu? Mais do que esquecer ou negar, o ateu é aquele que vive "fora" de Deus. E são muitos os que assim vivem. Será que por esse motivo são causa dos dramas vividos pela humanidade?  Ou simplesmente são seres fúteis que desvalorizam o absoluto, dando corpo à frivolidade e ao esplendor do momento?

José Policarpo sabe, como ninguém, que em nome de Deus (qualquer deus) foram (e são) cometidas as maiores barbaridades contra o homem e contra o planeta. Não necessita que lhe contem a história das cruzadas, da inquisição ou da colonização / missionação. Sabe certamente o significado da expressão "guerra santa" e, por isso, sabe que cruzados, inquiridores, colonizadores e missionários todos lutavam por/ e / com Deus e que as suas vítimas nem sempre eram ateus a necessitar de "encontrar" Deus. Muitas das vítimas também tinham os seus deuses, mas isso não os impediu de lhes destruir os "ídolos".

O Natal não assinala o reencontro do homem com Deus, mas, sim, a perpetuação do homem. A alegria e a esperança são legítimas porque saúdam o futuro da humanidade. O "menino" é mensageiro da vida, mesmo que fútil, e jamais apela à morte...

Tudo o resto é uma efabulação que serve o poder e a vaidade de homens fúteis e frívolos.

24.12.07

BOAS FESTAS

Apesar de tudo o que aqui foi referido, a vida impõe-nos alguma atenção a esta vontade de celebrar ou, melhor, a esta vontade de esquecer. Bem sei que, deste modo, me rendo ao colaboracionismo de todos aqueles cuja primeira vontade é apagar a História. Se calhar o que tenho vindo a rejeitar não é mais do que o esquecimento como sinal de envelhecimento.

Permito-me, no entanto, celebrar, com todos aqueles que me visitaram, estes dias de euforia, sabendo de antemão que tempos difíceis nos esperam.

Por isso, para todos, um BOM NATAL e, em particular, para as "agulhas" que quiseram fazer parte deste manto de "caruma" que, aos poucos, vai cobrindo o meu quintal.

PS: No meu caso, não acredito que valha a pena mudar os ministros, os secretários de estado..., pois só os escravos podem impor limites ao poder dos senhores... e por enquanto os senhores ainda não conseguiram regulamentar toda a nossa atividade. Quando isso acontecer, será a HORA!

23.12.07

O enigma da esfinge

Hoje, percebi que o melhor é estar calado. Qualquer palavra pode despoletar uma guerra. Por mais que procure estratégias de confluência, uma simples palavra pode transportar em si uma fúria ancestral de devastação a que não sei responder - apenas a mudez, mas, por dentro, uma dor dilacerante...

Ah, como começo a perceber o enigma da Esfinge! Durante todos estes séculos temos atormentado a Esfinge ao dar-lhe voz.

(Um homem cansado do teatro da vida tornara-se esfinge na esperança de que o deixassem só... Mas em vão...)

 

21.12.07

Apenas os olhos...

No Teatro Camões, em dia de temporal (19.12.2007), assisti à apresentação, pela Companhia Nacional de Bailado, do Lago dos Cisnes, ballet dramático em 4 actos, com música de Tchaikovsky e coreografia de Mehemet Balkan. Inspirado numa antiga lenda alemã, narra a história de Odete, uma princesa transformada em cisne por um feiticeiro. Esta obra teve a sua estreia fracassada em 20 de fevereiro de 1877. Gostei particularmente dos cenários e dos figurinos assinados por António Lagarto. Foram, sobretudo, os meus olhos que estiveram naquela magnífica sala porque o cérebro, esse, não suporta o calor dos corpos e deixa-se cair facilmente na prostração das melodias repetitivas e arrastadas. A imobilidade arrastou-o para um delírio onde se cruzaram cenas do quotidiano que naquele momento bem gostaria de ter dispensado.

Hoje (21.12.2007) voltei a experimentar a mesma sensação de adormecimento perante o filme Bucareste, do romeno Corneliu Porumboiu (2006). Mas neste caso, os meus olhos apenas puderam comprovar o lado negro de um país que perdeu a memória da sua revolução ou que procura saber onde estava cada um no dia 22 de Dezembro de 1989, oito minutos depois do meio-dia, naquela cidade a Este de Bucareste.

A reconstituição feita pelos protagonistas naquele absurdo canal de televisão não passa do desejo de estar do lado certo da história, quando, de facto, as vidas mostram a pequenez daquele par de cidadãos.

Espero que ninguém se lembre de me perguntar onde estava na madrugada de 25.4.1974. Embora, eu saiba que estava a dormir. E quando acordei, fui ver a revolução que estranhei pela forma como os militares se dispunham no terreno, esperando que o regime se rendesse. Quanto aos cidadãos, ainda não sabiam que o eram e, incautos, assumiam poses de vencedores, dificultando as manobras e pondo as vidas em risco.

De qualquer modo, o regime agonizava, nada mais tendo a oferecer. Tal como hoje, apenas a glória da corrupção, da manobra, da vaidade saloia...

 

14.12.07

A biblioteca

Não é certamente um espaço assombrado. No entanto, os livros estão fechados à chave. Pertencem a um tempo envergonhado ou, talvez, sejamos nós que temos vergonha desse tempo. Não se sabe bem que livros por ali estão naqueles "altas estantes" - ninguém parece querer saber. No orçamento, não há verbas para recuperação / encadernação ou para catalogação. Ao certo, também não sabemos se há verbas ou não.

Ali, ninguém lê os livros da biblioteca. No melhor dos casos, alguns alunos e professores lêem os seus próprios manuais e todos sabemos, creio, que os manuais são parecidos com livros, mas apenas isso.

Profanada a biblioteca, fazemos dela espaço de reuniões, de palestras, de lazer. Os assuntos abordados podem ser pertinentes e interessantes, mas raramente arrastam um público significativo, a não ser que o condicionemos ou o "arrebanhemos", sujeitando-nos a uma escuta perturbada por conversas paralelas, por entradas e saídas "fora de tempo".

Sempre ouvi dizer que o programa deve ser cumprido, mas nunca compreendi se ele é, de facto, lido. Literalmente, nenhum programa apresenta o jornalista e o cartunista como conteúdo, mas nada, nele, os inviabiliza como recurso - vivo, autêntico - capazes de despertar vocações, de expor a transversalidade dos conteúdos, de nos obrigar a questionar o passado e, em caso de desespero, a rir de nós próprios.

E a culpa não é certamente da biblioteca!? Provavelmente, é apenas, uma questão de canal, o tal, como sentenciou o cartunista Bandeira.

 

13.12.07

O reencontro...

Fundo sem registo, apenas memória indecifrável. No centro, o prof. Monge da Silva, entusiasmado, traça a história do andebol no Liceu Camões. Dirige-se aos pioneiros, protagonistas de um desafio impossível, apesar de, numerosas vezes, a modéstia e o triunfo os ter guindado à vitória. Pelo meio, a eterna falta de recursos e a astúcia do regime.

A saga de ontem parece a saga de hoje. Como é difícil imprimir, a cores ou a preto e branco, uma simples página de jornal? Parece que temos tudo, mas não. Se olharmos bem: estão lá os campos e também lá está o Auditório, sem esquecer os computadores, as redes, as impressoras, mas falta-lhes sempre alguma coisa...

A propaganda assegura-nos que nada disto é verdade: temos mais equipamentos, os recursos humanos são mais eficazes, a organização em curso porá fim ao tradicional miserabilismo... Entretanto, vou escutando as várias intervenções solidárias e, por vezes, um pouco ásperas: há a saudade dos que partiram e a fraternidade dos presentes; há a presença inesperada daquele antigo professor, austero e disciplinador que interpelo, na fútil esperança de que uma centelha nos ilumine. Mas como?

É mais fácil lembrar os espaços, falar de outras presenças. Podemos atravessar o ginásio encerado, rever os aparelhos, sentir o peso insuportável dos corpos, esbarrar nos obstáculos, elogiar a disciplina e a integridade de outros tempos, tolerar a arbitrariedade e a frieza das vozes, pois, a esta distância, tudo ganha sentido - afinal, por detrás daquelas muralhas fernandinas habitavam a austeridade, a frieza e a visão jesuítica. Só que naquele tempo não sabíamos... E, hoje, ouvi erguer-se o remorso, o medo do castigo eterno... no fundo do ginásio ecoam sons de uma ordem defunta...

Felizmente, esta experiência é só minha..., hoje, tudo se passou na Biblioteca e não no Ginásio! E eu próprio me senti um pioneiro porque, afinal, também eu fui iniciado no andebol, desporto que eu imaginava muito mais antigo que, de facto, era. No entanto, a mim faltam-me os companheiros...

 

 

 

9.12.07

Aromas

A flor do eucalipto abre-se sobre a cabeça de S. Torpes, libertando um aroma salutar. No solo, os cogumelos disfarçam a sua presença, eclodindo em pétalas de malmequer prontas a envenenar enormes baratas incautas que lentamente procuram fontes e cloacas.

 As abelhas e as moscas, sobreviventes de Dezembro, não desdenham a esponja do peixe-espada.

Indiferente à mentira, à vaidade e à ostentação instaladas no chiquíssimo Parque das Nações, eu fixo o olhar no que me cerca e tudo são sequelas líticas do passado e também do futuro: da areia, despontam rochas oceânicas que me desassossegam, incapaz de com elas dialogar, de lhes narrar o tempo da sobreposição violenta - vulcânica.

Apesar disso, compreendo que houve um tempo em que os maciços de Sintra, de Sines e de Monchique se perfilavam, alinhados e altaneiros, sobre o Oceano, mas continuo sem saber se, nesses tempos, a flor do eucalipto e a pétala do cogumelo já cumpriam o seu desígnio... e subitamente, sinto que, talvez, o tempo não existisse, porque ele não será mais do que a medida da mentira, da vaidade e da ostentação humanas.

Antes que o corpo se separe da cabeça, vou fugir de S. Torpes e evitar Saint Tropez. No entanto, antes que parta, devo aqui registar o gato preto que, furtivo, se atravessou três vezes no meu caminho, neste fim de semana.

E ainda me falta responder a uma intrigante pergunta sobre o que tenho lido nos últimos tempos. É que há quem se queixe que, apesar de me conhecer há algum tempo, sabe muito pouco sobre caruma, como se esta tivesse tempo para ler.

29.11.07

Amanhã...

Há greve da função pública...

Mais uma vez, estarei do lado dos conformistas ou, se epicurista, do lado dos indiferentes... Se não é verdade, parece.

No entanto, esta semana, organizei uma visita de estudo ao Palácio Nacional de Mafra, em que a maioria dos alunos participou de forma empenhada, apesar de alguns terem primado pelo desrespeito quer dos colegas quer dos guias da visita - ostentam um ar trocista de aborrecimento e, ao mesmo tempo, de superioridade; não sentem qualquer pejo em cortar a palavra ou em chegar atrasados...

Amanhã, esses alunos esperam que os professores façam greve...

Um autocarro ficou sem embraiagem. Sem ruído, encostou à berma da autoestrada e a autoridade verificou zelosamente os documentos da viatura, que 30 minutos mais tarde é substituída e tudo volta ao normal. Entretanto, compreendi que o veículo já partira da sede da empresa "com problemas"...

Amanhã, os mesmos veículos continuarão a circular...

Afónico, desde 2ª feira, insisti em cumprir todas as minhas atividades letivas e não letivas... o que não impediu que certos alunos se estivessem nas tintas para a dificuldade em que o professor se encontrava.

E amanhã, esses mesmos alunos perguntarão se o professor faz greve...

Um pouco por toda a parte, encontramos quem não queira colaborar, quem não queira partilhar informação, quem esconda o jogo. E é pena, porque ao lado, há quem esteja disponível para colaborar na construção de uma sociedade mais esclarecida...

Amanhã, essa disponibilidade mantém-se, apesar dos olhares reprovadores, das palavras travessas...

Amanhã, serei menos (ou serei mais?) funcionário público...

 

21.11.07

A manha alastra...

Se ainda ouvíssemos os poderosos, compreenderíamos que eles nos enganam de forma despudorada: Aznar, Blair, Bush, Barroso foram enganados por serviços de informação que eles próprios tutelavam. A seu tempo, cada um procura branquear o passado, fazendo-nos acreditar que o destino os escolhera para uma missão civilizadora, à data, incompreensível para o comum dos mortais. Vêem-se, a si próprios, como eleitos, como redentores da humanidade.

Se descêssemos um ou dois degraus do Olimpo, veríamos como os Putins, os Fidéis e os Chavez troçam de ricos e pobres, em nome de plebes amorfas, prontas a adular "cabos de guerra" que prometem esplendorosos paraísos artificiais. Apostam no veneno, no chiste e na chantagem para se eternizarem no poder. E nós achamo-los encantadores, paramos para os ouvir como se as suas palavras nos redimissem das nossas humilhações quotidianas.

Ao abandonarmos o Olimpo, mergulhamos na terra dos Sarkosy e dos Sócrates que, dia-a-dia, nos prometem um futuro radioso, se os deixarmos emagrecer o Estado, se os deixarmos programarmo-nos numa liga de interesses privados transnacionais, que, em nome do pragmatismo, amontoam cadáveres um pouco por toda a parte. E nós aplaudimos-lhes a altivez, a convicção e o espírito de missão encenado nos bastidores dos média...

Se descêssemos ao relvado, veríamos um povo prisioneiro dos gestos manipuladores de um selecionador, das fintas gratuitas de malabaristas da bola, dos sorrisos dúbios e manhosos dos fiteiros do costume, prontos a enganar o árbitro, com o aplauso histérico de turbas para quem a verdade desportiva, ou outra, nada interessa. Quando o jogo se aproxima do fim, a farsa alastra às bancadas, senta-se nas poltronas... e deixa-nos com a sensação de dever cumprido e, nesse momento, a manha dos Bush, dos Chavez, dos Sócrates e dos Scolaris sai vitoriosa...

Todos eles fizeram o melhor que sabem, em nome de um interesse superior, aliás, como nós que os acompanhamos...

Lembrei-me, agora, dos "compagnons de route", sem ofensa para a inocência...

18.11.07

Confluências

O lugar onde o Tejo e o Zêzere tinham o hábito de confluir. Agora, estão dependentes das comportas... apesar das divergências, em Constância, fluem Camões, Vasco Lima Couto, Alexandre O'Neil, Baptista Bastos... e quantos mais?

16.11.07

Às horas cor de silêncios e angústias…

Para Fernando Pessoa, o tempo tinha cor, mas a paleta era apertada, feita de verde, cinzento, por vezes, azul e quase sempre preto. Por detrás dos óculos, erguia-se um fundo branco envolto em preto, e nas lentes, lentas partiam as naus noturnas. Não se sabia se regressavam ao cais, mas se o faziam, as naus apodreciam para lá do silêncio do horizonte, num poente-cinza. Ele queria que acreditássemos que naquelas cinzas ainda soprava a chama. No entanto, sabia bem que o fogo (a alma) quando se extingue se esconde debaixo da pedra, à espera de que o vento se levante e se incendeie em notas quebradas…, novas vozes feitas naus que partiram um dia do Cais Absoluto – ideia feita da angústia de quem não aceita que a vida passe e não passe…

Para Fernando Pessoa, as palavras tinham a cor da música que ele não sabia bem se ouvira e no não saber estava toda a angústia que separava a partida da chegada, e na noite do Cais divino soprava uma vaga e doce aragem.

(Em homenagem a todos aqueles alunos que nesta noite, entre sonhos de sargaços, procuram compreender como é que se podia cantar naquele navio encalhado num cais de perdição...)           

 

11.11.07

A Casa-Museu

A Casa-museu existe um pouco por toda a parte. Escondida, envergonhada, de tempos a tempos, lá recebe um visitante, também, ele tímido e um pouco assustado.

A Casa-museu oferece a privacidade do seu antigo proprietário, quase sempre, ridícula e acanhada. Espera-se que o homem ou a mulher se tenham conseguido erguer daquelas quatro paredes e tenham deixado obra, lá longe, na capital, no estrangeiro, no mundo.

Por exemplo, o Alexandre Herculano de Vale de Lobos (Santarém), surge de pés-de-fora, tal é a pequenez da cama. Visto daquele lugar não ombreia, de modo nenhum, com o Herculano que jaz nos Jerónimos. Mas, mesmo lá, a centralidade, é fugaz ao olhar, quase sempre atraído para um qualquer evento musical. Pelo menos, sempre vai ouvindo música. Na casa-museu, talvez oiça os pássaros!

Ora, Salazar, tendo em conta a dimensão do homem, também merece a sua casa-museu, em Santa Comba Dão. Não irá incomodar ninguém e sempre deixará feliz algum turista ou algum nostálgico que por ali passe. A memória do homem deve ser preservada, até para que não se repita.

Desta vez, tenho de concordar com o Vasco Pulido Valente, apesar de eu saber que ele detesta o cheiro a caruma. Detesta tudo o que cheire a campo. O que faria ele, se o desterrassem para a província? É por isso que ele concorda que Salazar seja banido para Santa Comba.

 

7.11.07

A iliteracia

Estou a chegar lá! Uma vida de formulários, convocatórias, regimentos, regulamentos, atas, tabelas... - tudo ferramentas funcionais, ou melhor do funcionário!

A própria exclamação perdeu emoção. Está saturada de convenção. Neste momento, fujo da ata, da convocatória, do regulamento, do plano, mas penso se não seria melhor voltar lá, se este intervalo não me vai ser cobrado...

De facto, ao funcionário compete estar permanentemente de plantão. Zelar desinteressadamente pela saúde do patrão.

E nessas horas - todas as horas - deixamos de ler, de escrever, de descobrir; deixamos de ser vistos como uma ameaça, um risco...

(De qualquer modo, já não necessito de censor - eu próprio exerço esse mester: vou regressar à convocatória, sabendo, de antemão, que depois desta, outra me espera e que, se não cumpro a primeira, dificilmente realizarei a segunda.)

É a engrenagem! O cárcere dos dias e das noites!

 

3.11.07

De graça...

"Dei-lhes de graça meu coração/E o que ele tem." Fernando Pessoa, 10/10/1933

É isso mesmo! Trabalhar de graça, sob a ameaça rasteira do processo disciplinar, da mobilidade, do despedimento.

Funcionário, empregado a tempo inteiro. De dia e de noite. Sem efetiva contagem das horas. Na expetativa de que morra cedo para sossego da segurança social.

Nem o vento sopra lá fora.

Só a febre da alma se agita, insegura, arranhando-me por fora, sem que o coração chegue a saber que está definitivamente morto.

Lá longe, o barril de petróleo continua a matar a esperança... e a chuva fustiga impiedosamente os deserdados...

