CAPÍTULO SEGUNDO
“ Toute représentation de l’altérité tend vers l’image d’Alter
ou celle d’Allius.”[1]
Uma
das dificuldades com que nos deparamos em termos metodológicos resulta da
descontinuidade temporal deste romance. A saga da família Semedo é centrada em
cinco tempos, que correspondem a cinco partes antropomórficas e simbólicas,
fechadas por um Epílogo datado de 1983:
- A BOCA /1890-1904
-
OS OLHOS / 1917
- O CORAÇÃO / 1940-1941
- O SEXO /1961
- AS PERNAS / 1975
De acordo com esta
estruturação, cada parte impõe uma análise específica, reveladora de um rumo cujos contornos só na última parte
se revelam plenamente. Porém, esse obstáculo pode ser parcialmente ultrapassado
se valorizarmos o problema da expressão
axiológica que determina a localização de cada elemento material na escala
de valores inerente à obra, [2]
porque é o horizonte axiológico que
assume a função mais importante na sua organização, nomeadamente dos meios
semânticos: da função eletiva [3] à
função distributiva ou arquitetónica.[4]
A. Da palavra à imagem
|
·
A
alteridade inscrita no léxico |
Como
propõe D.-H. Pageaux, [5]
para identificar o primeiro elemento constituinte da imagem, comecemos por identificar o conjunto das palavras que, no
período de colonização angolana abordado em Yaka, reflecte a imagem do Outro.
A
imagem do nativo de raiz africana
|
Léxico |
Yaka:
ocorrências |
|
assassinos |
106, 107 |
|
atrasados |
21, 34, |
|
beberrões |
34 |
|
bichos |
91 |
|
cabeças-de-alcatrão |
27, 49, 51, 53, 106 |
|
cabrão/cabra |
91, 101 |
|
cabrita |
117 |
|
cafre(s) |
39, 48, 57, 77, 91, 105, 106, 210, 211, 217 |
|
calcinhas |
108, 142, 143, 255 |
|
canibais |
107, 108 |
|
dissimulados |
313 |
|
drogados |
51, 315 |
|
facínoras |
106 |
|
feiticeiros |
51, 242 |
|
hereges |
316 |
|
incivilizados |
63 |
|
indígenas |
57 |
|
ladrões |
82, 111 |
|
macacos |
90, 189, 216, |
|
mangonheiro |
188 |
|
matumbos |
63, 99, 188 |
|
moleques
/ serviçal |
25, 27, 28, 29, 30, 46, 50, 54, 57, 73, 79, 99, 156 |
|
negralhada |
107 |
|
negro
(a / os) |
22, 29, 30, 34, 36, 47,56, 52, 58, 67, 68, 69, 77,
79, 80, 86, 87, 91, 93,101, 104, 111, 113, 115, 116, 121, 126, 129, 130, 137,
139, 141, 144, 145, 151, 154, 160, 163, 164, 171, 184, 185, 198, 212, 257,
285, 313, 333, 360, 362, 378, 391 |
|
pretos |
63, 184, 193, 218, 377, 259, 281, 290, 304, 308,
312, 316, 337, 377 |
|
selvagens |
91, 94, 144, 284, 288, 325 |
|
terroristas |
265, 266, 289, 301, 307, 308, 312, 313, 316 |
|
vimbali |
25, 42, 45, 47, 70, 99 |
Quadro
1
|
1.
A cor do Outro |
Esmagadoramente
o Outro é designado pela cor [6]. Negro
é um termo ambivalente porque genérico e, simultaneamente, redutor que, regra
geral, transmite a imagem da condição de inferioridade [7]
do homem africano, embora, ocasionalmente, o negro possa ser tolerado
quando é reconhecido como civilizado.
Esta imagem negativa do Outro é intensificada com o frequente recurso ao
termo preto, que, sintomaticamente, só começa a ocorrer na 3ª parte -
1940-41. Por outro lado, enquanto em certas ocorrências, embora pouco
representativas do termo negro, este é utilizado como designação
genérica, o termo preto ocorre sempre como expressão de uma apreciação
pejorativa. A utilização do termo preto permite ainda reclassificar o mestiço como matiz do negro [8],
afastando-o da zona cultural branca
ou, estrategicamente, colocando-o na situação de ponte de diálogo.[9]
A relevância da cor como isotopia
classificadora e fundadora duma hierarquia
entre os homens é ainda reforçada pelo epíteto cabeças-de-alcatrão.
Um outro termo constituinte desta imagem de inferioridade é cafre. De origem árabe, a palavra kafr designa aquele que não professa o
Islamismo. Adoptado pelos portugueses, cafre
no séc. XVI designava os bárbaros, indivíduos atrasados que habitavam o
interior de África. No séc. XVIII, cafre,
sinónimo de escravo, economicamente
representava o oiro negro dos colonos e
dos régulos.[10]
Este termo Ocorre, em Yaka, entre
1890 [11]
e 1940, sendo posteriormente substituído pelo termo preto.
Sintomaticamente, cafre gera o verbo cafrealizar para classificar o branco que se deixa seduzir pelos
costumes dos africanos, ou se vê obrigado a adaptar-se a um novo estilo de
vida, num processo de aculturação
psicológica.[12] Em
Yaka, o cafrealizado é um branco abjecto porque, aos olhos da raça branca
mais ou menos instruída, a mistura é degradante.
Ainda no que se refere ao processo de cafrealização do branco até aos anos 20 deste século, o sociólogo, escritor e
diplomata angolano Arlindo Barbeitos [13] designa-o
de aculturação invertida: o português
pobre e analfabeto (ou quase), sem família, adapta-se ao meio angolano, burguês
ou não, e, com frequência, mistura-se mantendo o velho hábito da miscigenação e
sujeitando-se às normas dos nativos. Este tempo de aculturação invertida é, no entanto, contrariada com a chegada da mulher branca a Angola.
Num processo de segregação
que se instala na língua, o branco desvaloriza o Outro, negando-lhe
qualquer tipo de ética, cultura ou de instrução [selvagens, atrasados, matumbos, incivilizados, facínoras,
canibais, beberrões, drogados, hereges, feiticeiros], não se coibindo de atravessar a fronteira que separa a racionalidade
da irracionalidade, recusando-lhe
a condição humana [macacos, bichos]. Ou quando, forçado pelas revoltas sucessivas, lhe
reconhece a identidade, redu-lo à categoria de dissimulado, de terrorista,
como decorre da frequência deste
último termo na quarta parte do romance - O Sexo
(1961). O Outro, regra geral, não
possui corpo nem voz.[14]
|
2.
