Diários

De momento, estão visíveis os Diários de 2006 a 2012.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Diário_2010


30.12.10

Cheguei ao fim da Correspondência (12.11.1971). À data, «as portas entreabriam-se (por quanto tempo?) e toda a gente se lançou a publicar cada vez mais ousadamente. A política e o sexo vão de vento em popa.» Carta 159 (José Saramago).

Ao mesmo tempo que a Censura parecia desmobilizar, Saramago via-se desfeiteado pelos novos patrões da Editorial Estúdios COR que decidiram admitir um novo diretor literário – Natália Correia – sem lhe dar qualquer satisfação. E por isso Saramago «cansado de carambolar entre a editora e os autores… (…) e do franciscanismo tolo e ingénuo que tem sido o meu» (…)  demitiu-se.

Por seu lado, Miguéis, à beira dos 70 anos, adoentado e cada vez mais esquecido, continua à procura de novos caminhos literários e editoriais, sem deixar de zurzir nos literatos portugueses em que inclui Mário Dionísio: «Segundo o pobre do Mário Dionísio – tão mau pintor como mau poeta – para quem também deixei de existir – o rótulo importa mais que o vinho da garrafa…»

Miguéis não deixa, no entanto, de separar o trigo do joio, embora, curiosamente, nestes doze anos de correspondência não haja uma única referência a Fernando Namora, ao declarar ao amigo Saramago:

«Não creio que nenhum outro cronista nosso escreva hoje de maneira tão toante, directa e moderna – e tão bem! -  sobre os pequenos e grandes quotidianos da nossa vida: humanidade, ironia, e um pessimismo sorridente, isento de amargura.» Carta 160.

Miguéis, ao comentar Deste Mundo e do Outro, antevia já o lugar primeiro a que Saramago se alçaria, ofuscando todos aqueles que, de algum modo, se habituaram a vê-lo como o servo em vez do senhor.

PS: Um Bom Ano de 2011 para todos! e, em particular, para o discreto José Albino Pereira. 

 

28.12.10

O resto é opinião

Continuo a ler sofregamente a Correspondência trocada entre José Rodrigues Miguéis e José Saramago. É deliciosa pela informação que nos dá sobre as angústias do “senhor” e do “escravo”, do rigor e do pragmatismo anglo-saxónicos, do laxismo e do esbanjamento portugueses; da intelectualidade postiça e invejosa; da crítica presunçosa e maldosa que imperam na “pátria” … De facto, aos olhos dos correspondentes, pouco ou nada se salva naquele Portugal de 1959 a 1971… à beira-lágrima plantado.

(Das 166 cartas, já devorei 116, sem necessitar da caruma para lhes pegar fogo!)

E para não ser maçador, referindo-me à chatice da actualidade política e económica, termino com as sábias palavras de J.R. Miguéis:

“O homem é a obra e só vale por ela. O resto é opinião, isto é, paisagem: disso temos para dar e vender, sofremos de «opinião fácil» …”

 

26.12.10

Parece um sonho

Parece um sonho, mas é verdade! Saramago, durante anos “serviu” paciente e zelosamente o escritor “americano”, como seu «diretor literário» na Editorial Estúdios COR. A correspondência entre ambos confirma a visão do escritor exigente e, por vezes, exasperante que foi José Rodrigues Miguéis. Tinha a ideia de que este seria tão perfeccionista e ávido do vil metal como o fora Eça de Queirós. Bem sei que ambos precisavam dos proventos da escrita para poderem sobreviver em climas e culturas bem diferentes!

Apesar da hipocondria e, por vezes, da incompreensão de Miguéis, José Saramago procura sempre servir o ilustre escritor, quase sem um queixume, revelando uma crescente simpatia que progressivamente se transforma em amizade, no sentido nobre, diria mesmo, platónico do termo. Pressinto que, para Saramago, o cultivo dessa relação foi fundamental para a sua maturação como escritor que, paradoxalmente, o ajuda a libertar-se do jugo dos editores e até do capricho da crítica e, sobretudo, do mau gosto dos leitores…

Das 166 cartas que compõem esta obra, organizada e anotada por José Albino Pereira, só li, ainda, 43…, mas a leitura é apaixonante, para quem sempre considerou Miguéis como um dos maiores escritores da lusofonia e, sobretudo, porque nos dá um retrato de Saramago, como um homem humilde, amigo de seu amigo, crítico parcimonioso e senhor de um saber fazer admirável…

(Quanto a José Albino Pereira tem aqui um trabalho que honra o zelo de José Saramago. Espero que se mantenha disponível para nos falar desta relação privilegiada entre Miguéis e o Nobel da Literatura. E, sobretudo, que não nos fuja, de vez, para os campos do Ribatejo!)

  

23.12.10

Festas Fartas!

Independentemente da confissão ou da convicção, a grande maioria corre frenética para a noite de Natal, como se não houvesse mais noite. A vertigem arrasta para a despesa fácil e para a mesa farta, como se a riqueza nos fugisse definitivamente.

E de verdade, o ano de 2010 parece assinalar para muitos portugueses uma viragem profunda no estilo de vida... Por enquanto, ainda mantemos rotinas... e por isso Boas Festas a todos os que me têm acompanhado.

(E quanto a 2011, esperemos que, para fazer prova de honestidade, não seja necessário renascer duas vezes!)

 

19.12.10

Por demonstrar

O dia de hoje foi um pouco diferente do de ontem. Com menos frio. Continuei, no entanto, a corrigir trabalhos de última hora, alguns reflexo de enorme preocupação dos autores em melhorar os seus desempenhos. Já há quem seja tão perfeccionista que corrige e reformula as vezes que eu quiser!

Estou a referir-me a um conjunto de jovens que, provavelmente, se submetidos ao Programme for International Student Assessment (PISA), obteriam resultados que permitiriam, por extrapolação, colocar Portugal nos píncaros da Lua.

De qualquer modo, mesmo que esta amostra possa compensar as inúmeras horas despendidas, fica sempre a frustração de que muitos estudantes não valorizam nem a leitura nem a escrita e, sobretudo, o desespero de que estas ferramentas são cada vez mais utilizadas de forma desonesta.

Ao contrário de Daniel Sampaio que pede que «não nos esqueçamos de que os dados do PISA são uma boa notícia que os nossos jovens nos trouxeram» (Pública, 19.12.2010), eu creio que se trata apenas de resultados que procuram tapar o sol com uma peneira.

(Continua por demonstrar como é que Portugal passou a estar na média da OCDE – entre a excelência e a desonestidade a fronteira é ténue.)

   

18.12.10

Entretanto

Quando acreditamos que ESCREVER ajuda a organizar a leitura da realidade (exterior e interior) e apostamos em recorrer a essa estratégia como ferramenta de ensino e de aprendizagem, estamos a correr riscos… pois necessitaremos de dezenas e dezenas de horas para rever os textos que nos são submetidos, quase sempre fora de horas…

Não há componente não letiva que abarque o tempo despendido nesta tarefa! E, frequentemente, somos enganados! Quantas vezes, recebemos “cópias” de outras “cópias” mal engendradas! Infelizmente, não são apenas os alunos que recorrem ao plágio!

Ainda há poucos dias um dos maiores plagiadores que conheci foi promovido a cardeal! Quando o conheci ainda era presbítero, mal sabia escrever e tudo o que escrevia era plagiado, graças às novas tecnologias da informação…

O plágio é tão bem visto que, amanhã, o Governo não deixará de nos impor a reforma aos 67 anos de idade. Basta olhar para o vizinho do lado!

(Tudo isto pode parecer descabido, mas há vários dias que venho revendo textos que eu próprio motivei e que, na maior parte dos casos, são vistos como um capricho de professor obsoleto e que, concluídos os 36 anos de serviço, se vê ameaçado com mais onze…)

Entretanto, vou ter de mudar de estratégia para que a morte não me surpreenda a escarafunchar, nem vale a pena, dizer no quê…

 

15.12.10

De que serve encanar a água?

É tanto o ruído, tantas são as frases sobrepostas que as meninges latejam. Pouco interessa se a palavra encontra interlocutor. Fontes donde a água jorra indiferente à necessidade!

De que serve encanar a água se qualquer riacho a pode encaminhar para o mar? Esse lugar em que, definitivamente, a gota morre.

Inebriados, transformamos o sério em risível, alheios à vida que paulatinamente estiola…

(O sentido atravessa sem cor as fendas destas surdas paredes e eu sigo pelos interstícios para longe do rumor que me esmaga o cérebro. Só não sei porque regresso todos os dias!)

 

14.12.10

A medida errada

A União Europeia comporta-se actualmente qual Procusto que tinha a mania de deitar os seus convidados num leito a cujo tamanho os adaptava.  O diretório europeu, depois de ter engordado os países periféricos, decidiu agora emagrecê-los, desprezando por inteiro os seus efeitos.

E o que é que os governantes da periferia europeia fazem? Obedecem servilmente.

E as várias corporações que posição tomam? Reivindicam a manutenção dos privilégios.

A ninguém parece importar que a opção europeia tenha sido tomada sacrificando a milenar posição de Portugal no mundo. E por isso ainda não percebemos que o euro é uma má moeda que, por mais que a estiquemos ou a encolhamos, não corresponde à nossa medida.

 

12.12.10

Ontem

Nada escrevi sobre ontem, dia triste com sol tímido.

De manhã, aquela missa “bonita”, com as seculares vozes gregorianas, uníssonas, a convocarem para o reencontro com Deus, alternando com notas de fado a lembrar que os únicos encontros só podem acontecer nesta vida…

E por mais que o Frei tivesse sabido escolher as palavras bíblicas anunciadoras da tua ressurreição, por mais que o Frei tenha exagerado na defesa do valor “pertença”, seja ele de pertença a uma família, a um externato (da Luz franciscana), seja ele de promissora pertença à família do Fado, a mim ninguém me tira da cabeça que o teu derradeiro gesto, Catarina, foi de ruptura, cansada de promessas que nunca chegaram a aquecer-te a alma e, sobretudo, incapaz de te ressuscitar no dia seguinte!

E por isso, à tarde, a pretexto de folhas e de árvores outonais, atravessei a ponte e percorri as estradas, sabendo que qualquer convicção de pertença pode estrangular a voz, pode ser impiedosa para quem procura, por si, a ataraxia.

 

10.12.10

Catarina n.s.

Sempre me pareceu que os teus silêncios, as tuas ausências, as tuas leituras revelavam o incómodo de te atrasarem na realização dos teus (pouco) secretos objectivos e por isso, hoje, não me surpreende que tenhas querido juntar-te àqueles outros que, jovens como tu, também, transpuseram definitivamente a linha… Essa linha inexorável que separa a vida da morte…

 

 

 

 

8.12.10

Os discípulos de Rousseau e de Freud

Finalmente, encontrei quem, sobre a decadência da sociedade e da escola, enuncia as causas sem rodeios. Embora Francesco Alberoni não o explicite nesta crónica, os discípulos de Rousseau e de Freud insistem em prestar um mau serviço à comunidade…

 

4.12.10

Nota Breve

30 anos depois, o mito Francisco Sá-Carneiro sofre forte impulso, querendo fazer crer que o povo português é visceralmente sebastianista. De facto, o mito sempre foi alimentado por interesses de grupos que, colocados próximos do poder, viam nesse ideário uma via para a ascensão ao poder.

Até hoje, a solução sebastianista só trouxe violência e pobreza; só adiou a resolução da questão portuguesa. Infelizmente, Passos Coelho, também, não resiste ao aproveitamento da memória de Francisco Sá-Carneiro, um homem que, no seu tempo, sempre deu sinais de autoritarismo, e cujo partido, PPD, acolheu muito do que sobrou do antigo regime…

 

1.12.10

O que motiva o olhar

Entre a Cópia certificada do iraniano Abbas Kiarostami e a exposição Res publica 1910 e 2010 face a face, na F. C. Gulbenkian, o que é que há de comum?

Nada mais do que o olhar, pois original e cópia, em si, nada acrescentam. Tudo depende do que motiva o olhar… a glória, o lucro, a felicidade ou, simplesmente, a ilusão…

E esta última, associada a uma boa dose de desespero, leva-nos a querer primeiro separar o original (inacessível) da cópia (manipulável) para depois nos agarrarmos a fantasias só nossas em que a res publica (o outro) já nada significa …

Saber se uma boa cópia é melhor do que o distante original ou se a terceira república supera a primeira não é mais do que um jogo cujo único fito é sublimar a atroz razão humana…

 

 

 

25.11.10

O dissídio…

Podia chamar-lhe desinteligência, mas não foi essa a palavra que me atravessou a mente ao reparar na penumbra em que mergulhou o país. Perante a crise, em vez da união dos parlamentares para impedir que as desigualdades se acentuem, assistimos à aprovação de um orçamento que cria ainda mais clivagens. Protegem-se as remunerações de sectores onde o compadrio grassa e, ao mesmo tempo, ignora-se o crescimento da vaga de desempregados e de trabalhadores precários…

O argumento de que os quadros das empresas públicas podem fugir é ridículo, pois se o fizerem, isso significa que lhes falta solidariedade, não merecendo a remuneração que auferem. Que o façam e depressa! Ninguém é insubstituível num país em que milhares de jovens qualificados espreitam, em vão, uma oportunidade.

A militância partidária não pode continuar a substituir a competência daqueles que não sacrificam aos deuses de moda, sejam eles quais forem.

O orçamento que, amanhã, vai ser aprovado mata definitivamente os anseios de Abril de 74! Doravante, já não basta o direito à indignação! Às vítimas exige-se que levantem a cabeça e destruam as cercas que os muram.

A começar pelos mercados…

 

23.11.10

Se quiser…

Se quiser ficar mais perto, procure o Bar do Além...

Um caminho só é exterior para quem anda distraído. A terra é toda uma; as cercas que construímos são antinaturais e limitam-nos a perceção do eu e do outro.

O tempo humano é inutilmente gasto a desenhar e a defender fronteiras.

 

20.11.10

Um camping surpresa

Em Alenquer, no Porto da Luz. 

A surpresa resultou de mal ter chegado, ser convidado para assistir a uma palestra, no Bar do Além. Tema: O MILAGRE DAS ROSAS. Oradora: Teresa Gomes Mota. Moderador: Luís Nandim de Carvalho.

Apesar do camping estar praticamente vazio, o bar encheu-se de tertulianos vindos um pouco de todo o lado, com um detalhe em comum – poucos conheciam Alenquer. Ouviram atentamente a oradora, que revelou partilhar o pensamento de Joaquim de Fiori sobre a TEORIA DAS TRÊS IDADES.

Em 60 minutos, revisitei S. Francisco de Assis, D. Dinis e a guerra com seus filhos e, sobretudo, Dona Isabel de Aragão; sem esquecer, Damião de Góis… E sobretudo, as manifestações do Espírito Santo em terra lusa – de Alenquer aos Açores… Só não estive presente no almoço que se seguiu!

E a surpresa ainda pode crescer se navegarmos no blog: www.bardoalem.blogspot.com

E em tudo isto, camping e tertúlia, está o espírito de Luís Nandim de Carvalho.

 

19.11.10

E a pobreza aumenta…

A ideia de construir a paz pela força é uma ideia que me desassossega. A História ensina que mesmo que as armas possam ser um instrumento de libertação, elas acabam por impor a ocupação. E a ocupação militar esconde sempre o roubo das matérias-primas do território “libertado”. É esta sequência – libertação / ocupação - que legitima a acção dos grupos anti NATO.

No entanto, o manifesto anti NATO, ao apostar no desarmamento, abre a porta ao suicídio das culturas mais idealistas, pois o homem é naturalmente predador.

A guerra lá longe pouco nos diz, mas pesa no orçamento. A cimeira da NATO, em Lisboa, pode dar prestígio a alguns governantes, mas os portugueses não conseguem entender porque é que ela decorre num país à beira do abismo. As despesas com a organização da cimeira e das contra cimeira são a expressão da irracionalidade das elites…

E a pobreza aumenta a cada minuto que passa lá longe, no Afeganistão, ou, aqui perto, neste país onde até o sol, envergonhado, deixou de ser o habitual anfitrião.

 

18.11.10

Uma forma de estar…

Parece que as leis são aprovadas para pôr à prova o nosso espírito de rebeldia. É um pouco como se os desafios já estivessem esgotados! E, talvez por isso, desesperados, tudo fazemos para as contornar. Só não queremos aceitar as consequências desse desafio.

Para nós, os desfechos são sempre vitoriosos, mesmo que os jogos sejam a grão-de-bico!

14.11.10

Sociedade a dois, de Tenessee Williams

A leitura de “Sociedade a dois” de Tenessee Williams não é estranha ao modo como perceciono as primeiras páginas dos Jornais: «José Sócrates desautoriza Amado e fecha as portas à “grande coligação”. No conto, duas bichas descobrem as vantagens comerciais e afetivas de uma vida a dois, embora saibam que aquela “sociedade” caducará inevitavelmente.

No caso de Sócrates, o factor psicológico (pessoal) sobrepõe-se ao factor social, pois é um daqueles homens que entrou na política já traumatizado. Deixo a explicação aos biógrafos, mas não posso deixar de pensar que as experiências pessoais lhe afectam, desde o início, a decisão política. Ainda por cima, o povo, que lhe dera uma maioria absoluta, traiu-o, retirando-lha e obrigando-o a procurar compromissos.

De facto, o povo não entendeu que este tipo de pessoa necessita de uma maioria absoluta para poder governar, pois Sócrates não pode aceitar os limites impostos pelo compromisso. E esta falta de entendimento não resulta de um capricho, mas de uma irremediável fenda na estrutura psíquica.

Um povo quando escolhe deveria saber mais sobre o carácter dos candidatos!

 

10.11.10

A teia…

Na Loja do Cidadão: – «Se me tocas, mato-te, bandido!» (interlocutor invisível). - «É todos os dias a mesma coisa!» (coro de funcionários revoltados)

Na Praça em frente, dois moldavos sorriem gulosamente para uma carrinha de valores e parecem dizer: – «Logo, à noite, não nos escapas!» De facto, apenas esperavam uma loira emplumada…

Ao lado, na esplanada, uma «bica» alimenta horas de espera infrutífera… no país da (des)burocratização que consegue transformar salas de teatro em “lojas” de atendimento. Turistas pasmados fotografam a fachada do Éden e trocam olhares intrigados.

De manhã, ainda observo os movimentos e sinto os salpicos da chuva; ao fim da tarde, já ausente, oiço palavras marteladas, palavras dissidentes, palavras sectárias.

Fica-me, contudo, a ideia de que já não conto. A teia cobre-me o rosto como desce a noite. Sem avisar. 

 

 

7.11.10

O contraste…

Pouco crente, continuo, no entanto, a caminhar na expectativa de recuperar algum osso mais esboroado. Para que a caminhada se torne menos hipocondríaca, vou observando lugares e comportamentos um pouco ao acaso. E o contraste assalta-me: a Quinta da Vitória (ironia / antífrase?) continua igual a si própria – imutável – no concelho de Loures; do lado de lá da fronteira, o Laboratório Militar e o Instituto Geográfico do Exército desaguam num inesperado canavial, parcialmente ocupado por meia dúzia de barracas…

O bairro de lata, o bairro da Gebalis, ambos em terrenos socialistas, já deixaram de me preocupar. Ninguém quer saber da promiscuidade e da degradação que os infesta. E eu que posso fazer?

Todavia, as instalações militares lembram-me outras instalações militares espalhadas pelo país, de alto baixo, e não posso deixar de me interrogar sobre o preço da manutenção / abandono desse património. Muito eu gostaria de saber quanto é que o Estado gasta e /ou desperdiça anualmente só em espaços ocupados pelas gloriosas forças armadas! Isto não significa que o País não necessite de Forças Armadas. Significa que não há motivo para que elas sejam donas de uma parte do território. Significa que o Estado só deve dispor do território para funções nobres e não pode desperdiçar recursos, gerando contrastes intoleráveis…

 

4.11.10

A turbulência do verbo

«Entre a infância e a idade adulta há todo um espaço acidentado, possivelmente ainda mais acidentado do que a infância. É um estado interior, turbulento, agreste. As vinhas e as silvas parecem ter ficado para trás, só que agora são mais robustas e emaranhadas, ainda que menos visíveis do exterior. Estes anos de perigosa transição representam a ascensão às colinas do desconhecido. Às vezes, roubam-nos o ar, noutras perturbam a visão. Tenessee Williams, A Semelhança entre um estojo de violino e um caixão.

Na literatura, mais do que o enredo, o que desperta a minha atenção são as ideias. Quando as encontro, paro e viro-as do avesso à procura da sua consistência, da verdade ou da mentira que orientam a acção. Fico refém de atalhos, como, por exemplo, se as «vinhas e as silvas» significam alguma coisa para os jovens de hoje… E a resposta encontro-a naquela «cepa ateniense» totalmente desconhecida de uma das minhas turmas do 11º Ano… Ésquilo perde num ápice a origem e a substância, ameaçado de perdição, eliminado o acento esdrúxulo. Ésquilo, o tragediógrafo, vira esquilo…

Ao contrário da pergunta fácil do tempo da infância, há, agora, na transição, um crescente desinteresse pela novidade da palavra, um imperial desprezo pelo testemunho alheio, como se não houvesse nem passado nem futuro…

E é esse desprezo que se torna preocupante: ao recusar o verbo, não lhe entendendo a práxis, acaba por se silenciar a comunicação.

 

1.11.10

Santos e defuntos

 Dia de todos os santos! O calendário, por vezes, é um bom indicador do estado do mundo. Tantos são os santos que alguns ficam de fora da liturgia ou, em alternativa, vêem-se obrigados a coabitar num mesmo dia, o que lhes retira graça e glória. Por isso foi criado este dia da fraternidade beatífica, e colocado antes do dia de todos os defuntos, entenda-se dia de aqueles que, por esta ou aquela razão, não gozam da certeza da glória eterna… (Bem sei que esta ideia pode ser temerária!)

De qualquer modo, os santos continuam por aí na memória diária, os defuntos, esses, caídos no esquecimento, dão corpo a uma natureza pletórica.

Por mim, ao exemplo e à glória dos santos, prefiro o esplendor outonal dos defuntos. Já lá vai o tempo da emulação!

(Felizmente, acabo de compreender que definir objectivos individuais é prometer que me vou portar melhor: ajudar os meus colegas a suportar o desperdício da avaliação; ajudar alguns dos meus alunos a apostarem no trabalho, quando o detestam e abominam a escola da responsabilidade. Em suma, procurar a excelência à custa da humilhação do outro…) 

E, na verdade, esta emulação há muito que deixou de fazer qualquer sentido para mim. Há muito que o esplendor outonal tomou conta de mim.

 

30.10.10

Em tempo de caracóis…

O caracol floresce nos dias de chuva e o país anda para trás. De qualquer modo, os portugueses não se coíbem de passar estes três dias de inatividade injustificada longe de casa, mesmo que as viagens tenham custos acrescidos, resultantes de mais portagens e de mais acidentes. Por seu lado, os políticos ocupam o palco, em vaidades infantis e jogos suicidas.

 

 

27.10.10

No caminho (in)certo

Diz-nos Gonçalo M Tavares que «o tipo de texto leva-nos sempre a sítios diferentes». Infelizmente, o português parece ignorar este princípio, insistindo em «falar de si» como se nada mais existisse ou como se só existisse um único tipo de texto. A opinião salta, assertiva, desprezando o estudo e contornando os argumentos, em nome da soberba e da vaidade…

Se nos libertássemos da opinião e experimentássemos as regras dos caminhos, descobriríamos novos horizontes. Mas não. Preferimos hostilizar toda e qualquer regra, desde a contabilística à da cortesia… Desregrados, seguimos por encostas suicidas…

(Em absconso solilóquio, o ministro das finanças fala de objectivos que já não são nossos!)

 

25.10.10

Num Domingo outonal na Areia Branca

Na AREIA BRANCA, num Domingo outonal, de manhã, as nuvens parecem ameaçar, mas ninguém as vê. Estão ali suspensas, escorrendo do branco para o cinzento envergonhado e, ensimesmadas, resistem à tentação de cumprir o impulso primeiro. E eu subo e desço as pequenas encostas, reflectindo sobre a viabilidade económica dos múltiplos bares, cafés e esplanadas. Há sinais de novo riquismo, próprios do Verão, mas sem expressão humana nas restantes estações do ano. Investimentos públicos que reflectem a mentalidade dos seus promotores, mas que escondem a miséria bem visível, por exemplo, no parque de campismo. Um parque municipal, residencial, incapaz de acolher os forasteiros que desejem passar um ou vários dias nesta acolhedora praia, apesar de, também, a areia começar a falhar…

Sobra, todavia, a Pousada da Juventude!  