 

 

 

28.10.07

Bucólica

 

- Ó, meu senhor, será que viu por aqui umas vacas? Incrédulo, depois de olhar à direita e à esquerda, repliquei: - Não é frequente ver vacas num parque campismo! No entanto, ainda não refeito, perguntei-lhe: Mas o senhor perdeu as suas vacas?

- Não, as vacas não me interessam; procuro o maioral… E o pobre homem lá deu meia-volta, sem, no entanto, poder evitar que eu lhe explicasse que seria pouco provável que as vacas andassem por perto, pois, naquela manhã, os caçadores fizeram uma batida monte abaixo até à rede do parque. Eu bem os vira do lado de lá da rede, armas apontadas e canídeos a farejar… Mas o homem desinteressara-se completamente da minha explicação e seguiu o seu caminho. O problema dos caçadores à porta do parque de campismo era meu e não dele: eu acordara bem cedo a pensar que, com tamanho tiroteio, era bem provável que não pudesse mostrar a nascente do Alviela aos meus convidados…
O que me faz pensar que há longos anos tento explicar o que, de facto, ninguém me solicitou. O que me pedem é muito simples: - Será que viu, por aqui ou por ali, umas vacas? E eu conto-lhes a história da domesticação das vacas, do trigo, da colonização, das fartas e das estéreis caçadas… E o meu interlocutor deixa de me ouvir porque, afinal, as vacas não passavam dum pretexto. O que ele procurava era o maioral, a ver se ele lhe pagava um copo…

Se ao menos tivesse adivinhado! Ter-lhe-ia pagado uma cerveja e, em troca, ele teria dito: - muito obrigado, meu senhor, forma de esconder uma enorme vontade de zurzir nuns figurões, uns maiores e outros mais pequenos, que ultimamente têm abusado da paciência da arraia-miúda. Será que os maiorais já não querem saber das vacas?!

Zus! O lugar onde a língua acaba.

 

22.10.07

De que me servem estes papéis?

São tantos os papéis,

todos empilhados

numa serra fútil

(a aliança salta do dedo

num esgar último)

estes papéis são resposta

a uma única pergunta

cansada de fugas inúteis

De que me servem estes papéis?

Já me vejo arder,

o vento ainda sopra a meu favor,

o cântaro avança sôfrego,

mas eu atravesso os meus papéis

já cinza

De que me servem estes papéis?

 

21.10.07

Adeus, Até amanhã

Este documentário de António Escudeiro deixou-me uma estranha emoção. Ao ver aquelas imagens do passado e do presente do Sul de Angola, senti que também eu regressava a lugares familiares. Lugares povoados por brancos que construíram cidades, o pioneiro caminho-de-ferro de Benguela, portos à escala internacional, pesqueiros… Mas o meu regresso é bem diferente do de António Escudeiro: ele nasceu lá, filho de engenheiro que chegou a diretor do caminho-de-ferro; estudou lá, em escolas, onde predominavam os brancos e os mestiços. Nessa Angola austral, os brancos eram felizes. Hoje, os brancos são raros, o caminho-de-ferro recupera lentamente, as cidades continuam destruídas; apenas as autoridades provinciais recuperaram para si alguns palacetes; os negros, esses, em magotes percorrem todos os caminhos, tentando vender a pouca produção que vão conseguindo.

António escudeiro vê o cinema do Huambo arrombado, as máquinas de projetar espreitando, por detrás de uma parede imorredoura, um horizonte imprevisível, mas ameaçador. E eu, também, percorro aqueles morros, estupefacto com a cegueira branca, que descobri na denúncia feita por Pepetela e, sobretudo, por Ruy Mário de Carvalho. Também eles, brancos-mestiços de Angola. Todos eles brancos de segunda!

E eu que nunca fui a Angola, tenho cada vez mais a sensação de que lá vivi sempre. Mesmo, agora, começo a pensar naquele professor de História, de Arlindo Barbeitos, que levou o aluno preferido a visitar o cemitério para lhe ensinar a ler a história do colonialismo. Ao ver entrar António Escudeiro no cemitério, pensei, aqui está um espaço onde a diferença de cor ou de pele não fará sentido. Mas não. Esquecera que só o branco tinha direito àquele intramuros.

Apesar de tudo, o documentário "Adeus, Até amanhã" merece ser estudado com atenção pelo que deixa ver do que aconteceu nos últimos 30 anos na martirizada Angola e, sobretudo, pela cor dos panos e pelo olhar abismal daqueles milhares de crianças que espreitavam as câmaras e que respondiam em coro, nas despojadas salas de aulas.

Por mais que queiramos esquecer, a Europa é responsável pelo atraso da África…

 

 

 

17.10.07

Aos 53 anos, fragmentos…

São muitos os anos, quando relembro que outrora um médico me assegurou que não chegaria aos 39. Não lhe recordo o rosto nem a voz, esfumou-se numa enfermaria branca como ele.

O dia foi de sinais contraditórios: os amigos não esqueceram a palavra ou o gesto solícito; mas outros (e não sei como classificá-los!) passaram o dia a delimitar o território como se pudessem correr algum perigo. Mas como se o poder nunca me interessou?

Foi, no entanto, um dia de surpresas: o conselho pedagógico mostrou-se participativo e reivindicativo, numa girândola de olhares cruzados e, por vezes, desorientados (pela primeira vez, a mesa teve dois pólos!) Hoje, os meus neurónios desdobraram-se num movimento circular inesperado.

Surpreendentemente, alguém que, por vezes, consegue fazer-me desesperar, na placidez dos dias, ofereceu-me "A Vida Fragmentada – Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna", de Zygmunt Bauman.

 

14.10.07

Sem vergonha…

Um ministério é um grupo casual de indivíduos, que intrigaram para estar ali." (…) O país "paga e reza. “Eça de Queiroz, Maio de 1871

Em Torres Vedras, um grupo mais ou menos casual intriga para conquistar o poder. Em Fátima, a desavergonhada Igreja desperdiça o suor do povo e ainda o acusa de grosseria. No Terreiro do Paço, um ministro das finanças corta nas pensões de reforma acima dos 600 euros, como se 700 ou 800 euros fossem suficientes para pagar a alimentação, os cuidados de saúde, os lares…

Quem anda por aí, vê, um pouco por toda a parte, sinais de riqueza…. Riqueza cuja origem é desconhecida e, portanto, não tributada.

Será assim tão difícil enviar meia dúzia de polícias a cada marina, a cada imobiliária, a cada banco, a cada discoteca, a cada catedral? Se o fizessem, os agentes perderiam a vontade de passar pelas delegações sindicais ou deixariam de ficar parados em frente dos bancos, das ourivesarias…

(…)

Neste fim-de-semana, dormi mal. Despertei, várias vezes, a pensar no motivo que nos leva, ao olharmos para um monumento, a admirá-lo sem nos preocuparmos com a biografia do arquiteto, se andava triste ou alegre, se bebia ou era abstémio e, ao mesmo tempo, quando lemos um poema ou um romance, a só querer saber se o poeta ou o romancista foram infelizes na infância, pederastas, pobres, provincianos ou cosmopolitas. Que diferença há entre um poema e uma catedral? Entre um Poeta e um Arquiteto? Será uma questão de escala?

Parece-me que este desassossego não abona muito a meu favor. Sobretudo do meu fim-de-semana.

E ainda mais grave: gastei, também, uma boa parte da noite de sábado para domingo, a pensar no papel do conselho pedagógico na escola atual. E fiquei descoroçoado, sem saber qual é o campo de ação deste órgão. Acordei com a ideia que me compete pensar a organização escolar e a atividade docente tendo como único objecto o crescimento harmonioso de todo e qualquer ser que entre na escola, independentemente da fase de aprendizagem em que se encontre. A escola deve preparar o ser para que, no futuro, possa ser um arquiteto, um pedreiro, um poeta, um linguista, um físico, um cozinheiro, um matemático, um pintor… e não, um bêbado, um delinquente, um pederasta, um branco, um negro, um indiano, um fundamentalista…

À escola não interessam os intriguistas que procuram chegar aos ministérios!

 

11.10.07

Aporias

Tenho evitado comentar os casos do dia: o regresso à escola dos funcionários europeus; o topete dum empregado da RTP, em tempos de "precisa-se colaborador"; a iniciativa autoformadora de dois agentes da ordem que confundiram uma delegação sindical com uma escola; o desaparecimento da ministra da educação; uma basílica que apenas custou aos crentes 70 milhões de euros; o secretismo das organizações e o cinismo dos dirigentes; a dor de cotovelo de quase todos; e, sobretudo, a indiferença e a descrença da maioria…

Inimigos, marchamos, lado a lado, sobre um campo de minas, sem querer perceber que ainda nos falta aprender a ler. Que ler pode ser uma atividade permanente, a única capaz de nos oferecer uma alternativa à "apagada e vil tristeza" do orgulho, da presunção e da prosápia.

Ler abre-nos a porta da alteridade… e toda a escrita é uma forma de leitura, de epifania…

(Apesar do ruído e do grito, da histeria das confrarias…)

 

5.10.07

Afonso Vaz Botelho - Que devo eu fazer agora?!

A 1 de Dezembro, a 5 de Outubro e a 25 de Abril, os que ainda têm trabalho param para celebrar a refundação da Nação. Primeiramente, libertámo-nos do estrangeiro, em segundo lugar, pusemos termo ao que restava do Antigo Regime e, finalmente, deixámos ruir o Império, liquidando, no acto, o Estado Novo.

Qualquer destas datas assinala o fim de um ciclo, dando início a outro. E por isso em vez de celebrarmos a libertação – esperança fugaz -, deveríamos reflectir sobre o modo como os portugueses se empenham na revitalização da coletividade. O que é que, de facto, nos interessa?

A resposta? - Podemos encontrá-la no Retrato de Uma Família Portuguesa, de Miguel Rovisco. Perante o perigo, perante o invasor, a família desmorona-se e uma parte foge: para o Brasil ou para a Europa, tanto serve!

Nascido em 1959, Miguel Rovisco suicidou-se em 1987, um ano depois de Portugal ter "entrado" na União Europeia. Aos 27 anos, já escrevera mais de 20 peças… No plano existencial, o seu suicídio não se explica – poderia ser um acto gratuito e repentista de algum existencialista à deriva num universo órfão de Deus! Mas não.

O desespero e a rebeldia de Miguel Rovisco nada tinham a ver com a divindade. A causa primeira encontrou-a na indiferença e no alheamento das elites nacionais, incapazes de compreender a força civilizadora do teatro.

As elites não lêem ou, pior, se o fazem, não resistem à tentação de censurar a obra alheia, desvirtuando-a de tal modo que o autor se verá obrigado a renegá-la. Mas Miguel Rovisco, em vez de desistir ou de renegar a obra, preferiu que um comboio lhe desfizesse o corpo para que a voz se pudesse ouvir bem alto no palco das consciências que nos governam…

Hoje, 5 de Outubro de 2007, que novas razões podem impedir os Roviscos desta Nação de se suicidar?

(Lá bem no alto, sobre os cedros, já avisto 250 altos funcionários da Comissão Europeia que, sem qualquer razão para se imolarem, se preparam para "regressar à escola", prometendo um futuro radioso… Mas, ao contrário do que acontece na maioria dos palcos, apenas teremos direito a um solilóquio…)

 

2.10.07

Outubro chegou…

E com ele o Outono… estação ou crepúsculo? Há dias em que o crepúsculo avança sobre o corpo, deixando-o exaurido. Contra a maré, lutamos porque ainda não é o tempo da noite…

Se passarmos à Sociedade, fica-nos a dúvida se também podemos falar de Outono… No entanto, os sinais são muitos: Mendes perde para Menezes; os pais perdem para os filhos; os funcionários perdem para a arbitrariedade do Governo que, entretanto, vai nomeando uma nova classe de carrascos que se encarregará de o substituir na zelosa missão de redução de custos…; isto sem falar das equipas de futebol que perdem sistematicamente perante as estrangeiras, salvo raríssimas exceções…

Para nos alegrar, sempre vão despontando alguns vencedores: a equipa de rugby que terá ganho o campeonato do mundo, à portuguesa, claro está; Mourinho que lá encontrou maneira de roubar o Abramovich – mas quem rouba a ladrão tem cem anos de perdão; Luís Filipe Menezes que, depois de endividar a Câmara de Gaia, se propõe vender o país por um cêntimo… E Sócrates que nos quer convencer que com ele ganhamos todos: as grávidas; os velhinhos e as velhinhas; os desempregados; os jovens; os delinquentes; os empresários; os comentadores políticos e, sobretudo, os funcionários públicos…

E nem vale a pena falar de Marcelo Rebelo de Sousa, o Sumo-sacerdote da nação portuguesa, cujo brilho só poderia ser ofuscado pelo laureado José Saramago, caso ele não tivesse escolhido o exílio filipino…

Se alguém se der ao trabalho de ler esta página outonal, peço-lhe que não se esqueça do CONTEXTO, (CUM+ TEXTUM), o que o obrigará a ler todos os textos mais ou menos coevos. Caso não o queira fazer, faça como a maioria: torne-se crente de uma qualquer confraria ou de uma qualquer autoridade.

O Outono chegou.

 

27.9.07

Quem quer…

Quem quer vai, quem não quer manda.

Tento ignorar a moralidade do adágio não me sai da cabeça.

Incapaz de esperar, sinto que avanço desnecessariamente…, mas continuo o caminho como se uma voz me ordenasse o rumo.

Há quem pense que cultivo a opacidade quando, de facto, procuro, em mim mesmo, um sentido… talvez mesmo uma missão. Esta ideia, que me foi inculcada na juventude, acaba por me infernizar os dias.

Corre-me no sangue um padrão que me segura ao chão.

O padrão, cultural ou apenas de pedra, traça-me uma rota em que me perco a cada instante, e continuo a ver-me lá longe, na foz do Zaire, sem entender o motivo.

Antevejo um imenso caudal, a coberto de uma sufocante e esplendorosa vegetação, e apesar do tinir das azagaias sombrias, subo o rio, à procura da nascente da minha infância.

Ao contrário dos rios de Saramago – O Almonda e o Tejo – que, de tempos a tempos, o cercavam na Azinhaga, o meu rio, o Zaire, deixava que eu o abraçasse, ficasse a vê-lo… a ir, a fluir…

E na minha cabeça, corre o Zaire que me sussurra: Quem quer vai, quem não quer manda.

 

20.9.07

Quem me dera…

O trovão expande-se, de forma arrastada; o relâmpado ziguezagueia faiscante. Do 12º andar, procuro o Tejo, mas, na noite, ele esconde-se no negrume, insensível à revolta dos elementos. Fartos dos excessos dos heróis e dos vilões, dos mourinhos e dos Scolaris, de códigos penais à la carte, do capotamento diário dos camiões, os céus entraram em fúria e travam lá nos cimos um combate sonoro e luminescente que ameaça a mesquinhez das nossas rotinas, das nossas vaidades.

E de repente, o contínuo ribombar do trovão arrasta-me para o final do canto I de Os Lusíadas, e fico a pensar no Poeta, fascinado e humilde, mas revoltado contra os homens que não contra a Natura:

 

No mar tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade avorrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?

 

Entretanto, o céu parece começar a serenar, deixando que um rasto de luz se precipite sobre aquele Tejo sonolento que eu não vejo, mas que suspeito que continua a correr para o grande Oceano. Quem me dera partir com ele!

 

16.9.07

De regresso…

Parece-me que, nesta última semana, o lagarto atravessou o Atlântico para se rir de mim. Não sei se tem duas caudas ou apenas uma, mas sei que eu pareço ter duas caras. De facto, deixei que me elegessem novamente para um cargo a que prometera não voltar. No entanto, senti que não podia dizer que não. Não podia esconder-me por trás da memória traiçoeira, nem me refugiar na debilidade que me esgarça os ossos. Esse tipo de argumentação enoja-me profundamente e, por isso, enquanto puder, resistirei.

De mim, ninguém poderá esperar abordagens que não sejam pedagógicas, o que significa colocar-me na perspectiva de quem defende um ensino mais eficaz, que nunca perca de vista a valorização humana de cada aluno, mesmo que isso signifique rumar contra o pragmatismo político, o carreirismo docente e o oportunismo de alguns encarregados de educação.

A tutela eliminou a pedagogia das escolas: o currículo e a disciplina substituíram a educação; no lugar do pedagogo instalou-se o jurista e avança-se com o delegado de segurança. A palavra de ordem é disciplinar. E para isso a peça essencial é o "regulamento interno", em permanente atualização…

E o lagarto, trocista, não deixa de sorrir, mas por enquanto vai ter dificuldade em assustar-me…

 

10.9.07

O Sorriso do Lagarto, 1989

De João Ubaldo Ribeiro, nascido em 1941, na ilha de Itaparica (Bahia, Brasil), o romance " O Sorriso do Lagarto" descreve-nos um universo brasileiro desconcertante. Neste romance, a transgressão é a regra: a linguagem de homens e mulheres é libertina; a sexualidade é ambivalente; a amizade é traiçoeira; a política é corrupta; a justiça é cega; a religião é dogmática; a feitiçaria é oportunista; a ciência é irresponsável.

As personagens brasileiras dão corpo à transgressão, anunciando um presente e um futuro que pouco tem a ver com a ética ocidental. O homem, apesar de civilizado, despe-se das luzes, e volta a dar corpo aos instintos mais baixos, mas não regressa à barbárie. Tudo parece normalizado. Tudo fica impune. O herói, ainda, é aquele que se distingue pelas suas acções, só que estas situam-se no vasto território da delinquência.

Quanto à linguagem de João Ubaldo Ribeiro, pode-se dizer que é esplêndida, impudica, cirúrgica e narcísica: nela reflete-se a exuberância do Brasil, feito de perversão, de hibridismo, de ritmo e morte.

«Era um grande lagarto esverdeado e iridescente, que pôs a cabeça para fora de uma touceira de margaridas e o encarou, mostrando e recolhendo a língua repetidamente. O lagarto de João Pedroso, o lagarto que sorria, o lagarto que ainda ia sorrir mais? Não era possível que um lagarto sorrisse, mas a verdade é que, depois de se aproximar mais um pouco, sentiu que realmente havia algo de um sorriso em torno do bicho e não sorria para ele, mas como que sorria dele.»

op. cit, pág. 362, editora Nova Fronteira

 

3.9.07

Setembro, ao postigo…

O ano letivo começa mal: no regresso, os professores fazem fila para preencher manualmente impressos que irão ocupar, durante horas, um ou dois funcionários que zelosamente introduzirão os dados em programas informáticos estanques. Lembra aqueles cronistas que sempre que lhes cabia narrar a história dos seus "senhores" recuavam a Adão e Eva… Afinal, para que servem os milhares de computadores espalhados por todo o país? Por outro lado, o próprio preenchimento dos formulários parece exigir um manual de instruções… Será, assim, tão difícil a um licenciado preencher o NIF, o NIB, o nº da ADSE, confirmar a morada, declarar se de um ano para o outro há alterações?