O branco: do etnocentrismo ... à traição étnica |
A imagem do branco, traçada em Yaka, mostra-nos uma minoria masculina, pobre e quase
analfabeta, desenraizada, assustada; inicialmente composta por um grande número
de degredados, integrando
posteriormente emigrantes pobres e semianalfabetos. Sem efectivo apoio das
autoridades, o branco facilmente se
vitimiza de modo a legitimar o negócio
fraudulento e degradante, a eliminação
do negro e a ocupação da terra. E fá-lo em nome da hierarquização das raças
segundo uma escala de valor que atribui à cor branca a perfeição.[15]
Por isso, o branco atribui a si
próprio um estatuto de superioridade tão sólido, - porque ancorado num imaginário milenar - que lhe permite
fundamentar a acção colonizadora, a fuga em 1975, e relançar as bases da
política de cooperação, continuando, ainda hoje, a deificar a sua acção
civilizadora ao longo dos séculos.
Num contexto de colonização, como o angolano, o branco é educado como ser superior de forma a compensar a
situação minoritária em que se sente perante o outro.[16]
E assim se explica, o profundo desprezo
que exibe perante todos aqueles (poucos brancos)
que dialogam, apoiam, lutam lado a lado com o negro.[17]
É, ainda, fundamental tomar em consideração que o branco não só discrimina o negro e o mulato, como discrimina o branco nascido
no território africano, “criando”, assim, o branco de primeira e o branco de segunda.[18]
Finalmente,
até 1975, do ponto de vista do negro,
se excetuarmos o assimilado, o branco é
muitas vezes visto como traiçoeiro e aquele que mata.
|
Branco
|
19, 20, 22, 29, 36, 42, 43, 46, 47, 51, 57, 61, 63,
64, 67, 68, 78, 79, 92, 100, 101, 102, 103, 107, 108, 109, 113, 114, 127,
142, 151, 162, 163, 177, 184, 185, 200, 208, 212, 225, 227, 228, 248, 255,
257, 259, 285, 289, 290, 302, 303, 304, 305, 306, 312, 313, 314, 337, 338,
378, 379, 391 |
Quadro
2
|
3.
Entre o Eu e o Outro |
Num território vasto e inexplorado, onde a população negra é largamente maioritária, o mulato
surge da relação de domínio sexual
exercida pelo branco sobre a anónima mulher negra, de modo a
satisfazer a cupidez e a assegurar os braços
necessários à efectiva ocupação / civilização do interior da colónia. Neste
sentido, o mulato é uma ferramenta, um número, raramente mais do que uma
coisa.[19]
Pode, todavia, ocupar territórios distintos.
O mulato descalço, abandonado pelo pai, vive como
o negro, tornando-se apenas uma
tonalidade do Outro, e,
consequentemente, objecto do mesmo processo de inferiorização que o negro.
Separado da mãe negra, o mulato-filho-de-comerciante,
assimilado,[20] serve o
pai branco, que, todavia, nas situações de conflito com o negro, não deixa de desconfiar dele. Serve o pai branco, matando em seu nome, ou, substituindo o negro em nome da civilização.[21] Porém,
esta situação foi efémera, porque com o crescimento da emigração branca,
sobretudo, com a chegada de mulheres brancas, o mulato tornou-se o ramo maldito da família, nova expressão minoritária e errante...
|
Mulato |
20, 22, 39, 42, 51, 53,
56, 59, 62, 77, 101, 102, 105, 111, 116, 138, 184, 186, 187, 195, 280, 281,
295, 299, 314, 330, 359. |
Quadro 3
|
4.
Da onomástica como expressão do conflito racial |
Em
YAKA, os topónimos começam por
revelar um espaço africano, um território, corpo parcialmente inexplorado. Progressivamente, do confronto com
o espaço europeizado - Benguela - emerge o espaço
africano cuja referencialidade é
essencialmente assegurada pela toponímia
e pela antroponímia, visto que os
outros designadores da fauna, da flora,
da gastronomia e da cultura não revelam mais do que aquilo
que o colono estaria em condições de saber, exceto no que se refere à cultura
cuvale.[22] Como
veremos, a abundância de topónimos e
de antropónimos marca a dupla
dimensão do conflito, numa época em
que - em consequência do movimento abolicionista e, em 1885, da partilha de
África - se troca o oiro negro pela imperiosa necessidade de ocupar a terra, de modo a assegurar
externamente a soberania portuguesa, e, internamente, o comércio da cera, do
marfim e da produção da cana-de-açúcar,
e, sobretudo, do comércio da borracha.[23] Politicamente,
em nome de uma missão civilizadora cristã,
mas, na verdade, pela posse da terra,[24] os
reinos são decapitados e as populações são reduzidas à condição de moleques, serviçais, contratados, trabalhadores...,
termos que, retoricamente, dissimulam[25] a
manutenção da escravatura. Do ponto de vista linguístico e cultural, resta
apenas a estereotipia necessária à nomeação
do inimigo.[26]
Com a ocupação do interior, a pluralidade de
designações para as formas de organização
das populações [kimbo, sanzala, embala, libata], reduz-se
a significantes como “bairros” e “musseques”, situados no interior ou na
periferia das cidades - Benguela, Lobito, Luanda -, ou ocorre para designar
“espaços” hostis, embora o autor tenha o cuidado de os “integrar”, de modo a
tornar o enunciado compreensível. Com a ocupação
e decapitação dos múltiplos reinos [bailundo, cuamato, cuanhama,
cuvale, ganguela, humbe, muíla, mundombe, lutchazi, mbunda, seles, sumbe,
amboim, cuissis, tchokue], o sentido
dos antropónimos africanos torna-se cada vez mais
difuso, apesar de, no plano histórico, os povos não perderem totalmente a sua identidade linguística e
cultural..., porque o homem africano
raramente tem voz, só a reavendo parcialmente se, e quando, assimilados,[27]
isto é, quando absorvidos pelo processo de aculturação
unilateral... o que, todavia, se revela impossível, devido, em primeiro
lugar, ao complexo racialista, cuja
expressão já encontrámos na análise do léxico que nomeia a alteridade africana. A voz
dos vimbali, dos calcinhas - os negros
civilizados - que surge como expressão da política de assimilação,[28]
é, no entanto, pontual, porque,
apesar da aculturação, em épocas de conflito, essa voz surge, aos ouvidos do colono, como mentora de revoltas,
tornando-se, consequentemente, na primeira vítima da repressão.
Quando
observamos os designadores rígidos[29]
- topónimos
- ao longo do romance, compreendemos que muitos destes designadores se inscrevem numa visão topológica muito próxima da
relação de nomeação que o nativo mantinha com o seu espaço, embora as
localidades (re) fundadas pelos europeus adotem nomes de origem não africana. Porém,
o Autor opta, por exemplo, por excluir topónimos de origem europeia como Nova Lisboa (Huambo) ou Sá da Bandeira (Lubango),
numa atitude reveladora da sua mundividência.