 

23.10.10

Dá vontade de desancar…

“Por vezes, em dia de balanço, acordamos cáusticos, com vontade de zancar nos fornecedores de serviços…”

Diz-me o Senhor Eleutério Silva que o vocábulo “zancar” não existe e, de facto, não vem registado nos Dicionários mais nobres. No entanto, se consultarmos o INFORMAL, lá vem o verbete, mas sem definição… Enfim, reminiscências de uma infância em que a violência do gesto cortava nas sílabas (e nas silvas?) a torto e a direito!

E hoje, há por aí muito boa gente a pedir que desanquemos nela. Esperemos que não seja necessário, porque, se isso acontecer, temo que o verbo “zancar” acabe, na pressa, por receber carta de alforria.

De qualquer modo, obrigado. 

 

17.10.10

Esquecimento

Muito do que sei (ou já soube?) devo-o a alguém. Por exemplo, o que, ainda, sei sobre Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, em parte, bebi-o na obra comprometida de Alfredo Augusto Margarido que me ensinou o caminho para essa fundadora CASA que, contrariando os objectivos do Estado Novo, nasceu no seio da Casa dos Estudantes do Império (CEI). Sem ela, a CEI, e sem ele, Alfredo Margarido, o CASA lusófona seria bem diferente. É, também, dele, Alfredo e da CEI que nos fala PEPETELA, na 1ª parte de GERAÇÃO DA UTOPIA, “A CASA”, um romance a (re)ler.

Ora, o Alfredo Augusto Margarido, morreu silenciosamente no dia 13 de Outubro, aos 82 anos. E esse silêncio faz-me pensar que até já os correligionários perderam a memória.

16.10.10

Na hora

Por vezes, em dia de balanço, acordamos cáusticos, com vontade de zancar nos fornecedores de serviços que nos prometem mundos e fundos para depois nos cobrarem o que, ingenuamente, acreditámos não dever. No caso, a Portugal Telecom que me prometeu uma migração simples (e livre de encargos) do sapo adsl para o sapo fibra, e que me fez perder paciência e horas, senão dias, de reclamações para que o serviço ficasse a funcionar em condições. Foi mesmo necessário solicitar o livro de reclamações para que a situação fosse encarada com alguma seriedade. Foram 8 dias sem telefone e 5 sem acesso à internet. E 100 euros pelo equipamento e instalação! E porquê?

Porque a PT é como um grupo de actores sem encenador. Cada um interpreta o texto de acordo com o seu estado de alma, estando-se nas tintas para o autor e, sobretudo, sem se preocupar em ‘dar a deixa’ àqueles com quem deveria contracenar. Actores esses que, no caso da PT, como, por exemplo, está a acontecer com a elaboração do OGE, representam em palcos simultâneos, mas distantes. Falta-lhes o encenador. O maestro.

Por isso a primeira causa da decadência é organizacional. A segunda é a inveja.

E é esta segunda causa que me leva à crónica de TV do DN “J de Judite, J de Justiça”, assinada por Nuno Azinheira, em tempos meu aluno. Gosto da clareza com que escreve e, sobretudo, da justeza do pensamento: «Reconhecer que há alguém mais competente, mais produtivo e melhor do que nós é uma coisa que nos incomoda. Está-nos sangue. E é por isso que continuamos assim. Tristes e amargurados. E incompetentes.»

O Nuno já não se lembrará, mas no tempo em que nos cruzámos, o professor de Português começava inevitavelmente a abordagem de OS LUSÍADAS pelo comentário do Prefácio de Garcia de Resende, inserto no Cancioneiro Geral. E lá estava a marca do «sangue» que impedia os portugueses de escreverem, na hora certa, a epopeia merecida: «Todos estes feitos e outros muitos doutras sustâncias nam sam devulgados como foram, se gente doutra naçam os fizera. E causa isto serem tam confiados de si, que não querem confessar que nenhuns feitos são maiores que os que cada um faz e faria, se nisso o metessem.»

Hoje, apesar da desorganização e da inveja, ainda vislumbro nas palavras do Nuno Azinheira um sinal de esperança.

 

15.10.10

Fibra a fibra

«O tempo é terrivelmente longo, fibra a fibra, e de repente – por onde se escoa ele?» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso

De tal modo se escoa o tempo, que, ultimamente, tenho evitado falar dele. Os sinais de quebra acentuam-se a cada passo e, paradoxalmente, a CRISE torna as horas absurdas e estupidifica as mentes em ânsias ensurdecedoras…

Falta o tempo e, ao mesmo tempo, cresce o desânimo. Há vidas que subitamente perdem sentido. Parece que regressamos aos tempos dos «vencidos da vida» …, ou da estagnação do «estado novo» …

A CRISE alastra punindo quem cumpre e /ou quem tem menos recursos, enquanto a economia paralela sobrevive impune. Não só o Governo não explica como é que delapida as receitas fiscais e os empréstimos sucessivos obtidos no exterior, como descura a fiscalização de uma multiplicidade de atividades que não pagam qualquer tipo de impostos.

O novo orçamento de estado reduz a pele e o osso o cidadão cumpridor. Ao lado, engordam os onzeneiros e os candongueiros…

 

 

9.10.10

Acumulação…

Há palavras que, de vez em quando, ganham vida, como ‘acumular’, ‘cúmulo’, ‘acumulação’… Consideradas a situação financeira, a taxa de desemprego, a estagnação económica e a carga fiscal que se abate sobre a maioria dos portugueses e, em particular, sobre a administração pública, o possível humor que o despertar destas palavras poderia desencadear já não faz qualquer sentido.

Sejamos sérios. Como é que alguém pode justificar as situações de acumulação de tarefas e de remunerações quando uma boa parte da população (qualificada ou não) se encontra inativa por falta de trabalho?

O argumento da falta de qualificações para o exercício de certos cargos é absurdo, sobretudo, quando sabemos que essa dificuldade pode ser ultrapassada com FORMAÇÃO, competente e dada por quem, de verdade, conheça as matérias em questão.

Num país em que os recursos são limitados, não há justificação para que uma minoria se aproprie de grande parte do orçamento, deixando à míngua centenas de milhares de portugueses. Há que proceder à redistribuição do trabalho, começando por eliminar a acumulação de funções em todos os sectores da vida nacional.

E também há que acabar com a acumulação de subvenções (e pensões) resultantes do exercício temporário, e muitas vezes simbólico, de cargos de nomeação política.   

O mal corta-se pela raiz!

O cúmulo surge, hoje, na primeira página de alguns jornais: O Governo prepara-se para recuar no corte da acumulação de remunerações e de pensões, a começar pelo presidente da República.

 

6.10.10

Só hoje…

Andava há dias na expectativa de chegar à ‘República’ revisitada pelo José Rodrigues Miguéis, n’A Escola do Paraíso. Cheguei atrasado por culpa da Portugal Telecom que, entretanto, me tem obrigado a desdobrar-me em diligências por causa de uma, aparente, simples migração da Sapo adsl para a Sapo fibra. Nada é, de facto, simples neste moribundo Portugal republicano, onde tudo é feito para emular a 1ª República.

Ontem, desconcertado quanto às celebrações do centenário, ainda visitei o Museu Bordalo Pinheiro, onde descobri um caricaturista digno de ser louvado: SILVA MONTEIRO. Este mostra-nos que, afinal, os ideais foram substituídos pelos interesses de grupos mais ou menos ávidos de se banquetearem à mesa do orçamento. Aqueles republicanos, à excepção de alguns ilustres suicidas, não enganavam ninguém! Ora, ontem, o que eu ouvi foi, sobretudo, a legitimação de actos que custaram a vida a muitos milhares de portugueses que se viram envolvidos em causas perdidas.

(E continuamos a correr atrás de desígnios que nem sequer conseguimos enunciar enquanto outros mamam à tripa forra. Coitados!)

Entretanto, dando a palavra a José Rodrigues Miguéis, um dos escritores que melhor conheceu e retratou a acção republicana, transcrevo um excerto da obra já mencionada:  

«O prédio embandeirou, mas só do lado esquerdo, numa espécie de hemiplegia republicana. Havia sempre um resto de serpentinas do Carnaval passado, e foi uma festa. Começavam-se a vender nas ruas bandeiras, alfinetes, postais e globos de vidro colorido com cenas e retratos dos homens do regime. Era uma Vida Nova que raiava. Dir-se-ia que estava tudo preparado para a celebração! Passavam bandos aos vivas, caminho da Baixa, da Rotunda, do Tejo, cantando a Portuguesa. Afluíam de todos os lados os heróis da última hora: as barricadas, até ali quase vazias, transbordavam agora de combatentes, eriçadas de armas que não tinham chegado a dar fogo. Tiravam-se grupos memoráveis, para depois se dizer “Eu também Lá estive!” A República estava de antemão solidamente implantada nas almas e nas ruas. Lisboa transfigurada!» 

 

5.10.10

Silva Monteiro N’Os Ridículos

 Urge passar por lá, pelo Museu Bordalo Pinheiro. N'Os Ridículos (1908-1926), podemos encontrar os 'actores principais' deste nosso tempo (1974-2010). Pena é que os caricaturistas não tenham dado continuidade às criaturas de Bordalo Pinheiro.

 

30.9.10

O Tempo das Palavras

«Não respiro o passado, quero lá saber do / que foi por já ter sido, ou do que fui», António Souto, O Tempo das Palavras

Os poetas são homens e mulheres virtuosos porque dizem sempre o que sentem, mesmo quando o enunciado parece aprisionar o leitor.

O Tempo das Palavras, rigorosas, castas e melódicas, esconde e revela um tempo de acção primordial na descoberta do amor e da escrita. E desse tempo, nas palavras ditas, eleva-se uma perda por assumir ou, em alternativa, a consciência de que a única superação é de ordem estética.

Descoberto o caminho, o poeta deve dizê-lo até ao fim…

PS: Peço perdão ao Armindo S. de, por enquanto, nada dizer das suas palavras.

 Uma questão de respeito

O credor é, por definição, aquele a quem se deve dinheiro ou algum valor. HOJE, a classe política (e todos os seus sequazes) deve respeito aos portugueses.

Se nos quisessem respeitar, os governantes teriam decoro no modo como abordam e procuram soluções para o problema nacional. Por exemplo, poderiam pôr-se de acordo no corte das despesas supérfluas. HOJE, no Parlamento, poderiam elencar tudo o que, de facto, é desnecessário para o funcionamento do Estado, a começar pelas múltiplas comemorações, por uma boa parte dos feriados nacionais; decidindo, por outro lado, a redução em 25% do número de ministros, secretários de estado, de assessores, deputados; mandando encerrar e vender 25% dos edifícios afetos ao chamado património do estado. Um património que só dá prejuízo!

E sobretudo deveriam acabar, de vez, com os negócios do estado. As obras, todas as obras, devem ser privadas. E a responsabilidade financeira deve ser totalmente dos privados. As parcerias público-privadas devem ser transferidas integralmente para o privado e, não havendo condições, os contratos devem ser, de imediato, cancelados. Por exemplo, a Parque Escolar deve ser dissolvida, porque, a prazo, vai tornar-se num negócio ruinoso para os portugueses…

Já não se trata de apurar quem é o culpado ou de quem se posiciona melhor para ganhar as próximas eleições, o que está em jogo é saber se os políticos ainda vão a tempo de querer respeitar os portugueses, ou se preferem que os portugueses lhes faltem ao respeito…

 

29.9.10

Credores externos e internos…

Parece impossível escapar às medidas draconianas anunciadas pelo Governo. No entanto, não acredito. De facto, os funcionários públicos não poderão evitar essas medidas. Mas, quanto aos restantes portugueses o que é que vai acontecer?

O Governo só pensa em cobrar, e isso parece fácil enquanto o país não estiver reduzido a pele e osso. O Governo teima em argumentar com a necessidade de cumprir os compromissos com os credores externos e esquece-se deliberadamente de apresentar contas aos credores internos.

Para satisfazer a gula externa, vamos sacrificar os trabalhadores cumpridores (e só estes!). Até quando?

Em nome da contabilidade nacional, todos os serviços deveriam suspender os projectos inconsequentes que, na maioria dos casos, são factores de desperdício de tempo e de energia.  Por exemplo, no caso da educação, o actual modelo de avaliação que visa, acima de tudo, condicionar a progressão dos funcionários deve ser suspenso, pois o congelamento das progressões torna-o o obsoleto. Tomada a medida e, por arrasto, a primeira estrutura a desabar deveria ser o Conselho Científico responsável pela Avaliação…

 

26.9.10

Entre o viva e o abaixo

Lá arranjei tempo para visitar a exposição “VIVA A REPÚBLICA…” Entrei expectante e saí frustrado, ao contrário da maioria dos visitantes com quem já tivera oportunidade de abordar o assunto… E porquê? Porque a exposição deixou-me a sensação de que os políticos do 1º quartel do século XX gastaram mais tempo a destruir do que a construir; gastaram mais tempo em lutas fratricidas do que a incrementar o ideário republicano.

Deixou-me ainda outra sensação desagradável: a de que preferimos as soluções musculadas.

 

25.9.10

Cadinho português

Ao ouvir o modo como os governantes falam do presente e do futuro do país, lembrei-me que, ao contrário de outros estadistas, eles nunca falam do passado mais ou menos remoto. Do passado recente ainda se servem para uns soezes ajustes de contas. Mas, de verdade, não revelam qualquer conhecimento da História… E não se trata apenas dos governantes, também os deputados da nação não vão além de estereotipadas referências ao diabólico Estado Novo!

Os atletas campeões, nas diversas modalidades desportivas, ficam mal no pódio se não conseguem cantar o hino nacional e, no entanto, ninguém exige a quem nos governa que saiba um pouco de História. Se os governantes, antes de tomar posse, fossem obrigados a prestar provas, por exemplo, sobre as causas da decadência nacional no séc. XVI ou sobre os efeitos da fuga da família real para o Brasil,  ou, ainda, sobre as razões do crescimento do partido republicano na segunda metade do século XIX, ou sobre o sucesso de um beato e obscuro ministro das finanças a partir de 1926, seguramente, não nos encontraríamos no actual estado de falência das instituições e de degradação moral…

Quem ignora a História tende a meter a cabeça na areia, deslumbrando-se com o fogo-fátuo dos gadgets e da vaidade pessoal. A propagandeada aposta num Portugal tecnológico não difere em nada da crença num ‘império português’ ou num ‘império da língua portuguesa’. Nestes comportamentos há, em comum, uma ideia de desmedida que esconde a falta de preparação (de conhecimento das causas da nossa atávica decadência) e de sentido de responsabilidade para o exercício de cargos políticos.

É, hoje, claro que os Costas e os Buíças do regicídio não eram franco-atiradores dementes. Eram homens com fervor patriótico, longamente preparados para a imolação. Se dúvidas houver, basta ler os discursos políticos de Afonso Costa…

 

23.9.10

Clivagem

Uma das causas da pobreza mental resulta da incapacidade de divulgar e de aplicar as soluções que diariamente despontam. A outra, talvez mais profunda, tem origem no deslumbramento individualista.  A abordagem das questões raramente coloca em primeiro lugar a coletividade, por isso a pobreza alastra, exposta ou escondida, enquanto da riqueza, apenas, sobram as migalhas…

Nos dias que correm, tornou-se uma rotina adiar, tornear os problemas. Em vez de procurar estratégias que permitam superar as dificuldades, preferimos convocar a (des)mobilização…

 

18.9.10

Se não fosse o Sol

Se não fosse o Sol, esta cidade, que cresceu e vive ao sabor do expediente, seria tão triste que ninguém a procuraria. Graças a esta luz de fim de Verão, as máquinas fotográficas podem captar instantâneos de cenas exóticas e animadas, enquanto nos umbrais das portas, a vida estiola…

Consciente deste nosso trágico destino – só o Sol nos faz brilhar! – Pina Manique, verdadeiro senhor do Intendente, impunha o recolher obrigatório logo que o astro rei se esfumava. Talvez seja com a mesma intenção que António Costa terá decidido mudar-se para o Largo do Intendente…

 

17.9.10

Poceiros

Num tempo em que decidir é uma constante da vida actual não se entende como é que os ‘decisores’ avançam e recuam com tanta facilidade em questões que, no mínimo, aumentam a angústia dos cidadãos e arruínam o futuro da coletividade.

Nos locais de trabalho, nos transportes, nas ruas, domina um sentimento de insegurança que pouco tem a ver com o aumento da criminalidade ou com o efeito de qualquer cataclismo mais ou menos previsível. A insegurança é manipulada em função de objectivos ocultos nacionais e transnacionais e transmitida despudoradamente pelos média.

O cidadão é chantageado por mentes torpes e ignaras que há muito deixaram de se preocupar com o bem público. E essas mentes delinquentes sobrevivem impunemente, pois são elas que decidem as regras do jogo. Um jogo soez em que as vítimas são incapazes de se defender ou de encontrar quem as defenda. Tudo isto quando vivemos a ilusão de que nunca desfrutámos de tanto poder!

 

15.9.10

Quem anda à chuva

Agora, que estamos, de regresso à escola, bom seria se (re)lêssemos a Arte de Argumentar, de Anthony Weston. Muitas das discussões que se avizinham talvez pudessem ser evitadas, pelo menos, as questões seriam abordadas de forma mais serena, fundamentada e consistente. E, por outro lado, os alunos poderiam aprender a argumentar, distinguindo os argumentos, das premissas e dos exemplos.

Lembrei-me desta obra, no preciso momento, em que me enviaram o despacho nº 14420/2010, de 15 de Setembro de 2010. Já estou a antecipar os múltiplos pontos de vista a que terei de dar atenção, quando, de facto, penso que quanto maior é o número de avaliadores num serviço, maior é a dificuldade em aplicar, de forma uniforme, o procedimento avaliativo, mesmo que os itens sejam claros e aceites por todos.

Aqui está uma conclusão que pede argumentos que a validem. E isso dá trabalho!

(De verdade, é possível andar à chuva sem nos molharmos! Ou não?)

 

 

 

 

12.9.10

Antes do anoitecer

Antes do anoitecer, já a cidade dá sinais de que o dia seguinte será de labuta furtiva. Uma Lisboa encardida cresce tentacularmente nas ruas e vielas, escondendo a pobreza dos indígenas e dos estrangeiros que, solidários na miséria, caminham lado a lado, na expectativa de que o sol, um dia, possa brilhar para todos.

 

11.9.10

Dissimetrias

Se as cidades se deixam cercar por ilhotas de betão, onde se escondem múltiplas atividades mais ou menos clandestinas, embora os terrenos sejam cedidos pelas câmaras municipais, quando viajo para o interior do país tudo muda. Nos últimos anos, os olivais, copiosos, nascem que nem cogumelos, sem que se perceba de onde saiu o capital para o investimento nem para onde migram as mais-valias resultantes do negócio. Por outro lado, os campos, desertos, estendem-se secos e cobertos de mato… A dissimetria do território reproduz a dissimetria mental de quem nos governa… A pobreza expõe-se bem visível; a riqueza exuberante exibe-se, rosto bem dissimulado… 

 

10.9.10

A arte de se esconder

Nos últimas semanas, percorri parte dos concelhos de Oeiras e de Sintra, ficando com a ideia de que o território está a ser vítima de um verdadeiro assalto. Ali se encontram escondidas centenas de empresas, muitas delas, quase, clandestinas. Descobrir-lhes o lugar e os contactos é uma verdadeira aventura. Fica-se com a sensação de que não querem ser encontradas. As urbanizações que as encobrem são verdadeiros labirintos, onde ninguém conhece ninguém. Durante o dia, não há sinal de qualquer policiamento.

O trânsito, designadamente de veículos pesados, é caótico, sinal de uma verdadeira azáfama que, no entanto, não parece controlada por qualquer autoridade. Interessante seria se alguém prestasse contas do contributo que estes ‘nichos’ trazem à economia nacional.   

 

 

 

 

6.9.10

A antecipação

Alunos há que se apresentaram hoje na escola, bem-humorados e com promessas de trabalho esforçado e honesto. Asseguram até que já têm com eles os novos manuais. Esperemos que não seja fogo-fátuo!

 

5.9.10

Ao fim da tarde

Com a dose de sardinha a 13 €, sobram os reflexos do aço e da luz. Infelizmente, a água mostra-se demasiado viscosa. E nem vale a pena referir o ruído contínuo do tabuleiro da ponte e dos aviões que o sobrevoam.

 

4.9.10

Facetas de Belmonte

O rio Zêzere (o vale; o museu); a terra dos cabrais ( panteão; museu das descobertas); o castelo (as fronteiras); o museu judaico e a sinagoga; Zeca Afonso (aqui fez os estudos primários, aqui descobriu a toada da poesia popular); a fruticultura ( o museu do azeite)…

 

2.9.10

YUKIO MISHIMA no Teatro da Comuna

Hanjo estreia hoje. Paulo Lage encena, de forma sóbria, mas excessivamente robotizada, esta peça, escrita em 1956, sobre o comportamento humano. Sobre a loucura e o egoísmo. Sobre quem tudo espera e sobre quem nada espera (Suzana Borges / Joana Metrass). No final, será o homem a perder tudo (Elmano Sancho). A recompensa acaba por sobrar para quem diz que nada espera, mas tudo vai manipulando…

PS: Em noite de calor, não se esqueça de levar um leque.

 

 

 

 

 

1.9.10

Na Quinta de Santa Iria

Há, de facto, galináceos e coelhos. Os últimos são tão imprevistos e rápidos que o fotógrafo não tem tempo de “sacar” da máquina fotográfica. E os primeiros, apesar de os poder visualizar em miniatura, quando tento carregar a respectiva imagem, verifico que o resultado é bem diverso. Milagres da tecnologia!

 

30.8.1

Em Belmonte

É obrigatório visitar O MUSEU DAS DESCOBERTAS.

 

29.8.10

As Intermitências da Morte

De forma intermitente, lá consegui ler a obra até à última linha.  Vem classificada como romance, o que me parece abusivo, a não ser que, neste século XXI, tudo caiba neste “saco” …  Há muito que penso que José Saramago é, sobretudo, um ensaísta que gosta de pôr à prova a genologia. Saramago explora com enorme rigor os limites dos nossos conceitos, relativizando-os ao ponto de “as aberturas” serem, regra geral, inverosímeis. E neste caso, o mesmo acontece com o desfecho. Invertendo os desejos, é a morte quem suspende a rotina do dia seguinte, e não o violoncelista… o autor que, através da figura da suspensão, experimenta, como Penélope, prolongar a vida.

Claro está que a consciência da irremediável finitude convida à paródia e ao ajuste de contas e, n’As Intermitências da Morte, as instituições são as principais vítimas de um discurso soberbo capaz de desossar a própria língua.

PS: No lugar onde me encontro, a internet também se encontra suspensa, não sei se por decisão da morte (das tecnologias) se por distração dos nossos ilustres governantes… 

 

25.8.10

A multiplicação na Esc. Secundária de Camões

E as abóboras enraizaram e crescem no parque de estacionamento da Escola Sec. de Camões, Lisboa, sob o atento olhar da árvore do centenário do edifício e da República - a tília. Entre os frutos ilustres, passámos a contar com singelas abóboras. E para o efeito, para além da semente, do sol e da água, convém não esquecer o denodado jardineiro.

Afinal, o que o país e a escola necessitam é de sementes e de bons jardineiros!

 

24.8.10

Afinal, de que Anjo falamos?

"Je voudrais clarifier ce que je comprends sous le mot ange. Depuis que l’homme a acquis un certain degré de conscience il a connu cet être spirituel sous différents noms :

au Japon, c’est Kami,

dans l’hindouisme, Deva ,

dans l’ancien Iran, Daena ou Fravarti,

dans la Grèce antique, Genios,

et Socrate parlait de son Daimon,

la tradition hébraïque le nomme Malach,

la chrétienne Angelos ou Ange,

et un journaliste jungien m’a récemment demandé si ce n’était pas la projection de mon inconscient…
Toutes ces dénominations n’ont aucune importance.
Ce qui est capital est ceci :
Comment cet être spirituel agit-il en moi ?
S’il m’aide à devenir plus conscient de moi-même et de ma tâche sur terre,
à trouver mon  indépendance, même face à lui,
à me sentir non seulement créature, mais aussi créateur,
à me délivrer de mon attachement au passé, mais aussi de ma peur du futur, et à vivre intensément l’instant présent ;
à être responsable de moi-même autant que de l’univers entier ;
alors c’est une force de l’amour divin,
c’est mon pareil de lumière
et moi je suis son pareil plus dense sur terre."