E quanto ao resto, o indizível…

Numas escolas, a atividade letiva começa a 10 noutras a 17, dando expressão à autonomia organizativa de que usufruem. Os professores e os candidatos a professores manifestam-se um pouco por todo o país contra a ausência de emprego. Os responsáveis governativos descartam responsabilidades: a culpa é da reduzida taxa de natalidade, do abandono escolar precoce.

No entanto, parece estranho que um país que gasta milhões de euros com o envio de militares para os Balcãs, para o Líbano, para o Afeganistão, para Timor, não consiga traçar uma política de cooperação, por exemplo, com Angola ou com Moçambique que dê escoamento aos milhares de jovens (e não só) que, terminado o curso superior se encontram à deriva e à mercê de um patronato sem escrúpulos, sobrecarregando as famílias, já de si cada vez mais pobres. É estranho que este país não aposte na formação linguística dos milhões de emigrantes que se encontram espalhados um pouco por todo o mundo, como se a promoção escolar pudesse ser um obstáculo ao bom desempenho laboral do típico emigrante português: pau-para-toda-a-obra.

Qualquer sociedade, que seja incapaz de gerar trabalho, abre as portas à delinquência, à violência e, consequentemente, entra num processo de aniquilamento.

Ainda nem todas as portas estão fechadas, no entanto é preciso pensar a política de outro modo. A acção política deve dirigir-se à totalidade, alicerçar-se nas portas que o passado abriu e perspetivar-se em termos de futuro e não apenas de presente.

2.9.07

Em Setembro…

Sétimo mês do calendário romano. Para mim, há muito que Setembro é o primeiro…

Mais uma vez, volto à escola na expectativa de encontrar jovens sedentos de saber ou que, pelo menos, eu seja capaz de os motivar. Sei que alguns têm objectivos definidos e que procuram alcançá-los a qualquer preço. Sei, também, que muitos outros veem na escola um tempo imposto e inútil e, por isso, cedo mostram o seu desinteresse, de forma passiva ou activa: os mais activos são os mais inconformados e rapidamente se tornam indisciplinados. (Diria que a indisciplina, ao contrário do que muitos pensam, é gerada pela própria escola, pelo próprio sistema educativo. No limite, todos os sistemas procuram disciplinar, normalizar, fazer obedecer, e, para o efeito, geram normas que convidam ao desvio, à delinquência.) Sei, ainda, que são raros os que se apresentam disponíveis para aprender sem exigir contrapartidas.

Neste contexto, confesso que me sinto cansado, pois, pela 33ª vez, o sistema me convida a fazer de conta que é possível modificar a heterogeneidade de atitudes sem alterar minimamente os objectivos, os programas, as técnicas de avaliação; convida-me a fingir que se eu for um "bom" professor, qualquer insucesso volverá sucesso; convida-me a aceitar que o fracasso dos meus alunos é o meu fracasso. Todavia, ao normalizar-me, o sistema convida-me à indisciplina (ou à desistência?) …

E quando chega Setembro, sinto que os muros se elevam e começo a ouvir, cada vez mais perto, o poema de Fernando Pessoa:

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

 

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço –

 

Um mar onde boiam lentos

Fragmentos de um mar de além…

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

13.09.1933

 

31.8.07

A propósito do Dr. Vasco de Campos

Rita Campos

Muito obrigado pelo esclarecimento. A sua explicação sobre a génese e os objectivos da SPDA é oportuna e valiosa, pois muitos dos actos do ser humano devem ser vistos numa perspectiva altruísta e não apenas ideológica, no sentido restrito do termo.

Sou lisboeta de passagem: raros são os pinheiros que sobrevivem na capital e da "caruma" quase que já não há rasto.

 

26.8.07

As estantes brancas e vazias

Ocupavam quase todas as divisões do duplex da Ferreira Lapa.

Uma mesa branca recusava abandonar o centro de um gabinete de leitura. Não se sabe como entrou, se foi construída ali. Era impossível fazê-la passar pela porta. Mesmo desmontá-la revelou-se uma tarefa insuportável.

Nas estantes jaziam ainda alguns pacotes de livros enviados pelas editoras, sobretudo, francesas.

Aquele espaço, um pouco kafkiano, exigia ao ocupante algumas capacidades circenses.

EPC, vítima de doença extremamente debilitante, mudara-se. Mas "o personagem" ficara. Sei que ainda voltou para recuperar o correio. Subiu lenta e teimosamente até ao 3º andar. E quando lhe abriram a porta, só pediu uma cadeira para descansar daquela ousadia. E lá esteve a explicar, entusiasmado, a sua vida, os seus livros, como se aquela fosse a última vez…

E era. As estantes, essas, vão ficar brancas e vazias…

 

 

24.8.07

A lei...

A lei de Deus (do soberano, do príncipe) é despótica, mas há quem diga que é amor!

A norma é dor! Não quer saber do amor.

Ultimamente, perdemos a noção da diferença: a norma vestiu a pele da lei. Novas leis convidam-nos diariamente a engrossar o campo da delinquência. A lei gera o espectro da ilegalidade, aumenta a desigualdade.

E sob o rosto do legislador, espreita o amor do soberano que nos esconde que «é mais prudente reconhecer que a lei é feita para alguns e se aplica a outros (…); que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um dos seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem.» Michel Foucault, Vigiar e Punir, 1977

E por outro lado, tal como Foucault receava, os juízes demitem-se cada vez mais de julgar, e a comunicação social (?) não hesita em apropriar-se do espetáculo da investigação, vulgarizando-a até que a prova se dilua no ceticismo dos espectadores…

 

22.8.07

Vasco de Campos

A D. Isabel, minha hospedeira, deu dois murros na porta do meu quarto, e gritou para dentro: “Estão ali a chamá-lo para ir assistir a um parto, na Serra».
Levanto-me estremunhado, visto-me à pressa, e espreito por uma fresta da janela.
Amanhecia. Dum céu cinzento e calmo, peneirava-se uma chuva miudinha, de molha parvos. Abro a porta da rua. Um recoveiro com um macho albardado seguro pela arreata, elucida-me:
— «É para ir tirar uma criança à Ti Maria Farrapeira, lá na Serra...».
Há quanto tempo está em trabalho de parto? Inquiri.
«Trabalho... Trabalho... Há quinze dias que não faz nada. Desde que lhe deram as dores”. Assim se inicia o livro "SERRA! Caminhos de um médico" de Vasco de Campos, ed. Moura Pinto.

Sobre este médico (e escritor) nada sabia até chegar à Ponte das Três Entradas. (Como não gosto de pontas soltas, aqui deixo algum trabalho de férias.) Ao olhar para uma placa, na entrada do camping, percebi que o homem se revia no pequeno Alva, que por ali fluía. Entretanto, ao deslocar-me a Avô, verifiquei que o Centro Cultural, também, tinha como patrono Vasco de Campos. Por outro lado, descobri que o município de Oliveira do Hospital não só lhe atribuiu e requalificou uma praça na sede do concelho, como lá lhe colocou, em 2006, o busto. (… Entretanto, vou pensando no exemplo da Escola Secundária de Oliveira do Hospital a cuja BIBLIOTECA ESCOLAR foi dado o nome de Dr. VASCO De CAMPOS… e naquelas escolas por onde passaram e se formaram tantos ilustres escritores, embora alguns tenham dificuldade em aceitá-lo... E não entendo a amplitude do anonimato…) E não me sai da cabeça aquele taxista que me explicou que, noutros tempos, quando o médico Vasco de Campos residia em Avô ou, mais tarde, na Ponte das Três Entradas, ele era uma figura insubstituível naqueles vales e montes, sobretudo nos invernos rigorosos, cavalgando o macho para acudir a um parto, a uma pneumonia, a uma tuberculose, indiferente à riqueza ou à pobreza do paciente. E que muitas vezes para além de nada cobrar ainda mandava pagar a conta na farmácia. No entanto, o tom utilizado pelo taxista ao referir “noutros tempos” lançou-me numa obscura reflexão sobre a relação do médico com a comunidade local… Apesar de se adivinhar na voz do taxista a gratidão de quem também beneficiara do zelo do médico, via-se que algo o preocupava, como se o imobilismo local também fosse da responsabilidade do ilustre médico, poeta e pioneiro agrónomo e turístico.

(Num outro registo, ia ouvindo, na rádio que, em Agosto, em Pedrógão Grande, só havia um médico de serviço.)

PS: A minha obscura reflexão desanuviou-se um pouco quando li o seguinte: A Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô (SDPA) está a comemorar as bodas de ouro. Fundada oficialmente no primeiro dia de Maio de 1957 pelo médico e escritor Vasco de Campos. Parece, no entanto, que a Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô evoluiu pois “neste meio século de existência a SDPA tem-se vindo a revelar como a principal alavanca do desenvolvimento da vila de Avô, sobretudo nos domínios da cultura e da acção social. Impulsionadora do Centro Cultural Vasco de Campos, em 19 de Junho de 1993, a SDPA – uma instituição de utilidade pública - tem-se concentrado ultimamente na área da acção social. Em 2004 inaugurou um lar de idosos na antiga e histórica vila, hoje frequentado por cerca de 40 utentes. Presidida pelo presidente da Junta de Freguesia local, Aristides Gonçalves, a SDPA possui ainda um ATL, frequentado por 26 crianças, e é a entidade gestora da ilha fluvial do Picoto – um dos mais belos espaços de veraneio do concelho de Oliveira do Hospital. A instituição, que é hoje o maior empregador local, prepara-se agora para construir o primeiro Lar de Acamados do concelho. Trata-se de um investimento de cerca de um milhão de euros – com capacidade para 22 utentes – que a SDPA espera inaugurar num espaço de dois anos. O novo edifício, com uma área de cerca de 800 metros quadrados, será um prolongamento do actual lar, passando a serem comuns os serviços aos utentes. Presente na cerimónia dos 50 anos da instituição avoense, o presidente da Câmara de Oliveira do Hospital, Mário Alves, comprometeu-se a apoiar o novo desígnio da SDPA, pois conforme considerou a SDPA "tem estado na primeira linha da cultura e acção social no concelho". A descoberta desta SDP lança-me outro desafio: quantas SDP terão sido criadas durante o Estado Novo? E Onde? E o que é feito dessas “sociedades”?

19.8.07

Museu de Esposende 2007 e Ventura Terra

Ventura Terra

Parece-me que a Escola Secundária de Lisboa Luís de Camões, que, em breve, celebra os 100 anos da inauguração do edifício, bem poderia estabelecer um protocolo com o Museu de Esposende para que a actual exposição pudesse ser apresentada em Lisboa.


Férias

6 de Agosto

Rio Alto (Póvoa de Varzim).

Praia a 100 metros, extensa e convidativa. O vento forte e o frio arruínam completamente a expectativa do veraneante. O Camping da Orbitur, bem organizado, nada pode contra as leis da natureza, apesar da piscina.

7 de Agosto

O dia acorda menos ventoso. Cedo, os campistas acorrem à praia. O vento intensifica-se ao longo do dia, tornando-se dominante. Fico 35 minutos no areal à espera de que o sol cumpra o seu papel. Nem o sol consegue vencer este inóspito vento.

Em alternativa, regresso a As Pequenas Memórias de José Saramago (16.11.1922 -). Concluo a leitura.

Fica-me uma certa simpatia pelas memórias do autor. Talvez pela proximidade ribatejana: o tempo da adolescência, vivido na Azinhaga ou no Carvalhal do Pombo, não é assim tão diferente. A pobreza, o isolamento e a ignorância predominam. Na primeira república, apesar de tudo, os jovens parecem gozar de maior liberdade do que no estado novo. Saramago retrata-nos um jovem sensível, atento às leis da natureza e da sociedade. Ora, durante o estado novo, a atenção estava voltada para o cumprimento das regras, em detrimento da autenticidade. Mas não só o autoritarismo do regime atrofiava a disponibilidade, mas também o relevo irregular e, sobretudo, o clima seco e quente.

O retrato de família, em particular, dos avós aproxima-nos: aquele avô enigmático e antipático parece ser uma figura comum.

A descrição da vida na cidade de Lisboa, nos anos 20 e 30, ajuda-nos a compreender as dificuldades sentidas pelos pequeno-burgueses, semianalfabetos, obrigados a viver em quartos, num universo de cúmplice e, por vezes, promíscuo. Apesar disso, para Saramago, esse tempo foi de aprendizagem e, mesmo, de algum triunfo. Um tempo em que toma consciência, em particular, durante a guerra civil espanhola, da natureza do regime salazarista. O melhor testemunho é quando procura fugir ao alistamento na mocidade portuguesa ou, pelo menos, procura evitar a distribuição da farda verde e castanha no Liceu Camões.

Sente-se, em As Pequenas Memórias, um certo ajuste de contas. Como se o autor quisesse dizer que o sucesso pouco tem a ver com a origem social e cultural. De certo modo, Saramago esforçou-se por aplicar a máxima do avô: «Trabalho que se começa, acaba-se, a chuva molha, mas ossos não parte.»

 

8 de Agosto

Deslocação para Fão, Esposende. Camping lotado, residencial. Enfim, lá se arranjou um simulacro de alvéolo. A praia a 800 metros. Extensa, com menos vento e menos frio. Ao sol durante 90 minutos. Apesar de tudo, sinto-me melhor numa sala de aula. Sacrilégio, eu sei. Mas, está-me nos ossos! Estes ossos que se querem separar de mim. Talvez, para os ter um pouco mais comigo, suporte este ritual de exposição ao sol. No entanto, sinto que tanto o calor como o frio me debilitam e me deixam mal-humorado.

Para enganar estes rituais de Verão, dedico-me a ler Vigiar e Punir, de Michel Foucault, em traumatizante tradução brasileira. Personagem principal: o corpo supliciado, espetáculo oferecido pelo soberano ao povo, mas que a partir de 1840 cedeu o lugar à alma.

 

9 de Agosto

Museu de Arte de Fão (inaugurado em 2004). Apresenta a coleção de Eduardo Nery, O Eterno Feminino, Emoção e Razão, A Mulher na Arte Africana. Predominam máscaras e esculturas femininas de países como o Congo, o Níger ou o Mali. Em todas elas a feminilidade se expõe de forma crua, deixando-me a perguntar se este tipo de escultura resulta de uma divinização da mater biológica e social ou de uma idealização da beleza feminina. A responsável pela exposição, por seu lado, coloca-nos uma outra questão, também ela, interessante: Existe fronteira entre objetos de arte e "artefactos"?

Passeio pedestre a Ofir e às margens do rio Cávado. Uma longa avenida, rodeada de casas apalaçadas que espreitam por entre o pinhal. Algumas em ruínas ou transformadas em discotecas decadentes. Ao fundo, a praia concessionada, lotada de barracas e fregueses. O rio, lá longe, separado por estevas (?)

2 horas ao sol na praia de Fão. Um sol agradável, sem muito vento, com água fresquinha…

À noite, observação dos astros, em Ofir. Vê-se bem o planeta Júpiter e 4 das suas 21 luas. A sessão poderia ter sido mais didática e o local deveria estar menos iluminado. O Ciência Viva por vezes desperdiça as oportunidades!

 

10 de Agosto

De Fão para Esposende, há paragens de autocarro, mas ninguém se preocupa em afixar qualquer horário. Com muita paciência, lá se chega ao destino. Esposende é uma cidade (?), onde as manchas urbanas se cruzam com zonas rurais e ribeirinhas. Tipo três em um. Aposta-se mais na frente ribeirinha, mas as obras não têm fim. Tudo atabalhoado. A destoar, as igrejas de lustrosa talha barroca e o museu, onde tive o prazer de ver uma exposição da obra do arquiteto Ventura Terra.

 



11 de Agosto

Ida a pé à Apúlia. 40 minutos para cada lado. Sensação de desleixe. A Câmara de Esposende não parece primar pelo planeamento. Cada um utiliza os recursos naturais como lhe apraz. E a Câmara, apesar de tudo, deve viver desafogada. Os moinhos da Apúlia estão transformados, à excepção de 3 ou 4, em casas de veraneio.

À noite, breve incursão pelo festival de marisco e pela feira de artesanato de Fão. É extraordinário como os portugueses apreciam a manjedoura! Se o mundo estivesse a acabar, estes gastrónomos não desviariam o olhar da travessa de marisco. E este ritual repete-se um pouco por todo o país: de Olhão a Fão.

 

12 de Agosto

Do litoral ao interior. De Fão para a Ponte das Três Entradas, junto ao rio Alva.

Ao longo das estradas, vende-se um pouco de tudo, em feiras improvisadas. Sobretudo, entre Fão e a Póvoa do Varzim. Fico com a ideia que a ASAE ainda não percorreu estes estendais de produtos mal-acondicionados e empoeirados. Por outro lado, vou percebendo porque é que se diz que o Norte está cada vez mais pobre. Não sei se está mais pobre, mas percebi que desconhecem a DGCI.

 

13 de Agosto

Viagem num autocarro extraordinário ao Santuário de Nossa Senhora das Preces. Bilhetes a 1 euro e 79 cêntimos.

Não esquecer Vasco de Campos.

 

14 de Agosto

Ida a Oliveira do Hospital. Perícia do condutor e mau planeamento das localidades, designadamente de Avô.

 

15 de Agosto

Chuva na Ponte das Três Entradas. Almoço no restaurante da Ponte. Falhou a organização: os vizinhos de mesa, cansados de esperar, abandonaram a refeição; o cozido à portuguesa abusou da farinheira doce (?). Carote para o serviço prestado. Na Província, há, por vezes, a preocupação de aproveitar a ocasião.

16 de Agosto

 De regresso ao litoral. S. Pedro de Moel. Praia poluída. Maré cheia, sem areia, com zonas interditas. Dentro de poucos anos, a praia terá desaparecido. A construção civil sobre as arribas mantém-se e o oceano torna-se numa enorme cloaca.

17 de Agosto

Verifico que, numa localidade procurada por milhares de veraneantes, não há uma única caixa multibanco. Estão anunciadas duas! Ninguém parece reparar nisso. Os CTT abrem, apenas, às 14 horas. Um dos postos clínicos está encerrado para férias!

No parque de campismo da Orbitur é o salve-se quem puder. O restaurante só serve almoços até às 14 horas. Começo a dar razão àqueles caravanistas franceses que, em Fão, me diziam que em Espanha e Portugal é tudo igual. É impossível encontrar um lugar acolhedor e bem organizado.

Continuo a ler Vigiar e Punir, de Michel Foucault. À medida que avanço na leitura, compreendo melhor aquela estafada ideia de que os brasileiros subvertem os textos que traduzem.

 

18 de Agosto

Como se o destino existisse, reencontro, em S. Pedro de Moel, dois amigos que não via há 20 anos. Mas para que isso acontecesse, foi necessário que, simultaneamente, alguém nascesse e morresse. E para o feito também contribuiu o ruidoso rio Alva que incomoda o sono leve, que não o meu.