No quadro 4, apesar do número superior de topónimos presentes na 1ª parte,
verificamos a sua profusão ao longo de todo o romance, visto que estamos
perante uma narrativa da ocupação e consolidação da posição portuguesa em terra
africana. Ao contrário do que acontece com os antropónimos, a presença
repetida dos topónimos sustenta a
veracidade da narrativa - e, consequentemente a veracidade da ocupação -,
porque a compreensão[30] não
só do sentido mas também da sua referência se torna difícil para um
leitor não familiarizado com o espaço aludido, na medida em que os topónimos
surgem na maioria das vezes apenas como indicadores do local onde decorre o
conflito. Se excetuarmos Benguela, Lobito, Vau de Pembe, Bocoio... quase nada é
dito para além do nome próprio. A descrição das “localidades” ocupa um espaço
diminuto, como se a referência do
nome próprio fosse do conhecimento do leitor.
|
|
A
BOCA |
OS
OLHOS |
O
CORAÇÃO |
O
SEXO |
AS
PERNAS |
|
Território
/ Topónimos |
Ekovongo; Mbaka; Bero;
Moçâmedes; Benguela; Capangombe; Lubango; Serra de Chela; Bibala; Dombe
Grande; Serra da Neve; Quilengues; Tundavala; Caconda; Huíla; Bié; Cuporolo;
Catumbela; Ganguela; Lunda; Lozi; Corinje; Mbaka; Cavaco; Luanda; Huambo;
Bailundo; Planalto; Massangano; Cuanza; Tchiaka; Soque; Libolo; Ngalangue; Lobito;
Bimbe; Monte Saôa; Cuamato; Cuanhama; Vau de Pembe; Njyva; Cunene. |
Huambo; Moxico;
Benguela; Quilengues; Massangano; Amboim; Gabela; Seles; Novo Redondo; Bié;
Corinje; Luanda; Catumbela; Dombe; Cavaco; Lobito; Cuanza; Massangalala;;
Camunda Uco; Conda; Hiove; Caconda. |
Mundas do Hambo / Serra
da Neve; Bocoio; Balombo; Cuporolo; Bibala; Capangombe; Camacuio; Caitou;
Dombe Grande; Benguela; Moçâmedes; Chiquite; Pocolo; Bentiaba; serra do Pundo;
Huíla; Equimina; Sombreiro; Quilengues; Cacula; Lucira. |
Benguela; Luanda;
Seles; Norte; Bocoio; Lubango; Gabela; Huambo; Moxico; Dembos; Nambuangongo;
Quitexe; Quibaxe; Quiculungo; Damba; Tamboco; Mbaka; Lobito; Serra do Pundo;
Moco; Camunda; Benfica; Massangalala; Caponte; Lixeira; Liro. |
Norte; Leste; Cabinda;
Pundo; Chela; Mundas; Moco; Mucaba; Mundas do Hambo; Benguela; Camunda; Cavaco;
Dombe Grande; Caitou; Huambo; Bié; Catumbela; Lobito; Casseque; Baía Azul;
Bocoio; Cangamba; Cassoco; Cubal; Ganda; Balombo. |
Quadro 4
É, no entanto, no universo da antroponímia que se desenha o conflito
entre dois mundos diferentes,
protagonizados por personagens com visões do mundo, estereotipadas, no caso dos
comerciantes, ou em ruptura, como acontece com Óscar Semedo e, principalmente,
Acácio. Enquanto os topónimos nomeiam
o espaço pelo qual se luta, os antropónimos espelham o conflito civilizacional que caracteriza a relação entre europeus e
africanos entre 1890 e 1975..
Dois conjuntos (quadro 5), bem delimitados, podem acolher
os antropónimos. Os antropónimos de origem africana, que são progressivamente
eliminados (em alguns casos, assimilados) com os seus portadores. E os
antropónimos de origem europeia que se distribuem por dois subconjuntos: os de origem grega, resultantes do
voluntarismo de Alexandre Semedo; e os restantes, atribuídos, por vezes, como reação
ao legado civilizacional de Óscar Semedo.
Da antroponímia
africana à antroponímia do colonizador
|
Bula Matari Cassenda Chitekulu Ekuikui Féti Kassanje Kiteta Kalunda Lumumba Mandume Mbumba Moma Mutu-ya-kevela[31] Ndunduma Ngonga Nízia Njaya Ntumba Ondomba Ruca Samacaca Suku Tchibinda-Llunga Tchipoya Tuca Tyenda Vilonda Yaka |
Afrodite Alexandre Alexandre (Xandinho) Andrómeda Antígona Aquiles Aristóteles
Atena Demóstenes Dionísio Esopo Eurídice Heitor Helena Orestes Penélope Safo Sócrates (filho de A. Semedo) Sócrates (filho de Orestes) Sófocles Ulisses |
Acácio Afonso Aguiar (Governador) Agripino de Sousa Alexandre da Macedónia Alice Álvaro Amadeu Amâncio Américo Tomás Amílcar Armando Arnaldo Augusto Bartolomeu Benfica Bíblia Bombó Cerveira Pereira (Gov.) Che Guevara Chico Conde de Almoster Costa Pe. Costa Damião Donana Ermelinda Ernesto Tavares Esmeralda Espírito Santo Eusébio Glória Graça (Chucha) Guilherme |
Hitler Pe. Horácio Irene Isidro Jaime Jesus Joana João Joel José Carpinteiro Lenine Maria Madalena Marx Massano de Amorim (Gov.) Matilde Mussolini Norton de Matos (Gov.) Óscar Olívia Ofélia Otis Redding Pinto de Almeida (capitão) Portugal Rigoberto Rufino Salazar Silva Porto Sô Almeida Sô Lima Sô Lopes Sô Macedo Sô Queirós Sónia Sporting |
Quadro 5
Os antropónimos africanos
correspondem a nomes tradicionais, indicadores
dos grupos a que os seus portadores
pertencem, se excetuarmos Ruca, Tuca - diminutivos que veiculam uma certa
cumplicidade racial - ou Lumumba, nome africano, mas exterior ao território
angolano. Por seu lado, os antropónimos europeus de raiz grega têm origem na
necessidade de recriar no espaço hostil a identidade
étnica e cultural, de modo a enfrentar o fantasma da ameaça que é
o Outro.[32]
Em termos de constituição da imagem do mundo africano,
para além da onomástica, há ainda que contar com o léxico - apesar de pouco
diversificado - referente ao relevo [anhara,
chana,] à fauna [matrindindes,
mabeco, onça, pacaça, sacanjueles, ondjiri, namulilo, capota, peitinhos
-celestes], à flora [bassula, bimba,
imbondeiro, mulemba, tabaibo, tacula, coqueiro, acácia, palmeira-leque,
mamoeiro, mangueira, pitangueira], à alimentação
[calulu, chissângua, muzonguê, pirão, doces de ginguba, fuba], à profissão [cambulador, kimbanda, pumbeiro,
cipaio, quimbar, quitata ], aos objetos
e instrumentos [imbambas, quinda,
xifuta, moringues, onjivati, sanga, azagaia, missangas, kissanje, mbulumba,
ngoma, puíta] à acção [kuata-kuata,
canvanza, guerra do nano, maka, mbulumbumbar, vuzumunar, lupuka, bassulas,
xifutada, mujimbo] às categorias [vimbali, sekulo, soba, moleque, cafre,
cabrita, calcinhas, ufeco /cafeco] e ao povoamento
/ habitação [cubata, embala, kimbo,
sanzala, chitaca, libata, musseque, onganda, sapalalo].