Le saut dans l'Inconnu, Edit. Aubier

Gitta Mallasz

 

 

23.8.10

Um diálogo perturbador

Em 1991, Gitta Mallasz publicou «petits dialogues d’hier et d’aujourd’hui. No essencial, a autora húngara pretende, de forma rigorosa e clara, explicar a experiência espiritual vivida por quatro jovens, 1943-1944, em Budaliget, na Hungria, e que deu origem aos «DIÁLOGOS COM O ANJO». E, sobretudo, pretende dizer-nos que o futuro do homem depende do diálogo que cada um de nós consegue estabelecer com o ANJO.

Em termos pedagógicos, o futuro exige esse diálogo interior que pressupõe: a) um ensino individual; b) um ensino pelo «vivido»; c) um ensino natural; d) um ensino pelo despertar; e) um ensino pela pureza do verbo.

Importante será perceber que o ANJO vive em cada um de nós… e não em qualquer território mais ou menos distante…

 

22.8.10

A escolha

Há uma linha que foge ao mesmo tempo que sinto a necessidade de me aproximar cada vez mais das pequenas coisas, de me não perder em sombras espúrias. A cada momento, escolho entre a folha caída e o botão que desabrocha. Para a linha que foge, a minha escolha pouco importa, mas para mim não escolher é o NADA…

 

21.8.10

Reações desabridas

Venho procurando não falar de comportamentos de quem quer que seja. Afinal, quem sou eu para ajuizar os actos alheios! Numa sociedade que diariamente impõe e destrói (novos) valores, faz pouco sentido querer fundamentar as escolhas feitas por cada um de nós. No entanto, não resisto a abordar sumariamente uma situação recorrente.

Os automobilistas que, pelas mais variadas razões, decidem dirigir-se, por exemplo, de Lisboa para a Praia Grande, Sintra, deparam-se com percursos estreitos, sinuosos e perigosos, quer a partir da Malveira da Serra quer a partir de Sintra. E sabemos que no Verão e aos fins-de-semana, o número de carros que circula nessas estradas aumenta exponencialmente! Frequentemente, os automobilistas vêem-se impedidos de circular a maior velocidade porque um recém-encartado ou um condutor mais receoso conduz ‘pastosamente’… E como é que reagem?

Ontem, fui testemunha de uma ultrapassagem desesperada em que o condutor de um jipe, concluída a manobra, imobilizou deliberadamente, por duas vezes, o veículo a não mais de três metros de modo a testar os reflexos ( e provocar um acidente) do condutor que, cautelosamente, conduzia nas curvas de Colares… Hoje, numa situação parecida, tive de ouvir palavras desabridas de quem não respeita minimamente o seu semelhante…

Não é certamente agradável ficar preso numa fila de veículos em marcha lenta, mas o que é que justifica os insultos e as provocações dirigidos a quem ainda não interiorizou muitos dos automatismos necessários a uma condução segura?

 

18.8.10

Ler o quê e quando?

No meu caso, é grave que só agora tenha lido O Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad (Józef Teodor Konrad Korzeniowski (1857-1924). Sempre soube que muitos escritores conseguem a atenção dos leitores mesmo que as suas obras não evidenciem um conhecimento experimentado da realidade descrita. Muitas dessa obras tornaram-se manifestos de ideologias colonialistas e anticolonialistas e, em torno delas, foram tomadas muitas decisões com efeitos perniciosos…

Ao ler O Coração das Trevas, entendi que, antes de ler muitos outros autores que se debruçaram sobre a colonização de África nos séculos XIX e XX, deveria ter lido a obra de Joseph Conrad. Se o tivesse feito teria poupado tempo e teria encontrado uma síntese do comportamento previsível do colonizador. Marlow e, sobretudo, Kurtz representam a abordagem interna de quem avança no território do outro de modo a submetê-lo pela palavra – A VOZ; A Companhia (e seus Administradores) representa a abordagem externa de quem, pela força das armas, vai tomando a pulso o território e eliminando o outro (o inimigo). Se no último caso, tudo se resolve pela eliminação, no primeiro, a VOZ tudo explica até a alienação do outro, em seu claríssimo prejuízo…

E assim se justifica que Kurtz tenha descoberto, no fundo da sua consciência, o HORROR. Quanto à Companhia, nada é preciso dizer, pois ela no lugar da consciência colocou, desde o início, o MARFIM… a pimenta, o açúcar, o ouro, o petróleo, o ópio!

E se, no meu caso, foi insensato pretender ensinar alguma coisa a alguém sobre ‘literaturas africanas’ sem ter lido O Coração das Trevas, o que pensar sobre todos aqueles que tomaram decisões ao longo do séc. XX sobre o futuro de África?

Hoje, interrogo-me cada vez mais se há princípios capazes de justificar as opções de leitura.

 

15.8.10

O MEC e a praga circulante

O ódio não devia ser uma delícia da velhice! Esta devia tornar-nos mais sensatos, menos elitistas…

Miguel Esteves Cardoso odeia as autocaravanas porque tem pressa, porque gosta de caminhos secretos e, sobretudo, porque outrora escorregou na baba de algum mísero caracol. Claro está que o MEC não utiliza o termo português, prefere o «escargot» francês para destilar a sua raiva contra os internautas franceses que conjuram contra a placidez da Serra de Sintra e, particularmente, contra a esperteza do cronista que bem confessa que não tem razão.

O MEC sabe certamente que muitos destes caravanistas são vítimas da incúria portuguesa que se esquece de assinalar a estreiteza das vias e de lhes proporcionar áreas onde possam aparcar. Por outro lado, é verdade que um dos equipamentos de uma autocaravana é um frigorífico, mas que dificilmente pode guardar o peixe necessário para um mês… De facto, um caravanista não frequenta restaurantes de luxo; compra o peixe na praça ou no supermercado e grelha-o ele próprio, prescindindo de ‘criados’…

Os caravanistas não são somíticos e, ao contrário do que o MEC imagina pois nunca entra, por exemplo, em parques de campismo – campings – estes deixam muito dinheiro em Portugal… Basta visitar os parques de campismo na época baixa.

PS: Não é habitual responder a este tipo de micro-crónicas, mas o snobismo do seu autor devia ser taxado!

12.8.10

Na morte de Ruy Duarte de Carvalho

(Santarém, 1941- Swakopmund, Namíbia, 2010)

Como agradecimento pela capacidade de escutar o outro, aqui colo algumas das minhas notas sobre as leituras que fui fazendo da obra deste ilustre contemporâneo (e, de certo modo, conterrâneo).

Infância em Moçâmedes. Foi regente agrícola. Vive e ensina[1] – professor de antropologia numa escola de arquitetura da Universidade de Luanda; e também de Coimbra. Antes de ser antropólogo, trabalhou como engenheiro técnico agrário. É cidadão angolano, embora tenha nascido em Portugal. Angola é o seu "lugar no mundo". " Sou angolano, vivo em Angola, sem família, sem etnia, sem enquadramento institucional que preencha todas as necessidades políticas e de cidadania e, sobretudo, sem ambição pessoal que se enquadre no quadro das ambições possíveis em Angola."[2] Após a independência de Angola, viveu em Londres, fez um curso de televisão e cinema, e realizou filmes em 16 mm que os Cahiers de Cinema elogiaram. As rodagens levam-no à antropologia (doutorando-se na parisiense École des Hautes Études en Sciences Sociales.

Obra: Chão de Oferta (1972); A Decisão da Idade (1976); Exercícios de Crueldade (1978); Sinais misteriosos... já se vê (1979); Ondula Savana Branca (1982); Hábito da terra (1988); Como se o mundo não tivesse leste (1992); Ordem de Esquecimento (1998); Aviso à Navegação; Vou lá Visitar Pastores[3] (Cotovia, 1999); Observação Directa (2000); Atas da Maiaga (2003); As Paisagens Propícias (Cotovia, 2005)[4]; Desmedida (Cotovia, 2007)[5]


[1] - Aos 59 anos de idade.

[2] Opções / definições: Sobre o início da guerra, há 40 anos: "tinha 19 anos. Foi talvez o dia em que estive mais perto da morte. Estava no Quitexe e tinha começado a trabalhar como regente agrícola numa grande fazenda. Não morri porque cheguei três minutos tarde de mais ao posto administrativo onde fora buscar o correio. Foi uma situação tão extrema, que os horrores que se lhe seguiram não me deixaram dúvidas sobre o lado em que passaria a colocar-me daí para a frente. Por isso é que digo ser angolano por condição e não opção. (...) Estava do lado da razão de Angola." Sobre a literatura: "Em relação à produção literária, o que me interessa na escrita são os seus elementos detonativos. E a poesia militante é, quase sempre, conotativa e, muitas vezes (o que sempre a diminui!), demonstrativa. Mas pode de facto acontecer que através dela se produza, por diversas razões, conjunturais e não só, um tal grau de exaltação no leitor que lhe assegure o efeito de "revelação" sobre a "causa" que o poeta, independentemente da qualidade do poema, quis cantar e apoiar. Foi o que aconteceu comigo. Sobre o comprometimento da literatura: Sobre se a Angola independente e soberana nunca lhe causou "arrepios" que o levassem a pegar na pena, denotativa ou demonstrativamente, Ruy Duarte de Carvalho responde: Antes do "Vou lá Visitar Pastores", cujo terreno seria "a priori" o da escrita demonstrativa, mas onde, por um artifício literário, introduzi elementos de escrita criativa, eu já tinha escrito o " Aviso à navegação", dirigido a interventores, a políticos, a ONG, etc. ... Foi a minha resposta cívica, se quiser, feita em termos demonstrativos, sobre os mesmos kuvale (ou mucubais, como toda a gente lhes chama) e sobre as sociedades angolanas de economia doméstica em geral, para que técnicos e executores políticos pudessem servir-se do livro como instrumento de consulta. Está implícita em todo o livro a crítica ao poder, às práticas mais reprováveis dos poderes. Sobre o boi kuvale: " A raça dos bois kuvale corresponde a uma matriz dos bovinos de toda a África. São os sanga, descendentes em linha directa dos "Bos primogenitus", que dá o "Bos taurus" (bois sem bossa) e o "Bos indicus" (com bossa).

[3] - Sobre Angola (1999): "Estou a chamar a atenção para uma Angola que as pessoas não sabem que existe porque a actualidade de Angola é de tal forma confrangedora que as pessoas só se detêm nos aspectos catastróficos. A Angola de hoje é uma coisa geograficamente de tal forma insularizada e de difícil circulação que as pessoas acabam por se ocupar só de Luanda. Esquecem-se que Angola é vasta e tem Angolanos... lá no fim...! que por razões culturais, como é o caso dos Kuvale, ou por razões de actualidade político-militar, vivem em situações de grande isolamento, que reabilitaram sistemas de produção, de circulação económica que até implicam dispositivos de troca... (...) São estes processos que me interessam. À medida que o mundo cumpre a globalização, de que vocês tanto falam, há processos de insularização em curso, que desligam as pessoas, mas ao mesmo tempo lhes garantem a sobrevivência. E são tão angolanos como os outros! E raramente são tidos em conta: quer pelos poderes nacionais quer pela chamada assistência humanitária, que normalmente não atende à especificidade das populações e, a coberto de uma acção que pressupõe um resultado positivo, introduz formas que se revelam negativas para as populações. Tudo isto acontece, tudo isto é referido aqui. Sobre o "mundo Kuvale": Toda a gente come, a redistribuição é um facto, há gente mais rica e gente mais pobre, mas do comportamento dos ricos consta a componente intrínseca de distribuir a sua riqueza. Entre estes pastores, há famílias que detêm milhares de cabeças de gado; há outras que detêm dezenas ou unidades. Mas, de uma maneira geral, todos acabam por comer da mesma maneira. Por todo o mundo os ricos ostentam a sua riqueza, não há acumulação que não vise exibir-se... No caso destas populações, a exibição da riqueza passa pela redistribuição, um homem é mais prestigiado quando alimenta mais gente, quando da riqueza pode extrair vantagem e destaque social através da sua capacidade de dar, não de acumular. Todos os anos os homens ricos matam pelo menos dois, três bois, que partilham com toda a vizinhança. Essa é a diferença fundamental! Enquanto os homens ricos de Luanda acumulam automóveis nos quintais, os homens ricos pastores que eu trato acumulam bois de que depois fazem beneficiar as pessoas que estão à volta.

Eu posso ter de sair de Angola, no dia em que sair fechei o escritório, não falarei mais de Angola. Angola não é uma coisa que a História destinou à extinção e de que nós sabemos tudo porque extraímos uma leitura. Não! Angola vive, pulsa, é maior do que as situações que lhe assistem. Era maior do que a condição colonial que lhe estava imposta, hoje é maior do que a situação de catástrofe que vive.

Dados biográficos: Conheço esta sociedade desde criança. O meu pai era português, de perto de Lisboa, foi para Angola com 30 anos. Eu ia com ele para o mato, caçar, foi aí que eu apanhei o vício do mato. Ainda ando a dormir nas pedras. Este é o livro que escrevi para me explicar a mim mesmo. Tinha 19 anos quando rebentou a revolta contra o poder colonial, vi de tudo, fui bombardeado, lutei pela independência e pela autonomia. Desde então que sei perfeitamente de que lado estou – do lado de Angola como país que ainda não desistiu.

Sobre a adopção de um estilo literário no discurso antropológico: “É verdade que a adopção de um estilo literário, ficcional, no discurso antropológico não é novidade. Já não o era quando Geertz e seus seguidores mais radicais, em Writing Cultures, assumiram a etnografia como uma forma de escrita e os antropólogos como um tipo de autores: Lévi Strauss nos seus "Tristes Trópicos", Michel Leiris e Georges Balandier nas suas "Áfricas" (para o primeiro "uma Afrique Fantôme", para o segundo uma "Afrique Ambigue") já o haviam feito, tentando escapar aos constrangimentos que o figurino de uma ciência moderna impunha à tradução difícil das realidades culturais (...) Mas, em "Vou lá Visitar Pastores", Ruy Duarte de Carvalho transcende tudo isto e todos eles: turistas, viajantes, ficcionistas e etnógrafos de caderno de campo em punho e diário no bolso. Ele consegue, aqui, o milagre de uma "antropologia doce". Uma antropologia que, sem qualquer ingenuidade, se reconhece e transcende recuperando formas discursivas que estiveram, afinal, na sua origem, para se impor em novo formato. O verdadeiro milagre reside na capacidade de imposição de um olhar antropológico (sub-repticiamente exclusivista, diga-se), sem fazer recurso evidente aos elaborados alicerces de uma ciência clássica - que apesar de tudo, está lá nos bastidores (nas entrelinhas, nas referências múltiplas e cruzadas, nas perspectivas poliédricas, no glossário, no post scriptum) - mas antes ressuscitando a sua vocação original mais universalista e humanista (...)

Testemunhos / Leituras: Nas palavras de José Eduardo Agualusa: “Vou lá Visitar Pastores" está organizado como se fosse uma conversa entre o narrador, Ruy Duarte, e um jornalista angolano do qual não se refere o nome (é Filipe Correia de Sá, ele próprio escritor, há anos a trabalhar nos serviços portugueses da BBC, em Londres), que combinou encontrar-se com o amigo para visitar o deserto. Filipe Correia de Sá não comparece ao encontro e Ruy Duarte deixa-lhe uma série de cassetes... – curioso artifício literário / de um discurso antropológico... " Vou Lá Visitar Pastores" – exploração epistolar de um percurso angolano em território Kuvale (1992-1997) Luís Carlos Patraquim: Observação Directa estabelece uma relação tanto com a obra "Vou lá visitar pastores" como com a obra anterior "Habito da Terra". Aqui, autor, tradutor, língua, recriam-se em jogo onde o legado da tradição oral se institui como instância decisiva, única e primeira razão produtora de sentidos, alavanca para a instauração de um ser-outro "no Texto, lugar de encontro"...Tudo neste livro se conjuga, confundindo-o: a mera notação de viandante ou de antropólogo viandante, o provérbio que se retraduz em derivação, a enumeração de pontos / temas de observação, a estruturação no sentido da complexidade que quer conotar territórios poéticos ainda em gestação, o registo de um retraduzido lirismo pastoril, hínico, salmódico, ritualístico, sincopado, a fragmentação quase como pose de olhar, uma encenação charadística, labiríntica, mas também plana que só os pastores, os que cantam a beleza da vaca e do carneiro e a pele da chana, lograrão saber.

[4] - Em entrevista, a propósito de Paisagens Propícias, Ruy Duarte de Carvalho defende uma tese que sempre me foi cara:» Poucos retêm que o último embate da guerra fria ( a batalha do Cuíto Canavale) foi em Angola, e que esta tem sido campo de batalha de muitas guerras que não têm a ver connosco: Afeganistão, independência da Namíbia, reflexo da luta armada no fim do apartheid na África do Sul…»

[5] - O livro narra uma viagem física e literária pelo rio S. Francisco (ver referências brasileiras: Guimarães Rosa e Euclides da Cunha). Resulta de uma estadia de alguns meses no Brasil com intervalo para o autor regressar a Angola e voltar a cruzar o Atlântico.

 

10.8.10

Fernando Namora

«Enfim: acabamos por ser o que resta do que somos, mas também, e às vezes sobretudo, aquilo que os outros veem em nós.» (Fernando Namora: autobiografia sem biografia, in JL)

«Depois da Instrução Primária, o Colégio Camões em Coimbra. Em As Sete Partidas do Mundo conto como foi. (…) Depois, ainda, dois anos de liceu em Lisboa, um liceu também chamado Camões (1932/1933; 1933/1934). Com duas parentes solteironas, morava num casarão do Paço do Lumiar. (…) Escondia (delas) também o jornal do liceu, todo ele escrito e ilustrado por mim (exemplar único, como se poderá calcular), distribuído aos colegas num certo dia da semana, Jorge de Sena era um deles. Não quero lembrar-me desse tempo, salvo de outro grande amigo meu companheiro de turma, um altarrão de músculos sólidos, que se fez meu protetor. Minha mãe apercebeu-se de que as coisas não corriam bem. Regressaria, pois a Coimbra, dessa vez para uma pensão de estudantes.»

(Fernando Gonçalves Namora - 15.04.1919-31.01.1989)

O que é que os outros – os de hoje – veem em Fernando Namora? E os do passado, por que motivo o silenciam?

 

8.8.10

Para trás

A ameaça de trovoada acompanhou-me no regresso temporário a casa. Nos próximos dias, vou tentar (des)arrumar alguns papéis. Há muito que sonho com uma queimada! O fogo que me alaga o corpo bem podia libertar-me do ‘lixo’ acumulado ao longo dos anos.

Face à brevidade da vida, não faz qualquer sentido este amontoar de “bens”, este sentimento de posse.

 

7.8.10

Em Burgau

Ir de Valverde a Burgau, em transporte público é uma aventura. Os horários afixados nas paragens não servem de nada, embora possam ser considerados como sinais de esperança! Atravessar a vila da Luz revelou-se quase tão difícil como dobrar o Cabo das Tormentas. Na sequência de uma primeira avaria envolvendo um autocarro ONDA, deu-se um segundo acidente envolvendo outro autocarro ONDA; e eu, que viajava num terceiro autocarro ONDA fiquei retido num cotovelo de estrada que há muito deveria ter sido desfeito se houvesse algum planeamento no concelho de LAGOS, à espera que a polícia apeada surgisse para pôr um pouco de ordem no drama.

Estancado o trânsito, tiradas as medidas aos veículos envolvidos, o segundo ONDA pôs-se em marcha, deixando a condutora do outro veiculo sinistrado a contas com a autoridade, pois a vista da senhora há muito que deixara de ser capaz de traçar uma perpendicular… Quanto ao terceiro ONDA acabou por seguir viagem, ignorando os passageiros que estariam na paragem da Igreja a contas com o primeiro ONDA avariado… Enfim, lá cheguei a BURGAU, onde o mar é quem manda e a maioria dos restaurantes só abre às 18 horas. Vá lá saber-se porquê!

Como o meu almoço não interessa a ninguém, pois só me dá duplo prejuízo, refiro, no entanto que, no restaurante BARRACA, servem benzinho e são simpáticos. O pior foi o regresso, depois de uma hora na paragem, acabei por entrar num quarto ONDA que para me trazer a Valverde, me levou à Praia da Luz, me fez regressar a Burgau, e de novo à Praia da Luz, para, finalmente, me deixar no lugar de destino…

Um belo exemplo de economia planificada…

 

6.8.10

Acerto de contas

(Para quem quer caminhar de Valverde até à Praia da Luz, onde é que fica o passeio? Não vale a pena afirmar que o turismo é uma riqueza para a economia nacional quando as acessibilidades são descuradas!)

Hoje, porém, abandono o meu lado negro para me referir a Teixeira de Pascoaes. Mário Cesariny publicou, em 1998, um pequeno livro, intitulado AFORISMOS, recolhidos em parte da obra de Teixeira de Pascoaes.

Da leitura que venho repetindo, gostaria de referir alguns tópicos que me parece merecerem aprofundamento: a) um certo desprezo pela ‘literatura’ – «a literatura (…) um produto industrial»; b) o elogio da raça dos poetas, em contraste com a condenação dos políticos – «cá em baixo, a acção criminosa dos políticos»; c) a superioridade dos valores populares –«Devemos substituir Os Lusíadas, esse Livro de Linhagens, pelos Autos populares de Gil Vicente»; d) o retrato de Camões, homem triste, sofredor e intérprete da morte – «Camões é um abismo de tristeza»; e) o fascínio pela transgressão – «A corrupção forma as novas ideias» / «O bom senso tem quatro patas» / «O pecado é mais fecundo do que a virtude»; a dúvida sobre a essência Deus – «A morte é a pessoa feminina de Deus».

Desta leitura, forçada pelo espírito rebelde de Mário Cesariny, fica-me a ideia de um Teixeira de Pascoaes crítico da Geração de 70 e defensor de uma nova ideia de educação. Uma ideia que acabou por morrer na sarça ardente da primeira república.

 

5.8.10

A pretexto

O Algarve é pequeno e diverso. Cheguei a Valverde, parque da Orbitur, que, depois de eu ter entrado, me enviou um e-mail a dizer que, nesta época do ano, não fazem reservas. Simpáticos! O parque está cheio de franceses, de italianos e de espanhóis, isto sem falar nos ingleses que, na zona, são senhores.

Ao fim da tarde, viajei até à Praia da luz, tendo tido a oportunidade de descobrir que os condutores dos autocarros lidam melhor com as libras do que com os euros. Praia a esvaziar e um vento frio a fazer-se sentir. Inesperadamente, acabei a visitar as ruínas romanas que, oficialmente, encerram às 17 horas.

Afinal, os árabes e os romanos chegaram a este lugar muito antes dos portugueses e dos ingleses!

A vila de Alvor

Saio da vila de Alvor, do camping da Dourada, com uma frase na cabeça. De manhã cedo, uma agente da autoridade comentava com um almeida: «Quando chego à zona ribeirinha, e olho à direita e à esquerda (registo no relatório de ocorrências de ontem), vejo duas realidades bem contrastivas.» No essencial, esta agente relatou tudo o que eu penso sobre a vila de Alvor.

Entretanto, percebi que a agente faz acompanhar o seu relatório das devidas fotos para que o seu chefe possa, de forma documentada, interpelar quem de direito. E, também, senti uma certa ironia naquela afirmação devidamente corroborada pelo almeida que continuava a varrer o lixo que os ébrios turistas tinham abandonado na via pública…

Finalmente, continuo sem saber quem é que lê os relatórios diários dos milhares de agentes de autoridade e quais os efeitos na melhoria da qualidade de vida das populações…

(Nem só de literatura se faz o discurso!) 

 

4.8.10

O casulo…

Lá dentro, não mora ninguém! A cigarra, com a canícula, libertou-se para nos dar cabo dos ouvidos. Arreliado com o canto, apetece-me exclamar como o Teixeira de Pascoaes: o ruido estridente e monótono da cigarra é literatura. Com as devidas distâncias, pois Pascoaes, quando redigiu o aforismo, pensava num cão: o ladrar é literatura.