 

19 de Agosto

Interrupção da viagem. O Sol, ao contrário do prometido, continua a brilhar sobre a praia poluída de São Pedro… poluída pela Ribeira dos Milagres. Quem diria?

 

 

3.8.07

Torre Bela

   

Para quem nasceu depois do 25 de Abril de 1974 e sente alguma curiosidade pela euforia revolucionária, recomendo-lhe que vá ver o filme TORRE BELA, de Thomas Harlan. 

Encontramos lá, bem explícitas, as causas da frustração da classe trabalhadora, mas, sobretudo, podemos ver por que motivo continuamos a perder terreno em tudo o que respeita à transformação humanizada da sociedade.

Um filme que mostra como os portugueses estão habituados a tomar o destino nas mãos sem para isso se prepararem minimamente. Desde a "arraia-miúda", que içou o mestre de Avis ao poder, que acreditamos no voluntarismo colectivo ou, em alternativa, rendemo-nos a todas as formas de messianismo que nos possam libertar deste desterro acanhado a que orgulhosamente nos agarramos desde o século XII.

Infinitamente pequenos, sonhamos o infinitamente grande.

O filme TORRE BELA, apesar de brilhante, por momentos, adormeceu-me o cérebro: sempre que as vozes se sobrepõem, sempre que o ruído aumenta, a minha atenção recolhe para uma forma de vigília que me deixa entorpecido. Parece-me uma defesa um pouco primária, mas que, de facto, me atormenta desde a infância.

Não querendo evocar esse tempo, fico, contudo, com a sensação de que certas vivências desse tempo remoto são responsáveis pela minha descrença nos movimentos de massas.

 

   

31.7.07

Quando o vigário pode mais …

Nas sociedades democráticas, o exercício do poder está a ganhar músculo… Basta pensarmos na quantidade de homens e mulheres que cultivam a nobre atividade da musculação…

Ao mesmo tempo que a legitimidade do poder executivo se esgota em meses, a 'sociedade democrática' vai definhando. Cientes dessa fatalidade, os executivos rodeiam-se de uma nova inteligência, defensora de medidas draconianas, apresentadas majestosamente como redentoras…

Em nome da eficácia, as antigas corporações são varridas e substituídas por novos "corpos" (de titulares e outros!) … O puzzle é sedutor, mas esconde as regras ou deixa-as pingar uma a uma, gerando ansiedade, instalando o desassossego… (Há quem já não saiba se pode ir de férias!)

Atribui-se ao corpo uma cabeça e deixa-se que o estômago se alargue. Quanto ao coração, este volta a ser a sede das atribulações! Tudo bem proporcionado. Mas quando chega a hora da verdade, escondem-se os resultados, não vá alguém considerar-se mais habilitado ou mais competente. E porquê?

Porque a inteligência que nos governa é constituída por vigários que, nas suas dioceses, cultivam o registo autoritário, deixando aos prelados a palavra redentora. E quando um desses vigários se excede, o prelado, em vez de o expulsar do rebanho, protege-o religiosamente da canzoada.

Esta espécie de vigários (de vígaros?) é colocada estrategicamente em todas as repartições porque é ela – a espécie – que zelosamente aperta as rédeas à 'irrequieta sociedade' democrática.

PS: Esta diatribe surge no dia em que aceitei ser provido como titular. Resta-me saber do quê. E continuo sem saber qual é a diferença entre ser titular e "efectivo do quadro de nomeação definitiva". Eu não sei a diferença, mas uns tantos colegas ficaram a saber porque ao não serem providos perderam o rasto ao tempo em que integravam o "QND". Nesta vigariaria nada é definitivo! E estou a referir-me a pessoas com mais de trinta anos de exercício da profissão docente. Alguns começaram a exercê-la antes do 25 de Abril, no crepúsculo do Estado Novo. Tiveram de lidar com a euforia de Abril, vendo-se agora escorraçados… Será castigo? De facto, as medidas que vêm sendo incrementadas mais não são que um castigo por um crime que outros cometeram. O crime dos vígaros deste país.

 

29.7.07

A canícula

A canícula desfaz-nos

a vertigem e oferece-nos a aprendizagem da lentidão.

Afogueado, estirei o pescoço e vi, lá longe, em lenta cavaqueira, o João Barrento com o Eduardo Prado Coelho.

Compreenderam, ambos, por viagens distintas, que mais vale fugir da vertigem do Sol.

E eu que, desde criança, aborreço o Estio, instalo-me na miudeza das letras, à espera que a canícula cesse… e começo a apreciar a vagueza dos enigmas.

Ultimamente, os enigmas ou, melhor, os dilemas vêm-me sufocando e, eu, irresponsável, não percebia que eles me convidavam a reaprender a lentidão, tal como a canícula que se abate sobre a cidade.

 

24.7.07

Dorme ali, num banco de Jardim… na Praça José Fontana

Há dias, sob um lençol de luz, morto ou vivo, Z dorme indiferente ao ruído da cidade.

- As portadas do Liceu abrem para os pátios interiores, e simétricos na cegueira, esquecemos…

Interrogo-me, entretanto, se não será José Fontana quem, descrente da fraternidade, ali repousa…

Quem quer saber quem foi José Fontana?

Quem quer saber o nome de quem por ali dorme?

Procurar saber foi em tempos um dos objetivos da escola pública!

E, hoje, que valores é que nos orientam, ali, na Praça José Fontana?

 

20.7.07

Os exames…

Lembram-me os exames de consciência em que o sujeito oculta deliberadamente a sua preguiça, a sua má-fé… Os exames escritos deixaram de testar os conteúdos mais complexos, limitam-se a aspectos marginais e, por isso, os alunos que passaram o ano a estudar são os mais prejudicados, assim como os professores que procuraram cumprir os programas.

Como resolver esta perversão? Criando equipas para a elaboração das provas, independentes da tutela ministerial. Em matéria de avaliação, não há nada mais nefasto que o comissário político.

Essas equipas teriam a função de elaborar as provas de exame, respeitando rigorosamente os objectivos e os conteúdos dos programas. As equipas de autores e de auditores devem ser constituídas por professores do ciclo de ensino a que as provas dizem respeito. A intervenção de professores do ensino superior – desarticulado dos outros graus – deve ser evitada.

Infelizmente, o caminho tem sido outro: a irresponsabilidade cresce de ano para ano; os dirigentes entendem que "é humano errar" e que as culpas são sempre dos outros… e lá continuam como se ninguém saísse prejudicado…

Há, em Portugal, uma crença muito conveniente: somos todos igualmente capazes, sobretudo se não for preciso fazer um esforço… Procuramos a facilidade e odiamos aqueles que persistem em vencer os obstáculos.

PS: O comissário político está a alastrar como alastraram, no passado, os frades e depois os barões. Viva o cacique! Vivam os almirantes!

 

15.7.07

A propósito de um pedido de desculpa…

Num país com tão pouca vontade de trabalhar, como é possível obter boas classificações em disciplinas que exigem método, disciplina e sacrifício?

Num país em que os poucos que se esforçam se veem condenados ao desemprego ou, na melhor das hipóteses, a empregos precários e mal remunerados, o que é que podemos dizer aos jovens que se prepararam para os exames, estudando os conteúdos mais árduos, e que acabaram por ver defraudadas as suas expectativas?

A fraude começa no 1º exame e repete-se até ao final da licenciatura. Uma licenciatura que, entretanto, deixa de o ser… é apenas o 1º ciclo de um processo inventado para alimentar clientelas. E essas clientelas são cada vez mais constituídas por políticos analfabetos! Clientelas que distribuem as prebendas e as comendas entre si.

Há anos que os exames não separam o trigo do joio!

E agora ainda inventaram o critério de avaliação que permite aferir da qualidade do trabalho do professor pela comparação entre as classificações atribuídas por si e as dos colegas da mesma escola e, sobretudo, pela comparação com os resultados dos exames finais. Como é possível comparar o trabalhador honesto e responsável com o que vive da fraude?

Imaginemos que, numa 6ª feira, às 19 horas, necessito de atravessar a Ponte 25 de Abril. Parto da Praça de Espanha, três faixas de rodagem – só a central dá acesso à Ponte. Cumpro aplicadamente o código. Só por volta das 20:15, ultrapasso a portagem. Entretanto, à direita e à esquerda, automóveis, autocarros furam, velozes, e gastam menos 30 minutos do que eu a atingir o mesmo destino. Terá valido a pena ter estudado e aplicado o código da estrada? Em Portugal, não. Para os Ministérios da Educação e do Ensino Superior, também não!

Todos sabemos que a fraude existe em todos os sectores da vida nacional e, na área da educação, ela assume proporções incontornáveis. O polvo deixou de estar escondido e os seus tentáculos, oportunistas e ignorantes, movem-se continuamente asfixiando a presa.

 

 

 

9.7.07

Em dívida…

Estou naquela fase em que oiço vozes ininteligíveis capazes de destruir qualquer templo… com ou sem comunhão, esse ritual de disfarçada antropofagia prenunciadora de morte sem ressurreição. Sei, agora, que há anos que não oiço a voz inconformada do Silva Carvalho – uma voz, por vezes, claustrofóbica, mas que procurava o silêncio das paredes para sair daquele corpo pesado e libertar-se em extensas pautas brancas; uma voz capaz de combater o estereótipo com outro estereótipo. Não lhe ouço a voz nem lhe percorro as pautas silenciosas que em vão se me oferecem, como se o compositor não passasse dum excêntrico capaz de percorrer continentes à procura de uma razão outrora perdida…

E fora dessa razão, as pautas libertaram-se das amarras e impõem-me que as percorra, tão sozinho como o Poeta desavindo com a convenção e a tradição do Ocidente:

Que resta do pensamento? Penso que sinto

o poema como se fosse a realidade de onde brotou,

penso que me sinto como se a realidade que sou

não fosse oriunda de nenhuma realidade,

penso que pensar é um mundo à parte do mundo

onde se vive como parte ou partícula

dita tantas vezes insignificante. Que resta

pois de mim quando nenhum rosto sai ou entra

na imagem que de mim se desfaz enquanto perfaço

palavra a palavra, sentido a sentido, o poema?

Ser é não estar, é passar como o tempo passa

sem que a passagem seja presenciada pelo tempo.

É repetir mil vezes a pergunta fatídica

para que a resposta não possa ser figurada.

Silva Carvalho, (29/6/1992) extrato de Os Factos do Pensamento ou a Terrível Figura do Impensável, Crítica das Representações, Brasília Editora, Porto

PS: Talvez pudesse ter optado por escrever um lacónico e-mail! E o Silva Carvalho (não confundir com o Armando), lê-lo-ia pensando: «este gajo não leu nada do que lhe ofereci!» E teria razão, e é pena, porque esta voz acabará por se levantar dum chão que nunca calcou, por escorrer das paredes noturnas em pleno meio-dia…

 

 

 

5.7.07

A dor do olhar…

(O fotógrafo suicida pede desculpa à vida e retira-se para não perder mais paisagens.)

Há quem diga que viajamos para tirar fotografias. De facto, a viagem e a fotografia, confundem-se, para mais tarde nos iludirmos.

Da viagem fotografada fica a sensação de perda irremediável, de desencontro fatal, como se a imobilidade pudesse adiar a morte. Aí, o fascínio pela imagem – cristal!

Ora a fotografia imobiliza, toma formas letais sob películas de vitalidade esplendorosa - dos olhos agigantam-se corpos de areia! E das areias elevam-se cinzas vulcânicas.

Lá ao fundo, à volta do coreto, um pouco mais adiante, na tímida alameda, o fotógrafo ignora as paredes de cartão porque quem fixa de frente a morte acaba por cometer suicídio.

 

4.7.07

Oficial medíocre

«Pelo contrário, os oficiais medíocres preocupam-se mais em saber se o equipamento está em bom estado de funcionamento do que o seu pessoal.» Daniel Goleman, Trabalhar com Inteligência Emocional, Temas e Debates

Hoje, de acordo com Daniel Goleman, considero-me um "oficial medíocre", pois passei uma boa parte do dia a fazer um inventário de espaços e equipamentos degradados e avariados. Devo dizer que o pessoal, na sua maioria, andou por longe, talvez experimentando os ventos que nos fustigam… Mas é quase sempre assim nesta época do ano!

Apesar de "oficial medíocre", devo referir que a qualidade do espaço condiciona a aprendizagem e que por isso o "pessoal" se sente desmotivado para ensinar e aprender em salas, onde há muito não entram nem pedreiros, nem carpinteiros, nem pintores, nem…

Quanto ao equipamento avariado, o que se verifica é que a falta de um habilitado responsável pela sua manutenção inviabiliza qualquer tentativa de mudança de processos de ensino. É inútil dar formação ao pessoal se o espaço e os equipamentos se degradam diariamente sem qualquer esforço de reabilitação.

A liderança passa por uma atenção muito particular às circunstâncias em que o homem aprende e trabalha, devendo estar especialmente atenta à qualidade das ferramentas e à sua distribuição equitativa. Se isso não acontecer, a curto prazo, a liderança torna-se autoritária e, finalmente, irresponsável, pois acabará por destruir a instituição, arrastando para o desespero todos aqueles que, em algum momento, nela acreditaram.

PS: A IGREJA das "almas" há muito que se preocupa em receber bem os "corpos"! Atente-se no ar puro e limpo da Igreja matriz de Avis! E, pelo contrário, observe-se o lado terroso da memória Joanina!

 

 

1.7.07

No Maranhão, terra de maranhas...

 

Por (de)formação profissional poder-se ia pensar no lugar onde o Padre António Vieira proferiu o famoso "Sermão de Santo António aos Peixes" e também donde enviou as famosas "Cartas do Maranhão" a El-Rei D. João IV, a partir de 1654. Não. Estou a referir-me à Barragem do Maranhão, situada no concelho de Avis, a 165 Km de Lisboa.
Lá decorreu, neste fim-de-semana, uma interessante competição de remo, "patrocinada" pelo Mestre de Avis. Havia dezenas de remadores, de ambos os sexos, um pouco de toda a parte: Barreiro, Setúbal, Figueira da Foz, Gondomar, Póvoa do Varzim... O associativismo continua vivo! A organização local esforçou-se por ultrapassar a falta de meios e de apoio federativo... Mas, se não fosse assim, não estaríamos em Portugal!
O Parque de Campismo Municipal, em remodelação, oferece sossego e boas instalações aos campistas, apesar de, por exemplo, para ter pão a um Domingo, ser necessário requerê-lo à 6ª feira. Mas onde estaríamos nós se não fosse assim?
Lá, no quase deserto Maranhão, ainda é possível observar as aves de rapina, protegidas pela serra alentejana, e alimentadas por reses desafortunadas e pelas águas cada vez mais abundantes.
Triste está o casco histórico de Avis, sobretudo no que respeita ao património medieval. E é pena! A Rua da Mouraria, onde ficaria a casa do Mestre de Avis, merece ser conservada de outro modo. A não ser que a ligação do Mestre a Avis não passe de uma patranha ou de uma maranha. Afinal "maranha" pode significar "intriga", "enredo" e maranhão "grande mentira". O topónimo consagraria, deste modo, um lugar em que os seus habitantes seriam dados à arte de enredar no sentido denotativo e conotativo. E talvez algum dos habitantes de Avis, aventureiro ou forçado, tenha um dia aportado às terras de Vera Cruz e dando expressão à maledicência lusa tenha entendido por lá replicar as maranhas, permitindo que o Padre António Vieira escrevesse ao Rei D. João IV: «Tudo neste Estado - o Maranhão - tem destruído a demasiada cobiça dos que governam, e ainda depois de tão acabado não acabam de continuar os meios de mais o consumir.» - Palavras visionárias que, afinal, não anunciavam o V Império, mas o saque contínuo dessa emaranhada raça que persiste por esse mundo fora.

 

28.6.07

Da antecipação...

No início dos anos 80, Alberto Sampaio defendia que o problema português tinha uma causa bem definida: demasiados portugueses viviam do estado providência - os parasitas e os preguiçosos; os militares e os polícias; os sindicalistas e os políticos; e, sobretudo, os velhos e os doentes...Ouvi-lo, afligia, dava vontade de o esganar.

Ao mesmo tempo, Alberto Sampaio defendia que os professores perdiam o seu tempo a «lançar pérolas a porcos». - Como é que um jovem de 15 anos poderia compreender Camões épico? - E o lírico? - E Antero? De que servia explicar-lhes a tese e a antítese? - Ainda se aprendessem o ofício de carpinteiro? - Ou de eletricista?...

Alberto Sampaio era desconcertante, vestia de cinzento, cultivava a altivez e regava religiosamente uma nogueira que se recusava a crescer, o que o deixava à beira do suicídio. Tinha especial prazer em dizer e fazer mal à "ursa" que lhe aturava as caturrices. E para cúmulo defendia que a obra literária do comunista Manuel da Fonseca era a mais reacionária da literatura portuguesa pós-segunda guerra mundial.

Várias imagens vívidas de dor e de velhice lembraram-me, hoje, que o pedagogo Alberto Sampaio, "ventoinha" encartado, talvez tivesse sido professor de alguns dos actuais ministros, a começar pelo ministro da saúde e a acabar na ministra da educação..., especialmente do primeiro que teve uma ideia um pouco menos radical do que a do mestre, pois este defendia a eliminação pura e simples dos doentes e dos velhos - o ministro acrescentou-lhe uma pérola: por que não oferecer aos doentes pobres (e mais ou menos velhos) os medicamentos que se encontrem fora de prazo?

PS: Sobre a voluntariosa ministra da educação, prefiro não falar a não ser para dizer que lhe falta, pelo menos, uma qualidade (competência?) essencial: «Aqueles que possuem iniciativa agem antes de serem forçados a tal por forças externas. Isto implica muitas vezes agir por antecipação, para evitar problemas antes de estes surgirem ou tirar vantagem de oportunidades, antes de estas serem visíveis para as restantes pessoas. E quanto mais alto estiver situado na escala executiva, tanto maior é a janela de antecipação...» Daniel Goleman, Trabalhar com Inteligência Emocional

 

25.6.07

Delito ou delação?

Farto de rituais, percorro o corredor à espera do déjà vu: uma ata que faça justiça aos estados de alma de uma minoria insatisfeita e que se está borrifando para o princípio da equidade - os mesmos critérios para todos os examinandos; uma ata que interpele o sistema, mas que não fira a sensibilidade próxima.

Interpelado, quando observava a Machado de Castro e pensava na irresponsabilidade com que se encerram, deixam ao abandono e à voracidade dos predadores, um sem número de edifícios escolares, regresso à sala para ordeiramente, qual ovelha mansa, assinar a referida ata e, finalmente, poder "levantar" as provas de exame.

Uma sensação física de náusea instala-se na pele e esfarela-se nos ossos e, sobretudo, anula-me o intelecto.