Esta enumeração do léxico, que tipifica a africanidade,
mostra sumariamente que, apesar da intenção de recriar a atmosfera local, a
atenção do autor se centra mais no fazer e
no dizer dos homens do que na
descrição do mundo físico. Por isso, certos termos adquirem um forte simbolismo
no interior deste romance, como, por ex.: a chuva [água] desejada e anunciada por Yaka - símbolo da vitória
sobre o colonialismo - “gritando vitória, riacho
estreito que perto do Palácio (...) já era um rio e aí continuou recebendo
afluentes da Peça (...) se
transformando naquele mar mascarado
de comício improvisado”; o rochedo azul
- o “ coração do mundo” de Vilonda; a mulemba
-, a árvore sagrada dos cuvale, o “centro do mundo, onde moram todos os
antepassados”; o sapalalo - “o
símbolo mais acabado do colonialismo”; a música
[batuque] - o símbolo da
tristeza e da alegria do povo; o punhal
cuvale - o símbolo da comunicação entre culturas, assente no respeito pelas
diferenças; a bimba - o símbolo da
“impotência” dos Semedos; a estátua Yaka
- o enigma por decifrar -, cuja decifração depende da mundividência do
interpretante, surgindo quer como a “sátira do colonialismo” quer como
defensora da “compreensão entre os homens, mesmo se diferentes”, isto é, o
diálogo entre culturas.
B. A imagem ou a relação hierarquizada
Este
romance comporta vários planos narrativos, em que para além do relato
omnisciente, na terceira pessoa[33], surge significativamente um narrador - Yaka[34]
-
com uma função discursiva - interrogadora, interpretativa[35] e,
ao mesmo tempo, profética -, perante o qual a função narrativa[36] de
A. Semedo adquire uma irremediável, mas vibrante dimensão humana, marcada
inapelavelmente pelo tempo - tal como
acontece com os restantes e fugazes narradores, e, por isso, apesar da
importância narrativa de A. Semedo, o seu estatuto é subalterno em relação a
Yaka já que este se dirige a um “auditor” cuja capacidade de compreender nunca é posta em causa.
Todavia, isto não quer dizer que haja uma renúncia à omnisciência. Yaka usufrui
de uma significativa delegação do saber, da visão por parte
do narrador omnisciente. E nesse sentido, o relato omnisciente e o relato /
discurso subjetivo de Yaka tornam-se complementares e portadores de uma mensagem cujo significado terá levado
tragicamente oitenta e cinco anos a decifrar
por uma consciência (de A. Semedo) que nunca se libertará totalmente, pois a sua
expressão far-se-á através do discurso indireto
livre sem chegar plenamente ao monólogo
interior.[37] Uma
mensagem cuja (in)compreensão se
distribui por cinco partes distintas, mas que, quando reunidas, poderão gerar o
corpo identitário correspondente ao
imaginário colectivo.
A complexidade desta narrativa pode ser sumariamente
observada no quadro seguinte:
|
A
BOCA |
A 3ª p. alterna com a 1ª p., ora de Yaka
ora, sob a forma de discurso indireto livre, com a de A. Semedo, e ainda do
Soldado. |
|
OS
OLHOS |
A 3ª p. alterna com a
1ª p. de Yaka ora, sob a forma de discurso indireto livre, ora com a 1ª p. de
A. Semedo. |
|
O
CORAÇÃO |
A 3ª p. alterna ora com a 1ªp. de Yaka ora, sob a
forma de discurso indireto livre, com a de: A. Semedo, Vilonda, Aquiles e
Orestes. |
|
O
SEXO |
A 3ª p. alterna ora com a 1ª p. de Yaka, ora com a
de: Chucha, Dionísio, Jaime. Sob a forma de discurso indireto livre, a 3ª p.
alterna com a 1ª de A. Semedo, Bartolomeu, Agente da Pide, assim como com a
1ª p. pl. de vozes anónimas. |
|
AS
PERNAS |
A 3ª p. alterna ora com a 1ª p. de Yaka ora, sob a
forma de discurso indireto livre, com a de A. Semedo. |
Quadro
6
|
1.
A determinação teleológica |
Essa
diferença de estatuto dos narradores permite as sucessivas transformações na visão do mundo de A. Semedo, e a
relação obstinada e secreta com Yaka, à semelhança da relação do homem com a
divindade, enquanto o olhar globalizante (mítico) de Yaka anuncia / simboliza um destino que a consciência localizada e focalizante[38] de
A. Semedo procura incessantemente sem o conseguir antever.
O desencontro
entre A. Semedo e Yaka visa fins diversos e complementares. As duas vozes são formuladas em função do
destinatário. Através de Yaka, o destinatário descobre/ compreende uma determinação teleológica que escapa aos
protagonistas da acção: o mito da nação
angolana é anterior à sua própria fundação, e está presente em cada
revolta, em cada afirmação identitária: na acção e na voz das personagens africanas[39].
É a natureza axiológica desta relação hierárquica que,
apesar do diálogo adiado e frustrante de A. Semedo com Yaka ao longo de 85 anos,
- e supostamente materializado na redação das memórias a partir de 1951-[40],
deixa antever a possibilidade da construção da unidade angolana, sob a condução
do MPLA, e da integração do colono branco nesse projecto, materializada no
bisneto Joel-Ulisses[41].
Este escopo constrói-se, com avanços e aparentes recuos,[42]
nas seguintes situações narrativas:
1. Na voz de Yaka, quando, na 1ª parte - A Boca - comenta o nascimento de
Alexandre Semedo, que poderia ser “a chuva única, talvez sem água, que ia ligar
a boca aos olhos e às pernas e ao sexo, ainda isolados em desconfianças.”[43] Yaka
assume-se como narrador da estória de A. Semedo, definindo como seu interlocutor aquele que tiver capacidade de entendimento e de sofrimento.[44]
Yaka surge como consciência
de uma Angola - corpo fragmentado e disperso -, ainda sem sentimento identitário. Esse corpo, ciclicamente, rebela-se em nome
de uma identidade, como acontece com
Mutu-ya-Kevela - a boca.[45]
Nesta fase, Yaka opõe ao braço (a
força) a boca (a persuasão).