 

3.8.10

Na praia de Alvor… com procurador

Hoje, desci à praia de Alvor. Um areal imenso cheio de corpos. Lá arranjei um buraco para me esconder de mim mesmo, enquanto lia 4 ou 5 páginas do DN sobre a morte do antigo diretor, Mário Bettencourt Resendes. Claro está que quando um homem morre só tem qualidades (de facto, eu até gostava da serenidade do comentador!) Percebi que quando o Mário se zangava mudava o registo de língua para Os Açores, o que, a mim, me faz falta – talvez haja por aí um registo ribatejano falho de vogais que simplifica de tal modo a fala que nenhum interlocutor chega a saber o que queremos dizer, os ribatejanos.

Enquanto o calor me obrigava a pensar em atirar-me à água, ia percebendo que, mesmo ao lado, no jornal, morava o meu vizinho, da Portela, procurador da república, que se imagina rainha da Inglaterra. Nunca percebi esta falta de consideração pela (velha) rainha e, consequentemente, pelos seus súbditos que nos cultivam o Algarve! E já é tempo, de 100 anos depois de instaurada a república, deixar de estabelecer analogias com a monarquia, a não ser que o procurador queira ser um monarca…, o que, repentinamente, me faz pensar que o melhor é pôr-me a averiguar por que motivo veio D. João II falecer em Alvor.

De qualquer modo, não consigo compreender porque é que o procurador não bate com a porta, e põe cá fora tudo o que sabe. No meio de tudo isto, parece que a investigação só existe para afastar, de qualquer modo, as acusações feitas a alguém, ou, pelo contrário, para incriminar, custe o que custar, quem lhe sai ao caminho…

 

 

2.8.10

Lição de uma rola

Nem todas as obras cumprem com a mesma eficácia o objectivo para que foram criadas.  Umas deviam tratar-nos do corpo; outras da alma. As primeiras, rasteiras, passam despercebidas; as segundas, altivas, elevam-se aos céus. Descrente das primeiras, quiseram-me purificar a alma. Resisti por palavras e omissões até ao dia em que fui convidado a repensar a minha vocação. Ainda, hoje, não sei onde é que perdi o apelo do céu (ou seria da terra?); continuo a cumprir algumas tarefas, umas mais nobres outras mais mesquinhas. Nem mesmo, em férias, me liberto de quem esperam que eu seja. Corro o risco de não conseguir ser eu próprio e, principalmente, de não perceber que o único objectivo deve ser, em vez do tronco firme e resistente, procurar o ramo instável e quebradiço…

 

1.8.10

Os meus hypomnemata

Ontem, referi-me aos termos askesis e hypomnemata sem lhes explicar o sentido. Hoje, passada a neblina matinal, aproveito para elucidar que a askesis é um velho termo para designar o adestramento de si por si mesmo. Em regra, este procedimento, na convicção de Epicteto, exige que nos submetamos a três tarefas diárias: meditação, escrita e exercício físico.

Quanto aos hypomnemata, estes são uma memória material das coisas, lidas, ouvidas ou pensadas, e podem servir a via da ascese. Sem qualquer tipo de pretensão, quero crer que estes meus posts são, afinal, os hypomnemata dos antigos, se eu persistir na askesis de mim mesmo.

Tudo isto pode parecer inútil se a desorientação se tiver apoderado de nós. Todavia, se fixarmos o olhar, o cavalo sabe qual é o caminho…

 

31.7.10

Com sol, omnes cogitationes

Com sol tudo é diferente, bem sei que há quem prefira a noite, com ou sem luz artificial. No meu caso, a simples ideia de caminhar no convés de pedra só se coloca sob a intensa luz natural. E o rendilhado da pedra sob os meus pés desperta-me para os tempos em que o oceano assolou as montanhas e a força das ondas as vergou. Há quem pense que eu estou de férias, mas não.

Aqui vejo e ouço o modo como o diverso se submete à lei do mais forte. Aqui, descubro que nem sempre é o pobre quem passa mais fome. Aqui, descubro palavras que verdadeiramente me interessam: “askesis”; “hypomnemata” … Aqui, procuro ir além do «in memoriam non ingenium» …

 

30.7.10

Sem sol

Cheguei sem sol e, assim, continua. A praia fica a 500 metros do parque de campismo. O caminho é bom, apesar de obrigar a algum esforço no regresso (isto para quem anda a pé!) A areia branca e fina abriga-se entre falésias de ardósia. Tudo parece acolhedor, mas, hoje, falta o SOL.

 

25.7.10

Reapreciar

Desde sexta-feira que reaprecio provas de exame. A tarefa é melindrosa. Sobretudo, porque, a certa altura, deixam de estar em causa as respostas, passando para primeiro plano a qualidade das perguntas e dos critérios de classificação.

E nem vale a pena falar das alegações, sempre cheias de razão…, ignorando, por inteiro, a diferença entre o texto argumentado e o texto digressivo, desconhecendo o que é um argumento e apostando em exemplos descabidos.

Mas esta ignorância não é apenas dos examinandos, ela está inscrita nas instruções das provas de exame, desrespeitando a tipologia textual consagrada nas orientações programáticas do actual Programa de Português.  

 

24.7.10

Os reizinhos

Os reizinhos não necessitam de ser eleitos nem herdam o trono. Cercam o poder, sabotam os pilares das instituições e progressivamente impõem os seus interesses. Ao contrário do monarca, educado para servir a coletividade, para exercer o poder em nome dos súbditos, o reizinho está-se nas tintas para o outro; ele é o soberano que abdicou dos vassalos…

Os reizinhos têm, todavia, um enorme defeito. São incapazes de criar o que quer que seja e/ou admirar a obra alheia. E encaixam numa enorme moldura, à espera de serem adulados…

 

 

22.7.10

Homo homini rex

Diz Michel Foucault, n’A vida dos homens infames, que cada um, se souber jogar o jogo, pode tornar-se face ao outro um monarca terrível e sem lei.

Todos os dias, nas mais diversas circunstâncias, dou conta desse jogo que, em nome do igualitarismo e da justiça, dá cabo do empenho e, muitas vezes, do desempenho do outro…

O que fazer?  Desistir ou enfrentar os reizinhos? 

 

19.7.10

A pedir pasto e cajado

Ao contrário do que muitos defendem, ninguém faz o que eu faço. Se a ideia de que nada nos diferencia fosse válida, não passaríamos de um rebanho a pedir pasto e cajado.

Eu faço mal, bem, assim-assim. O outro também faz mal, bem, assim-assim. Mas faz diferente. Se tudo fosse igual, não haveria nem EU nem OUTRO, e muito menos TU. Apenas, o solilóquio dos pastores…

Aquilo que nos diferencia vem de longe ou de perto, conforme a idade, a experiência (a aprendizagem formal /informal), o estado de saúde física e mental. Omitir a maturação individual, subordiná-la à vontade do grupo é crime, porque mata o diálogo sobre o modo como resolver os problemas…

Quantas horas perdidas a fazer perguntas já gastas! Quantas frases repetidas sem nada dizer!

Hoje, compreendo bem melhor aquele avô que só soltava a voz após longo silêncio. O silêncio era a sua forma de comunicar. E incomodava porque me fazia pensar. E eu respeitava-o.

 

18.7.10

O que vemos

Nem sempre o que vemos dá conta do que percecionamos. As cores distendem-se até tudo ficar azul. No entanto, a visão sente-se perturbada por um vento agreste que tudo desgrenha como se o Inverno estivesse de regresso.

De qualquer modo, não é esta confusão dos sentidos que mais inquieta. É, principalmente, o despropósito dos comportamentos, a irracionalidade das atitudes…

Claro está que poderia ter descido ao areal…

 

16.7.10

O Espírito Santo

O Espírito Santo bem podia baixar sobre algumas cabeças que ainda não perceberam que o combate à flatulência não obriga a uma dieta extrema… (Cuidado que há muita flatulência que não é apenas ventosidade!)

Ser menos infeliz à custa do sofrimento alheio pode trazer um prazer imediato, mas torna-nos mal-humorados e, sobretudo, depressivos.

Nenhum “paraíso artificial” devolve a serenidade que nos devia governar… Bem sei que não há nada pior que o orgulho e, embora não entenda completamente a semântica do termo, creio que uma das suas faces é a necessidade predadora de assegurar um lugarzinho na pequena história dos homens.

E infelizmente quanto maior é o orgulho, menor é a vontade de contribuir para o bem comum. Pouco importa que o vizinho se mate a trabalhar para compensar a nossa preguiça! Pouco importa que o futuro da comunidade, por nós amordaçado, seja hipotecado…

Nota: orgulho, sentimento exagerado que alguém faz de si próprio (do germ. urgoli.)

 

13.7.10

Estamos em Julho…

Estamos em Julho e aborreço-me porque deixei de ouvir os melros. Sobretudo um que, de madrugada, cantava desalmadamente como se alguém lhe ameaçasse o território. Creio que nunca o vi, ao contrário de muitos outros que sempre se mostraram indiferentes à minha passagem… Espero que ele regresse em Março pois, creio, que já passou a fase juvenil.

Ouvir é cada vez mais a minha profissão, já nada me apetece dizer… que interessa quem fala? A todo o momento, oiço falsas perguntas de quem não quer saber a resposta.

Talvez se dizer fosse uma atividade sazonal, eu me sentisse menos aborrecido. Se fossemos melros, poderíamos viver em silêncio, de Julho a Janeiro… Bem sei que teríamos saudades da voz.  Mas evitávamos os charlatães que nos cercam…

 

 

11.7.10

Planos distintos…

 

Urge eliminar o lobby da educação, começando por fechar as escolas de formação de professores e os múltiplos departamentos do M.E. que vivem de costas voltadas para o que se passa nas escolas.

Em termos de planeamento, as medidas que estão a ser tomadas levam à desertificação do território e à secagem da inteligência. Em termos de gestão, os diretores não têm qualquer autonomia (mais não podem fazer do que aplicar as ordens do referido lobby). Em termos de avaliação dos alunos, os resultados dos exames são miseráveis, sobretudo porque mostram que estamos a formar indivíduos incapazes de pensar e de expor uma ideia que tenha alguma substância. Os mais instruídos estão cada vez mais iguais aos mais ignorantes.

Deste modo, assistimos a um nivelamento por baixo que acabará por nos convencer que somos definitivamente um país falhado.

8.7.10

Passemos antes por Paris…

Com as Juntas Médicas da Caixa Geral de Aposentações nem todos os caminhos vão dar a Roma! Já todos ouvimos falar da estreiteza dos atalhos. O que eu não sabia é que podemos chegar a Roma desde que, antes, passemos por Paris.

Se eu estiver incapacitado para o trabalho, não devo tomar a iniciativa de solicitar uma Junta Médica. Essa decisão prova que, afinal, não estou tal mal como isso. Então, que fazer?

Decididamente, não me apresento ao serviço. Arranjo um atestado médico, de preferência, passado por um psiquiatra que domine as novas tecnologias de informação, não vá algum grafólogo pôr em causa a saúde mental do atestador. Deixo-me ficar por casa (ou por onde me apetecer!) 60 dias. Terminada a “quarentena”, o chefe de serviço lembra-se que a Lei o obriga a enviar-me a uma Junta Médica do Ministério a que o funcionário pertence…

Combalido, chego à primeira Junta Médica do meu Ministério, a qual, incapaz de contrariar a declaração do ilustre psiquiatra, me devolve a casa, justificadas as faltas, sabendo, desde logo, que o ritual deverá durar, no mínimo, dezoito meses… para que a Junta Médica do meu Ministério, perdida a esperança de que eu entre em remissão (isto é, que o meu psiquiatra me dê alta), me despache, finalmente, para a Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações…

De regresso ao lugar (no caso, uma cave!) onde, um dia, me perguntaram quem é me lá mandou, eu, serenamente, responderei: a Junta Médica do meu Ministério!

Está claro que não devo ir sozinho. O (meu) caminho há muito que é percorrido por um médico de medicina interna e /ou por um reputado psiquiatra… Se bem percebi, eles passaram a ser o meu corpo e a minha voz! Eles falarão por mim…

Se nem assim conseguir chegar a Roma, há que ter paciência: voltar para casa; arranjar novo atestado médico de outro ainda mais reputado psiquiatra; faltar mais 60 dias ao serviço… até que a Junta Médica do meu Ministério…

Mas, nunca, por nunca, tomar qualquer iniciativa…

    

6.7.10

A personagem…

«Quando encontro um leitor que é capaz de falar de uma personagem apetece-me abraçá-lo como um amigo.» Lídia Jorge, entrevista ao DN de 4 de Julho de 2010

Ora aqui está uma boa ideia: incentivar o leitor a escolher uma personagem e a falar dela. Para os burocratas que inventaram o contrato de leitura, ler já é, em si, um acto de progresso, mesmo que o leitor valorize apenas a acção e o insólito das situações; mesmo que falar da obra não passe de um acto gratuito e, frequentemente, deseducativo.

De facto, nos tempos que correm quem é que se interessa pela personagem? A crise da personagem radica no falhanço da pessoa, nas falhas de carácter.

E se, por instantes, cedemos ao fascínio da personagem, não resistimos, contudo, a investigar os defeitos do homem que supostamente a gera…

 

5.7.10

Na sombra…

A viagem, iniciada na última 6ª feira, terminou hoje às 20h30. Os olhos percorreram linhas atrás de linhas à espera de encontrar uma ideia fundamentada, uma resposta rigorosa, uma centelha de originalidade… Em vão. Chavões atrás de chavões… Apenas uma ideia sombria! Descoberta a Índia, ao entrarem no Tejo, os nautas apátridas fundaram a nação lusa. 

A ignorância da História mata qualquer hipótese de contextualização, sabota a interpretação. E esta falha é cada vez mais frequente. Basta ler os jornais:

«D. João II era grande apreciador de sardinhas, que considerava baratas e saborosas, de acordo com os relatos de Fernão Lopes.», Notícias magazine, de 4 JUL 2010.

Na sombra deste discurso vive uma singularidade que vem brincando impunemente com coisas sérias (e não é única!). E brinca porque a Academia não cumpre a sua missão. Pelo contrário, recompensa a ignorância, o disparate e, sobretudo, o laxismo.

 

3.7.10

Absurda viagem…

Viajei todo o santo dia, sem sair do lugar. Resta saber se aprendi alguma coisa. Do outro / outra é melhor não falar, e de mim, vejo-me refém de uma absurda engrenagem… E o prazo a cumprir obriga-me a interromper o discurso…

 

1.7.10

Em nome da verdade…

«A biografia não é um meio de unir a vida e a obra, mas um discurso sobre a vida / a morte que ocupa um certo espaço entre o logos e o drama.»  Jacques Derrida, Otobiographies…, 1984 

A biografia ao querer transformar o Singular em Discurso atira-nos, de imediato, para o território da ficção, apesar de nos apresentar como sujeito absoluto o que é apenas um sujeito possível. A coerência da vida e a coesão do discurso não passam de mecanismos de autenticação do sujeito / autor.

Na Idade Média, o discurso biográfico era naturalmente hagiográfico ou, em alternativa, satânico. O homem pouco importava… a sua singularidade morria com ele, salvo se pelo Discurso (seu ou/e alheio) se conseguisse apresentar como sujeito absoluto – lugar de fingimento ou mesmo de mentira…

Em nome da verdade, vamos construindo um discurso de mentira…

 

29.6.10

Quando os amigos…

Quando os amigos partem, todos ficamos mais pobres. Da vida vivida, sobram, por enquanto, os caminhos que percorremos a par, cientes de que a Natureza, que aprendemos a amar, nos pode trair… Que Ela te acolha e te abrigue nesta última caminhada, amigo Alberto Afonso.

 

 

27.6.10

Os brincos de ouro…

Vi, ontem, com alguma surpresa, a ariana Marlene Dietrich transformada numa cigana (Lydia), no filme Golden Earrings, de Mitchell Leisen, estreado em 1947. Para o efeito, Marlene concebeu a sua própria maquilhagem e aprendeu a tocar corretamente cítara. E como mandava o figurino segregacionista, Marlene representa uma malcheirosa e suja cigana que, quase, viola o Coronel Ralph Denistoun (Ray Milland) que, perseguido pelos nazis, é transformado em cigano. A cena da sua metamorfose é brilhante, sobretudo quando ela, a cigana, lhe desflora a primeira orelha para prender os brincos de ouro (elemento de disfarce e, ao mesmo tempo, estruturador da narrativa).

À época, em Hollywood, os casais inter-raciais eram proibidos (Código Hays). No entanto, como, no filme, Lydia e Ralph não passam de amantes, em que um deles é temporariamente transformado em cigano, a transgressão é tolerada…

(… o que me leva mais uma vez a destacar a importância do contexto histórico e do contexto de enunciação…; sem eles, a interpretação torna-se arriscada e incongruente.) 

 

26.6.10

Da interpretação…

«Com as palavras todo o cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas. “José Saramago, As Intermitências da Morte

A interpretação de um texto (das linguagens) pressupõe um razoável conhecimento do contexto de enunciação e uma enorme atenção ao significado da palavra. Para que a ideia não seja atraiçoada, há que percorrer o enunciado, observando-lhe a sintaxe e, sobretudo, procurar com rigor o significado da palavra. Nenhum autor ama a ambiguidade, a não ser que esta lhe permita dar conta dos equívocos em que facilmente caímos.

A fatuidade, a impaciência e a avidez desvalorizam a atitude heurística, relativizando qualquer esforço interpretativo. Na escola portuguesa, a insolência verbal (e não só…) há anos que vem ganhando terreno, à sombra da “indisciplina”, mas, de facto, o que acontece é bem diferente: a instrução / a codificação da aprendizagem matou a educação (o lugar onde o domínio e a consequente valoração dos códigos de linguagem é essencial).

Se nos últimos dias as incongruências linguísticas me perturbaram pelo desrespeito que evidenciavam pelo texto camoniano, ontem, na Esc. Sec. de Camões, fiquei um pouco mais tranquilo: A Academia do Bacalhau de Lisboa premiou os quatro melhores alunos do 11º e do 12º anos, na disciplina de Português, todos com classificações entre os 19 e os 20 valores.

 

22.6.10

Em tempo de equívocos…

Os teólogos católicos defendem que José Saramago nunca soube ler a Bíblia. Acusam-no de nunca ter ido além da leitura literal. Saramago, afinal, nunca percebera o que havia de literário no texto bíblico. A argúcia teologal não passa disso mesmo, basta lembrar que a Inquisição sempre condenou, baseando-se na leitura literal. Ora Saramago pertence a uma geração que aprendeu no seio do Partido que o inimigo do povo português era, em primeiro lugar, o Tribunal do Santo Ofício, o braço dileto da Contra-Reforma que nos dominava desde o século XVI, mesmo que esse Partido servisse um dogma de sinal contrário. (O terreno é fratricida!)

Bem sabemos que a Literatura é inimiga do dogma, que ela exige uma leitura plural… e que sempre que se torna “oficiosa”, as obras que a constituem são devoradas por cronos.

Em princípio, todos deveríamos ter uma noção do que é a Literatura. No entanto, encontramos, por exemplo, nas provas de exame de Português e de Literatura Portuguesa, indícios de que isso se está a perder. Se relermos os questionários, percebemos que as perguntas não pressupõem rigor interpretativo dos textos selecionados (de Camões, Fernando Pessoa, António Lobo Antunes. E por isso aos alunos não é pedido que interpretem globalmente os textos. Quem percebeu que o POETA INTERPELA O REI? QUE A MUDANÇA DE MENTALIDADE EXIGE QUE O REI ALTERE O ALVO DO SEU OLHAR?

E porquê?

Porque de há uns anos a esta parte, a vontade de filtrar e controlar a leitura adotou as vestes teologais que nunca deixaram de estar presentes nos «iluminados» que nos governam e nos conselheiros que os adulam. Todos eles lêem pouco … e seguem a velha cartilha do miserável ‘controleiro’…

 

20.6.10

Os corvos

«Porque a filosofia precisa tanto da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer.» José Saramago, As Intermitências da Morte

 

Passei o dia longe de Lisboa, entre troncos e raízes, à beira-rio. Nas margens, os eucaliptos esventram o solo à procura da água que os faz crescer escandalosamente. Por perto, os jarros resplandecem, indiferentes à opulência do plantio vizinho. Do outro lado do rio, estendem-se vastos e viçosos campos de arroz, de milho, de batata e de tomate… Dos pinhais sopram as melodias dos melros e dos verdelhões; no rio grasna o pato; o crocitar dos corvos obriga-me a procurar-lhe o rasto…

E o negro rasto, que parece ser de dor, é fome de presa. Pouco importa o que aprendemos. No fim, de nada nos serve a argúcia… Só os corvos, inquietos, sobrevoam à espera de que o público se retire.

19.6.10

Formigas…

Formigas, caminhamos sem imaginar que podemos ser calcadas. O risco espreita-nos a cada instante, mas esse é o nosso destino. Tudo o resto é soberba e vaidade!

 

18.6.10

Gavetos e não só…

 

Haverá uma arquitetura de gaveto? E porquê “de gaveto” e não “ de canto” ou “ de esquina”? Ou simplesmente perante a necessidade de ocupar as esquinas, o arquitecto procura encontrar a solução que melhor se acomode a cada caso. Seja como for, a simples existência de uma esquina condiciona a solução, o que, no fundo, significa que devemos evitar que nos acantonem, a não ser que desejemos que o Arquitecto determine o nosso destino…

Entretanto, desconheço a origem etimológica de “gaveto”. Na sombra, há quem pense que este termo está relacionado com “gaveta”, que, de origem latina (gavata, gabata) terá chegado a este canto da Europa através dos cruzados provençais que, ao passarem, meteram os indígenas na gaveta e lhes ocuparam o lugar. O que me leva a pensar que quer se trate de arrumar na “gaveta” ou no “gaveto”, o gesto pressupõe sempre uma certa violência, uma certa dor ou, em alternativa, alguma dose de predação.

Em síntese, não sei se algum arquitecto de esquina já pensou nesta questão nem se vale a pena examiná-la. No que me diz respeito, os gavetos sempre me despertaram um complexo de inferioridade… e se continuo, ainda acabo por encontrar o trauma que me leva a pensar estas tolices…

16.6.10

 

Artistas, quase, anónimos…

Quando passamos, o que é que vemos? Passemos e suspendamos o passo… Artistas, quase, anónimos criaram o espaço que atravessamos. Na obra respira a vida, e nós passamos, sem alma…, ávidos de um porto noturno, sem, de verdade, percorrermos o caminho…

 

14.6.10

Sonha-me (Ramos Rosa)

Sonha-me
no ouvido do espaço
mesmo se o que separa
me apaga

Se o deserto me queima as mãos
se estou caindo
se nunca fui real
se sou ainda o movimento da sede
talvez possas pesar
esta boca de sombra

Como se pode querer tanto
e como custa
não ter boca
para levantar a casa

Se fosse um ombro ou um aroma
a mão lisa da água
a dália de uma sombra
Ah se fosse um fruto de água
Boca será boca
Esta desamparada pétala?

António Ramos Rosa, JL 13.11.1990

Sempre que proponho a leitura de um poema, mesmo que liberta de instruções”, sinto uma rejeição tácita ou mesmo ostensiva.

No caso do poema de Ramos Rosa, não posso deixar de reflectir sobre alguns tópicos por demais evidentes:

+ a interlocução (sonha-me / talvez possas pesar / como se pode querer tanto / a interrogação final.

+ a atitude reflexiva e interrogativa do sujeito lírico.

+ a composição: declarativa; hipotética; interrogativa.

* as palavras-chave: boca /EU (desadaptado; irreal; em queda; revoltado; em demanda); casa; o outro (ombro, aroma, mão, dália, fruto de água).

+ a transfiguração da língua por quem não pode ter boca: a respiração / a elipse / a metáfora / a metonímia / a anáfora / a interjeição / a questão de retórica / a rima solta…

 

12.6.10

Ponto de vista e opinião…

São os múltiplos pontos óticos, isto é, os lugares de onde perceciono, que me configuram a consciência. Sem eles, o meu mundo seria todo igual… Todavia, quando me ponho em marcha, as rimas tornam-se inesperadas, obrigando-me a contrastar os focos... E daí nasce a consciência ou a má-consciência.

Por exemplo, na GEBALIS, as caixas de correio encontram-se esventradas; no contíguo bairro de lata vemos, junto à via pública, uma caixa devidamente identificada e em bom estado. Na mesma localidade, a limpeza e o lixo medem forças…; as plantas ornamentais rivalizam com as hortas; a simetria contrasta com o desalinho…

Em consciência, estes diversos pontos óticos dão-me que pensar, mas não chegam para formar uma opinião.

 

 

 

11.6.10

O Petrarquismo na lírica camoniana

Uma resposta para quem procura compreender o petrarquismo na lírica camoniana.