Dias mais tarde, para me aturdir um pouco mais, soube que a interpelação de que fora objecto resultara de uma queixa de uma colega ofendida pelo meu desinteresse e alheamento por aquela cerimónia tão enriquecedora e prestigiante.

Eu sei que o meu desinteresse pelos rituais vem, pelo menos, da adolescência. Nesse tempo, passava horas intermináveis a olhar para os querubins dos tetos, a observar capelas laterais, sempre com a mesma sensação de vazio, pois os morcegos raramente abandonavam a noite esfumada da arte sacra. Na repetição dos olhares, esvaziava-se a visão e prolongavam-se os odores miríficos das açucenas esmagadas por piruetas de incenso...

Desse tempo monástico, restam algumas imagens desfocadas, o luxo do silêncio dos lírios e sobra, também, a ideia de que o meu alheamento não incomodava ninguém. Durante esses longos cinco anos, nenhum colega - chegaram a ser 300 (?) - apresentou queixa contra mim... e os extensos corredores convidavam à meditação, sobretudo aqueles azulejos feridos pelas baionetas napoleónicas...

Acabei, todavia, por ser polidamente convidado a abandonar o falanstério e a reflectir sobre a minha (in)capacidade de aculturação, tarefa que ainda não completei... como se vê...

Felizmente, para mim, naquele tempo ainda não existia a lista dos excedentários, mas, hoje, do fundo da adolescência começa a erguer-se um cajado que se quer abater sobre a ovelha delatora...

 

 

 

23.6.07

Os tanques não são muito diferentes!

O filme da checa Vera Chytilova, Qualquer Coisa de Diferente (1962), procura responder à pergunta: "Que sentido tem - se é que existe um sentido - sacrificar tudo a um objectivo cujo valor é frequentemente imaginário e que não estamos mesmo certos de atingir?"

A resposta ortodoxa, mas primaverilmente irónica, diz-nos que o sacrifício da ginasta Eva Vosakova é compensado pelo triunfo esmagador, pelo reconhecimento público e oficial. No entanto, no pódio soviético só há lugar para a campeã... não há medalhas nem de prata nem de bronze!

Num plano mais burguês, a outra protagonista, Vera, a dona de casa, ignorada, desforra-se nos amantes, para, no final, se reconciliar com o marido, também ele a viver uma aventura. Neste filme, o que parece diferente torna-se ortodoxo: Eva Vosakova prepara uma nova ginasta, aplicando a mesma metodologia que o seu professor; Vera, depois de uma cena de vitimização, "refaz" o lar...

A fuga - Qualquer Coisa de Diferente - é anulada antes de os tanques soviéticos invadirem Praga...

(Depois de ver este filme, fiquei a pensar se ainda faz sentido sacrificar tudo a um objectivo, tendo em conta que, a qualquer momento, os "tanques" podem esmagar-nos, em nome de um pragmatismo económico-financeiro para o qual a história pessoal e colectiva deixou de fazer sentido.)

 

17.6.07

'Jantar camoniano' na ABL

Afinal, sempre tinha razão: a 'portugalidade' foi evocada; a lusofonia nem por isso. Os compadres das Academias do Bacalhau de Lisboa, do Estoril e de Estremoz continuam a ver no "Poeta “o fiador da sobrevivência de Portugal. E sintomaticamente, acrescentaram ao "Luís", o Miguel (Torga), ambos declamados por Vítor de Sousa. E para além dos Poetas, não faltou o Fado, irmanando erudição e tradição.

O longo e concorrido 'jantar camoniano' decorreu numa movida euro-tropical, com algumas interrupções para celebrar o protocolo da ABL com a Associação da Força Aérea Portuguesa, que acolheu o evento, e, sobretudo, para homenagear os melhores alunos de Português da Escola Secundária de Camões - Marisa Ferreira e Manuel Pata. Estes foram presenteados com diversos prémios, que receberam alegre e estoicamente, sob o olhar "reitoral" do prof. António Figueiredo, que aproveitou a ocasião para enaltecer a grandeza da instituição camoniana e censurar a pequenez dos decisores políticos que, ao longo dos anos, destruíram as 'fileiras' comercial e industrial...

Nota pessoal: No que me diz respeito, não posso dizer que tenha aproveitado mal o tempo, apesar da dor de cabeça que apanhei. Fiquei com a sensação de que os jovens homenageados gostaram do evento, tal como os pais da Marisa e o pai do Manuel, isto sem falar do ar radiante da professora Isabel Alexandrino. E para mim isso basta. Fiquei, no entanto, sem saber quem são os meus amigos "taveiras" do Camões, mas essa responsabilidade não a posso atribuir à ABL!

 

16.6.07

Lusofonia e portugalidade...

Hoje, às 20 horas, sou convidado da Academia do Bacalhau de Lisboa, por mérito de dois alunos da Escola Secundária de Camões: Marisa Ferreira (11ºA) e Manuel Pata (12ºE). No que à Marisa concerne, devo dizer que o prémio "melhor aluna em Língua Portuguesa" lhe assenta perfeitamente porque, ao longo dos dois últimos anos, se revelou uma leitora consistente e metódica, e para quem ler é um acto de permanente aprendizagem e, sobretudo, de aperfeiçoamento da escrita e do ser.

Quanto à iniciativa da Academia do Bacalhau de Lisboa, esta merece louvor por promover a lusofonia, embora eu queira crer que o verdadeiro objectivo é promover a portugalidade, tendo em conta a génese e a inserção de muitas das actuais 25 academias do Bacalhau - as comunidades da diáspora portuguesa e as «ilhas» de portugueses que um dia pisaram solo africano...

Claro que para muitos não há diferença entre 'lusofonia' e 'portugalidade', mas, para mim, a lusofonia pressupõe projectos interculturais de que, infelizmente, andamos arredados. No entanto, espero que esta cerimónia de entrega de prémios me prove que a minha perceção deste tipo de iniciativas está errada.

Para além da questão teórica e cultural que lhe subjaz, daqui agradeço a iniciativa a todos os compadres da referida Academia, assim como agradeço a abnegada colaboração do professor António Souto, sem esquecer a aceitação da proposta pelo Conselho Executivo, nas pessoas dos professores António Figueiredo e Isabel Ramos.

 

13.6.07

O próximo lance...

Num tempo em que o poder privilegia a anglofonia, impondo o Inglês como língua global, começo a pensar que o silêncio em torno da Casa da Lusofonia é estratégico. Não é raro ver governantes basbaques, deliciados com as proezas anglófonas das nossas inocentes criancinhas. Quanto à lusofonia, vemo-la ser desvalorizada a cada passo: os media desprezam-na; os políticos atropelam-na e os linguistas e didatas (se é que ainda existem!?) reduziram-na a um sistema de códigos de que basta conhecer alguns truques para que o locutor seja considerado habilitado ou, melhor, proficiente.

E para confirmar a nossa apetência pela res anglo-saxónica basta lembrar a competência de Guterres, Sampaio ou Durão que falam a língua do império como se nele tivessem nascido. Também, aqui, poderíamos defender a francofonia, mas o exemplo que nos sobra desse tempo da hegemonia libertária - Mário Soares - nunca revelou o mesmo grau de competência dos seus herdeiros. Felizmente!

Em 30 anos, o francês desapareceu das nossas escolas e se ainda se ouve nas nossas ruas é porque, ritualmente, os emigrantes regressam para nos lembrar o êxodo dos anos 50 e 60 do século XX. O francês começa a ser uma língua nostálgica como as canções de Piaff, Ferré ou Brell...

Ora a Casa da Lusofonia é um pouco como o Museu Imaginário de Malraux - já só existe no cérebro daqueles que, por força da colonização, desembarcaram/aterraram um dia no Hemisfério Sul, sonhando que seriam capazes de para lá trasladar o "Portugal dos Pequeninos". E são certamente esses prisioneiros do antigo império que, perdidas as terras e as gentes, decidiram reunir-se em academias itinerantes... ou, mais modestamente, em casas lacustres.

À estratégia deste jogo, mais aberto ou mais escondido, pouco importa se estamos vigilantes: os jogadores já pensam no próximo lance...

 

11.6.07

Num país de mercancia...

Hoje, 11 de Junho de 2007, num país de intriguistas, de trânsfugas, peneirentos e interesseiros, devo registar que ainda há pessoas abnegadas, que tudo fazem para resolver problemas que outros, impunemente, lhes criaram.

No dia em que termina o prazo de candidatura para professores titulares, estas pessoas mostraram que se pode ser titular sem somar pontos.

A injustiça espreita sempre que deixamos de olhar de frente as pessoas; sempre que as transformamos em número, em mercadoria.

Passámos a viver num país de mercancia, que procura a todo o custo integrar o planeta da globalização: um planeta deserto de pessoas...

Felizmente, ainda, há algumas pessoas!

 

9.6.07

Impunemente...

Há muita gente que deveria ver atentamente os filmes de Ernst Lubitsch (Berlim, 1892-Hollywood, 1947), designadamente o filme The Shop Around The Corner / 1940. Na cópia portuguesa, A Loja da Esquina. Um filme sobre a verdade e a simulação. Nas palavras de João Bénard da Costa, apesar de sabermos «que Lubitsch era um fingidor, nunca o vimos fingir tão sinceramente. E por isso também chega a fingir que é dor a dor que deveras senteThe Shop Around The Corner inventaria o poema de Pessoa se ele não tivesse já sido inventado. Mas é diferente em palavras ou em imagens. Porque estas fingem ainda mais e doem ainda mais.»

Como é que as imagens fingem ainda mais e doem ainda mais do que as palavras?

A não ser que, propositalmente, as palavras se tornem inócuas, deixando órfãos os corpos... e dos seus donos fiquem apenas imagens de incómodo, de fuga, prontas a impor uma nova verdade..., como se antes nada tivesse acontecido.

tabula rasa não é, afinal, mais do que uma estratégia de rejeição da História, em que simulação e verdade são as faces da mesma moeda.

E todos os dias o cilindro da tabula rasa avança, triturando direitos, identidades, vidas... Em nome do quê?

Impunemente...

 

7.6.07

Desafio falhado, desafio orquestrado...

Por isso escrevo em meio /Do que não está ao pé, /Livre do meu enleio/ Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê! Fernando Pessoa menino guerrilheiro (?)

de

DIANE ARBUS

É mais fácil copiar, dizer mal, rir... do que procurar!

Como é que as granadas caíram nas mãos deste audacioso menino?

Para onde é que ele está a olhar? Para nós?
Ou vítima do fotógrafo, limita-se a posar para a objetiva manipuladora do real?
De que modo é que a mediação nos controla os sentidos e nos sabota a razão?
Quem é que está no meio? O menino? O fotógrafo? E nós, onde é que nos encontramos?

5.6.07

Experimente Diane Arbus...

Com granada, não há fome que atrapalhe! Descubra a foto e comente-a.

 

2.6.07

Os nós estão cada vez mais soltos...

A verdade é cada vez mais impressiva. Já não se alicerça numa crença ou numa certeza. Já não necessita de fundamentação. Na melhor das hipóteses, exige debate público. Espetáculo. Encenação. Diversão.

Outrora, não havia verdade sem autoridade. Hoje, relativiza-se a autoridade. Os pilares da igreja, da ciência, da educação são arrasados na praça pública.

Todos os dias assistimos à implosão da autoridade. Por enquanto ainda vamos tomando partido, mas por pouco tempo. Os nós estão cada vez mais soltos.

Desistimos de explicar os princípios, eliminámos os objectivos. Passámos a avaliar referenciais de competências pontuais, transversais... à beira da reciclagem.

A inteligência está a ser substituída pela competência. A competência das castas! O cerco intensifica-se a cada dia que passa, e os párias amontoam-se, de portátil debaixo do braço, em transe...

 

25.5.07

Prosápia ou jactância?

Hoje, sinto-me incapaz de classificar a relação semântica entre prosápia e jactância. No entanto, o país está a ser invadido pelo amor-próprio: via SMS, uma editora diz-nos «esperamos que goste dos novos projectos da Texto Editores que enviamos especialmente para si. Com a nossa estima...»; cartazes, na 1ª pessoa, ferem-nos a retina em todas as esquinas da capital; políticos e comentadores deixaram de ter dúvidas sobre o que quer que seja, desde a OTA ao POCEIRÃO; há mesmo quem assegure que, no próximo ano, o Benfica vai ser campeão; a força ilocutória da 1ª pessoa de certos verbos tem vindo a crescer: eu garanto, eu suspendo, eu homologo, eu demito, eu delato, eu nego, eu afirmo, eu juro, eu advirto, eu asseguro... uma perigosa litania verbal que também poderá ser expressa de outro modo:

Eu represento a divindade, por isso o que eu digo é indiscutível...

Eu sou a própria divindade e, portanto, eu só posso dizer a verdade...

Eu sei de fonte segura...

Eu nem preciso de fonte!

Eu sou a própria fonte! E por isso eu decido

quando devo falar

quando devo ficar calado

Eu giro a palavra e o silêncio a meu belo prazer

Só eu sei quando digo

sei

não sei

e por princípio nego que alguma vez tenha sabido

Quanto ao outro, só eu sei!

 

 

 

 

21.5.07

A Notícia escondida...

Casa da Lusofonia inaugura espaço aberto a culturas 10-05-07 "A Casa da Lusofonia, um novo espaço de cultura, em três pólos, vai ser inaugurado em Lisboa no próximo dia 12 de Maio. Trata-se de uma iniciativa da organização não-governamental Etnia - Cultura e Desenvolvimento com o apoio da Escola Secundária de Camões, da Junta de Freguesia de S. Jorge de Arroios e que conta com o apoio de instituições portuguesas e brasileiras. Haverá uma sessão formal de inauguração com visita às instalações seguida de um jantar com a gastronomia tradicional dos países da CPLP. E, segundo um dos seus promotores, Vladimiro Cruz, da Etnia, o objectivo é que haja uma Casa da Lusofonia em Cabo Verde, na Guiné-Bissau, Brasil e demais países de língua comum. A participação no espaço será efetuada mediante determinados critérios e condições patentes no Regulamento de Funcionamento da Casa da Lusofonia, que está em preparação e que será publicado brevemente. A Etnia é uma associação que tem parcerias com diversos países, nomeadamente o Brasil, e tem desenvolvido programas de comunicação, cinematográficos e de difusão da língua portuguesa, em muitos lugares, como Portugal, Brasil, Cabo Verde e Guiné-Bissau." Reação ao artigo: Manuel Gomes "Casa da Lusofonia inaugura espaço aberto a culturasNão deixa de ser perturbador que o corpo docente da Escola Secundária de Camões não tenha sido informado da cedência das "Caves", nem da parceria negociada com a Junta de Freguesia de S. Jorge de Arroios e com a ONG "ETNIA", sob os auspícios da CPLP e das autoridades portuguesas (Quais?). Quem quer explicar o secretismo da iniciativa?

Notas soltas:

1. "De ascendência cabo-verdiana e nascido na Guiné-Bissau, o autarca João Taveira mostrava, entusiasmado, às perto de 200 pessoas que o seguiam na visita às catacumbas do emblemático Liceu Camões, agora escola secundária, o espaço farto, mas ainda nu, onde crescerá a “Casa da Lusofonia” na capital portuguesa. Este projecto inédito da “tal” sociedade civil, de quem muito se reivindica em discursos oficiais, mas quando surgem e se não forem autossustentáveis, acabam caindo sozinhos ou, senão mesmo, atrofiados por quem explorou a sua criatividade ou dela usufruiu."

2. "Luís Fonseca, secretário-executivo da CPLP, considerou “consistente” esta iniciativa da sociedade civil, contrariamente a outras que têm aparecido, mas que se diluem, naturalmente, sem meios. O ex-secretário de estado brasileiro da cultura, Paulo Miguéis, antigo “braço direito “de Gilberto Gil, notou ser esta uma “aventura que mudará a vivência dos portugueses”. Defende um conceito novo de cultura: “É preciso levá-la aos locais e deixar que a cultura não seja apenas dos que lêem muito, mas também de iniciativa de gente simples. Através das suas atividades estar-se-á a desenvolver a cultura e língua comum”, disse, exemplificando que preservar o ambiente é um acto de cultura. Observou ser necessário um trabalho árduo de mecenatos e patrocinadores, à semelhança da empresa brasileira Telemix celular que aderiu a este projecto e lançou já um concurso lusófono, do melhor filme por telemóvel, a enviar até Setembro, para www.telemix@celular.br"

3. Mário Alves, responsável pela “Etnia” e companheiro de carteira de João Taveira neste mesmo liceu, instituição-referência onde estudaram destacadas personalidades - o escritor Manuel Lopes foi uma delas - explicou que a Casa da Lusofonia é parte de um projecto cuidadosamente elaborado que já vem desde 2004 e que foi apresentado em Bissau no decurso da Cimeira Cultural da CPLP, e que foi uma consequência das muitas iniciativas, que esta organização não governamental tem feito no Brasil.

4. Fonte das notas soltas: otilia.leitao@gmail.com

PS: A CPLP quer promover um novo conceito de cultura - a cultura do lugar... sem leitura! Por isso os responsáveis pela iniciativa não estabeleceram qualquer contacto com aqueles e aquelas que, sob a égide de Camões, promovem diariamente a leitura da lusofonia. Bem poderiam ter aproveitado a cratera que deixaram aberta, junto ao Palácio dos Alfinetes, em Marvila. Uma cratera em que, há uns anos, uma criança morreu afogada. Que os arroios, revoltos, não nos afoguem a todos!

 

18.5.07

As cadeiras que desrimam...

Um pouco por todo o lado, vemos cadeirões ser substituídos por cadeiras, num processo de rejuvenescimento prometedor.

Claro que me estou a referir aos assentos de responsabilidade: do Senhor Blair ao Senhor Chirac, para falar apenas dos mais ilustres... Por cá, o Senhor Costa promete libertar a capital do cadeiral, e colocá-la no mapa global (versão recente do mapa-mundo). Mas o Senhor Costa já há uns tempos que não lê o seu mentor republicano - Teófilo Braga - pois, se o fizesse, saberia que antes de olhar para o mundo, convém descer às caves, arejá-las, antes que as ossadas saiam dos armários e nos lancem numa batucada de arromba.

No entanto, duvido que o envernizamento das cadeiras consiga restaurá-las. Não é que eu tenha alguma coisa contra a limpeza das fachadas. Mas, de facto, falta-lhes o miolo. E quando este não falta, deve-se sempre mandar analisá-lo, não vá o verniz disfarçar a ferrugem ou, pior, esconder o bolor.

E a despropósito, vou citar BOLOR de Carlos de Oliveira: «Os versos/que te digam/a pobreza que somos/o bolor/nas paredes/deste quarto deserto/os rostos a apagar-se/num frémito de espelho/e o leito desmanchado/o peito aberto/a que chamaste/amor.