Tal como perante o nascimento de A. Semedo, Yaka, face à
instalação do caminho de ferro de Benguela, interroga-se se “esse comboio vai
trazer a minha música ou vai assoprar a chuva de música para longe, com o
puf-puf e o fumo dele?”[46]
A música
e a chuva surgem como símbolos
da realização da determinação teleológica.
2. Na voz de Yaka, quando, no início da 2ª
parte-Os Olhos - revela que, afinal,
o comboio inglês elimina[47]
tudo o que eram sinais da identidade angolana: os vimbali perderam
importância económica, passaram a pagar imposto indígena; o herói africano
Mutu-ya-Kevela foi esquecido. Para, um pouco mais adiante, explicar que os novos sinais - as revoltas dos sumbes,
dos seles e dos amboins - ganhavam maior dimensão porque se integravam num movimento de revolta que ultrapassava as
fronteiras angolanas. E era essa consciência
que anunciava a realização do sonho angolano[48],
na
medida em que as suas raízes se robusteciam no tempo e no espaço.
Finalmente, a
derrota dos sumbes e dos seles, em Outubro de 1917, ironicamente com os
anteriores derrotados - os bailundos - a puxar contra eles o canhão[49].
A derrota que significava, no imediato, para os seles e os sumbes, o desmoronar
da utopia: a impossibilidade de
recuperar as terras vermelhas boas para o café; de pôr termo ao imposto de
cubata, às razias, às rusgas, às violações... Significava a sujeição a
programas de reordenamento da população,
a substituição dos sobas por regedores indígenas nomeados pelo Governo, a
obrigatoriedade de trabalhar nas roças... Apesar do reforço do colonialismo,
Yaka declara que os olhos dos sumbes, dos seles e dos amboins guardam a força do movimento revolucionário que
lavrou em Outubro de 1917, prontos a saltar sobre a presa colonialista.[50]
3. Na voz de Yaka, quando na 3ª parte - O Coração - narra, como testemunha, a
morte de Vilonda - símbolo da autonomia cuvale -, trespassado pelas balas, sem,
contudo, ser atingido no coração.[51] Essa
autonomia que residia, apenas, na criação e sacralização do gado, que era
permanentemente objecto da cobiça dos colonos, e que, mais uma vez, justificava
o ataque aos cuvale, embora, sob o pretexto, de vingar a morte do colono
Aquiles. Para os cuvale, essa derrota significou a humilhação total, porque a
sua identidade media-se pelas manadas que possuíam... todavia, os olhos e o coração profundamente
martirizados mantinham acesa a chama da revolta.
4.
Na voz
de Yaka[52],
quando[53],
na 4ª parte - O Sexo - relata o caos dos massacres do Bocoio (soba
Moma), da Camunda, do Benfica (Isidro) e
da Massangalala em Benguela; da Caponte, da Lixeira e do Liro no Lobito, dando voz,
alternadamente, aos sitiantes e sitiados - sob forma de discurso indireto
livre fragmentado -, no intuito de dar expressão à simultaneidade da acção
persecutória (de que são exemplos, a tortura e morte de Moma, a violação da
segunda mulher de Moma por Dionísio, o incêndio das cubatas do Moma, a prisão e
morte de Isidro, a ablação do sexo de Cassenda que se recusava a pronunciar o
nome de Deus[54]),
em grande parte do território angolano, com a descoberta da relação proibida entre Chucha e Chico.[55] Relação, que, parodisticamente[56],
se torna exemplo e prova da multirracialidade que
reinaria em Angola - assinalando o nascimento do Império -, inquisitorialmente
apregoad(o/a) pelo coro das vozes de
Salazar, de Américo Tomás, do Governador-Geral e de “todos os bispos e padres e
madres que rezam incansavelmente para que esta portentosa Angola seja sempre
Portugal (...).[57]
5.
Quando, na 5ª parte - As pernas - em
que se assiste, numa atitude de clara hierarquização, a uma redução das vozes
da narrativa, assim como à clarificação da mundivisão
de cada um dos narradores fundamentais,
a voz de Yaka abre a narrativa através de símbolos - o orvalho, chuviscos, chuvas dispersas,
o trovão medonho, as nuvens grossas - que esclarecem
retoricamente o sentido final da acção
histórica anunciado pelas revoltas
dos “ bailundos e sumbes e seles e cuvales e outros olhos lá do Norte e do
Leste e nas danças e no batuque de noites sem fim levados mesmo para o outro
lado do mar...”[58]
A revelação de uma finalidade, que,
independentemente, dos homens condicionava de forma cumulativa a sua acção, de tal modo que os
acontecimentos de 1974, “do outro lado do mar”, ribombam como “trovão” da
vitória nacionalista, dolorosamente preparada pela História, apesar do sentimento identitário estar ainda longe
das preocupações dos cuvale, dos seles ou dos do Norte, para quem o fundamental
era “reaver as manadas do antigamente e o orgulho de gente inconquistável”, ou
“as terras boas do café”[59].
Todavia, Yaka
determina - através do “segundo
estouro do trovão”, que assinala a chegada dos guerrilheiros nacionalistas a
Luanda - como heróis da História o Movimento e o Povo, e exclui -
recorrendo para o efeito à caricatura - “os senhores do Império”, e “outros
recém-chegados, gordos e luzidios de festins ianques com ou sem gorros de pele
de leopardo e bengalas de soba falso”.[60]
É ao Movimento - Owiñi oku soma, o Povo no poder[61]
- que compete, pela sua acção, cimentar a unidade
dos povos e criar a nação. Por isso, o “terceiro estouro do trovão” se fez
ouvir com a chegada dos guerrilheiros do MPLA a Benguela que irão derrotar as
restantes forças.
É, finalmente, Yaka quem narra o pesadelo de Xandinho,
envolto e torturado pelas “sombras” do soba Moma e do comandante Kalunda, sob a
forma de “olhos de peixe morto” e de “jiboia”, revisitando o passado em que
“armadilhara” e torturara o comandante, matando-o à baioneta - repetindo cem
vezes o gesto; relembrando, também, a morte do soba Moma à coronhada, executada
pelo mulato Guilherme, sob as ordens de Bartolomeu. Enquanto tentava repelir as
“sombras” que o condenavam, Xandinho considerava-se “bom angolano”[62] e
cumpridor dos “deveres de administrador colonial”, ameaçando ordalizar-se para se mostrar
invulnerável porque inculpável. Esta opção narrativa terá resultado do facto de
só Yaka - porque suficientemente distante - poder compreender o sentido do pesadelo de Xandinho, visto
que Xandinho configura a demência[63]
e o complexo de culpa do colonialismo
protagonizado por uma parte da família Semedo.