O petrarquismo

Uma maneira específica de encarar a relação entre a poesia e o sentimento amoroso que reivindica a correspondência entre a vivência amorosa e a poesia. Apresenta a novidade de se referir à caracterização do objecto da paixão, acentuando o facto de se tratar de um ser de carne e osso, desejável enquanto corpo, e, apenas, amado de forma exclusivamente espiritual, depois de morto.

O petrarquismo afasta-se progressivamente da angelização e da divinização da amada (do dolce stil nuovo).

Em Petrarca, misturam-se elementos contrários: aspiração à possibilidade de contemplar, em estado de pureza, a amada; e o desejo de posse física. Esta contradição provoca angústia e o despertar de uma consciência pecaminosa.

Petrarca encontra-se assim dividido entre impulsos opostos e por isso recorre a imagens e figuras de estilo capazes de descrever os efeitos da paixão em termos antitéticos e paradoxais.

Recorre a figuras de estilo como a metáfora, a antítese, o paradoxo, a hipérbole. Utiliza recorrentemente certos subgéneros poéticos como o soneto, a canção…

Em Camões, há um tempo em que imaginar não é bastante; falta-lhe a forma humana. Uma forma que chega a conduzi-lo ao desvario. Tudo «porque vos vi, minha Senhora.» Trata-se do tempo do desejo… o resto é imitação e memória. Imitação, onde cabe todo o passado das formas artísticas, que serve para apurar a pena. E memória que, apesar da morte do desejo, não deixa de ser mais simpática que «a apagada e vil tristeza» em que o poeta fenece, sob a agonia da pátria.

 

10.6.10

10 de Junho, a negro…

Não consigo entender como é que um país falido pode continuar a celebrar e a delapidar recursos com festas (religiosas ou seculares) que nada representam para a maioria dos portugueses. Afinal, qual é o significado da celebração do Corpo de Deus num tempo de sacralização / bestialização do corpo humano? Afinal, de que nos servem os “santos populares”, para além de ostentarmos a brejeirice e a (in)satisfação da gula?

Afinal, o que   é que celebramos no dia 10 de Junho? A revolta dos socialistas (utópicos e científicos), dos republicanos (pequeno-burgueses) e dos anarquistas (mais ou menos suicidas) contra a Monarquia decadente que arruinara o país? Ou continuamos a idealizar uma República desavinda e informe? Ou, então, saudosistas da raça e do império, insistimos em humilhar o Épico? Ou, de regresso ao torrão pátrio, insistimos em festejar a diáspora?

Em 2010, um Presidente à altura das circunstâncias (11% de desempregados; milhares de portugueses à beira do desemprego; milhares de reformados na miséria; milhares de jovens à procura de um primeiro emprego sem qualquer expectativa…) teria cancelado as comemorações.

PS: A negro, porque não encontro outra cor que possa exprimir a cegueira que nos consome. Apesar da luminosidade que parece envolver-nos, não vislumbro qualquer Luz que nos possa redimir do pus que nos consome…

 

8.6.10

O mapa e a laranja…

No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...


No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...


No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão. 

(Fernando Pessoa)

Quem desde os bancos da escola primária se habituou a olhar para o mapa de Portugal não pôde deixar de imaginar um país sempre a descer ou, em casos excecionais, sempre a subir. Os rios descem para o mar, o dia para a noite! Ainda no século XIV, a Europa descia para a Mauritânia e precipitava-se bruscamente para o abismo. O mundo não passava de meia-laranja! Foi preciso o Infante lançar-nos ao mar para percebermos que a Terra não tinha fim, que, afinal, a terra não passava de uma laranja. Por isso, o Gama foi escolhido para contemplar o Globo e trazê-lo simbolicamente ao seu Rei e, este, feito senhor desta nova laranja passou a ostentar a esfera armilar, como se ela o sagrasse não como o “infante”, mas como o “senhor”. Foram essa confusão e esse orgulho soberano que desfizeram o Império!

Cansado do Brasão, do Mar Português e do Encoberto, por instantes (1918), revelado no Presidente Sidónio Pais, Fernando Pessoa dedica-se a criar ritmadas sextilhas capazes de nos fazer esquecer qualquer desígnio divino ou nacional. Morto o rei, sobra a reinação. E o poema pândego serpenteia, sempre a descer de regresso à meia-laranja!

 

7.6.10

Da ataraxia

Feliz aquele que administra sabiamente/a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias / podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará/ (…) /Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente /RUY BELO, A MÃO NO ARADO

Apetece-me gritar, deitar fora a charrua, atirar versos pela janela, deitar as cópias no lixo, dizer-lhes que o destino lhes secou as ruas, deixá-los simplesmente a sorrir da canga que os reúne e os suplicia. Deixá-los! Tudo o que lhes exige um esforço passou a ser” secante”. O cansaço é uma maçada para os madraços. Adúlteros da vida, praticam a mentira como redenção derradeira…

Falta-me a ataraxia dos Poetas, a beatitude dos santos, a serenidade dos jacarandás…

 

6.6.10

O que sobra das histórias invisíveis…

  

No Palácio que, no século XIX, foi edificado por Policarpo Anjos, como moradia de veraneio, a Câmara Municipal de Oeiras instalou, em 2006, o Centro de Arte – Coleção Manuel de Brito. Sem se saber como, há histórias de riqueza que continuam invisíveis, mas que, de algum modo, geram espaços de recreio e de cultura que vale a pena frequentar. Até Setembro, vale a pena visitar as exposição de Graça Morais e Por Paris.

 

 

4.6.10

Na morte de João Aguiar…

João Aguiar faleceu no dia 3 de Junho, aos 66 anos de idade. Antigo aluno do Liceu Camões, visitou a Escola Secundária de Camões no dia 13 de Abril de 2007, onde, no Auditório, perante uma plateia repleta de alunos, os encantou, lembrando a importância que os professores de Literatura Portuguesa, Maria da Conceição Caimoto e Mário Dionísio, tiveram na sua formação e retratando a vida austera vivida e sofrida no Liceu no final dos anos 50 e início dos anos 60.

Os alunos redescobriram, naquele dia 13 de Abril, o argumentista da Rua Sésamo (da 2ª à 4ª série) e de Inês de Portugal, tal como puderam interrogar o autor das coleções juvenis O Bando dos Quatro e Sebastião e os Mundos Secretos. E muitos deles revelaram conhecer os romances A Voz dos DeusesOs Comedores de Pérolas e Inês de Portugal. Nesse ano, muitos foram os alunos que, no âmbito do contrato de leitura, leram João Casimiro Namorado de Aguiar.

Relembro, ainda, que nesse dia me prometeu escrever um testemunho para se associar ao centenário do edifício da Escola. Creio mesmo que foi nesse dia que surgiu a ideia dos testemunhos!

(…)

No entanto, ao consultar a obra LICEU de CAMÕES 100 ANOS DE TESTEMUNHOS, não dou conta de qualquer referência à sua colaboração. Talvez o seu espólio guarde, para a posteridade, um documento que nos ajude a compreender melhor aquele tempo dividido. Quem sabe?

João Aguiar morre num tempo de profunda confusão local e global de valores, agravada pelo caótico desregulamento financeiro e económico – crise por si prevista no romance O JARDIM DAS DELÍCIAS (2005).Trata-se de um romance sobre a União Europeia transformada em "Federação Europeia" no séc. XXI, em que o federalismo vai destruindo todos os símbolos identitários em nome de uma volúpia económica, conduzida pelos «conglomerados político-financeiros» que de fusão em fusão condicionam consumidores e governos tornando-se indissociáveis do poder político e da própria criação cultural.

Obrigado, João Aguiar.

 

3.6.10

Antero de Quental e Raúl Brandão, o mesmo drama…

(…) Interrogo o infinito e às vezes choro… / Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro / E aspiro unicamente à liberdade. Sonetos, Antero de Quental

Outrora rocha, tronco, monstro primitivo, o HOMEM pode contemplar e, talvez, orgulhar-se da sua Evolução, desde que não esqueça a sua génese. No entanto, passado é passado, e quando interrogamos o PRESENTE (in)finito e nos confrontamos com as nossas opções, por vezes, dá vontade de chorar. Percebemos que, em nós, residem liames que, a cada passo, nos tolhem os caminhos da liberdade. Há vaidades que nos embrutecem e que nos tornam censores da liberdade alheia.

(…) Hoje sou homem – e na sombra enorme / Vejo, a meus pés, a escada multiforme / que desce, em espirais, na imensidade… É deste ‘homem’, desta ´sombra’ e desta ‘escada’ que fala o GEBO de Raúl Brandão quando se interroga sobre qual é o seu DEVER, quando procura a LUZ. Para o GEBO, o passado inútil e doloroso tolhe-lhe a VISÃO e o caminho da liberdade deixa de ser uma demanda individual para se conformar com os padrões decadentistas vigentes no primeiro quartel do século XX.

Quando há dias, afirmava que o PROGRAMA É O ALUNO – o PROGRAMA É A PESSOA – estava precisamente a querer dizer que só há aprendizagem, só há evolução, se CADA indivíduo compreender e interiorizar a dolorosa e despojada liberdade defendida pelo hegeliano Antero. Quanto ao GEBO mais valia que se tivesse suicidado! Mas faltou-lhe a coragem!

 

2.6.10

Pensar oblíquo…

Esta manhã, acordei à hora do costume. Da habitual rotina, alterei momentaneamente os passos. Pensei se valia a pena preocupar-me com os acentos circunflexos ou se eles já teriam mudado de lugar ou de nome, um pouco à maneira daqueles complementos que, por uma força obtusa, se tornaram oblíquos. E penso nas respostas oblíquas que irei dar ao longo do dia.

A verdade é que não vejo qualquer motivo para festas e não me apetece desfilar sob arcos de triunfo em ruínas. Ponto final redundante: não vou expor qualquer outro argumento porque já começo a ver o fantasma do Vergílio Ferreira a obliquar na minha direcção. E eu detesto fantasmas e, sobretudo, correr à sua frente…

 

31.5.10

No Campo dos Mártires da Pátria

Em comum, a ameaça de canícula; a luz e a sombra. Algures, a metamorfose anódina do que sobra da gruta lisboeta do épico. Em contraste, uma cidade suja que soçobra ao lado de jardins esplendorosos. Que dizer das pessoas às 3 horas da tarde? Os operários arrastam-se para as fontes; os jovens escondem-se nos bancos de jardim, sob o pretexto de lerem um livro ou de passearem o cão; os idosos e os desempregados, sentados em torno de uma mesa, jogam à sueca. Invisíveis.

E eu que faço aqui? Interrogo-me se há algodão no Campo dos Mártires da Pátria. Está claro que bem podia relembrar o Gomes Freire de Andrade, a Matilde; o Sousa Martins; o Câmara Pestana; o Viana da Mota… Mas com este calor quem é que quer saber?

 

30.5.10

O primado da biologia…

Dizemos em ciência que o humano (biológico) se está a tornar pessoa (psicológico). Quintino Aires

«6% dos jovens têm problemas de conduta (comportamentos incontroláveis ou destrutivos para si ou para os que os rodeiam).» Daniel Sampaio

A hipótese de Quintino Aires é simpática, mas inverosímil. Basta que chova para que do solo surja uma vegetação exuberante que elimina as veredas e destrói as culturas. Sem a intervenção humana, a biologia segue o seu caminho, impondo a lei do mais forte.

Quanto à transformação do humano em pessoa, o factor afectivo (relacional) é essencial. Os estímulos de apoio ou de rejeição são essenciais desde o berço; os limites (os marcos) devidamente colocados são necessários à decisão fundamentada.

Melhor do que defender que O PROGRAMA É O ALUNO, devemos procurar que O PROGRAMA SEJA A PESSOA. Afinal, os problemas de conduta de jovens e adultos resultam dos sinais errados que lhe foram dados na infância e que a ESCOLA, entretanto, não consegue corrigir… porque fazemos opções erradas, também elas alicerçadas no primado da biologia.

 

29.5.10

Inesperadamente…

Saíra cedo de casa a pensar se a post(agem) merece um comentário fora do universo dos blogues (‘páginas da internet com características de diário’). Um modo de iniciar o sábado um pouco frustrante, no entanto, refém da A1, via-me condenado a rememorar o tempo em que tentava explicar aos alunos dos cursos de ciências da educação que o PROGRAMA de um professor do ensino básico e secundário era bem diferente do PROGRAMA no âmbito dos estudos universitários (isto antes de Bolonha nos ter colonizado!). No ensino superior, o PROGRAMA ganhava autonomia, tinha vida própria (era um pouco como o capital, indiferente aos custos, sempre a pensar nos lucros!) – professor (quase sempre perito, disfarçado de investigador) e alunos pouco contavam, desde que servissem a Instituição (por contenção, abstenho-me de falar agora dos pilares, mas podemos, com proveito re(ler) sempre o Auto da Alma, de Vicente).

Não vá o parágrafo tornar-se ilegível, retomo a lição para, ainda na A1, rememorar o que dizia aos meus alunos: «No ensino básico e secundário, o PROGRAMA É O ALUNO.» Já na 6ª feira, ontem, regressara a esta certeza perante um aluno que de forma mais ou menos desabrida me perguntara ‘o que era um púlpito?’. Quando tentei responder, dizendo-lhe que era ‘a tribuna utilizada pelos sacerdotes para…’, replicou que não queria saber pois a religião não lhe interessava! Fiquei perplexo com este jovem, já não era a semântica nem a religião que me preocupavam, era a ÔNTICA.

Entretanto, a viagem na A1 terminara, a questão do comentário deixara de estar em foco. O mato e a forragem tinham crescido exuberantemente; o atalho perdera-se; a oliveira centenária continuava frondosa. Inesperadamente, uma lura na raiz de um tronco! E, sobretudo, uma cobra que em vez de deitar fora a camisa me reteve a sombra!

Afinal, o que é que me impediu de meter o braço na lura e de pisar a cobra?

 

27.5.10

Nada é seguro…

    O tempo inexorável segue o seu caminho, embora no que respeita ao mundo florestal estejamos convencidos que o verde e as flores estarão de regresso no próximo ano. Porém, no caso em apreço, nada nos assegura que assim será. Quando o arquitecto, na ânsia de rebaixar o edifício, desce aos alicerces quem paga são as raízes. Claro está que não é ele que deseja ser o coveiro das frondosas árvores! A ordem vem de quem traçou um projecto salazarista de recuperação do parque escolar e serve clientelas de proximidade.

 

26.5.10

A crise financeira e o património…

  Neste tempo de crise, ainda ninguém perguntou quanto vale o património português! Não sabemos valorizar o legado que os avoengos nos deixaram. Anualmente, centenas de milhares de estrangeiros e nacionais percorrem o casco das nossas cidades, sobem aos castelos, entram nos museus gratuitamente ou por quantias irrisórias. A maior parte dos monumentos não consegue financiar a respectiva manutenção e as despesas com o pessoal. Sem recurso ao orçamento de estado ou ao mecenato, o património construído entraria em ruína. Mas esta não é a solução!

O Ministério da Cultura existe apenas para subsidiar clientelas. É um organismo inútil que agrava diariamente o estado financeiro da nação. As missões que lhe têm sido atribuídas podem perfeitamente ser asseguradas pelos municípios. A cultura só é universal se enraizada no local! Para quê um mediador centralizador quase sempre desconhecedor das especificidades culturais? Um mediador que pela sua própria natureza elitista deixa no esquecimento lugares e monumentos genuínos que bem podiam ser preservados pelas gentes que com eles coabitam.

Em nome da Cultura, desperdiçamos milhões de euros e paradoxalmente somos cada vez mais incultos. (Ainda hoje alguém me perguntou se um soba era uma pessoa!) Afinal, para que é que precisamos de dois ministérios na área do ensino? E de que serve o ministério da economia?

PS: Basta sair do terreiro português para perceber quanto custa a entrada num museu, num castelo, numa catedral ou numa mesquita!

24.5.10

António Lobo Antunes - será que ele vem?

Diria que a passagem do tempo ocupa permanentemente a minha atenção: adiar o inadiável, enganar o finito, viver o momento, exorcizar o futuro, reviver o passado. A partir de uma determinada idade, a duração torna-se obsessão: a historicidade ganha substância. No entanto, em termos comunicacionais, não posso imaginar que a juventude me acompanhe nas minhas reflexões que, para além da efemeridade do meu ser, se enraízam na História de uma Nação que desde a perda do Brasil arrasta as grilhetas da morte. Já lá vão quase 200 anos, sem falar noutras catástrofes que deixaram a Pátria moribunda. O apego à vida, na obra de António Lobo Antunes, não é muito diferente da minha íntima vontade de atrasar o relógio biológico. E de algum modo, A.L.A. alimenta a ideia de que, ao suspender o seu tempo, está a impedir Portugal de soçobrar definitivamente. Morrer com a Pátria é o gesto derradeiro, por muitos sonhado, mas até agora nunca consumado… Ora, os jovens sabem, mesmo que o não sonhem, que o pessimismo e o derrotismo são seus inimigos endógenos e exógenos. E por isso o passado não os encanta. No que se refere ao escritor, ele bem sabe que só suspenderá o tempo enquanto continuar a escrever… Por atalhos não conseguirá! E se insistir nessa via, despache-se, e, por momentos, regresse aos pátios que atravessou entre 1952 e 1959, porque os jovens, nos últimos dias, com insistência, me perguntaram se ELE vinha…       

(Des)encontro na Azinhaga

Tal como Saramago com Deus, o meu encontro com a Fundação Saramago falhou. E, ao contrário de Saramago que ainda espera que o Senhor o visite, eu desloquei-me à Azinhaga, mas as portas estão fechadas, para férias, até 30 de Maio. Fiquei com pena, não por mim, mas por aquele jovem a quem perguntei onde se situava a Fundação e que me respondeu que ela estava fechada, que ele, o próprio, vinha de lá frustrado (o termo não é dele, mas corresponde).

De qualquer modo, fiquei com a ideia de que a Azinhaga no tempo das “pequenas memórias” era verde, católica, mas dividida. De um lado, os pobres, muito pobres, e do outro, os senhores, muito ricos. E talvez não tenha mudado muito! À excepção, do gigantismo atribuído ao escritor, como se este filho da terra tivesse definitivamente vingado a miséria extrema dos cativos.  Indiferente, corre o rio Almonda sonolentamente adjetivado por uma coruja.

 

19.5.10

Declive?

 Estará lá o declive? Ou é da minha vista? Como quero ver direito, experimento inclinar a foto. Agora, parece-me melhor – um simples toque parece poder alterar a minha perceção. Quando envelhecemos, queremos acreditar que contribuímos para melhorar as coisas em que tocámos, mas, ao mesmo tempo, começamos a ter pejo em pensar que a nossa presença trouxe algum benefício ao nosso semelhante… A ligeireza da palavra intempestiva aborrece-me, coarta-me os argumentos, como se apenas a pedra pudesse estancar a catadupa de rugidos que se abate sobre mim.

Independentemente do juízo que faça da realidade, que a veja em declive, esta sai sempre vencedora. Ainda caio na tentação de querer corrigir a inclinação da agulha atraída por uma força ignota, mas, de verdade, o que desejo é perder-me na raiz vi va, ficando a ouvir o gorjeio, por ora, dos melros…

 

17.5.10

Plano inclinado…

A instituição “casamento” tal como foi concebida acaba de dar o último suspiro. O Presidente hipotecou as suas convicções, incompatibilizando-se com todos os que viam nele o garante de uma civilização judaico-cristã.

Resta saber o que significa esta decisão em termos de «avanço civilizacional». Esperemos que não estejamos perante uma vitória de Pirro!

16.5.10

A lagarta da couve

Não queria pensar no assunto, mas, quando olho a lagarta sobre a folha de couve, não posso deixar de pensar no tempo em que, qual patrão, eliminava a pobre-de-cristo sem me aperceber da minha crueldade. De facto, não fazia ideia da metamorfose que o pobre e peludo ser esverdeado iria sofrer. Nem sequer me passava pela cabeça que tal termo “metamorfose” pudesse existir. Mais tarde, Kafka atravessou-mo no caminho um pouco como a lagarta da couve… E não deixo de pensar que o termo “metamorfose” se revelou durante muito tempo mais sedutor do que o bicharoco!

 

15.5.10

Hoje…

«Não, ainda não se proíbe ninguém de ler. Não, ainda não se queimam livros.» João Bénard da Costa a propósito do filme de François Truffaut, FAHRENHEIT 451 /1966

Em 2010, a destruição de livros está inscrita na lei. A imagem é quase tudo. A felicidade e o prazer são os que são proporcionados pelas drogas e pelo virtual – e cada vez mais pelas redes sociais virtuais!

Em 2010, os bombeiros, que reprimem o prazer solitário da leitura já não são necessários. Creio, todavia, que um ou outro bombeiro incendiário talvez pudesse despertar em nós a sede de transgressão levando-nos a cobiçar os proibidos livros, sem ser necessário regressar ao tempo da oratura – o tempo anterior ao livro –, um tempo esfíngico, subordinado ao rigorismo ou ao laxismo da memória.

Quanto ao filme FAHRENHEIT 451 /1966, os dois lados da moeda equivalem-se na anulação da consciência. Impera um pensamento geométrico que me arrasta para a leitura de Blaise Pascal… E dele para o jansenismo….

 

14.5.10

Crepúsculo…

 Quando a espiritualidade entra em crise, o recurso à transcendência perde todo o sentido. Em alternativa, a atenção humana ainda procura voltar-se para o Ideal, para a Revolução, para a Utopia, sempre com o intuito de criar um homem, mais justo, mais solidário, mais fraterno. No entanto, esse novo homem acaba por se revelar déspota, ganancioso e predador. Eliminados o Destino, Deus, o Ideal, a Revolução, a Utopia, que lugar sobra para a consciência? Uma consciência criada para servir a Ordem! Perante a Desordem, a consciência apaga-se de vez e o Ser que resta opta pelo Cifrão e pelo Momento.

(Em memória de Raul Brandão.)

 

13.5.10

Cilada…

   Longe de Fátima (talvez os locatários tenham engrossado a mole que quis ver e saudar o Papa!), o guindaste, aparentemente, descansa ao fundo da rua… No entanto, o contrapeso de base está posicionado sobre um edifício, qual espada de Dâmocles, o invejoso. Porém Dionísio, o déspota de Siracusa, finge que cede o trono a Dâmocles, que inebriado, acaba por se aperceber que a sua glória pode cessar a cada momento, pois uma espada pontiaguda ameaça abrir-lhe o crânio…  Se nem Platão conseguiu evitar a escravatura, como é que a república, submersa pela dívida soberana, vai escapar ao seu destino?

12.5.10

O caminho do Papa

 Cercado de automóveis, Santo António aponta o caminho ao Papa, pois até um engraxador abandonara as ferramentas de trabalho. De qualquer modo, o lugar escolhido, à porta de um banco, junto de duas caixas de multibanco, dá que pensar quanto às intenções do trabalhador.

Sentado num banco enquanto esperava (talvez, Godot?), cheguei a pensar que o santo estava a indicar-me o caminho, a mim. Por pouco não me sentei na cadeira, dando um novo rumo à minha vida, até porque, tal como aconteceu com o santo, estou cansado de combater o alheamento, senão a alienação… Falta-me a brandura papal!

 

11.5.10

A expectativa

Tão distante e tão perto, a mão tímida acena, quase invisível. Para quem?

Houve tempo em que talvez pensasse nessa emoção. Hoje, bastam-me apenas a cor e o movimento.

 

10.5.10

Em ruínas…

Na esquina da Casal Ribeiro com a Almirante Barroso (Lisboa). Sempre que ali passo respeito o sinal e paro a olhar o que sobra do Império… da tal Fantasia Lusitana. E lembro que ali residiu quem, entre muitos outros, sonhou um mundo menos injusto – Amílcar Cabral que chegara a Lisboa em 1945 para prosseguir os estudos no Instituto Superior de Agronomia.

Em Outubro de 1944, a Casa dos Estudantes do Império-sede começara a funcionar, sob a presidência de Alberto Marques Mano de Mesquita, no n. º1 da Rua da Praia da Vitória, ao Arco do Cego. Mas, no mês seguinte, mudara-se para o n.º 23 da Avenida Duque de Ávila, onde permaneceu até à sua extinção. Por essa altura, abre também uma delegação em Coimbra. Amílcar Cabral foi um dos dinamizadores desta importante instituição à revelia do salazarismo, e na euforia do pós-guerra.