De facto, onde é que as cadeiras se cruzam com o leito?

(- Não há por aqui sombra de contexto!? Ou como perguntava um desencantado professor: Como é possível começar a dissertar sobre cadeirões e acabar em bolor a desrimar com amor?)

 

 

 

 

13.5.07

Cachimbadas na ponte...

Deixou de se fumar cachimbo nas varandas… O cigarro sai e entra pelas narinas, ao desafio, trocista, atravessa os pátios… Eduardo Prado Coelho, no dia 11 de Maio de 2007, no Público, voltou a referir-se ao «extraordinário professor», Mário Dionísio que teve no liceu [Camões], que fumava cachimbo e que teve a tentação de imitar. Mas EPC desistiu, quando percebeu que o seu «professor David Mourão-Ferreira tinha uma trabalheira imensa para conservar o hábito do cachimbo…» Será que os condiscípulos de EPC, Mário de Carvalho e João Aguiar também tiverem a tentação de imitar os mestres? (Uma pergunta por fazer) Eduardo Lourenço que não terá passado pelo Liceu Camões, ao escrever, em 1968, Sentido e Forma da Poesia Neorrealista, não se referiu a Arquimedes Silva Santos, a Mário Dionísio ou a Manuel da Fonseca porque, apenas, convivera com os cachimbistas [apesar de não estarem obrigados a ser portadores do implícito] de Coimbra, designadamente Joaquim Namorado e Carlos de Oliveira. O que deixa adivinhar que desconhecia a fumaça dos cafés Bocage e Monte Carlo… E sem fumaça, o intelecto torna-se escorregadio, heterodoxo…

José Gomes Ferreira, a 30 de Dezembro de 1967 [com e sem cachimbo] interrogava-se indiretamente sobre o amigo Mário Dionísio (aqui, sem cachimbo!?): «Que toque de simpatia pública falta a este homem que, no entanto, pode gabar-se de ser amado até à idolatria pelos alunos dos primeiros anos do liceu [Camões].» Dias Comuns III, Ponte Inquieta, Publicações D. Quixote. O mesmo José Gomes Ferreira, Ex Liceu Camões, com o José Bacelar, o Armindo Rodrigues. Sabem de quem se trata? Dixit: «Foi ali [Gil Vicente], naqueles corredores de ecos sombrios, sujos de passos apodrecidos de monges, que, liberto dos mestres-caturras do Liceu Camões (de má memória), se definiu, de maneira categórica, a minha vocação literária, sustentada por um grupo de professores que classifico sempre com este adjetivo de anúncio de filmes: sensacional. Senão, leiam o elenco: Leonardo Coimbra, Newton de Macedo, Ângelo Ribeiro, Câmara Reys, Damião Peres…»

Fico sem saber se no Camões se fumava mais ou menos do que no Gil Vicente. E pelos vistos, fumava-se dentro da sala de aula. Ainda, hoje, recordo esse cachimbista laureado que é o Álvaro Manuel Machado que nunca encetava o Paradiso do Lezama Lima sem nos cachimbar o espírito.

(De regresso, a JGF - A Memória das Palavras ou o gosto de falar de mim, Portugália - vale a pena ler a nota sobre os professores supranumerários de 1914-1915, cuja missão consistia em velar pela ordem nas turmas durante a ausência acidental dos efetivos…) Os primeiros não tinham dinheiro para cachimbadas, mas nem por isso deixavam de ser cachimbados. Quanto aos últimos, mestres-caturras...

Ao longe, já avisto o cachimbo de Vergílio Ferreira a vociferar com o cachimbo do Mário Dionísio...

(Se me distraio, ainda chego aos fumos da Índia...)

 

 

12.5.07

Sinais

- Vou por fora! Entro no vale titubeante a serra modesta! Ali do restolho emerge um poço - Um sonho! Lá ao fundo hesitante afasto-me da serra distante A vinha verdece a brenha a ser cortada - Não, por mim! De súbito eleva-se a distante palmeira, cercam-me em sufoco gritos refreados, um velho pousado num varandim anoitece. Subo por dentro linhas cruzadas e decido - Vou pelos semáforos!

7.5.07

Pobres deuses arruaceiros!

De costas para o esforço, para a persistência - ruidosos - preferimos a lamúria fácil...

Deseducados, ignoramos a letra e o sentido, e reclamamos, ciosos dos nossos argumentos...

Altivos ou falsamente humildes, esperamos a cedência, convencidos de que a felicidade beija a fronte dos futuros deuses...

Pobres deuses para quem o caminho é sempre inclinado! Em vez de o subirmos, rolamos pela encosta, sorrindo. Sorrindo sempre, até irrompermos num choro inútil e definitivo.

Pouco falta para que a Bastilha arda de novo!

No pinhal, os ancinhos já começaram a juntar a caruma.

 

5.5.07

A escória humana

«Raramente, somos justos com os vivos: ou os adulamos, ou ignoramo-los. E mesmo depois de mortos, temos sobressaltos de carpideiras, para definitivamente colocarmos uma pedra sobre o assunto...» A Cinemateca Portuguesa presenteou-me, hoje, com um fantástico filme indiano, PYAASA, realizado em 1957, mas escrito em 1948. Um filme (musical) do realizador e actor GURU DUTT que interpreta um excelente poeta, incompreendido, desempregado, rejeitado pelos irmãos, condenado a viver nas ruas prostituídas e delinquentes de Bombaim. À beira do abismo, Vijay, o inspirado e mordaz poeta, só encontra algum reconhecimento naqueles(as) que com ele partilham a miséria – as vítimas desclassificadas de uma sociedade que apenas preza o dinheiro. Vijay não consegue publicar qualquer verso, vendo mesmo os seus poemas ser vendidos a peso pelos broncos dos irmãos. Poemas que foram cair nas mãos de uma romântica prostituta que, mais tarde, tudo fará para os ver publicados pelo rico editor que, efemeramente, deu emprego a Vijay… Despedido pelo patrão-editor, rejeitado mais uma vez pela apaixonadíssima namorada (esposa interesseira do editor) - morta a abnegada e impotente mãe, vítima do machismo dos outros filhos – Vijay procura o suicídio que acabará, involuntariamente, por lhe trazer uma morte oficial que o tornará num poeta celebrizado e adulado por todos, sobretudo por aqueles que o tinham rejeitado em vida. Morte oficial, mas não real, pois enquanto os corvos se abatiam sobre os milhões gerados pelos seus versos, ele jazia, sem nome, num hospital psiquiátrico. Descoberta a sua identidade, tudo foi feito pelo editor, pelos irmãos e pelos amigos para o apresentar como um impostor. Um ano depois da sua morte, o editor promoveu uma homenagem ao poeta que denunciava a vilania duma sociedade que tinha como único valor o dinheiro. O poeta acabou por assistir à mascarada organizada em seu nome, revelando que, afinal, estava vivo. Mas essa revelação trouxe um motim que o levou a renegar a sua identidade: naquela magna e manipulada assembleia em fúria, raríssimos eram os que se interessavam pela mensagem da sua poesia. Os próprios correligionários foram ao ponto de o raptar – os poetas. No final, acompanhado de uma casta prostituta que soubera valorizar os seus versos, Vijay volta as costas a Bombaim (à Índia), e caminha numa planície enevoada, liberta da escória humana.

Em que é que nos distinguimos da Bombaim de 1957? Quando penso no tempo que vivi nos anos 50 e 60, fico sempre perturbado com a minha ignorância. E sinto que, também, eu fui silenciosamente preparado para não me distinguir da escória humana. NOTA: Este filme foi apresentado pela primeira vez em Portugal, a 22 de Outubro de 1986, na Cinemateca Portuguesa por ocasião da I Retrospetiva do Cinema Indiano.

 

4.5.07

Os valores da desmedida...

À nossa escala, a ideia de prolongar em mais de 600 km os mais de 2700 que constituem o curso natural do rio São Francisco é insensata, faraónica, megalómana, mas à escala brasileira tudo será diferente, mesmo para os 13 milhões de pessoas que irão ser afectadas. E porquê? Porque a água é um elemento fundamental para a construção do estado brasileiro. Sem ela, o Brasil desmoronar-se-á.

Portanto, a desmedida, lá, no Brasil, pode ser justa, enquanto, aqui, é quase sempre sinal de loucura.

A escala condiciona-nos a razoabilidade: colocamo-nos permanentemente em bicos-dos-pés, quer quando olhamos para trás quer quando olhamos em frente.

Andamos numa roda-viva a desfazer. Odiamos a persistência e a consistência. Admiramos o improviso, damos laudas à boçalidade, à voz grossa. Pagamos para gozar a pequena intriga. Raramente, somos justos com os vivos: ou os adulamos, ou ignoramo-los. E mesmo depois de mortos, temos sobressaltos de carpideiras, para definitivamente colocarmos uma pedra sobre o assunto...

À nossa escala, não deixamos, no entanto, de praticar a desmedida: O SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) perdeu o rasto de 200 caixas de fichas que nos permitiriam a avaliar (conhecer) o movimento das fronteiras, entre 1919 e 1975. Sem elas, ficamos impedidos de conhecer os êxodos, as migrações, as capturas, as deportações, o contrabando, a clandestinidade... o zelo de milhares de obedientes funcionários. E há anos que estas fichas deveriam ter entrado na Torre do Tombo!?

A medida da nossa desmedida é a irresponsabilidade que insiste em guardar ou em assaltar o poder.

3.5.07

A verdadeira medida da Desmedida...

Num tempo em que me dou conta da luta diária pelo poder, seja em França, no Iraque, no Irão, nos Estados Unidos, na Venezuela, em Angola... na Câmara de Lisboa ... ou, mesmo, na Esc. Sec. de Camões, não posso deixar de reflectir sobre a natureza excessiva desses combates. Nuns casos, porque os projectos são desmesurados e irrealistas, noutros porque inexistentes ou, pelo menos, subterrâneos. Raramente, os destinatários são envolvidos na construção dos projectos que, em princípio, lhes dizem respeito. Não sei se estamos perante um fenómeno que possamos classificar como desmedida!?

Sei, no entanto, que Ruy Duarte de Carvalho publicou, em 2006, um conjunto de crónicas a que deu o nome de Desmedida. Ler esta obra pode transformar-se numa viagem de consequências imprevisíveis, pois, cedo, desperta a vontade de seguir os caminhos do autor em torno do desmesurado rio Francisco. Mas segui-lo, supõe todo um programa, cujos contornos nos obrigam a viajar do séc. XVI ao séc. XXI, de modo a perceber por que motivo a colonização do Brasil foi diferente da angolana, apesar do colonizador ser o mesmo, apesar dos holandeses que procuraram simultaneamente ocupar os dois territórios, apesar do «brasileiro» ser fruto da mistura do branco europeu com o negro africano, apesar de, em momentos vários, o «brasileiro» ter sido atirado para os braços de Angola.

Numa viagem fascinante, Ruy Duarte de Carvalho dá conta da extensa investigação que fez no terreno, observando e lendo. Lendo e cruzando: Cadornega, Blaise Cendrars, Sir Richard Burton, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Euclides da Cunha... o engenheiro Theodoro Sampaio - verdadeiro protagonista da desmedida brasileira... Tudo para poder responder às perguntas do velho Paulino e, sobretudo, quando for visitar os pastores cuvale, pois, há muito que o autor chegou à evidência:

«Quem é analfabeto nada lê, de facto, e também pouco ou nada lêem aqueles que beneficiaram de aprendizagens modernas mas evitam, recusam mesmo, porque antes de mais lhes intimida, toda a escrita que não lhes proponha uma sopa de letras liquidificada pelas tecnologias da mediatização, ou propostas ditas literárias devidas a talentos jornalísticos assim-assim que para se imporem chegam até a vigiar-se de muito perto, não venham a incorrer na desvantagem de querer voar eventualmente mais alto, o que aliás acabaria, quem sabe, por revelar, também, a efectiva tibieza dos seus talentos.» op.cit, pág. 225

No que me diz respeito, creio que, por uns tempos, vou viajar com Ruy Duarte de Carvalho para que ele me possa guiar pelos sertões da alma humana, à procura da verdadeira medida da desmedida...

 

 

 

 

 

28.4.07

A rampa...

- Por pudor, não. Por horror. Ando e penso contra o vento. À esquerda, vozes de ontem - promessas cinzas. À direita, a dúbia Cister - risos dúbios. Estático, sufoco referências. - Por horror, não. Por pudor.

 

24.4.07

Escondem-se os espelhos...

«A veces en las tardes una cara nos mira desde el fondo de un espejo; el arte debe ser como ese espejo que nos revela nuestra propia cara.» Jorge Luis Borges, Arte Poética

Em Abril de 2007, escondem-se os espelhos, pois tememos que eles mostrem que, desde o início, fizemos batota. Uns receavam cada vez mais o campo de batalha e por isso rebelaram-se em nome do direito à liberdade dos povos oprimidos.

Outros (quando não os mesmos) aproveitaram a fuga dos títeres para lhes usurpar o lugar. Multiplicaram-se pelas cadeiras do poder e estão aí, repimpados, fugindo as caveiras que irrompem do fundo dos espelhos.

Nem uns nem outros percebem que estamos a acabar.

 

21.4.07

O público dos Dias da Música do CCB...

No Grande Auditório, o respeito e a veneração. No Espaço Aberto, a boçalidade e o cavaco. Porquê?

Quando, no âmbito da «Música Livre», Quatro Cantos da Casa (com obras inéditas de Jorge Machado, Eurico Carrapatoso, Carlos Gomes, Paulo Brandão, Ivan Moody, Eli Camargo Jr.) apresentava o seu espetáculo/concerto, resultante da associação da Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa com a Escola Técnica de Imagem e Comunicação (ETIC), algum público, desatento e ruidoso, fez fracassar o início do programa.

Como é que os jovens podem respeitar os mais velhos, se desrespeitamos os jovens músicos? Esta dualidade de critério é inaceitável: a subserviência perante o consagrado e a indiferença perante aqueles que precisam de público para melhorarem as suas performances. E para além disso, a dualidade de comportamento também se manifestou no aplauso, no interior do Grande Auditório. O português Bernardo Sassetti, com as suas "Improvisões" reveladoras de um compositor e pianista de recursos ilimitados, perdeu no aplauso para o pianista turco Huseyin Sermet...

Diria que a substituição da Festa da Música pelos Dias da Música faz sentido, pois nem tudo é festa: falta dinheiro e, sobretudo, falta educação... e esta deveria começar em casa, continuar na escola... Mas como?

 

19.4.07

No espaço de uma semana...

Na Escola Secundária de Camões, no espaço de uma semana, foi possível recuar no tempo e dar a conhecer aos alunos e, também, aos professores, um tempo que alguns viveram, mas a maioria desconhece.

A 13 de Abril, o escritor João Aguiar revisitou o "liceu", que frequentou entre 1957 e 1961 (?). A 18 de Abril, a professora Madalena Contente fez-nos revisitar Vergílio Ferreira, que lecionou no Camões, a partir de 1959 até à sua aposentação.

I

João Aguiar dirigiu-se, no Auditório, a uma plateia de mais de 250 alunos e professores, evocando o passado e discorrendo sobre o ofício de escritor. Desse passado, ficou a imagem da distância que separava os rapazes das raparigas que, quando admitidas no Liceu, eram fechadas, nos intervalos das aulas, na Biblioteca. Ficou também a ideia da inacessibilidade do livro, aprisionado nas "altas estantes" da Biblioteca. O aluno só podia ir à Biblioteca quando algum professor faltava. E sobretudo, sobrou a imagem do poder do professor e, em particular, do reitor, perante o qual todos se prostravam. Por outro lado, nas aulas de Português, poucos professores desenvolviam estratégias motivadoras da leitura.

João Aguiar recordou dois professores: Maria da Conceição Caimoto, que lia seletivamente excertos de obras, acabando por convidar os alunos a continuar a leitura, e Mário Dionísio, que contextualizava, com tal rigor e clareza de expressão as épocas literárias e as obras que que as integravam, que aos alunos bastava estarem atentos e tirar notas, para mais tarde tentarem reproduzir o pensamento do mestre.

Sobre o ofício de escritor, João Aguiar deixou no ar a ideia de que o despertar para escrita resulta mais de uma descoberta pessoal do que de um efeito da Escola. No seu caso, ela terá surgido por volta dos sete anos de idade e ter-se-á acentuado, na sequência de uma doença que lhe restringiu os movimentos entre os nove e os onze anos. Dos seus autores preferidos, citou Eça de Queirós. Dos vivos, pouco disse, a não ser que o antigo aluno do Camões e "rebelde" António Lobo Antunes sempre o tratou com grande deferência... E que também apreciava a obra de Mário de Carvalho, seu condiscípulo. Curiosamente, não referiu Vergílio Ferreira com quem, eventualmente, se terá cruzado... Mas, como nos prometeu escrever sobre o tempo que viveu no Liceu Camões, no âmbito da comemoração dos 100 anos do edifício, talvez ainda estejamos a tempo de o ver escrever sobre a sua relação com Vergílio Ferreira, também ele, grande admirador de Eça de Queirós...

 

 

II

Quanto à rememoração de Vergílio Ferreira, esta decorreu entre os livros das "altas estantes", na Biblioteca, que lotou. Entre outros, estiveram presentes a viúva do escritor, nos seus enérgicos 92 anos de idade; a professora doutora Maria Joaquina Nobre Júlio que falou sobre a "Aparição"; a antiga professora do Liceu Camões, Drª Clarisse Santos que explicou aos presentes quem eram / são as "três colegas", múltiplas vezes referidas pelo escritor na sua obra; o dr. Luís Filipe Valente Rosa, antigo aluno do homenageado que dissertou sobre o "pensamento em Vergílio Ferreira", deixando a mensagem de que a acção (docente, literária e ensaística ) de V.F. terá sido, muitas vezes, redentora para os alunos e para os leitores. Deixou-nos também a imagem de um homem cujo objectivo principal era descobrir a irredutibilidade da pessoa, lutando contra qualquer totalitarismo, viesse donde viesse... o que lhe terá trazido alguns dissabores, sobretudo, da crítica de raiz marxista...

Para além das referidas intervenções, é ainda necessário referir o filme realizado pelas professoras Madalena Contente e Teresa Almeida, e que, pelo rigor documental, poderá futuramente ser muito útil na apresentação de V.F. às novas gerações e que, por outro lado, não deverá ser esquecido na celebração dos 100 anos do edifício da Escola Secundária de Camões.

III

1.      Se cruzarmos as duas datas - 13 e 18 de Abril, verificamos que nos falta conhecer o "diálogo" travado por Mário Dionísio e por Vergílio Ferreira, isto é, o diálogo entre a escrita de raiz marxista (vulgo neorrealista) e a escrita que, rejeitando o fascismo, procurava no homem e não na classe (no grupo) o caminho da sua superação.