A acção de Xandinho revela-se como a antítese
total da teoria multirracial portuguesa, enquanto a sua argumentação não
passa de um processo hipócrita de desculpabilização. Este tipo de acção acabou por conduzir senão à morte pelo menos à
alienação total do sistema colonial.
|
2.
Outras vozes narrativas |
Menos
hegemónicas, porém necessárias à representação da plurivisão que caracteriza a
acção e o comportamento do colonizador, outras vozes, (in)dependentes do
narrador omnisciente, se fazem
“ouvir”:
1. A do soldado escapado do Vale do Pembe
- embriagado[64] -
que narra o desastre do Cuamato, imaginando-se um novo soba com bois e mulheres
roubados aos Cuanhamas, finalmente livre da miséria da Beira Baixa, da burrice dos Governadores e da diarreia dos padres, mesmo que cafrealizado.
A narrativa surge sob a forma de discurso indireto livre,
embora liberto pela cumplicidade do
narrador omnisciente. Por outras palavras, a paródia das autoridades coloniais, militares e religiosas é
“deixada” picarescamente a um subalterno.
Pela boca do
soldado é feita a avaliação da
natureza civilizadora do colonialismo entre 1890 e 1904.
2. A voz de Aquiles emerge a espaços,
sob a forma de discurso indireto livre - em O coração - de modo que não se confunda com a do narrador
omnisciente: é a voz violenta da frustração do “branco numa terra de
pretos” sempre pronto a vingar-se em negros, mulatos e brancos[65],
cuja
clubística e venatória visão do mundo se cingia a um universo onde não havia
meios-termos.[66] Voz que desdenha da
sabedoria dos gregos e da Bíblia. Voz
que quer eliminar os “mucubais” e os cafres.
Voz que, apesar de tudo, despreza os
sonhos expansionistas dos Bartolomeus...
3.
A
voz de Vilonda - em O Coração
- que se dirige aos “seus” - à sua cultura - a propósito da transgressão à ordem que regia a comunidade cuvale[67],
e cuja memória (oral) terá sido preservada por Ondomba conforme testemunha a
epígrafe que abre a 3ª parte. A voz que
interroga o sentido da morte de Tyenda, e confirma as previsões da namulilo e das entranhas do cabrito.[68]
4. A voz de Orestes - em O Coração - que (se) interroga, após a
morte de Aquiles, a “chefia da família”, o lugar do primogénito num universo
onde A. Semedo se rege por cânones cada vez mais afastados da cultura dominante
(nos anos 40).[69]
5.
No que concerne às restantes vozes - excetuando o caso de pluriperspectiva que será abordado mais
adiante - o narrador omnisciente encontra-se muito próximo, como acontece por
ex. -- no desiderato de recriar a atmosfera
pós - 4 fevereiro de 1961-, com as
“reflexões” de Bartolomeu Espinha sobre o modo como abanar a árvore das patacas
e sobre a índole dos filhos e sobrinhos face ao seu projecto expansionista,[70]
sobre a lealdade do soba Moma, acusando-o de conspiração... Ou com as informações do Agente da Pide, que, de
forma fragmentada, citam[71]
os panfletos revolucionários; ou do mesmo Agente que acusa os brancos de
traição, de serem agentes do comunismo internacional. Ou das
vozes anónimas, em pânico, dos empregados do comércio e dos artesãos
que pedem armas; dos fazendeiros que pedem a tropa contra as rede clandestina[72],
nascida nos “areais vermelhos dos musseques de Luanda, rede cheia de armas
russas, homens fanáticos e drogados com liamba (...).[73]
|
3.
Um caso de pluriperspectiva[74] |
Na
4ª parte - O Sexo - no que respeita
ao episódio da “relação incestuosa
entre primos”, surge uma outra forma de omnisciência, que resulta da pluriperspectiva.
Primeiramente,
a
voz de Chucha “dirige-se” a Dionísio, o primo preferido, como se lhe
narrasse a aproximação, a génese do desejo, a relação sexual testemunhada por
Jaime - sem a noção do bem e do mal
-, a relação vivida com Jaime - finalmente, consciente do erro...[75]
Posteriormente, é Dionísio que se “dirige” a Chucha,
evocando a génese marinha do desejo, confessando a sua timidez, o pavor da
recusa, a descoberta, quase simultânea, do amor e da frustração, provocada pela voz
do primo Jaime e, sobretudo, pela relação edipiana e catártica vivida por Chucha, numa poderosa síntese dos
mitos helénico-cristãos, que acabaria por o destruir.[76] Num
segundo momento, Dionísio volta a ”dirigir-se” a Chucha, recusando o diálogo, e
acusando-a - como Jaime previra - de ser como as do Bairro Benfica, e
anunciando a relação entre Chucha e “esse mulato que dizem ser nosso primo.”[77]
Finalmente, Jaime - sobrepondo o prazer aos
preconceitos / valores sociais -, “dirige-se” também a Chucha para se
desresponsabilizar, mostrando-lhe que era ela a responsável por ter estragado a
vida, e que Dionísio não passava de um produto da sociedade.[78]
Em
relação a este episódio, apesar da
omnisciência que resulta da pluriperspectiva, o fundamental é que,
axiologicamente, o narrador omnisciente não assume o discurso, numa atitude de
maior distanciamento ético em relação ao comportamento sexual
da família colonial, tal como Yaka se mantém ausente, ocupando-se apenas do
essencial: a interpretação do sentido
das revoltas protagonizadas pelos africanos.
Em
conclusão, não é tanto a oposição
entre instâncias narrativas que estrutura o texto imagotípico, mas a diferença
de estatuto das vozes narrativas. Axiologicamente, a voz de Yaka - portadora da ideologia anticolonial - sobrepõe-se
pelo grau de conscientização a todas
as restantes vozes, mesmo à do
narrador omnisciente, que, apesar do seu aparente
distanciamento ideológico, deixa sempre antever uma intenção crítica no
modo como dá voz a personagens, como
Alexandre Semedo, Vilonda...
C. As personagens
Se
no que respeita às vozes da narrativa, há uma diferença de estatuto que
contribui para a interpretação do texto
imagotípico, no que respeita à sua estruturação, as personagens desenham
uma típica
oposição entre culturas, problematizada, a espaços, pela consciência de algumas personagens de raiz europeia: Óscar Semedo, Acácio, Ernesto Tavares,
Alexandre Semedo, Joel... Sobretudo, Alexandre Semedo que desempenha a função
de observador da sua sorte - o duplo
registo - [79],
perspectivando, deste modo, uma indagação
reflexiva, também ela capaz de influir na atitude do destinatário da obra.