A memória multicultural de S. Jorge de Arroios, aos poucos, fenece.

 

9.5.10

Fantasia lusitana, de João Canijo…

Portugal era pintado como um paraíso de paz e harmonia, numa altura em que boa parte da Europa agonizava com a II Guerra Mundial e se tornava ponto de passagem ou de refúgio para milhares de pessoas, entre os quais escritores célebres como Alfred Döblin, Antoine de Saint-Exupéry ou a atriz Erika Mann, filha de Thomas Mann. Os depoimentos, em que relatam as suas impressões do contacto com o país, são lidos pelos actores Hanna Schygulla, Rudiger Vogler e Christian Patey.

(Se quis ver o documentário tive de me deslocar ao Campo Pequeno e entrar nos curros abundantemente decorados com imagens e artefactos cinematográficos de mau gosto, para além dos tetos baixos impregnados do cheiro a pipocas e do martelar de teclados e bombos ensurdecedores.)

No meio do conflito mundial, a excentricidade do Mundo Português surpreende os refugiados e arrasta o povo miserável, eternamente grato ao redentor (Oliveira Salazar) sob o abraço universal do Cristo Rei, para uma guerra colonial anunciada.

Insistir que Salazar nos livrou da guerra é uma aberração, pois todos sabemos que a “nossa guerra” se aproximava por nos termos conluiado, primeiro com os franquistas e depois com a Alemanha nazi. Em tempo de guerra, os exércitos precisam de retaguarda e o Portugal de Oliveira Salazar estava à mão… A estratégia de Salazar esteve em saber aproveitar as necessidades alheias, adiando o sacrifício do seu povo…

Sim. Gostei de ver “Fantasia Lusitana”. Mas não gostei do ar fascinado dos espectadores que sorriram do acasalamento das cebolas com as batatas e, sobretudo, que não sentiram vontade de cuspir para o chão!  

 

 

 

8.5.10

Finalmente, há teatro…

António Pedro, 1909-1966 by Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian.

António Pedro (1909-1966) é o autor da Antígona, ontem, levada à cena, no Auditório “Camões”, pela novíssima companhia Grupo de Teatro da Escola Secundária de Camões. Trata-se da Glosa Nova da Tragédia de Sófocles. Em 3 actos e 1 Prólogo incluído no 1º Acto. António Pedro, num artigo do Mundo Literário, escreveu um dia: Teatro é tragédia e farsa; o drama burguês, melífluo, a comédia burguesa, comedida, são apenas acidentes acontecidos na sua história milenária.»

A escolha do texto – acto fundador – revelou-se acertada. Apesar de tardíssimo, Creonte vergou-se perante a inexorabilidade do Destino. Tirésias, o adivinho, restaura mais uma vez a ordem em Tebas. Que sobriedade a da atriz (Rita G. Júlio)! E que dizer de Antígona pronta a morrer às mãos do tirano em defesa de uma antiquíssima tradição – dar sepultura aos mortos? OS VELHOS, numa elocução cristalina, tomaram partido como convinha… Pela 1ª vez, ouvi e vi um coro tão afinado que pensei encontrar-me numa ágora da antiga Hélade.

Esta nova companhia está de parabéns. Os sinais de uma escola integradora, participativa e de qualidade estão todos presentes neste espetáculo. E por isso quero felicitar todos os que denodadamente contribuíram para que, finalmente, haja teatro no Camões – alunos, funcionários e professores. Assim, sim!

 

7.5.10

Às 6h50...

Às 6h50, a rede social está adormecida. De nada serve explicar que o tempo de aprendizagem da escrita se dá quase sempre em lugares inesperados. Não foi na Escola, no caso, no Liceu, que António Lobo Antunes aprendeu a escrever - foi na guerra (de Angola) - "DESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO". Em aerogramas. 60 por mês.

 

4.5.10

O encanto dos nossos governantes…

«O Português, sendo embora um trabalhador incansável, possui um espírito empírico, não gostando nem de organização nem de disciplina. (…) Aliás, o encanto dos Portugueses reside nos seus próprios defeitos. Em 1966, mais de 70000 automóveis circulavam nas estradas de Angola, sem mencionarmos motos, veículos indispensáveis em África. Se nos arriscamos a partir a cabeça a todo o instante, na estrada que liga Catete a Luanda, devido à sua estreiteza e tráfego intenso, encontramos, pelo contrário, no sul de Angola, entre Moçâmedes e Porto Alexandre, mais de 100 quilómetros de estradas asfaltadas, dignas de uma pista de corridas. Um único carro passará talvez, de hora a hora, nessa estrada, mas as autoridades quiseram, não sei por que razão, construir tal artéria em detrimento de outras, cem vezes mais importantes.» Mugur Wallu, Angola – Chave de África, pág. 136, 1968, Parceria A.M. Pereira, Lda, Lisboa.

Os nossos governantes insistem, como as autoridades coloniais, em construir vias e pontes fantasmáticas, em esbanjar recursos em reconstruções plásticas de edifícios escolares, em detrimento da reordenação do território de modo a potenciar a capacidade trabalhadora e produtiva das populações.

Bipolares, saltamos da megalomania para o imobilismo, sofismando permanentemente. O sofisma tornou-se numa arma capciosa, incapaz de iludir o mais incauto…

O encanto dos nossos governantes é tão antigo como o país que nunca soubemos administrar. É visceral. ESTRUTURAL. 

 

2.5.10

Nortada…

De nada serve querer desvalorizar o adversário, muito menos tratá-lo como inimigo. Quando o jogo é limpo, a verdade vem sempre ao de cima. Infelizmente, a face imunda do egoísmo e da cobiça continua a ter as primeiras páginas, sem que ninguém lhe ponha cobro… Inebriados de fanatismo, pouco produziremos neste mês de Maio. E isso pouco nos importa! Com PEC ou sem PEC, com mais ou menos Papa e mesmo que o Benfica perca o campeonato, o que interessa é que a nortada serene.

 

29.4.10

Vítor Silva Tavares evoca Luiz Pacheco

Na presença dos filhos de Luiz Pacheco, FernandoJoão Miguel e LuísVítor Silva Tavares cativou a plateia de jovens alunos da Esc. Sec. de Camões, ao saber ler e comentar, de forma emotiva e delicada, a obra mais significativa de Luiz Pacheco – COMUNIDADE:

«Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de  carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na  boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão conchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem, compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva.»

Na Biblioteca, que Luiz Pacheco certamente frequentou entre 1936 e 1944, ficou a ideia de que o sarcástico e impiedoso polemista maldito era, afinal, um homem puro.

 

27.4.10

O Gebo e a Sombra (peça de teatro)

I - Raúl Brandão, um dos homens da Seara Nova, 1923, procurou transmitir nas suas obras o ressentimento provocado pela mudança brutal que ocorreu na sociedade portuguesa depois da guerra (1914-1918): «Nunca se viram tão grandes fortunas – nunca se enriqueceu, como agora, de um dia para o outro.» (Memórias, vol. III, p.68.) Fizeram-se, de facto, fortunas. A Baixa de Lisboa foi ocupada por bancos e casas de câmbio. A riqueza tornou-se ofensiva como nunca o fora antes, por estar agora nas mãos de quem a não tivera desde sempre. Políticos e negociantes vindos não se sabia de onde compravam rolls-royces e prédios nas Avenidas Novas. Ao mesmo tempo que os novos-ricos enchiam os teatros, cafés e casas de jogo, as velhas classes médias, colunas da respeitabilidade, sofriam nas garras da inflação (Brandão, Memórias, vol. III, p. 87). (…) O pior, como notava Brandão, eram as consequências éticas da nova nobreza: «Em que fundamentos ou em que lei moral hei de assentar a minha vida se, no fundo, bem no fundo, invejo os que triunfam?» (Memórias, vol. III, p.82.)  Rui Ramos, A Traição dos Intelectuais, História de Portugal, vol. VI (direcção de José Mattoso), p. 551

Na peça de teatro GEBO E A SOMBRA, Gebo, cobrador (e contabilista) honrado, cumpridor do seu dever, mas pobre, esconde da mulher, Doroteia, que o filho João (a Sombra), o rouba, isto é, rouba o patrão da Companhia Auxiliar, expondo-o para sempre à chacota social. No entanto, assume o ato infame do filho, passando três anos na cadeia. Perante as gritantes injustiças que vai testemunhando ao longo da vida, GEBO, objeto de escárnio de quem serve, acaba por se interrogar sobre uma questão que se torna nuclear: «O dever de um homem é ser justo e honrado ou enriquecer?»

Cumprida a pena, Gebo regressa a casa com o problema resolvido. Na prisão aprendera que «a gente só não se arrepende do mal que faz neste mundo.»

No essencial, esta peça não, apenas, nos ajuda a compreender o falhanço da 1ª República, como também o que tem vindo acontecer desde que entrámos na União Europeia. Tal como há 100 anos, os atuais novos-ricos não querem saber nem de honra nem de justiça; só o ENRIQUECIMENTO lhes interessa. Só a RIQUEZA os move.

II - «Primeiro a nossa casa hipotecada e vendida naquele ano em que estive desempregado, 1893 - data negra. Depois a desgraça do filho...» Raul Brandão, O Gebo e a Sombra, Primeiro Ato.

 

A minha interpretação de 27.04.2010 ignorou uma data que, hoje, considero fulcral: 1893. (Esta data é negra porque corresponde à bancarrota parcial de 1892-93. Neste último ano, a dívida pública atingiu 124,3% do PIB. E só em 1902, foi possível renegociar e contrair novo empréstimo amortizável a 99 anos - 1902-2001.)

 Deste modo, a situação de miséria vivida pela maioria da população acentuou-se enquanto uma minoria, onzeneira, enriquecia a cada dia que passava - enriquecia com a miséria dos outros. Esta circunstância é, assim, fundamental para compreender "o teatro de ideias" de Raul Brandão.

De um lado, vemos o Gebo, honrado e cumpridor do dever, mas pobre e desprezado; do outro lado, o filho, o João ladrão, mas revoltado, para quem é preferível «antes morrer do que viver sepultado». A viver na rua (ou na prisão) durante 8 anos (1893-1901), João vai descobrindo que «há criminosos que têm alma e homens honrados que a não têm.» E acaba por ser ele que enuncia uma ideia, mais do que nunca, adequada aos anos que vivemos: UNS SÃO UNS TRAPOS, OUTROS REVOLTAM-SE.

No essencial, a família representa os "trapos" e João, "o revoltado". Mais do que um delinquente, João desestabiliza as consciências, a começar pela do pai, que resolve, depois de roubado e desonrado pelo filho, aliar-se-lhe, respondendo à pergunta de Sofia: «Neste mundo atroz, neste mundo onde não há a esperar piedade nem justiça, só os desgraçados é que têm de cumprir o seu dever?»

Em conclusão, nesta peça, o autor aplica o seu conceito de teatro: este «deveria debater um grande problema social ou psicológico, e interessar o público com "peças sintéticas" que fossem "populares e humanas".»

 

25.4.10

Luiz Pacheco no dia 25 de Abril de 1974

O meu 25 DE ABRIL

Estou na cama de manhã e aproveito para apontar na Agenda o tempo que passa. Tinha ficado na véspera em casa a rever provas. O puto fora para o liceu. Resolvo ir à rua beber uma cerveja e continuar a revisão. Ao pé do chafariz, o barbeiro atira com esta: «então, o Marcello e o Thomaz lá foram ao ar.…» Não percebo logo. Nem acredito como. Mas ele confirma: a Emissora Nacional não funciona, só o Rádio Clube Português é que dá música e de vez em quando comunicados breves. Já mais convencido, convido-o logo a festejar na tasca da Laurentina que era para onde eu ia. E depois, ainda duvidoso, vou com ele à barbearia a ver se oiço algum comunicado. Música ligeira, sem nada de marcial. Canções populares portuguesas, pouco mais. (Até a Amália, parece-me!). Mas passados minutos um comunicado do Comando das Forças Armadas. Aí, adquiro a certeza que é, deverá ser a repetição do golpe das Caldas, mas com outra amplitude. Refere que o público tem ocorrido às lojas, em tentativas de açambarcamento, e manda fechar o comércio. Aconselha a população a manter-se nas suas casas e as forças militares e militarizadas a recolherem aos quartéis e não oferecerem resistência à tropa. A coisa é grave. Parece que não há comboios e para lá de Sete Rios não se passa. Tenho algum dinheiro e resolvo logo ir ver (foi o melhor que fiz: ver para crer). Desço acelerado e vou a casa do Fernando Paços, perguntar se ele sabe alguma coisa. Se sabe não diz. Mas confirma. Acompanho-o à farmácia de Queluz Ocidental e depois (ele aconselha-me que não vá a Lisboa, pois não conseguirei passar – mas eu conheço outro sítio para entrar, ou sair, da minha terra e caminho acelerado. Muitos carros, em fuga discreta?) para cá. Em Queluz, já vejo lojas fechadas, outras a fechar à pressa e uma data de tontos a abastecerem-se para o ano todo... oiço que um tal comprou mais de cem pães. Rica açorda (ou negócio) deve ter feito com eles. Cafés fechados. Há comboios. Meto-me num para a Amadora, depois sigo a pé. No Bairro do Bosque (sempre o intenso movimento de carros a saírem), ainda consigo meter um copo. Não há jornais. Rostos, com as janelas fechadas, assomem entre cortinas. Tudo me dá a ideia de receio (mas em Queluz vi alguns magalas a planar, o que me deixou intrigado). Venho a pé até às portas de Benfica e o ambiente é o mesmo: fila de carros a safarem-se, comércio encerrado, mulheres com sacos de plástico cheios, tensão. Meto-me num autocarro da Carris, de Benfica para o Chile e fico-me um tanto a rir do Paços, que em Lisboa e a andar para o centro já eu vou. No Chile, só uma taberna aberta: bebo mais um copo, estou nas lonas. Animação. Um tipo ao meu lado compra oito maços de Português Suave, também está a açambarcar ou a fumar aquilo diariamente habilita-se a um cancro nos pulmões em beleza e rápido. Aparece gente com jornais (A Capital) e sei que estão a vender para os lados do Império. Vou logo lá, sento-me num degrau e sei as primeiras notícias. Tá bem! Resolvo ir a casa do Henrique, ver se ele estará. Na Carlos Mardel, uma senhora num 1º andar pergunta-me onde vendem jornais. Digo e ofereço-lhe o meu. O marido, que vinha à rua, fica com ele e eu fico reduzido a 30$00. Começo com sede e angústias. Estou em jejum e já andei um bom bocado. Penso ainda ir ao Manaças (António) mas desde a última vez, desde a nossa última conversa, ele não me está a apetecer. E depois, o importante deve estar a acontecer na Baixa. Enfio ao Montecarlo (fechadíssimo) mas consigo topar um tipo a bater à porta da Mourisca (também fechada) e entrar. É que há gente. Vou, bato, o Costa Loiro está a forrar vidros por dentro com papel, talvez com receio dalgum obus. Peço-lhe vintes e ele despacha-me. Meto à Rua Viriato e vou até ao quartel de Santa Marta (todas as tascas fechadas até ali). Dá-me vontade de rir ver os cabeças de nabo reunidos lá dentro, a falarem uns com os outros (é que obedeceram às ordens?). Mas logo ao lado há uma tasca restaurante, porta meio aberta, com gente e muito movimento (guardas a beber, outro a telefonar para casa e sossegar a mulher (?), diz que não há azar). Bebo uma Sagres e como uma sandes. E avanço para a linha de fogo, que não sei onde é. Metros andados, ouvem-se ao longe tiros e rajadas de metralhadora. Tipos que fogem. Mas onde será o tiroteio? Como a coisa parou, continuo a andar. Até que encontro, já não sei onde, o Almeida Santos e um tipo que é revisor no Diário de Lisboa ou Popular, já não sei. Metemo-nos num táxi que sobe pela Calçada do Carmo. Mas logo populares avisam (ah, entretanto, perto do Tivoli, já tinha comprado um Diário de Notícias, com mais informes) que a rua está bloqueada. O carro faz marcha-atrás e mete (por onde?) para o Bairro Alto. Bebemos não sei o quê numa tasca, o revisor vai à vida, o Almeida Santos pira-se e eu avanço para os lados do Carmo. Na Rua da Misericórdia, muita gente, tropa e um tanque de respeito. Da janela da Redação da República, o Vítor Direito e o Afonso Praça (aquele grita-me: «estás muito bonito hoje!», eu levava o sujíssimo albornoz que me deu o Artur), noutra varanda o Álvaro Belo Marques, a quem pergunto: «como é que se entra para aí?», porque a porta da escada da República está fechada. «Vai pelas traseiras!». Vou, mas também está fechada e logo à esquina aparece um vendedor com a última da República. É um verdadeiro assalto. Aí fico a saber dos chefes (Costa Gomes e Spínola) e o alvoroço é enorme. Já não sei bem: se vim ao Rossio, se de repente notei uma grande correria para o Terreiro do Paço. Sem perceber nada do que se passa, sigo a onda. No Terreiro do Paço, começa a chover. Há correrias e encontro uma rapariga que me conhece muito bem, mas não topo logo. É a Maria João, a engenheira química, amiga do Henrique, com outro rapaz. Ficámos abrigados da chuva debaixo das arcadas, depois convenço-os a irem beber um copo ao Terreiro do Trigo (Campo das Cebolas?), não sei já se estava aberto se não. Ela tem o carro no Camões e para aí vamos. Mas o Chiado está cheio de gente, que quer assaltar a Pide. Já não sei se ouvi tiros. Vi ainda as (uma?) ambulâncias, depois quase à porta da Brasileira um rapaz ou homem com a mão cheia de sangue (seco?), que tinha agarrado num rapaz ou rapariga. Começam a chegar fuzileiros, há mais correrias, a Maria João e o rapaz perderam-se de mim. Cheira-me que já chega. Agarro um táxi e arranco para casa da Ção. Pela TV vi depois o resto. Foi bonito e foi rápido. Já posso morrer mais descansadinho.

[Luiz Pacheco, in Diário Remendado, Dom Quixote, 2005]

Nota: No dia 29 de Abril, pela 17 horas, a Escola Secundária de Camões recordará o SER e o DIZER do antigo aluno, Luiz José Machado Gomes Guerreiro Pacheco (1925-2008).

 

19.4.10

Art Research de Jorge Castanho…

 No 58 B da Rua dos Navegantes (Lisboa) é, agora, possível ver, em suporte material, a Fábrica de Anatomias que o Jorge vem disponibilizando online desde Setembro de 2008. Numa visão clássica mitigada, o primitivo (o mitológico) acorda em mim o movimento dos fantasmas que, outrora, habitavam as minhas horas… É com surpresa que acolho a paciência e o rigor do artista que ousa entrar em espaços que eu preferi desertar…

Espero que o Jorge não leve estas palavras a sério, porque, como ele ontem me disse, quem escreve vê sempre as coisas de um modo diverso… O escolho, no meu caso, está de tal modo escondido que as coisas se me escapam antes que as possa reter. E, ao contrário, o Jorge fixa a “res”, mesmo que ela insista em transfigurar-se…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

18.4.10

Robert Longo, Freud's Desk and Chair, Study Room

Uma imagem com mobília, preto e branco, Fotografia de natureza morta, cadeira

Os conteúdos gerados por IA poderão estar incorretos.

Confesso que a exposição ‘Robert Longo - Uma Retrospetiva’, no Museu Coleção Berardo, me impressionou ao ponto de procurar mais informação sobre o artista norte-americano, nascido em 1953. E encontrei o sombrio gabinete onde Freud secava as almas dos seus pacientes. A secretária é me familiar; a cadeira lembra-me uma sentença de morte.

Ao lado, o gigantismo e o colorido de Joana Vasconcelos surpreendem. Mas só isso! Um pouco, como se estivesse de regresso ao séc. XVII: o deslumbramento é efémero…

 

17.4.10

Eyjafjallajokull…

Diversões é título da crónica de Filipe Nunes Vicente (Revista Ler 2010). Para quem não tenha tempo para ler os Pensamentos de Pascal ou as meditações de Freud, designadamente O Mal-Estar na Cultura, vale a pena reflectir sobre os exemplos do Dinis e do Rúben, sobre o modo como ocupam o tempo… «as grandes diversões, paulatinamente, assumem o papel anteriormente exercido pelos narcóticos: tornam-nos indiferentes às limitações da vida.»

Será a natureza (tropical ou vulcânica) capaz de nos fazer sobressaltar? Agora é que o TGV vinha a calhar!

 

14.4.10

Santos do pé-da-porta... não fazem milagres…

Colega de José Cardoso Pires e de Luiz Pacheco no Liceu Camões, Jaime Salazar Sampaio morreu, aqui, ao lado, sem que o tenhamos convocado…

Jaime Salazar Sampaio (Lisboa, 5.5.1925-13.4.2010). Obra: Teatro Completo 1997; Aproximação (1945[1]); O Pescador à Linha (1961)[2]; Os Visigodos (1968); Junto ao Poço (1971); A inauguração da estátua (1974); Conceição ou O crime Perfeito(1979)[3]; Desconcerto (1980); Fernando (Talvez) Pessoa (1982); Magdalena Lê Uma Carta (1984); Olá, Fernando (1988). Poesia: Em Rodagem, 1949; Poemas Propostos (1954); Palavras para um Livro de Versos; O Silêncio de um Homem; O Viajante Imóvel (1979); O Poço (nota incompleta)


[1] - Editada pelo autor e por Luiz Pacheco
[2] - Quando vi Beckett, achei que era tudo o que me faltava para saber o que era o teatro (…) A sua influência na minha escrita é inegável. Ver Entrevista ao Expresso, 6 de Dezembro de 1997.
[3] - Um dramaturgo de mulheres?

 

12.4.10

A caça e a retórica da masculinidade…

«Essas pessoas não sabem o que é o marialvismo. Eu sou um antimiguelista profundo. O marialvismo vem de D. Miguel. (…) Há muita gente profundamente antimarialva que gosta de touros e que gosta de caça. De resto, eu acho que tudo nasceu da caça. Tudo. A começar pela poesia. Tudo nasceu da caça(Revista Ler, Abril 2010, pág. 36.)

«Já fora do terreno, apercebi-me de que o tema do marialvismo surge como recurso retórico central em três outros universos discursivos e/ou performativos: no fado, recentemente construído como “forma musical nacional”, mas na realidade surgido nas classes populares de Lisboa e apropriado pela aristocracia; na tourada e no mundo tauromáquico; e em discursos de mitologia política sobre a “alma nacional”, em tomo do tema do Sebastianismo e da Saudade. Em todos estes campos, um traço comum: encontram-se par a par dois extremos da hierarquia social: na tourada, a aristocracia dos cavaleiros e a plebe dos forcados; no
fado, a aristocracia boémia atraída pelo exótico e o lumpen proletariado urbano; no saudosismo-sebastianismo, as figuras mitológicas de reis divinamente inspirados lado a lado com uma Nação composta de camponeses. A figura do Marialva, a do fadista, a do rei providencial, a do cavaleiro, são protótipos de masculinidade: compõem-se, mais do que por oposição ao feminino, por oposição a uma “falta” de masculinidade na burguesia, na intelectualidade, na modernidade; e discursam sobre contradições dinâmicas da masculinidade ideal: entre a valentia e o deboche, entre a nobreza e a pulsão dos instintos.»
 (Miguel Vale de Almeida, Marialvismo)

O escritor (José Cardoso Pires) define-o mais lapidarmente: o marialva é um indivíduo interessado num tipo de economia e política assentes no irracionalismo. (Miguel Vale de Almeida, Marialvismo)

Por mais que o Escritor pense que é um antimarialva convicto, talvez valha a pena reler e repensar a obra de Manuel Alegre, pois o homem que já tem uma cátedra na Universidade de Pádua não descura a hipótese de ter outra em Belém.

 

10.4.10

Sem muralhas… 

Durante séculos, empenhámo-nos em construir muralhas. Criámos um espaço público. A “praça” (a plazza; a ágora) era o centro da vida pública. Ricos e pobres, descíamos ao “centro” e partilhávamos o que queríamos tornar público. Lá, tomávamos conhecimento do que se passava no mundo.

Do outro lado da muralha, residia o privado, individual e institucional. Indivíduos e instituições apregoavam o direito à vida privada, à intimidade, ao sigilo, à confidencialidade, ao segredo de estado.

Hoje, a muralha abriu uma fenda de tal ordem que nem os indivíduos nem as instituições resistirão à voracidade da rua.