2.      Estas iniciativas, seja no Auditório seja na Biblioteca, são de grande utilidade para ver se aprendemos a ouvir, a respeitar a voz do outro (EU). No Auditório, ainda houve jovens que não souberam ou não quiseram ouvir, obrigando o convidado a chamar-lhes a atenção. Na Biblioteca, também houve quem passasse o tempo a comentar os oradores, querendo deixar nos circunstantes a ideia de que muito do pensamento de V.F. mais não seria do que plágio.

 

16.4.07

O desnorte de certos governantes...

«Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações - a dos vivos e a do mortos.» (Juca Sabão, citado por Mia Couto, Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra)

Li recentemente que o PSD de Marques Mendes quer entregar a contratação de professores e restantes funcionários às Escolas. Quer também que essas Escolas paguem aos funcionários segundo tabelas próprias.

Certamente que esta luminosa ideia resulta do brilhante raciocínio de que nas regiões mais pobres, os funcionários devem receber menos do que nas regiões mais ricas. Ou será ao contrário?

A nação dará lugar a um conjunto de cantões, onde o compadrio, o amiguismo e o nepotismo reinarão.

Qual será o objetivo do Dr. Marques Mendes? Promover a instrução dos portugueses ou criar uma sociedade em que os portugueses se distribuem por categorias (castas) de 1ª, 2ª, 3ª?

Esta proposta vem de alguém que tinha a obrigação de saber quais são as funções do Estado. Alguém que cresceu (?) no interior do aparelho partidário e estatal. No entanto, parece que o seu objectivo é destruí-lo, colocando-o nas mãos de caciques locais, trauliteiros, que infestam o país de Norte a Sul, sem esquecer as Ilhas... destrambelhadas capitanias!

Só não compreendo por que motivo o Dr. Marques Mendes não propõe a mesma solução para os quartéis. Cada um contratava a tropa fandanga que quisesse, pagando-lhe de acordo com o saque de que fosse capaz. Afinal, para que servem as forças militares e de segurança?

Só um Estado, incapaz de definir um Projeto Educativo, pode tolerar que haja governantes que queiram instrumentalizar as instituições que o justificam: a Segurança, a Justiça, a Educação.

A acção de certos governantes empurra-nos objetivamente para a terra dos mortos...

 

9.4.07

Casos de polícia...

O ministro Mariano Gago justificou, hoje, o seu despacho provisório de encerramento compulsivo da Universidade Independente, baseando-se na actual degradação pedagógica da instituição e pelo facto responsabiliza os proprietários.

E quem são os proprietários? Ninguém sabe!

Extraordinário! O Estado permite o funcionamento de múltiplas instituições de ensino sem conhecer os proprietários e, sobretudo, sem conhecer o respetivo financiamento. O ministro reconhece que estamos perante casos de polícia, cujo desfecho é imprevisível...

Por outro lado, Mariano Gago quer fazer crer que essas instituições - opacas, enredadas em compadrios de longa data (Estado Novo) - prestaram até há pouco tempo um serviço exemplar. E a atestá-lo apresenta os relatórios das várias equipas de avaliação que apenas descobriram pequenas falhas facilmente superáveis. Esses relatórios jamais registaram qualquer tipo de degradação pedagógica. E porquê?

Porque nessas instituições nunca houve investigação consistente e, sobretudo, a transmissão de conhecimento nunca obedeceu a qualquer princípio pedagógico. O ensino superior (privado e público) detesta a pedagogia, evita a educação. A maior parte dos docentes nunca teve qualquer preparação pedagógica. E quanto a educação, basta ouvi-los falar, basta ler as suas dissertações, as suas teses...

Ao tentar separar o trigo do joio, Mariano Gago enredou-se numa demonstração inconsistente, pois sabe muito bem que, há alguns meses, humilhou o professor Adriano Moreira, porque a avaliação do ensino superior seria inócua.

Lá no fundo, o Senhor Ministro mostrou, hoje, que a sua grande preocupação é defender o currículo do aluno José Sócrates em quem devemos admirar a aplicação, a fome de conhecimento necessários à construção da OBRA.

Um currículo anterior à degradação pedagógica que atingiu a Universidade Independente.

Toda esta encenação é mais um caso de polícia. Mas que polícia? Mas que justiça?

 

8.4.07

A inveja mata a vaidade...

Hoje, domingo de Páscoa, gastei boa parte do dia a elaborar uma matriz para uma prova de equivalência à frequência e/ou de equivalência a exame nacional, e a ler a legislação sobre os exames 2006-2007. Em momentos vários, lembrei a notícia de que o Reitor Arouca terá assinado a certidão de conclusão de curso (o diploma /a carta de curso?) do engenheiro Sócrates a um Domingo.

Perante a chicana criada em torno deste facto, decidi tornar pública a minha prevaricação, pois, neste domingo, lesei o compromisso assumido na pia batismal há mais de 50 anos. Se tivesse agido em conformidade, teria deixado para melhor momento essa incómoda matriz. É que já não sei a quem servir: se a Deus se a César...

Afinal, tal como eu, o Reitor Arouca, ao despachar ao Domingo, vivia o mesmo dilema: não sabia a quem servir se a Deus se ao futuro querido líder... A não ser que o Reitor Arouca nunca tenha assumido nenhum compromisso na pia batismal!

Por outro lado, confesso que trabalhar neste domingo (de ressurreição) me deu algum prazer, porque, mesmo que não queira, me sinto solidário com o enxame de assessores do primeiro-ministro e do ministro da Ciência e do Ensino Superior que gastaram este santo fim de semana a escarafunchar argumentos capazes de ressuscitar o querido líder.

Viva a Universidade Independente! Abaixo a Ordem dos Engenheiros!

Se não fosse a inveja, o querido líder era hoje Primeiro Engenheiro, ou mesmo Primeiro e Único Arquiteto!

PS: Por onde anda a Ministra da Educação? Será que a ressurreição do querido líder vai devolver-lhe a voz?

 

 

 

6.4.07

Ao Sul...

Armação de Pera, 5 de Abril de 2007

Fugi da Sombra para o Sol do Sul. Nestes últimos dias, viajei para o antes do presente (AP). E estive quase simultaneamente em Lapedo (Leiria) e em Silves. Em primeiro lugar, o escritor João Aguiar obrigou-me a regressar a 1998: tempo, para mim, de mudança – de Mem Martins (Sintra) para a Portela (de Loures / Lisboa) e ainda da Escola Secundária de Santa Maria para a Escola Secundária de Camões; tempo de uma vizinha e orgulhosa EXPO; tempo de (re)iniciação à doença e à morte; tempo, talvez por isso, de ignorância da descoberta das ossadas de uma criança que morreu há 25 000 anos, com a idade de quatro anos e meio – “o menino do Lapedo”.

Essa descoberta, reportada /“ficcionada” por João Aguiar na obra LAPEDO, Uma Criança no Vale (ASA, 2006), parece obrigar à revisão da teoria Out of Africa – o modelo da Origem Africana Recente – que gerara a perniciosa ideia de que a humanidade assentaria na acção do «exterminador implacável», cuja acção primordial teria consistido no genocídio do Homem de Neandertal, na medida em que o Homo sapiens e o Neandertal seriam espécies tão diferentes que a inter-reprodução seria biologicamente impossível.
A investigação pluridisciplinar em torno d “O menino do Lapedo” coloca-nos perante a hipótese da miscigenação entre “arcaico” e “moderno”, Neandertal e Sapiens, destruindo, desse modo, a concepção dominante do homem, em grande parte do século XX.
A obra de João Aguiar, pelo diálogo que estabelece com arqueólogos, antropólogos, físicos, mitólogos, etc., merece ser lida atentamente porque, para leigos, como eu, revela-se uma preciosa fonte de conhecimento. Em segundo lugar, também voltei a Silves, esse lugar onde o antes do presente (AP) árabe me é mais visível.

As obras de reconstituição do legado árabe continuam no Castelo de Silves, não sei há quantos anos. Torna-se claro que ali existiu uma urbe muito bem organizada, mas, por enquanto, apenas isso… Na parte restaurada pelo PÓLIS, surgiu, entretanto, uma fonte-jardim em homenagem a IBN Qasi, o governante muçulmano de Silves, com quem D. Afonso Henriques terá «estabelecido uma aliança, estratégica, mas possivelmente também espiritual» para proteger os mouros que ficavam sob o seu domínio» …
O interessante é que li estas palavras de João Aguiar, algumas horas depois de ter (re)visitado SILVES. Em síntese: a ideia da miscigenação está inscrita nos ossos e nas pedras da IBÉRIA! Mas também de todas as partes, ao SUL, por onde ousámos VIAJAR…

Nota de rodapé: No decurso desta viagem ao SUL, CARUMA não deixou de prestar atenção ao Presente. E pelo que tem lido e conhece dos AROUCAS deste país, recomenda ao Engenheiro Sócrates que continue obstinado e não deixe de tomar a cicuta que se impõe nestas circunstâncias. Por muito menos, outros deixaram o poder, esconderam-se num qualquer conselho de administração e o país, como é seu timbre, esqueceu-os.
O PS ainda tem no seu seio um ou outro dirigente capaz de formar um Governo, cuja única regra de governação seja a honestidade. CARUMA espera, agora, que CAVACO se revele PRESIDENTE. Para isso foi eleito. E não precisa de fazer barulho!

A reles vaidade mata-nos a cada dia que passa!

 

30.3.07

De Rafael Bordalo Pinheiro a Cesário Verde...


"Nada mudara. A mesma sentinela sonolenta rondava em torno à estátua triste de Camões. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brasões eclesiásticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O Hotel Alliance conserva o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo sol dourava o lajedo; batedores de chapéu à faia, fustigavam as pilecas; três varinas, de canastra à cabeça, meneavam os quadris, fortes e ágeis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina defronte, na Havanesa, fumavam também outros vadios, de sobrecasaca, politicando." Eça de Queirós, Os Maias

A surpresa de Bordalo, retratada no Lazareto de Lisboa (1880), é a mesma de Carlos da Maia (e de Eça) e ambas pressupõem o distanciamento da pátria. O retorno fugaz ou definitivo introduz uma idealização frustrada, apesar da sublimação do sol e das varinas de Cesário.

Hoje, sob a estátua triste de Camões desfila um sem número de automóveis à procura de um alvéolo insalubre e, à superfície, os mesmos vadios adormecem à sombra do vate, mergulhados em sal-azar. As sobrecasacas fugiram do Largo, preferem os gabinetes onde tecem as malhas que nos hão de estrangular.

Entretanto, sob o Camões, as novíssimas raízes de aço e cimento suportam vaidosas sobrecasacas dúbias...

 

25.3.07

No Lazareto...

O Rafael Bordalo Pinheiro atirou-me para um impasse: os papagaios voam no ar; os comendadores voam em terra.

Tudo parece de acordo com a regra natural. No entanto, a ideia de ver os comendadores a voar deixa-me inquieto.

É um pouco como aqueles governantes que exigem ter direito à opinião. Sempre pensei que a opinião era um direito dos governados. Estes pronunciam-se, de acordo com as suas expectativas (os seus pré-conceitos), sobre a decisão dos governantes. A opinião é por definição tendenciosa, subjetiva... A opinião é inimiga do governo, gera, em si própria, a anarquia.

Os governantes, tal como os comendadores, não deveriam voar. Só lhes é permitido errar ou acertar. Jamais se deveriam escudar na opinião. Devem ouvi-la para decidir. Mas não devem decidir a favor da opinião.

Aqui, na terra da opinião, sinto-me atirado para o lazareto... se é que ele ainda existe.

 

17.3.07

O charme descarado dos oligarcas...

Ao passar, hoje, em frente do Hotel Tivoli (Lisboa) tive uma estranha sensação: os mortos das guerras de libertação serviram, apenas, para nutrir os mandarins e os querubins que, despudoradamente, vão vivendo faustosos dias.

Quando minutos mais tarde, revi O Charme Discreto da Burguesia (1972), de Luis Buñuel, lembrei-me novamente dos figurões da Avenida da Liberdade, ao ver a mala diplomática do embaixador de Miranda que transportava 15 kilos de cocaína.

Miranda, república democrática da América Latina, inventada por Buñuel, obrigou-me a pensar noutras repúblicas democráticas, onde o petróleo, os diamantes, as drogas... engordam uma casta predadora que vem fazendo tábua rasa dos princípios que nortearam as guerras de libertação.

Dessas guerras sobra, hoje, o charme descarado dos oligarcas.

 

15.3.07

Em Sintra, podemos aprender a ler...

Ler pode ser aliciante. E para alguns de nós, é-o certamente. Mas para outros, a resistência é cada vez maior. Procurar uma explicação para esta dificuldade não é original, muitas causas de natureza socio-cultural e, mesmo, psicológica têm sido apontadas. No entanto, o conhecimento deste tipo de causas não resolve o problema, porque este se encontra num plano bem distinto.

Há alguns dias, confrontado com a resistência à leitura de OS Maias, de Eça de Queirós, levei cerca de 80 alunos a Sintra, para que pudessem, in loco, refazer o itinerário de Carlos da Maia e de Cruges. Ora, se o itinerário, na versão de João Rodil, não é muito difícil de percorrer, a leitura do espaço e da memória de Sintra, apesar de palpáveis, é um verdadeiro bico-de-obra. E porquê?

Porque não aprendemos a ler o espaço físico e o espaço simbólico.

Sintra é uma construção do homem e não uma criatura divina, como é habitual afirmar. Os seus jardins e os seus monumentos são expressão da vontade humana. Ora genuinamente construídos ao gosto medievo, manuelino, neoclássico ou ao gosto romântico. Se o Paço Real foi construído e alargado ao longo de vários séculos e nele podemos aprender a ler a História das perdidas (e não assinaladas) Casas dos Templários, situadas no casco do século XII à intervenção joanina ou manuelina, já o Palácio da Pena, as Quintas do Relógio e da Regaleira são obra revivalista do século XIX e mesmo do início do século XX.

Foram reis, diplomatas (por vezes, estrangeiros) artistas e capitalistas (pouco escrupulosos), seduzidos pelo microclima, pela natureza e pela situação geográfica que desenharam a parte vegetal e monumental mais opulenta de Sintra. E fizeram-no em tempo de romantismo serôdio, marcado pela exacerbação competitiva do EU, do pitoresco, do ecletismo, do sincretismo, em suma de um revivalismo que admite todos os neos - (árabe, mudéjar, gótico, manuelino, barroco, oriental...)

Quando se chega a Sintra, vê-se o todo - a serra, o castelo, os monumentos, o verde, o azul -, mas dificilmente se ouvem as águas, as aves e se respiram os perfumes... É mais fácil saborear as queijadas, os travesseiros!

É como se nos limitássemos a fazer uma leitura global, apressada, definitiva. Ao não olharmos o relevo, deixamos de ver as fontes, as cascatas, as grutas, os fios de água que gota-a-gota escorrem pelas paredes vegetais. Ao não olharmos as árvores, deixamos de lhes saber o nome, a origem, como se o Criador as tivesse plantado ali definitivamente.

É esta ignorância cómoda, que nos impede de ler, de gostar de ler, de que, paradoxalmente, os românticos são os grandes responsáveis ao decidirem abandonar o Émile à sua perspicácia ...

Sintra pode e deve ser mais do que um "episódio romântico". Em Sintra, podemos aprender a ler, rumando contra a corrente.

 

9.3.07

Contra a corrente...

No dia sete de Março de 2007, a peça "Episódios da Vida Romântica”, representada pelo Grupo dramático "Há Cultura" conseguiu fixar a atenção de 200 alunos no Auditório "Camões". Apesar da cedência à graça, por vezes, um pouco rasteira, Eça de Queirós ficou mais perto de ser lido. E, sobretudo, ficou provado que é possível trazer "o teatro" à Escola.

Há mais de quatro anos que ansiava por este acontecimento.

Não tenho dúvida de que se a Escola se abrisse à prática teatral, utilizando os recursos de que dispõe, dentro de pouco tempo, teríamos alunos a escrever pequenas peças que poderiam levar à cena no referido Auditório.

O Auditório "Camões" merece ter um reportório próprio, capaz de se impor como espaço de cultura aberto à comunidade, à cidade.

Nesta mesma semana, surgiu um outro sinal que não deveria ser desprezado: os jovens lêem muito mais do que se pensa, sobretudo, narrativas. Há neles uma grande apetência pelas "estórias". E gostam de partilhar as suas leituras, ainda que não canónicas...

Esta paixão pelas "estórias" esconde o desejo de conhecer o sentido da História, de dar um sentido à VIDA.

No entanto, a Escola continua escrava do PROGRAMA, limitada ao básico. Sem perceber que o básico seca o espírito, torna-o estéril, gera a imbecilidade.

A imbecilidade que horrorizava o Eça..., levando-o à denuncia corrosiva dos Dâmasos e dos Gouvarinhos...

4.3.07

Olhos de Água

Ali, a 500 metros da nascente do Alviela,

sós,

os olhos jorram uma torrente circular,

um redemoinho virado do avesso.

A diferença que faz a água!

Sem ela,

os olhos não passariam

de duas bossas petrificadas.

Em tempos, passei por elas,

e quase que não deixavam qualquer sinal em mim...,

mas, hoje,

os meus olhos secos

procuram naqueles olhos líquidos

a causa da emoção

que redemoinha dentro de mim.

 

 

2.3.07

Mas não!

Três vozes simultâneas: - Precisamos de falar consigo. Perante a insistência, procuro isolar aquelas vozes do arruído circundante. Mas não! O problema é de todos e, por isso todos querem falar.

Entramos na sala. Espero que a ansiedade verbal dê lugar ao silêncio para que o diálogo possa começar. Uma expectativa frustrada: oiço várias vozes sobrepostas que propõem uma solução precipitada para um problema mal equacionado; oiço uma sinfonia de desânimo - os interlocutores não dão a devida importância à questão; afinal, ainda não sabem (ou preferem não saber?) que passos devem dar...

De repente, vejo-me, ali, em frente de uma horda que procura vingança para todos os fracassos passados ou anunciados. Já não me ouvem: as palavras enovelam-se e estilhaçam-se contra as vidraças e atordoam-me ao ponto de me obrigarem a mudar de tema...

E tento explicar-lhes a natureza revolucionária do romantismo, procuro que compreendam que o excesso de arruído o reduziu a uma expressão artificial de sentimentos, de afetos, de emoções... fruídos em cenários de ostentação hipócrita e reacionária.

Esperava que entendessem o significado da revolução romântica: acabar com os súbditos, abrindo o caminho da cidadania.

Mas não! os românticos estavam apenas preocupados em acabar com a tirania, em acabar com os déspotas...cegos para os tiranetes que germinavam sob a poeira lunar.

E os tiranetes não param de se multiplicar, abafando o silêncio apolíneo da dor incandescente.

 

26.2.07

Hollywood roeu a corda

MEJOR PELÍCULA EN LENGUA EXTRANJERA: "La vida de los otros" (Alemania).