Como vimos na referência feita à origem e distribuição
dos antropónimos presentes nesta obra, também as personagens podem ser
distribuídas por dois conjuntos
significativos.
No que se refere ao conjunto de raiz europeia, convém
distinguir as personagens nascidas em Portugal continental das nascidas em
Angola.
|
Portugal
continental[80] |
Angola |
|
|
Óscar Semedo Acácio Aninhas (Donana) Bartolomeu Espinha Agripino de Sousa Sô Almeida Sô Queirós Sô Lopes Sô Macedo Agente da Pide |
Esmeralda Alexandre Semedo Ernesto Tavares Aquiles Glória Xandinho Irene Álvaro Dionísio Sócrates |
Orestes Matilde Graça (Chucha) Sócrates (II) Eurídice Heitor Jaime Olívia Joel Rufino |
Quadro
7
Esta dualidade acabará por originar uma discriminação
entre os brancos, assente na distinção entre brancos de primeira e brancos de
segunda, apesar da maioria dos brancos
de primeira serem degredados ou emigrantes desclassificados. A presença
destes degredados faz-se sentir sobretudo na 1ª e 2ª partes do romance, tendo,
depois de cumpridas as penas, enveredado pela atividade comercial e, alguns,
mais tarde, pela produção de café. A atividade económica dominante em A
Boca é o comércio da borracha e do álcool - isto é, o comerciante
português comprava a borracha aos africanos a troco de aguardente, armas e
vestuário...
Regra geral, os degredados[81]
eram presos de direito comum, sem qualquer tipo de escrúpulo - analfabetos ou
quase[82]
-, que tinham cometido crimes de sangue na Metrópole, e por isso o tipo de relação que protagonizam no seu
contacto com os africanos é o mais anticivilizacional
possível: vigarizam e, através do álcool, degradam impunemente[83];
exploram o trabalho forçado e fazem
tábua rasa do direito do africano à terra[84].
|
1.
O comerciante[85] |
Personagem
referencial social, e consequentemente objecto de estereotipia, o comerciante, na figura de Agripino de Sousa, é uma das forças anticivilizacionais, na medida em que
simultaneamente se opõe ao modelo de colonização inglês, à mestiçagem, aos
brancos defensores dos direitos dos negros,[86] e,
em particular, se revela adepto da concepção de que o negro não era uma cor, mas uma condição.[87]
Em síntese, Agripino de Sousa, defensor da ocupação
armada e sexual,[88] explora
a força dos filhos mulatos como condutores de caravanas ou como capatazes, enquanto
os desvaloriza.[89] Depois
da “crise do comércio da borracha”, transforma-se em grande roceiro.[90]
Ao lado de Agripino de Sousa - personagem paradigmática
da exploração colonial entre 1880 e 1940 - surgem outros comerciantes cuja
principal ambição era ir morrer na Metrópole, e cuja falta de coragem,[91] medo
e indecisão servem para mostrar o isolamento em que se encontravam num
território em que, até 1920, a população branca não ultrapassava 0,48% do total
da população.[92] Estes
comerciantes não formavam uma efectiva
burguesia porque não eram criadores
de riqueza, ou exploradores activos dela, não passavam de intermediários.[93]
Ao serviço de um destes comerciantes - Sô Queirós - entra
Óscar Semedo - fundador da família Semedo, “paradigmática da saga de povoamento
dos brancos na colónia”[94]-,
que, após 10 anos de degredo na região de Moçâmedes, se desloca com a mulher
Esmeralda[95] e
filho - nascido, em 1890, durante uma acidentada viagem - para Benguela.
Impedido de regressar à Metrópole, tinha “projectos portugueses” para o filho,
porém, apesar de ser branco de primeira,
era um branco da última condição,[96] cuja
proverbial indecisão resultava da natureza contraditória da sua cultura e da
sua acção: republicano e anglófobo; era contra o tráfico de escravos e contra a
rapina dos comerciantes; contrário aos defensores da autonomia da colónia[97]...
iniciou o filho na leitura dos Gregos, determinando deste modo uma das
vertentes megalómanas do carácter de Alexandre Semedo.
|
2.
Acácio ou a utopia da cidade das flores rubras da acácia |
Personagem
cuja visão do mundo a coloca em
situação de conflito com os
comerciantes brancos acaba por ser assassinado, a mando de Agripino de Sousa.
Degredado político - anarquista e republicano -, ideologicamente, adepto de
Proudhon e de Bakunin, ataca a sede do
lucro[98] do
comerciante e do roceiro, e a missionação dos padres. Defende os direitos das
populações.[99] Amigo
dos negros[100],
mantinha uma relação com a mulata Ermelinda, recusando, contudo, a vida a dois,
em nome da liberdade de cada um. Vive permanentemente a frustração de se sentir
colono, ao viver dos lucros dos colonos que provinham dos “roubos aos negros”.[101]
Sintomaticamente, a morte
de Acácio torna-se num acontecimento simbólico para negros e mulatos.
Anunciada - no estilo de Fernão Lopes[102] e
de forma hiperbólica - pelas vozes das
crianças, em consonância com a voz de Yaka: “gritando o mujimbo crescente, sangue é areia na praia,
ao pé dos coqueiros enche tudo, explode na cor das flores de acácia, soluçando.
O sol mesmo, quando morre no mar, não é tão vermelho como o chão e as paredes
da barbearia.”[103]
O episódio da morte e do enterro - transformado em komba[104]
-
anuncia uma Angola diferente e desejada pelos africanos, uma Angola multirracial, caso os brancos estejam
dispostos a seguir o exemplo de Acácio, cuja morte os deveria redimir
dos crimes cometidos ao longo da colonização.
Apesar da sua eventual referencialidade, a função desta
personagem é a de desenhar a utopia da libertação do homem independentemente da cor, iniciando Alexandre Semedo - o único que
é (in)formalmente preparado para
realizar a utopia acaciana - na interpretação dos sinais do tempo[105]:
a queda dos preços da borracha; as alterações económicas e sociais provocadas
pela inauguração do caminho de ferro de Benguela; a tese dos oficiais
invencíveis face ao desastre do Cuamato[106];
as relações entre brancos e negros; a discriminação
entre brancos[107]...
Finalmente,
Acácio, cujo nome é motivado pela árvore-símbolo de Benguela, a acácia,
prefigura o mito pessoal de Pepetela de uma cidade-mestiça[108] fundadora
da angolanidade.
|
3.
Alexandre Semedo, dividido entre a identidade étnica e a assunção de uma nova
identidade cultural[109] |
Sintomaticamente
nascido em 1890 - momento axial da
obra e da História, porque supostamente daria à história angolana um novo curso
-, entre Bibala e Quilengues sob a mulemba sagrada dos Cuvale, Alexandre Semedo[110] acaba
tragicamente por representar a indecisão do branco angolano - homem
dividido entre as raízes ancestrais (ocidentais) e o apelo da terra (angolana).