A Igreja começa a ver na rua aquilo que tanto trabalho deu a preservar. O Estado é pasto da arraia-miúda. A Escola, ao querer sair à rua, acabará por sacrificar os pilares que a suportavam.

 

8.4.10

Borras…

Infelizmente, nem tudo é plano, circular e colorido. Vergado pelo odor das borras de azeite, tento dar mais um passo em frente, sabendo que a felicidade não passa de uma faúlha. Há odores capazes de destruir a luminosidade do fio translúcido do azeite.

 

 

6.4.10

O ensino das línguas estrangeiras

Dados publicados pelo diário i, no dia 5 de Abril de 2010:

3º Ciclo

Secundário

Inglês

288294

120257

Francês

228095

15171

Espanhol

37607

14450

Alemão

1712

2528

Ao compararmos os dados do 3º ciclo com os do secundário, vemos que, para além do elevado número de alunos que não continuaram os estudos, a aposta numa segunda língua estrangeira é diminuta. O estudo do alemão é residual e a queda do francês é inexplicável. Entretanto, o espanhol prepara-se para se tornar na segunda língua estrangeira.

Deste modo, de pouco serve falar da internacionalização da economia ou na aposta na qualificação dos recursos humanos. De facto, a diversificação dos mercados e dos nichos de ciência e de cultura deveriam obrigar-nos a uma política do ensino das línguas estrangeiras totalmente diferente da actual.

Sem retirar importância à aprendizagem do inglês, convém relembrar que esta é a língua da globalização. Ora um país pequeno só poderá sobreviver à hegemonia da cultura anglo-saxónica se conseguir penetrar em universos linguísticos e culturais diferenciados. O futuro da própria emigração passa pelo domínio do maior número possível de línguas estrangeiras.

Curiosamente, a forte imigração que ainda se faz sentir em Portugal deveria motivar-nos a aprender as línguas desses “estrangeiros”. Todavia, tal como fizemos no período colonial em que rejeitámos as línguas dos “nativos”, continuamos a pensar que os imigrantes é que devem aprender a língua portuguesa.

Em Portugal, quem é que define a política do ensino das línguas estrangeiras?

 

4.4.10

No cante, o miúdo aprende a construir a muralha…

 O Aqueduto, o verdadeiro, vê passar a sua réplica e, impávido, procura outros horizontes, talvez, saídos do cante alentejano.  O cante movimenta-se como muralha dando voz à alma colectiva.  

 

3.4.10

O miúdo que pregava pregos numa tábua...

Em Serpa, li, em poucas horas, a última novela de Manuel Alegre. Por aqui ainda não encontrei o “miúdo” a não ser nas páginas dos jornais. E dificilmente o encontrarei, pois, o autor reconhece «eu sou eu mesmo a história e as personagens». Ora Serpa é terra que, em vez de ter riscado a Ode Marítima, prefere rasurar o EU.

Do ponto de vista do género, este livro da vida parece-me uma daquelas novelas em que as personagens mais não são que a circunstância do herói. Ou será do anti-herói? O miúdo lembra-me o pícaro do Fernão Mendes Pinto! No entanto, não creio que o autor queira ir tão longe.

De certo modo, por entre considerações felizes sobre a descoberta e aprendizagem do ritmo da vida e da palavra poética (da escrita), há um «chegar-se à frente» que incomoda. Os protagonistas da obra, sobretudo, em prosa, lembram-me aqueles putos, algo machistas, marialvas e narcisistas, sempre à espreita para responderem perante o espelho: prontopresente

Para quem já leu grande parte da obra de Manuel Alegre, «O Miúdo Que Pregava Pregos Numa Tábua” repete a maioria das obsessões do autor, e insiste num retrato confessional do EU, herdeiro do bom selvagem, capaz de resistir à maldade social, e de reconstruir a memória, quase sempre, em seu favor.

Afinal, todo o herói acaba, um dia, por falhar ou acertar o tiro quando menos lhe convém. 

PS: De qualquer modo, recomendo a leitura desta novela a todos aqueles que ainda não perceberam o que é a literatura

 

2.4.10

O Museu do Relógio em Serpa…

Serpa é uma encruzilhada de memórias (de tempos). E para quem negligencie a passagem das horas, nada melhor que entrar no Museu do Relógio de António Tavares D’Almeida. Este museu, privado, é único na Península Ibérica e abriga 1800 peças. Algumas são únicas e capazes de nos recordar como os poderosos queriam marcar a megalomania do respetivo tempo.

1.4.10

Serpa… outra cal, outra luz…

De Lisboa a Serpa são 199 km. Metade da distância é olival a perder de vista… aposta de espanhóis e de portugueses que recebem da União Europeia milhões e milhões de euros! Agora que se publicam os prémios recebidos pelos gestores das principais empresas e, também, intermináveis listas dos devedores ao fisco, bom seria se soubéssemos quem são os novos senhores do Alentejo e, sobretudo, qual é o seu contributo para o tesouro nacional.

À margem, ou talvez não, o parque de campismo encontra-se cheio de holandeses, alemães e ingleses que nos procuram não só pelo sol e pela tranquilidade da planície, mas, também, porque o preço da estadia é convidativo.  

 

31.3.10

O Santuário de Nossa Senhora de Lurdes

O Santuário de Nª Senhora de Lourdes implantado num cabeço na localidade de Outeiro Pequeno, paróquia de Assentis, Torres Novas, atraiu nas primeiras décadas do século XX elevado número de crentes e peregrinações. Foi um lugar de fé, até ao momento em que as discórdias sobre a sua verdadeira pertença começaram a surgir. Tudo começou em 1908, antes da implantação da República, em 1910, e das aparições de Nossa Senhora em Fátima…

Sempre olhei para aquele local com algum incómodo. Encerrado, sem gente, ventoso, de costas para a Serra de Aire. Certamente construído pelo fervor de uns tantos crentes de Deus e do Rei, o santuário seria um baluarte contra os ateus e os maçónicos… Hoje, voltei a subir o cabeço. Tudo fechado, o mesmo vento de outrora, algum musgo e aves furtivas… Do outro lado da estrada, uma lixeira a céu aberto no país dos sucateiros…

Entretanto, a rádio transmitia da Assembleia da República a missa republicana, onde Sócrates pontificava e exortava os hereges a apresentarem medidas para resolver os problemas do País…, como se ele os quisesse ouvir… Já nem a fé nos salva!

Quanto ao proprietário do santuário, o problema está QUASE resolvido… 100 anos depois! E quanto à lixeira, não se percebe se a ASAI (?) costuma atravessar o concelho de Torres Novas. E quanto à missa republicana, o melhor é desligar o rádio. Pensando melhor, o que me está a faltar é CARIDADE, porque a mensagem de LOURDES é clara: DEUS É AMOR E ELE AMA-NOS TAL QUAL SOMOS. Pelo menos foi o que a Virgem Maria repetiu por dezoito vezes a Bernadette Soubirous, na Gruta de Massabielle. No essencial, o mesmo faz Sócrates quando se dirige aos deputados: EU SOU AMOR E AMAI-ME TAL QUAL SOU.

 

 

 

 

26.3.10

Num país de tenentes…

O delator é uma criatura querida. No Parlamento, sucedem-se as comissões de ética e de inquérito que, inquisitoriamente, procuram a verdade. E já percebemos que elas não funcionam sem delatores e relatores. Mesmo que não queiramos, podemos ser chamados a delatar.

Na comunicação social, já não há, como antigamente, fontes. Agora, há escutas largadas na redação pelos delatores. E o redator passa a relator ao transcrever as escutas.

Para que ninguém pense que uma conspiração eclesiástica fez ressurgir o Tribunal do Santo Oficio e os seus vorazes sequazes (os abnegados familiares!!!), o Ministério da Educação decidiu introduzir na escola pública um novo actor: o excelentíssimo relator - mistura de redator e de controlador /tutor... Trata-se evidentemente de uma atenciosa cedência aos escribas, comissários políticos, diretores espirituais, gurus e outros que tais. Anuncia-se, deste modo, uma nova casta que não deixará de ser pasto dos corvos.     

 

24.3.10

Tenentes…

(Quando os tenentes se insinuam junto dos chefes, os pelourinhos crescem…)

delator aponta o responsável por uma infração, com o intuito de comprometer o denunciado, tirando proveito junto do chefe. O relator dá, por escrito, um parecer sobre a acção e a ética de um profissional para ulterior deliberação do chefe. O capataz é um indivíduo lambe-botas capaz de se fazer ouvir pelo chefe.

Leio o i, oiço a Antena 1, ligo o canal Parlamento, atravesso a rua, desço a escadaria, dormito no autocarro, desperto na areia… e os tenentes, frenéticos, elevam a voz até as minhas sinapses explodirem.

Só não compreendo porquê… eu nunca quis ser chefe de ninguém! Mas se o fosse, teria como regra de vida: a eliminação dos tenentes.

 

 

 

 

 

21.3.10

Risonho, o futuro da Esc. Sec. Camões


E a propósito, para quem se interroga sobre o futuro da ciência e da poesia, transcrevo ARS POETICA de David Mourão-Ferreira:

Roubado à natureza o dossier secreto
Patente a analogia entre o fundo do poço
o rosto de Narciso    o sangue do incesto
há de tudo prender-se aereamente solto
Que o verbo seja um espelho  

Ao mesmo tempo um véu
Que não baste   no lago   a pureza do rosto
A lira é com certeza a mão esquerda de Orfeu
Mas é a mão direita a que revolve o lodo.

 

20.3.10

Lugar de massacre…

 Sembène Ousmane (1923-2007).

Hoje vi, finalmente, o filme “Camp de Thiaroye” (1988), na Biblioteca do Instituto Cultural Romeno.

Em 1944, um batalhão de atiradores de diferentes religiões e culturas africanas, acantonado no campo de Thiaroye, no Senegal, espera a desmobilização e o pagamento dos serviços prestados à potência colonial – a França. Muitos deles lutaram em França contra a Alemanha nazi, tendo mesmo experimentado os campos de concentração.

No entanto, esse contributo para a libertação da Europa de nada lhes serve, pois acabam numa cova comum, chacinados pelo racismo da hierarquia militar, simpatizante do regime de Vichy.

Um filme que chega a ser divertido porque, apesar do que separa aqueles atiradores africanos, eles acabam por se entender em nome da justiça… É, todavia, um filme amargo e trágico, porque a Europa continua sem considerar África como sua parceira…

Nota: O título “Lugar de Massacre” lembro-me, agora, é o título de um romance do esquecido Martins Garcia. Talvez valha a pena lembrar, a propósito deste filme, a dedicatória do autor açoriano: «a todas as vítimas da paranoia e da incompetência dos déspotas, caídas para nada no campo do dever e do absurdo.»

19.3.10

A mentira…

Tenho um livro para ler e não o leio. Em alternativa, vejo um filme baseado numa adaptação da obra… e faço crer que é a mesma coisa, como se fosse possível reproduzir todas as vozes que atormentam o escritor…

Tenho um livro para apresentar na sala de aula e não o leio. Procuro uma sinopse na internet, copio-a e espero que o professor seja tão néscio que ainda bata palmas…

 

14.3.10

A Processionária…

  Acabo de tropeçar na Lagarta do Pinheiro, vulgarmente conhecida como Bicho da Peçonha. Mata o pinheiro e provoca irritações graves na pele, olhos e sistema respiratório.

Bem me parecia que os congressos e as peregrinações não eram invenção humana… sem qualquer desconsideração pelas formigas. A partir de agora, posso criar e herméticas metáforas. E quanto à peçonha que vem atacando os pinheiros, vou passar a associá-la à peçonha que, no século XVI, invadiu as ruas de Lisboa vinda da Ásia e nos tornou definitivamente vítimas da abulia. Ou seria da acrasia?

(Ó meu velho Sá de Miranda tira-me daqui!)

 

13.3.10

Depois do crepúsculo…

As noturnas aves apoderam-se do vazio e à desgarrada impõem um cântico estridente em tudo diferente da harmonia do cântico diurno. Nesta passagem, apercebo-me que as palavras e as imagens ficam incompletas sem as vozes da terra e do ar… No sono que se aproxima, talvez o coro se torne uníssono e sonho da noite anterior se desfaça…

Sonho de cacifo…

Que eu saiba, os testes ainda se encontram no cacifo, à espera de terça-feira. Só eu tenho a chave, creio… Todavia, por volta das cinco da manhã de hoje, a quatro dias de distância, ao preparar-me para subir a escadaria, por volta das 7h50, dei de caras com o autor de um dos testes, acompanhado do respetivo encarregado de educação. Esperavam-me para me pedir satisfações: eu riscara uma série lexical, pois não considerara correta a resposta em que B. me obsequiava com uma lista de hipónimos… De facto, como não enxergara nenhum hiperónimo, não entendia a classificação proposta e, sobretudo, não entendia que fosse possível alguém responder a uma pergunta que eu não formulara…

Até hoje, já me acontecera antecipar durante o sono as perguntas de que precisava para um teste. Mas nunca chegara a este ponto. Se terça-feira, B. e o respetivo encarregado de educação, por volta das 7h50, estiverem à minha espera no hall ver-me-ei obrigado a mudar de vida…

Neste caso, ao contrário do que Urbano T. Rodrigues pensa, nem no sonho é possível encontrar a redenção… Eis o motivo por que eu respeito todos os suicidas e abomino os diretores regionais que veem atenuantes nas «fragilidades psicológicas», como se estas fossem inatas ou capricho dos deuses. 

 

11.3.10

Pontes…

 Pontes sem alma lançam-se para as margens, jazem sobre o rio barrento, à espera de que lhes façam justiça… Tempos houve que pensei que era ponte ou esteio. Quando o desencanto crescia, via-me na margem ou, apenas, orla… Hoje, nem ponte nem orla! Desespero de ouvir os políticos e os mosquitos, e sonho com a enxurrada definitiva que nos liberte da vacuidade e da imbecilidade…

(Na parede do fundo, olhos pueris e de riso escarnecem de mim…)

 

9.3.10

A culpa não é do Senhor Gulbenkian…

Esqueci-me de dizer que os patos da foto (post anterior) são do Sr. Gulbenkian. De facto, os patinhos que vivem nos jardins das fundações não são afetados pelo P.E.C. Estas existem para não pagar impostos ou, pelo menos, para reduzir a carga fiscal dos gansos que nelas crescem.

Bom seria que conhecêssemos todos os gansos deste país! O P.E.C. só deveria ser aprovado, depois da lista dos gansos portugueses ter sido colocada online. Sempre poderíamos aproveitar o tempo livre para depenar uns tantos, em vez de sermos todos depenados – os patinhos é bom de ver.

 

 

 

 

7.3.10

Patinhos…

Vem aí o Programa de Estabilidade e Crescimento! E nós, patinhos, vamos pagar mais uma vez. O patinho começou a trabalhar cedo. Foi trabalhador-estudante. Convenceu-se facilmente que os sacrifícios pedidos beneficiariam a nação dos mais desfavorecidos – os desempregados, os idosos, os doentes e os debilitados. Os patinhos acreditam na justiça, na palavra dos políticos, na solidariedade!

De vez em quando, os patinhos levantam a cabeça e perguntam por que motivo são eles que pagam sempre a crise. Deixaram de compreender o significado da palavra “crise” – momento perigoso e decisivo. No país dos patinhos, a crise não tem passado nem futuro. A crise é. Como se fosse Deus, a crise dirá eu sou aquela que é para os patinhos. Não tem passado, mas vem de longe, a crise… e os patinhos vão continuar a trabalhar e a descontar…

Com tanta chuva, resta-nos o charco… E se nos afogássemos todos, de que serviria o P.E.C.?

 

4.3.10

Desse tempo que poderia ser agora…

 «A ilha saturada de água ressuda agora em fontes, cascatas e ribeiros, cujo murmúrio ouvido no jardim, como um solo de flauta modulado a distância, os melros acompanham briosamente chilreando em coro.

Mas o que ia no céu não eram meras combinações ornamentais; as nuvens davam ali espetáculos ordenados, de acessível compreensão, como depressa verifiquei. Comédias e tragédias e autos e farsas

Manuel Teixeira-Gomes, Cartas Sem Moral Nenhuma (XIII).

Comentário: As palavras têm 100 anos. Todavia, a cor e a harmonia são da mesma idade. E só o artista consegue dar conta desse tempo que poderia ser agora, não fosse a cobiça e a rudeza do aluvião humano.

Por enquanto, acordo cedo para ouvir o chilrear solitário do melro que mora na palmeira em frente…

 

 

 

 

 

1.3.10

Em tempo de mentira…

Despe-te de verdades/ das grandes primeiro que das pequenas/ das tuas antes que de quaisquer outras /abre uma cova e enterra-as / a teu lado (…) Discurso ao príncipe de Epaminondas, Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, 1956.

E se lançássemos este grão à terra, agora que ela está tão macia!

 

27.2.10

De criança a adulto ou eternamente adolescente…

 (Se eu bem compreendi o Professor Jorge Ramos do Ó, os primeiros moinhos são coevos da minha infância, e os segundos contemporâneos da minha adolescência – construção da Escola, em particular dos Liceus. Perante o adiamento da idade da reforma, pareço condenado a nunca sair da adolescência!)

Outrora, aos 10 anos, a criança ao entrar no mundo do trabalho tornava-se de imediato adulta. Uma criança adulta, incapaz de se adaptar à mudança tecnológica, ao ritmo exigido pela produtividade…A Escola pública do início do século XX resulta da necessidade de produzir um proletário mecânica e moralmente adaptado às novas necessidades de produção. Deste modo, foi criado um longo período de aprendizagem cujo termo significava, para quem o superasse, a entrada no mundo do trabalho, devidamente formatado e moralmente adequado.

Esta engrenagem mecânica e moral apostou na adolescência para dar corpo às juventudes fascistas e comunistas que nos campos de batalha cometeram as maiores atrocidades em nome da superioridade da raça ou da classe. Durante muito tempo saiu-se da adolescência para o campo de batalha, criando a ilusão que o trabalho nunca faltaria a quem a Escola acomodasse para a vida activa.

Se houver coerência neste meu raciocínio, Jorge Ramos do Ó terá razão ao afirmar que na Escola nada mudou nos últimos 100 anos. Não mudou a Escola, mas mudou o Mundo. A organização, disciplina e conteúdos propostos pela Escola já não são necessários, sobretudo desde que a escolaridade se tornou obrigatória (4, 6, 9, 12 anos).

Chegámos a uma encruzilhada, em que ou alargamos a escolaridade até aos 35 anos e, consequentemente, a adolescência, ou encerramos as Escolas e o respetivo paradigma. Às portas do caos, acabaremos por medir forças mais uma vez, a não ser que o planeta ponha fim à aventura humana.

 

 

24.2.10

…a existir só agora pode ser

(…) “Podes partir. De nada mais preciso / para a minha ilusão do Paraíso.David Mourão-Ferreira


Se o Paraíso não está nem antes nem depois, a existir só agora pode ser, o que pressupõe que as categorias de passado, presente e futuro não passem de dimensões do agora. E creio ser essa a procura do existencialismo que para se afirmar, rejeitando o passado e o futuro, inaugura o parque da memória, escalando os prazeres em sedução, conquista e história dita /escrita.

Olhando um pouco mais de perto, embora não o tenha dito, foi essa a lição do poeta Vasco Graça Moura, ao convidar-nos a dizer, ouvir, memorizar os versos do David Mourão-Ferreira. Em cada verso escorre o agora, nas suas dimensões de passado, presente e futuro… E esse é o território da poesia, do ser… e sempre que ela acontece, o paraíso ganha corpo.

~

 

 

 

 

22.2.10

A ribeira do Funchal…

 Dia 29 de Outubro de 2004. Naquela data, pensei que havia alguma coisa de errado. Quase seca e suja, a ribeira destoava naquele jardim… como se tivesse sido esquecida. De súbito, acordou e afogou a cidade num mar de lama e de morte.

 

21.2.10

Esc(re)ver…

Escrever, quando as forças da natureza reivindicam o espaço que lhes foi sonegado, ontem, na Madeira, hoje, sabe-se lá, no Continente, pode parecer um acto de alheamento. No entanto, escrever tanto pode ser sobre leitos de rios, ribeiras e arroios que foram ocupados pela ignorância ou pela cobiça dos homens, sobre as encostas e as falésias a quem inadvertidamente matamos os socalcos ou sobre o alfaiate, que, sozinho, insiste em varrer o lodo Tejo e engolir todas as minhocas que lhe surgem.

E também se pode escrever sobre o Poeta (D. M-F.) que anunciava ao mundo (ou seria às mulheres?): «Prazeres que prefere: os que o papel e a pele lhe proporcionam». Os prazeres tácteis, diria eu, de quem não resiste à tentação de sentir o mundo na ponta dos dedos!

Escrever é, assim, dar luz ora à pele ora ao osso, sem esquecer uma certa adiposidade que os pode enredar. E a propósito, não posso deixar de me interrogar sobre a tradução do título de um filme de François Truffaut LA PEAU DOUCE, em português, ANGÚSTIA, estreado em Portugal a 8 de Outubro de 1965. A doce pele da jovem Nicole que incendeia e arruína Pierre Lachenay, traduzida em português, perde a força perturbadora que o corpo irradia para se transformar num sentimento decadente e irreversível – angústia. Malhas que o império tecia!

 

19.2.10

Uma boa notícia…

Fernando Nobre não tem qualquer hipótese de chegar à presidência! No entanto, vai obrigar os políticos a repensar as dimensões da acção política. No essencial, Fernando Nobre é herdeiro de Lurdes Pintassilgo cujo tempo político foi efémero… Será Fernando Nobre capaz retomar os valores da antiga primeiro-ministro?

16.2.10

O Tejo

 Nas estradas do passado, há uma que, a espaços, reaparece. O Tejo. Ultimamente, vem ocupando cada vez mais espaço. Aqui, em Alhandra, em dia chuvoso de Carnaval, o Tejo corre cinzento, cor de cimento… pronto a mudar de mãos com o consequente empobrecimento das populações ribeirinhas, já de si tão abandonadas. Os sinais de decadência estão à vista. Basta olhar as casas em ruína, a sinuosidade das vielas. Nem Deus se mostra disponível, tão íngreme é a escadaria! 

O Tejo devia ser uma via nobre e estruturante do nosso crescimento; pelo contrário, arrasta-se ora tímido ora revoltado sob o olhar indiferente dos governantes que só se lembram dele para construir mais uma via rápida, como se ele não passasse de um escolho... 

 

14.2.10

Caminhos II

De cima, não avisto o lugar onde outrora subia a estrada que se perdia na curva dos moinhos. Olhava a serra próxima que matava o horizonte; uma encosta, em labareda, cegava-me a vida. Se virava à esquerda, percorria dois, três quilómetros, e regressava à origem. Durante anos, a estrada orientou-me para a direita, levando-me a outro castelo, cujas muralhas se tornaram confidentes, muralhas fernandinas, outrora testemunhas da barbárie de D. Pedro I, ali, na janela do Condestável, em nome de amores proibidos ou imaginados…, também eu fui atirado à vida por insuficiente fé.

De regresso à origem, sem consciência da minha vizinhança com Pedro Álvares Cabral, jazente na Graça, deixei de virar à esquerda ou à direita, e passei a caminhar em frente, desembocando nas margens do Nabão, donde, na encosta, observava o Convento de Cristo, como se este ali estivesse para me obrigar a reflectir sobre a fé que nunca compreendera…

À esquerda, à direita, ao centro… sempre o castelo e a encosta que me cegavam a vida. E lá longe, lá em cima, ficam África e o Brasil… e eu continuo aqui em baixo. Sem fé em Deus e nos homens. Até quando? Só os caminhos continuam a levar-me…

 

 

13.2.10

Caminhos de Ourém

Do terramoto de 1755, sobrou apenas o túmulo do IV conde de Ourém, neto de Nuno Álvares Pereira e de João I. No entanto, logo no reinado de D. José, este mandou reconstruir castelo e igreja. 

Castelo, túmulo e pelourinho evidenciam a riqueza herdada de D. Nuno Álvares, senhor quase absoluto do território, em paga do seu patriotismo, entre 1380 e 1385. O seu neto viaja para terras de Saboia e de Itália e consigo traz o estilo italiano, visível no castelo e pelourinho (a águia de Saboia).

A abertura à Europa, começou cedo, apesar de, quase simultaneamente, lhe termos voltado as costas. A sombra de Espanha atirou-nos ao Atlântico e, logo que nos distraímos, lançou-nos nos braços dos jesuítas.