Tal como referi há uns dias, este filme mostra bem como os regimes totalitários retiram ao cidadão qualquer veleidade de os combater.

No entanto, o muro abre brechas por onde os sacerdotes mais zelosos acabam por colaborar com o inimigo - a liberdade.

Desta vez, na América de Bush, Hollywood roeu a corda.

 

20.2.07

Mergulhar na nossa vida...

1984, RDA. A missão da STASI é saber tudo sobre a vida das pessoas, através de uma vasta cadeia de informadores/denunciadores. O filme "AS VIDAS DOS OUTROS" de Florian Henckel von Donnersmarck mostra a gradual desilusão do capitão Wiesler, um oficial altamente credenciado da polícia política, cuja missão é espiar o famoso escritor, George Dreyman, e a sua esposa, a atriz Christa-Maria Sieland.

A intriga tem todos os condimentos para seduzir o espectador. No entanto, o que mais impressiona é o modo como o poder totalitário controla o cidadão, deixando-o incapaz de qualquer defesa, tornando-o num bufo. E deixa ainda perceber que em ditadura, a oposição organizada cai facilmente nas malhas estéreis da soberba e da vaidade.

Este filme ajuda-nos a compreender que a queda do Muro de Berlim, em 1989, era inevitável: o capitão Wiesler representa todos aqueles que de dentro descobriam a arbitrariedade do poder e que fascinados pela pureza da ideologia traída acabaram por passar para o lado de lá... apesar de a História os ignorar, reduzindo-os ao papel de carteiro, como acontece no romance de George Dreyman.

Em Portugal, não há registo do capitão Wiesler. Mas ele existiu nos últimos anos do marcelismo... A PIDE não era diferente da STASI e por isso ver o filme AS VIDAS DOS OUTROS é ainda mergulhar na nossa vida. Uma vida escondida que nos comprazemos em ignorar, talvez porque como refere Anthony Giddens (Sociologia, pág.597) "uma sociedade, onde um movimento que tenha tomado o poder se revela posteriormente incapaz de governar com eficácia, não pode ser considerada como tendo passado por uma revolução e é mais provável que seja uma sociedade caótica ou em risco de se desintegrar."

 

16.2.07

Sem os olhos secos...

Com os olhos secos - estrelas de brilho inevitável através do corpo através do espírito sobre os corpos inânimes dos mortos sobre a solidão das vontades inertes nós voltamos (...) Agostinho Neto

O poeta, futuro-presidente, acreditava que, apesar do sofrimento estancar as lágrimas, instaurando o desespero e a desistência, o regresso à fonte da vida era possível. Mesmo que ele não voltasse, o tu substitui-lo-ia na concretização da esperança.

No entanto, a substituição é impossível... o outro jamais realizará a utopia do eu. Só no tempo dos espelhos, alguém pode crer que o filho é o reflexo do pai, do avô... ou mesmo do bisavô, sobretudo se o bisavô tiver sido presidente!

Júlio Machado Vaz, confrontado com a inevitabilidade do envelhecimento e com a degradação da pessoa, sai do divã para Cantelães, à espera que o tempo não pare na Cabreira...

O narcisismo é demolidor... deixa o chão juncado de vítimas incapazes de nos substituir.

 

9.2.07

Cada palavra...

Li algures que o escritor Rui Nunes encetou um combate contra o despotismo da palavra. Não sei se será bem assim, mas não me admira muito que isso se tenha tornado na sua derradeira tarefa neste mundo. Lembro-me dele, há uns anos, numa sala de professores, em Sintra, um pouco distante de todos, embrenhado numa leitura profunda, como seria de esperar de um filósofo. Procurava no código genético uma explicação para a degradação da raça humana. Nesse tempo, talvez ele se preocupasse mais com o seu próprio envelhecimento do que com a baixeza humana. Lembro-me que substituíra, de vez, a carne pelo peixe. De preferência da lote de Sesimbra.

As palavras que com ele troquei foram sempre afáveis, embora tímidas, respeitadoras daquela ilha de silêncio que a sua presença parecia impor.

Cada vez admiro mais essas ilhas de silêncio que procuram ignorar os circos verborreicos, onde a vaidade, a bazófia e as acusações grosseiras alastram descaradamente: jovens que procuram tirar desforço dos mais velhos, acusando-os de torpes vilanias; mais velhos, intrépidos defensores da lei, que deixaram de saber ouvir e que acreditam que, por falarem mais alto, conseguem silenciar os mais novos.

Nos últimos dias, a palavra tornou-se grito... não de denúncia ponderada, mas do poder mais vil de que o homem é capaz, independentemente da idade ou do lugar...

Cada palavra, uma acusação... uma espada de destruição!

Dá vontade de perder a voz e ficar a ler um livro, desses que trazem uma explicação para a nossa ignomínia...

 

2.2.07

Há por aí (ou por aqui?) muitos falangistas...

caruma começa a não entender por que motivo há tantas pessoas simpáticas, desinteressadas e capazes de trabalhar gratuitamente para os ministérios da saúde e da educação. E provavelmente para os restantes…

Os estudos - tão acarinhados pelos nossos governantes - deixaram de ser feitos pelos técnicos dos ministérios; também já não são encomendados a especialistas opiparamente remunerados; são gratuitamente elaborados por nichos de falangistas que, à ribalta, preferem os bastidores. Porquê?

Lembram-me aqueles políticos e aqueles juristas, magnânimos, que durante décadas lecionaram nas Universidades portuguesas sem receber um vintém.

caruma ainda menos entende por que motivo ninguém exige conhecer as verdadeiras motivações destes anónimos trabalhadores intelectuais e, sobretudo, se a sua abnegação não lhes porá a saúde em risco.

Apesar das ideologias coletivistas terem mergulhado numa profunda crise, ainda há falanstérios... e nunca me constou que algum discípulo de Fourier tenha morrido à FOME...ou se tenha queixado do baixo salário...

 

30.1.07

A caruma embotou...

Este tempo frio bem pode servir-me de desculpa para o silêncio em que caí nos últimos dias. Parece que a caruma embotou. E não é para menos: Salazar ressuscitou, acolitado por Álvaro Cunhal. A nostalgia totalitária está de regresso. A Grã-Bretanha escolheu o Churchill, a França De Gaulle... e nós, se a memória não vai além da Segunda guerra mundial, quem poderíamos escolher? A Esfinge que nos "salvou" da guerra e nos atirou para a guerra colonial... Mas desta guerra não há memória, não há memória de qualquer guerra travada em África, nem das suas vítimas nem dos seus "heróis” …; não há memória dos milhões de emigrantes que não suportaram o saneamento das finanças...

Continuamos por aqui, movidos pela Contra Reforma... pelo menos até 11 de Fevereiro!

23.1.07

A minha contingência...

Desde cedo que tudo me parece contingente. Esta palavra sempre me fascinou, não que ela, em si, deslumbre. A razão não é estética: uma palavra com quatro sílabas surdas é quase tão pesada como eu. E, apesar de tudo o que se diz, eu prefiro a sonoridade da insustentável leveza do ser...

contingência agrada-me porque me obriga a olhar para dentro das ténues linhas que separam a certeza da incerteza. E eu, desde que penso nisso, não consigo encontrar nenhuma explicação para os caminhos que percorri... tudo me soa a aleatório, a decisão esquiva...

Falta-me uma explicação plausível, lógica, ancorada numa certeza...

O meu ser vem da milenar heresia, incapaz de conviver com qualquer ortodoxia, e só ouve as palavras soltas da voz.

Se a memória estivesse por perto talvez me exigisse algum exemplo, mas ele há tantos maus exemplos que prefiro abster-me de os referir. E de que serve um exemplo no reino da contingência?

 

18.1.07

Um dia atípico...

Estragon - On trouve toujours quelque chose, hein, Didi, pour nous donner l'impression d’exister ?

Esperei todo o dia por uma porta que não chegou. Está dois meses atrasada. Habitualmente, nestas situações, relembro o título de Samuel Beckett, En attendant Godot. De acordo com o carpinteiro, é incompreensível que a porta ainda não tenha regressado, porque, na arrumação em que se encontra, ela já incomoda, e, em casa, parece fazer falta. - Não, passa de amanhã - garantiu o carpinteiro. No entanto, não estou convencido, eu que pensava tê-la visto passar em direcção ao aeroporto da Portela, facto / ilusão que não me surpreendeu, pois, às 8 da manhã, recebera a informação inopinada e espontânea de que, depois de passar pelo aeroporto, a porta seria devolvida às dobradiças que, chorosas, a aguardam pacientemente...

Entretanto, enquanto (des)esperava pela porta, assisti e, de certo modo, participei, pondo em risco o esqueleto na substituição de uma cozinha... Mas, também, aqui, tudo está atrasado e, principalmente, desajustado. As medidas nunca correspondem. E, portanto, vai ser necessário improvisar... Apesar de tudo, neste caso, o carpinteiro, ainda novo, parece ser competente... Vamos lá ver se tem os conhecimentos necessários à resolução dos problemas criados por uma incompetente agrimensora...

Começo a resvalar num terreno escorregadio, aquele em que uns tantos - muitos - substituíram com naturalidade os conhecimentos pelas competências, mudando do paradigma da incerteza para o da estupidez...

Voltando à atipia, este meu dia foi ainda atravessado por «mastros» alarmistas que me deixam à espera de Godot para que ele me explique por que motivo é tudo tão lento, tão desafinado e negligente. Apenas o maldito romeiro vai cumprindo a promessa de voltar vivo ou morto, ainda que a horas tardias, para além de que hoje o Camões não me telefonou: «Um momento, é do Camões, vou passar a chamada...»

 

14.1.07

A minha torre do tombo...

The Straight Story (1999) de David Lynch, que voltei a ver, ontem, no Ciclo Como o Cinema era Belo da F. C. Gulbenkian, é um belo filme sobre a teimosia e a persistência de um velho de 73 anos, fragilizado pela osteoporose, que decide reconciliar-se com o irmão Lyle, igualmente velho e doente, a viver a mais de 500 km de distância - entre Lauren no Iowa e Mount Zion no Wisconsin.

Alvin, quase cego e a precisar de uma anca nova, amparado a duas bengalas, sem carta de condução e com pouco dinheiro, decide adaptar o seu velho e ferrugento corta-relva transformando-o numa "mobile-home", e fazer-se à estrada para espanto dos seus incrédulos vizinhos.

A viagem, a 5 Km/hora, naquela impossível caranguejola, dá-nos momentos de ternura e bondade inesquecíveis e mostra-nos uma paisagem de searas ígneas deslumbrantes - o fogo purificador!

Apesar da inverosimilhança de algumas cenas, David Lynch inicia-nos na superação da fraqueza, do acessório e do medo. Prepara-nos para a morte apaziguante...

Para mim, esta revisitação do filme não deixa de ser perturbante, pois da primeira vez que vira o filme sei, hoje, que a força da emoção sentida me obrigara a escondê-la bem fundo, num recanto para onde atiro as emoções que me perturbam a razão.

 

12.1.07

Herdeiros da abulia e do ópio...

Diz-me o João Goes que um dia terei de lhe explicar o que escrevo. Tudo lhe parece "filosofia". Não sei se ele tem em grande conta a filosofia. Parece-me que não. Ou, talvez, a filosofia encerre para ele um mundo misterioso a que só os iniciados ou, melhor, os lunáticos têm acesso.

O João não é caso único. Já não é apenas a filosofia que enfastia, é a escrita - toda e qualquer escrita. Textos que ainda há pouco tempo não ofereciam dificuldade de interpretação são hoje objecto de rejeição geral, a começar pelos "programadores" do m.e.., assim mesmo com letra minúscula.

Os poucos textos que sobreviveram, nas escolas, ao revisionismo dos últimos 30 anos foram expulsos da diacronia, pairam no firmamento escolar quais estrelas cadentes. E os alunos olham para eles como se de uma muralha se tratasse - opacos, intransponíveis. Lê-los cansa.

Tal como cansa contemplar, meditar, descrever, comentar. Aparentemente só a acção deslumbra. Mas por pouco tempo. Herdeiros da abulia e do ópio, preferimos fingir que compreendemos.

Num tempo em que predominam a velocidade e o ruído, ficar sentado a ouvir, a dialogar ou a escrever contraria as leis da física moderna.

PS: Ainda não será desta que o João vai ficar satisfeito com a minha explicação da inteligibilidade das palavras e das coisas.

 

8.1.07

Continuo sem subir ao cimo do monte Sinai...

O Último Papa (2004), de David Osborn Um romance que mostra de forma clara a intriga que corrói o Vaticano. Com a morte de Gregório XVIII, um papa humilde e amado pelos fiéis, os cardeais reúnem nas caves secretas da Basílica para eleger o sucessor. A luta que se gera entre os candidatos coloca face a face o cardeal Mancini, italiano, manipulador da intriga cardinalícia, bem acolitado por figuras dúbias e menores, e o cardeal americano Ignatius Heriot, atormentado pelo desejo, pelo ciúme e pela raiva e, sobretudo, por sonhos e pesadelos que o tornam “culpado” de um crime que ignora, apesar de tudo fazer para descobrir a sua origem. Em pleno conclave, Ignatius, combate a calúnia recorrendo ao argumento de que a maioria dos presentes, a começar por ele próprio, são verdadeiros Judas e, que, consciente da sua traição, se propõe, caso seja eleito, reformar a igreja católica de acordo com os “heréticos” ensinamentos do Padre John Zacharias, cuja palavra reformista começou a atrair centenas de milhares de discípulos nos Estados Unidos. Um romance de intriga, a que não faltam os temas tradicionais: homossexualidade, pedofilia, prostituição, corrupção. E lá se encontram também a Madalena (Francesca) e a Virgem (a Irmã Jessica), sem descurar a secular questão do celibato, para além da cada vez menos consistente infalibilidade papal. Um romance que retrata uma Igreja Católica ensimesmada, longe da miséria em que lançara as suas raízes. Para David Osborn, a salvação dessa Igreja está nas mãos de Ignatius Heriot, Gregório XIX. Sintomaticamente, hoje, na Polónia, o novo arcebispo de Varsóvia, pressionado pelo Vaticano, pediu a demissão por, alegadamente, ter colaborado com a antiga polícia secreta comunista. Mas quem sou eu para julgar a Igreja? A mesma igreja que em tempos me aconselhou a clarificar as minhas dúvidas sobre a consistência dos argumentos que ela diariamente me apresentava. Ainda, hoje, continuo sem subir ao cimo do monte Sinai …

6.1.07

E mesmo assim...

Assim até mim chegam vozes que pertenceram a corpos tantas vezes nomeados (...) Gastão Cruz 

De mim partem vozes de corpos tantas vezes ignorados Já só partem vozes E mesmo assim ecoam por mim vozes distantes

 

3.1.07

A crise da personagem...

Construir uma personagem poderia ser uma tarefa nobilitante, pois pressupõe que se olhe em redor e que se selecione um conjunto de traços verosímeis, tanto físicos como de carácter. Com esses traços, poderíamos construir uma figura mais ou menos emblemática.

No entanto, para que a construção da personagem resulte não basta olhar, é preciso saber escutar. E, aqui, coloca-se o maior problema: o que fazer com o que escutamos? Se optarmos pela "reprodução das vozes", a personagem torna-se medíocre, reles, pois as "palavras" para além de pobres são cada vez mais ignóbeis, retratando uma sociedade decadente, alheada das grandes questões colectivas...

Desde o realismo que a tendência para que a personagem decalque o carácter se vem acentuando, gerando mimeticamente um homem cada vez mais desumanizado e, concomitantemente, pondo em causa a força educativa da personagem.

A personagem deveria ajudar o homem a melhorar a sua linguagem, o seu comportamento; a personagem deveria ajudá-lo a superar as suas fraquezas... a construir a cidade dos «homens bons».

Mas não, hoje preferimos a caricatura, preferimos o coro das harpias... e onde há coro dificilmente há democracia!

 

30.12.06

Neste final de 2006...

CARUMA quer despedir-se neste final de 2006 de todos os seus, pacientes, leitores. Tal como o país e, sobretudo, o mundo, andou um pouco à deriva num processo de adaptação que deixou a descoberto o seu fragilizado esqueleto. A aposta na ruptura tem vindo a destruir a memória, querendo dar razão àqueles que defendem o «fim da história». Mas sem memória, secamos as raízes e tornamos absurda a vida. Vários foram os momentos em que o século XX voltou as costas ao passado, recriando pesadelos que eliminaram milhões de vidas. O modernismo relativista transformou-se em individualismo triunfante e as nações submergiram sob totalitarismos expansionistas que ignoram toda e qualquer fronteira. No início do séc. XXI, a fronteira contrai-se e dilata-se ao sabor da vontade dos anónimos conglomerados. O homem pesa cada vez menos face à teia dos interesses. De vez em quando, executa-se um “saddam” para que a teia possa eliminar mais uma série de obstáculos. Objetivamente, a decisão de execução visa que os súbditos se exterminem, em nome da frágil memória que ainda lhes resta da História. Nestas circunstâncias, CARUMA não pode esperar que 2007 seja mais justo que 2006. O ser humano, depois de ter sido expulso do paraíso, está a ser expulso da terra. A dificuldade não está em determinar o agente da expulsão, mas em saber o que fazer com ele. Porém, a rotunda é a melhor metáfora do que espero para 2007, mas que não desejo a ninguém. Se a memória me não atraiçoa, em tempos idos, de encruzilhadas, o que me fascinava e prendia era a nora e, em particular, os alcatruzes.

 

26.12.06

Os conglomerados no Jardim das Delícias...


«O que Bosch nos mostra com o Jardim das Delícias é um falso paraíso, cuja beleza é passageira e conduz os homens à ruína e à condenação...», Walter Bosing

O mesmo se poderá dizer de "O Jardim das Delícias" (ASA, 2005) de João Aguiar.

Trata-se de um romance sobre a União Europeia transformada em "Federação Europeia" no séc. XXI.

O federalismo vai destruindo todos os símbolos identitários em nome de uma volúpia económica, conduzida pelos «conglomerados político-financeiros» que de fusão em fusão condicionam consumidores e governos tornando-se indissociáveis do poder político e da própria criação cultural (pág.130).

Perante a destruição das identidades nacionais e regionais surge a reação do integrismo - no caso português (ou do que resta...) - a reação da Sagrada Milícia - a ala combatente do Movimento Integrista Português.

E no meio destes dois poderes, o protagonista - o Jornalista João Carlos - procura opor-se à cegueira de uma Europa minada por um duplo cancro... num espaço e num tempo em que a lucidez dificilmente sobrevive à arrebanhadura...

Um romance que obriga a pensar o presente, à luz da história recente... raramente problematizada. Não chega a ser um romance profético, a não ser, talvez, nesta sub-região da Ibéria...

 

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Diário_2012

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