 

11.2.10

Preocupante

Vivemos um tempo em que todos temos opinião sem sentirmos necessidade de a fundamentar. Deixámos de procurar e ponderar argumentos. Os bons e os maus exemplos da História não nos interessam minimamente. Acreditamos piamente nos nossos caprichos e desvalorizamos por inteiro o estudo e o trabalho. A paródia tornou-se o género predileto.

Ora, como bem sabemos, a paródia sempre recorreu à manipulação dos dados e ao empastelamento da informação. Em Portugal, a paródia é um género antigo e temível. Actua à sombra da liberdade de expressão e não resiste a censurar ou até em liquidar o alvo.

Paradoxalmente, a paródia está a matar a caricatura.

 

6.2.10

Destroços em Escaroupim

Em ESCAROUPIM, o barco era o berço, a câmara nupcial, a oficina e a tumba para os AVIEIROS, oriundos de VIEIRA DE LEIRIA. Em Junho/Julho de 2005, passei por aqui. A estrada melhorou, o restante estagnou. Em tempo de profunda crise, o Tejo corre lamacento; as mulheres, ao sol, conversam; os homens escondem-se na cantina / centro cultural dos avieiros.

E eu vou pensando que, um dia, talvez, um Governo decida criar um programa nacional de cultivo de 20% dos campos deste país… Se isso acontecesse, quantos desempregados encontrariam um rumo?

E se limpássemos as margens e os pegos dos rios? E se reflorestássemos, montes e vales? E se recuperássemos o património?

Será assim tão dispendioso e difícil criar um projecto nacional que aproveite a mão-de-obra disponível?

 

2.2.10

Rendilhado…

  A poucos metros de distância, a solidez da cor esmaga cúpulas de outrora; a delicada renda aberta liberta o verde da copa… E eu descanso o olhar num mergulho ascensional que me deveria afastar do labirinto em que me deixei enclausurar. Aqui, as regras ficam para trás; o rumor esfuma-se; apenas, sobram resquícios amorosos de livre-arbítrio …

(O resto é desencanto, alheamento… enorme maçada.)

 

30.1.10

Para além do futuro…

 Há o perto e há o longe. Do presente, apenas a proximidade onde se esconde o cemitério anunciado pela forma esguia e gótica – sensações de ausências por explicar. Do passado, seis moinhos perfilados testemunham os destinos breves e desprendidos; ao mesmo tempo, trazem de regresso o atalho e o tojo, o burro e a saca, o moleiro e a mó – farinha e farelo da existência.

Fica a bifurcação, onde, por enquanto, nada passa e que eu percorro só de a olhar.

 

27.1.10

A chave do Homem…

Por mais hipóteses que coloquemos sobre o Homem, dificilmente chegaremos a algum lugar se ignorarmos a chave que Camões nos deixou. Podemos vasculhar lugares, linhagens, amores furtivos, brigas noctívagas, simples alistamentos ou desterros, heroicos naufrágios românticos, protetores e detratores, esquecimentos deliberados…, a chave do homem está à nossa mão:

«Nem me falta na vida honesto estudo

Com longa experiencia misturado,

Nem engenho, que aqui vereis presente,

Cousas que juntas se achão raramente».

Camões, Os Lusíadas, X, 154.

E essa chave resume-se à típica tríade camoniana: HONESTO ESTUDOLONGA EXPERIÊNCIAENGENHO.

Como diria Cícero: «doctrina» ou «ratio» ou ainda «ars»; «exercitatio» ou «industria»; ingenium» ou «natura» …

(Se nos inclinarmos um pouco, ainda poderemos acompanhar o Poeta e entreabrir a porta do futuro…)

PS: Não vale a pena invetivar quem não procura a chave ou, então, já a perdeu. A NATURA, não a podemos escolher… e a HONESTIDADE já teve melhores dias.

 

25.1.10

Dar, ou não, a dica…

1.      Ontem, percorri um troço de cerca de 30 km da N2 e fiquei estupefacto com a degradação daquela estrada nacional. Será que o objectivo é obrigar os automobilistas a procurar a autoestrada e a pagar portagens? As consequências estão à vista: a desertificação do Alentejo e o isolamento das populações que restam.

2.      Ontem, também, recebi um “comentário” da Xica a solicitar-me uma dica. Diz ela que leu (mas não compreendeu nada!) a peça O RENDER DOS HERÓIS, de José Cardoso Pires. Xica não estudou certamente a História do séc. XIX, designadamente, a governação do Costa Cabral, a revolta da Maria da Fonte e o movimento da Patuleia. Sem esse estudo, dificilmente, poderá compreender a ascensão e queda do populismo. E nada entenderá da pretensão de José Cardoso Pires de retratar o salazarismo dos anos 50-60 do século passado.

3.      «Dar a dica» dar a alguém a indicação que lhe serve para realizar o que pretende.

4.      Um dia destes, ninguém cruzará a Nacional 2! Um dia destes, ninguém lerá O RENDER DOS HERÓIS!

5.      Um dia destes, navegaremos tão céleres que os espelhos embaciarão de vez.

 

23.1.10

Cores líquidas na barragem de Odivelas

 Na barragem de Odivelas. Longe da cidade caótica, raras são as pessoas; apenas alguns coelhos, surpreendidos, precipitam-se para os juncais. 

 

22.1.10

As Batalhas no Deserto

O escritor José Emílio Pacheco nasceu na cidade do México em 1939 e cresceu durante a presidência de Miguel Alemán Valdés (1946-1952).

O mandato de Miguel Alemán (Valdés) ficou marcado por um forte desenvolvimento industrial, resultante da aposta na construção de estradas, caminhos de ferro, portos, escolas, bairros de renda económica, e no turismo. As mulheres puderam votar pela primeira vez nas eleições municipais. No entanto, este espírito empreendedor acabou por degenerar no enriquecimento escandaloso dos políticos que negociavam os contratos …  A moeda acabou por desvalorizar provocando a ruína da classe média e dos mais pobres…

A história de amor impossível, entre o jovem imberbe e a misteriosa mãe do amigo Jim, decorre num cenário de crise moral, social e económica, resultante da ganância de uns tantos que, sob a capa do desenvolvimento do México, criam fronteiras que muram e asfixiam as classes mais numerosas… Progressivamente, uma elite apropria-se da riqueza… tal como acontece nos dias de hoje, aqui, em Portugal… A descrição da acção de Miguel Alemán não deixa de nos fazer pensar em Sócrates…

 

20.1.10

Do amor à pátria…

Nas primeiras páginas do Contrato Sentimental, de Lídia Jorge, encontro um poema do mexicano José Emílio Pacheco que começa por afirmar «Não amo a minha pátria. / O seu fulgor abstracto inacessível. / Porém (ainda que soe mal) daria a minha vida/ Por dez dos seus lugares, certas pessoas…».

A leitora, Lídia Jorge acaba por desenvolver a ideia de J.E.P., no conjunto de textos em que nos convida a apostar no Portugal futuro, mesmo que isso signifique romper com o Portugal expansionista e colonizador… Involuntariamente, penso no verso de Pessoa /Reis "Prefiro rosas à pátria, meu amor." E também nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, de Antero de Quental, ciente de que a Lídia Jorge falta a competência argumentativa de Antero e a subtileza interpretativa de Eduardo Lourenço, sem esquecer o messianismo luminoso de António Quadros…

Nesta deriva comparativa, começo a ler As Batalhas do Deserto, de José Emílio Pacheco, desperto para um critério de leitura de Rosa Montero que divide os autores em memoriosos e amnésicos. Dicotomia que me agrada, pois, sem ser autor, não deixo de me situar do lado daqueles (os amnésicos) que "não querem ou não podem recordar; certamente fogem da sua própria infância e a sua memória é como um quadro mal apagado."

A esta hora, decido não falar da surpresa que é ler As Batalhas do Deserto, porque, de facto, estou a reler Cão Como Nós, de Manuel Alegre e a pensar no modo como o candidato à Presidência da República conjuga: cão como nós / cão como tu / cão é cão. E também não vou concluir a reflexão, porque Sarah Kane me está a recordar que antes de adormecer ainda devo terminar a leitura da peça RUÍNAS.

 

17.1.10

Os novos lugares

Os novos espaços escondem e revelam. A memória do passado fica em quem ali trabalhou, uma memória de guerra, colonial, em nome de uma pátria indivisa e sobranceira. Talvez, convenha esquecer essa pátria que colapsou nos anos 70 do século passado! A dinamite serve agora para abrir as fundações do futuro, em condomínio fechado, apesar de alguns equipamentos sociais – as famigeradas contrapartidas do negócio! Com vista para a ponte Vasco da Gama, as gruas, desajeitadas, suportam o peso dos materiais e da ambição humana, libertando os novos escravos para tarefas menos árduas ou simplesmente para o desemprego permanente, para a indigência…

Na nova pátria, os polícias continuam a autuar os condutores incautos, indiferentes aos veículos estacionados na mesma rotunda. Os outdoors convidam-nos ao aconchego evasivo da fantasia. O verde estende um breve tapete do que foram hortas vicejantes e autossuficientes. Os candeeiros, inúteis a esta hora do dia, anseiam que a penumbra que lhes devolva a razão…

E eu, simplesmente, caminho a pensar que a professora Amélia Lopes acaba de fazer um diagnóstico arrasador do insucesso escolar em Portugal: “Mais velho, mais qualificado e maioritariamente do sexo feminino” o docente perdeu o pé… Quem precisa de experiência, de exigência, de compreensão nesta nova pátria?

De facto, o rejuvenescimento esconde o passado. E eu continuo a deambular, evitando falar de Cesário Verde, não vá ferir a epiderme dos nautas do presente.

 

16.1.10

Sem glória nem grandeza…

Uma imagem com edifício, céu, ar livre, arco

Os conteúdos gerados por IA poderão estar incorretos.

Outrora, os imperadores romanos, vitoriosos, mandavam erguer monumentos para inscrever o seu nome na História. Napoleão, imperador, em 1806, também, não resistiu a essa pequena vaidade.

Hoje, deparei com um Arco do Triunfo no Museu da Eletricidade. Felizmente, é de plástico! E por perto não avistei qualquer imperador. Só pescadores de rio, ciclistas de fim-de-semana e casais de meia-idade. O Sol escondera-se, envergonhado de ainda haver quem o queira ofuscar com o poliéster.

 

15.1.10

Haja Inverno na terra, não na mente. (FP/Ricardo Reis)

O forte sismo (7.0 na escala de Richter) que atingiu o Haiti terá feito mais de 100 mil mortos. A ilha caribenha virou cenário de destruição quase total.

Os mercados de Wall Street fecharam em queda, penalizados pelos títulos da banca, após divulgação dos resultados do JP Morgan, cujas receitas ficaram abaixo do previsto.

O ex-deputado socialista Manuel Alegre afirmou hoje estar disponível para ser candidato da esquerda às próximas eleições presidenciais que acontecem em 2011.

O apelo de Cavaco Silva ao consenso partidário na redução do défice e da dívida externa teve respaldo no Governo.

Quase um mês depois, Amado e Reis cruzaram-se num acto social no Palácio de Belém. Luís Amado cumprimentou Carlos Reis e convidou-o para almoçar. «O convite nunca se confirmou».

A tragédia do Haiti não afecta os mercados financeiros mundiais!

A tragédia do Haiti não afecta a disponibilidade do providente Manuel Alegre!

A tragédia do Haiti não afecta o orçamento português!

A tragédia do Haiti não afecta os ajustes de contas!

Nem a tragédia do Haiti nos faz parar e pensar!

Ficamos, no entanto, a saber que, quando um forte sismo atingir Portugal:

  • Os mercados financeiros mundiais não serão afetados;
  • A disponibilidade do providente Manuel Alegre não nos terá feito sair do desnorte em que vivemos;
  • O orçamento português de 2010 (nem dos anos seguintes) nada dirá quanto à obrigação de afetar recursos para (re) construir as nossas aldeias, vilas e cidades em bases mais seguras;
  • Os Reis e os Amados continuarão emplumados.

 

14.1.10

Amanhã, como será?

Hoje, o “DN JOVEM” voltou à Escola. E explicou qual foi e pode ser o papel de um suplemento literário: dar voz a quem a não tem; dar voz a quem a procura; dar voz às pulsões mais recônditas; colocar em rede vozes longínquas e diversas; afrontar códigos cristalizados; dar a iniciativa à juventude…

 

 

 

 

 

13.1.10

Barreiras à solta…

Se quiser salvar uma língua de prestígio como o francês, ameace com a oferta do espanhol. A língua vizinha assusta! Parece que esta língua deixou de estar à altura do "século do ouro"! Ter-se-á tornado numa língua "demasiado fácil"?!

Como é que medimos o prestígio de uma língua?

(Um ministro português afirmou recentemente que a língua portuguesa vale 17% do PIB.) Seria interessante saber quanto valem as outras línguas para os respectivos países.

Ainda fará sentido temer a Espanha? O medo é um instrumento facilmente manipulável. Sobretudo, quando a comunicação entre os povos é escassa. E a comunicação autêntica só é possível na língua, neste caso, nas línguas – portuguesa e espanhola – gerando um salutar e próspero bilinguismo.

Considerando as nações que constituem a Ibéria, uma educação plurilingue e intercultural deveria assentar no bilinguismo e no biculturalismo, quer falemos de Portugal, da Galiza, da Catalunha, do País Basco… ou de Castela…

Haverá ainda quem acredite numa economia pujante em Portugal sem a cooperação com Espanha?

E se a estratégia de recuperação económica passar por Espanha, que língua devemos utilizar? - O Inglês? Um novo crioulo?

 

12.1.10

Desafios

Responsável involuntário por um departamento curricular de línguas, interrogo-me sobre o que fazer com ele. Um departamento, histórica e geneticamente, dividido. Aparentemente, o primeiro objectivo seria eliminar a fronteira, gerando estratégias de socialização…

No entanto, sinto que o legislador ao criar esta estrutura procurou criar relações hierárquicas em vez de desencadear processos cooperativos…

E por isso creio que a única forma de combater aquele propósito passa por colocar o departamento ao serviço do aluno, procurando contribuir para a sua educação plurilingue e intercultural.

Neste sentido, proponho que sejam desenhadas duas novas estratégias: - uma plurilinguística e outra literária.

O departamento deverá, doravante, apostar estrategicamente na oferta plurilingue: Latim; Português; Português Língua Não Materna; Espanhol; Francês; Inglês e Alemão… Assim como deverá apostar na educação literária, nas dimensões europeia, lusófona e local.

Assim, não só o departamento curricular de línguas poderá vir a oferecer novas disciplinas como, talvez, necessite de repensar a sua oferta no que se refere à área de projecto.

E para que estas ideias possam ser inscritas nos projectos educativo e curricular da escola é necessário encontrar quem queira, em equipa, levá-las à prática…

 

10.1.10

E se passar este pórtico?

E se passar este pórtico, o que é que eu descubro? Ontem, fiquei a saber que a antiga igreja-sede da paróquia de S. Francisco de Assis, em Lisboa (no Mosteiro de Santos-o-Novo), só abre à 6ªfeira, às 17h30.

(De acordo com informação institucional: O Mosteiro de Santos-o-Novo é notável, pelo seu grandioso Claustro e pela sua Igreja dedicada aos Santos Mártires de Lisboa: - Veríssimo, Máxima e Júlia, cuja Festa se celebra a 3 de Outubro. A sua utilização inicial foi como Convento das Comendadeiras de Santiago de Espada.)

No entanto, as portas estão fechadas! Porquê? Será porque no mosteiro do século XVII instalaram a residência universitária do ISCTE?

Por fora, a ideia é de ruína! Um dos edifícios encontra-se parcialmente em ruínas.

Curiosamente, o “Palheiro” albergou o Instituto do Professorado Primário Oficial Português ou Instituto do Presidente Sidónio Pais, tendo o convento das Comendadeiras da Ordem Santiago de Espada sido transformado inicialmente em residência para os filhos dos professores primários. Lá residiram, entre outros, o professor cientista Pinto Peixoto, o humorista Zé Vilhena e a ex-deputada Odete Santos. Esta última, já como estudante universitária e que ficou com uma péssima imagem da instituição.

Apesar de tudo o que eu não sabia antes de me aventurar pela história deste edifício, pelo menos, do século XVII, o que continua na minha retina é que parte da fachada deste património está muito maltratado e, provavelmente, esconde muitas histórias mal contadas ou por contar, desde que a República tomou conta dele. Sem esquecer os acessos, vergonhosos…

Quem é que gere este património?

 

8.1.10

Desarrumo na fronteira…

Acordocasamentopacto… entre o mesmo sexo (ME/Sindicatos; Homem/Homem – Mulher/ Mulher; Governo /Oposição…) Sem esquecer o Pinto da Costa que, ao contrário de Orpheu, eliminou finalmente a fronteira que separa a vida da morte …

impossível perde, a cada passo, o prefixo, atirando-nos para o jardim das delícias…

Um jardim, para mim, inefável… tal como Lídia Jorge o define, ao interrogar o futuro, sem perceber que este já não é inevitável: «E o inefável é aquilo que sucede de forma tão densamente expressiva que se torna impossível analisá-lo ou sobre ele falar, para reutilizar a própria semântica da palavra.» Contrato Sentimental, 2009

Ainda perplexo, pensei que era melhor esquecer o dia, quando compreendi que este era diferente dos anteriores. Afinal, a chuva cedeu o lugar ao frio, impedindo-me de mergulhar nas águas regeneradoras da euforia… e, de súbito, regresso aos PARAÍSOS ARTIFICIAIS de Jorge de Sena: Inefável é o que não pode ser dito.

Não há mais pardieiros, promiscuidade, compadrio, censura, mediocridade… no meu país.

 

7.1.10

Quando a resposta tarda…

Falar do tempo não faz qualquer sentido, embora nos encontros fortuitos possa ser tema dominante. Há muito que o arrumei na gaveta aristotélica da metafísica. Nessa gaveta, guardo tudo o que se vem tornando inexplicável. Lá moram Deus, a Alma, a Vida Eterna, o Sentido… E por isso também não me passa pela cabeça "enganar o tempo"!

O que é irremediável, remediado está! Compreendo que se possa querer enganar o envelhecimento, que esse, sim, é de ordem física! Todavia, não creio que se possa voltar atrás. O Corpo estrangula o Sentido até que a matéria de que é feito se diluía, se dissolva perdidamente…

Quando a resposta tarda, não é má vontade, é apenas uma recaída… a grande Ilusão!

 

5.1.10

Dúvida

 

A palavra 'carantonha' é uma palavra simples ou modificada por sufixação? Na 2ª hipótese, qual é o sufixo?

 

2.1.10

Ter tempo… no Museu do Neorrealismo

Finalmente, arranjei tempo para ir a Vila Franca de Xira visitar o novo Museu do Neorrealismo. Em destaque, uma exposição (escrevivendo) sobre a vida e obra de Urbano Tavares Rodrigues; outra (completíssima) sobre Soeiro Pereira Gomes; e uma terceira sobre a globalidade do movimento neorrealista, no que se reporta à literatura, ao teatro, ao cinema e à música.

Para quem não esteja muito apressado, pode, durante 1h30, revisitar os homens e as mulheres que, de algum modo, se opuseram ao Estado Novo e, deste modo, compreender os dramas vividos pelo povo e, também, os dramas sentidos pelos artistas que, em muitos casos, vítimas da censura, da clandestinidade ou das prisões acabaram por ficar prisioneiros das suas circunstancias.

(Entrada gratuita.)

 

1.1.10

RESPOSTA…

Há uns meses, um colega enviou-me a intervenção de António Nóvoa, no Debate Nacional sobre Educação / Assembleia da República, a 22 de Maio de 2006. Creio que Manuel Beirão Reis me incitava a reflectir sobre as ideias de Nóvoa, num cenário de construção de um Projecto Educativo.

Só hoje encontrei o tempo de leitura necessário ao pronunciamento. Ora, resumindo: em matéria de educação, Portugal continua na cauda da Europa; a insatisfação “quantitativa” e “qualitativa” continua em alta; avessos à «pedagogia”, desvalorizamos a cultura escolar e preferimos o “centro social”, atribuindo à escola uma multiplicidade de papéis que são da responsabilidade da sociedade; em termos de prioridades, dificilmente as conseguimos equacionar e hierarquizar…, de tal modo que os “bons” professores têm gasto uma boa parte do seu precioso tempo a participar ou a testemunhar numa peça que põe em cena o drama do respetivo estatuto e da avaliação docente – tudo questões prioritárias, mas que não asseguram:

  • os níveis mínimos de aprendizagem;
  • o sucesso de todos os alunos;
  • a valorização do trabalho escolar;
  • a satisfação dos interesses dos alunos, com esforço próprio e a maior liberdade que for possível;
  • a recuperação do contrato educativo para reinstituir um sentido para a escola;
  • o alargamento das vias tecnológicas e profissionalizantes;
  • a existência de escolas diferentes, para que se possa falar de liberdade de escolha;
  • o reforço da formação de professores, aproximando-os da realidade escolar concreta;
  • a inserção cuidada dos novos professores nas escolas;
  • a criação de lideranças profissionais num quadro de um trabalho cooperativo.

Pelo que fica dito, parece que construir um projecto educativo pressupõe saber se queremos ser uma escola diferente, isto é, orientada para o futuro; uma escola que aposte, do mesmo modo, na formação humanística, artística, científica e tecnológica; uma escola capaz de definir projectos de aprendizagem; uma escola que valorize o trabalho; uma escola que integre; uma escola que privilegie a profissionalidade e a responsabilidade; uma escola geradora de lideranças…

Já agora, para afinar a reflexão, deixo aqui as palavras de Lídia Jorge: «O lugar da instrução escolar é um lugar único e irrepetível. Não é um local de trabalho, nem é um local concebido para jogo e deleite, é um outro lugar, onde trabalho, jogo e deleite se cruzam de modo que todo o exercício seja suportável, e a felicidade resulte da aplicação do exercício.» Contrato Sentimental, pág.50, Sextante editora, Setembro de 2009.  

 

Sombras…

 Maré-cheia, maré-vazia!

De facto, o que mais me tem interessado nesta passagem 2009-2010 tem sido o livro de Lídia Jorge Contrato Sentimental sobre o PORTUGAL FUTURO, a partir da genuína fórmula PORTUGAL=LIXO.

 

30.12.09

Santarém - Uma viagem à minha terra…

Hoje, fui às Portas do Sol, Santarém, (re)ver o Tejo. Apesar do comboio parecer o mesmo, a extensão de água é bem diferente da que ficara alojada na minha memória dos anos 60. E das muralhas, não consegui ver a Santa Iria que…, tendo sido compensado pela “liberdade” do Manuel Sousa Coutinho, na Rua Direita.

Nesta minha viagem (que nada deve a Almeida Garrett!), a deceção instalou-se, quando me apercebi que nos campos, balizados pelas muralhas fernandinas (?), em que outrora jogara futebol, havia agora um mal-amanhado parque de estacionamento. E do Ginásio, o que é que fizeram? E, finalmente, tenho de confessar que ainda não foi desta vez que consegui visitar o Convento de S. Francisco. Desde que li As Viagens na minha Terra e tenho notícia das malfeitorias dos exércitos napoleónicos, que sonho entrar naquele desditoso monumento. Cheguei por volta das 11h00, mas estava fechado! Para compensar a frustração, a cidade pareceu-me mais dinâmica e, sobretudo, fiel a algumas tradições. 

 

28.12.09

TETRO e a VOZ…

TETRO, de Francis Coppola, ou a regeneração da família, após uma descida aos infernos numa Buenos Aires híbrida e caótica. Rejeitando a catástrofe sempre iminente, F.C. opta pela esperança… Devolve à família o lugar de alicerce da (nova) sociedade.

No entanto, fora do ecrã, as fronteiras diluem-se, não fazendo qualquer sentido legislar sobre o modo como nos devemos arrumar nas gavetas do fisco.

A semântica, que tanto tempo leva a consolidar-se, trai-nos a cada passo e não fosse a atávica ignorância, o Governo, em vez de legislar sobre as “partes” que podem constituir o casal, deveria empenhar-se em resolver os verdadeiros problemas que nos arruínam a cada dia que passa.

Nem a tragédia nem o drama são solução. Só a voz pode crescer e afirmar-se, dando sentido à existência.

26.12.09

O barro de que somos feitos…

 A 26 de Dezembro, ainda há quem nos lembre o barro de que somos feitos. Bastar percorrer a rua Augusta (Lisboa); não precisamos de esperar pela quarta-feira de cinzas! Neste caso, o barro é amoroso e promete uns tempos, ainda que breves, de felicidade.

 

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