O apego desesperado à origem étnica manifesta-se no
aproveitamento narcísico que faz do
legado cultural paterno.[111] Esta
necessidade narcísica de preservar a identidade étnica surge, primeiramente,
como autodefesa num espaço onde a diferença
se torna permanentemente visível e fantasmaticamente ameaçadora, e
posteriormente, como resultado dum efectivo conflito cultural. É neste contexto
que Alexandre Semedo gera uma típica família colonial, quase-ilha num espaço
tornado hostil. E por isso, numa tentativa de preservar a identidade étnica, e
de recriar naquele espaço uma pátria regenerada, liberta das taras que
estigmatizavam a pátria de origem, Alexandre Semedo insiste em executar a
operação simbólica da nomeação[112] dos
filhos, netos e bisnetos com nomes gregos, que, todavia, não estiveram à altura
dos projectos de acção inscritos em cada nome próprio, se excetuarmos
a singularidade de Joel-Ulisses, cujo “batismo” tardio, correspondeu mais à filosofia da nomeação africana do que à
europeia.[113]
Este apego à origem étnica atinge ironicamente o clímax
na noite de 14 de Julho de 1917, quando Alexandre Semedo gritou para
posteridade a necessidade de eliminar os
negros.[114] Nesse
momento, interrompe as conversas com Yaka (que só em 1940 retomará ) pela
urgência de defender a civilização,
de reafirmar - face às revoltas dos seles, dos amboins e dos sumbes, face ao autonomismo defendido por Ernesto
Tavares, e face à rejeição de Njaya - a sua
condição de português.[115]
Esta euforia prolonga-se até à catástrofe - a morte
do primogénito Aquiles que terá um profundo efeito traumático[116] em
Alexandre Semedo, deixando-o num estado de abulia quase permanente.
A par deste traço do carácter de Alexandre Semedo,
desenvolve-se um outro que, progressivamente vai determinando o seu afastamento do complexo étnico português e ocidental. Este outro traço resulta do apelo da terra / mátria que marca o
nascimento e se completa com a morte[117]-
e
não apenas de uma vida frustrada.[118]
Esse afastamento é
expresso primeiramente pelo inevitável
contacto com o outro, e
ulteriormente pela presença física de
símbolos dessa mesma alteridade e pela escrita
reflexiva dessa memória.
Desse contacto com
o outro, surgem a ambígua amizade por Tuca, a paixão frustrada por Njaya, a
relação com “Joana”, efémera, mas geradora do ramo maldito da família. Por seu lado, o sapalalo - símbolo do
colonialismo - vai-se enchendo, contra a vontade da família, da alteridade africana: a enigmática
estátua Yaka, herdada do pai; o mobiliário do salão;[119] o
cinzeiro tchokue de pé alto, que representava Tchibinda-Llunga;[120] o
punhal na sua bainha de couro que pertencera ao cuvale Vilonda, que matara
Aquiles; objetos de cestaria e entrançados...
Também a escrita
das suas memórias em forma de conversas para a estátua YAKA, e as leituras etnográficas sobre o Leste e o Norte, após a morte de
Donana (1951), acentuam o distanciamento
de Alexandre Semedo da sua origem étnica, apesar do projecto inicial ser para
consumo exclusivo da família. As memórias
acabaram por iniciar[121] a
catarse necessária à assunção reflexiva da alteridade.[122]
Em síntese, a lenta aprendizagem de Alexandre Semedo, enquanto
o isola, o distancia da família e do complexo étnico português, leva-o a profetizar[123]
a inevitabilidade do homem novo, como
forma de superar o medo[124]
das minorias branca e mestiça. Nesse
sentido, depois de reconhecer, através de Chico, o ramo maldito da família, deixando-lhe a administração da loja e a
fazenda do Bocoio, rebatiza Joel como Joel-Ulisses, o que conseguiu o seu objectivo (...), a excepção dos Semedos, legando-lhe o sapalalo,[125]
o punhal cuvale de Vilonda, que
matara o avô Aquiles,[126] as
memórias, e, finalmente, a interpretação
dos sinais dos tempos, que a seu modo
o aproxima da visão do mundo de
Acácio e da determinação teleológica
de Yaka:
|
A
estátua e o punhal explicam. Cada coisa tem em si a cultura, a História da
sua criação. São aspectos que não se destroem, que acabam por vir à tona
apesar da repressão, da imposição das ideias e das culturas. (...) E um dia
essas vontades todas juntas explodem e não há exército nem religião que as
possam travar. Se compreendes isto, deixas de ter medo, porque para acabar
com o medo, já sabes, é preciso liberdade, deixar os homens desenvolver o
génio que têm neles. Considerá-los iguais aos outros, os que fizeram palácios
de mármore, todos têm o seu génio, a sua cultura, só que pode ser diferente.[127] |
|
4.
Ernesto Tavares (1881-1940): as metamorfoses[128] do
branco angolano. |
Estudou em Luanda. Porém, limitado pela sua
condição de branco de segunda, trocou
o funcionalismo público pela profissão de ajudante de despachante,
estabelecendo-se mais tarde como despachante.
Lascivo, anglófobo, e politicamente sinuoso, passou por
várias fases:
- Saudoso dos independentistas benguelenses do século
XIX, defende, contra Lisboa, a tese autonomista,[129] que
foi, todavia, seriamente posta à prova com o desastre do Cuamato. Durante alguns anos, mantém-se, porém,
partidário da independência de Benguela.[130]
- Adepto da Kuribeka[131],
torna-se membro do Grémio Lusitano em 1910, defendendo a unidade e
indivisibilidade da Pátria portuguesa, e propondo a substituição da realeza (e,
sobretudo, dos jesuítas) por uma República democrática, laica, racionalista.
- Adversário activo dos golpistas que criaram o Estado
Novo, que acusava de monárquico, acabou por defender a dissolução do Grémio
Lusitano, aderindo à União Nacional de Salazar[132],
e manifestava enorme simpatia por Hitler e Mussolini quando morreu.
Apesar da sua significativa versatilidade ideológica, é
pela lascívia que Ernesto assume maior representatividade no romance, no que
respeita à relação do homem branco com a mulher negra. Pela sua atividade
sexual, Ernesto Tavares - subjugado ao culto
do phalus - tipifica o europeu, que
nunca foi, a quem a diferença de raça e de cultura estimula as fantasias e
as pulsões sexuais[133],
assegurando-lhe, neste domínio, um sucesso, que, por exemplo, Alexandre Semedo
nunca obteve.
Paradoxalmente, desse sucesso restará apenas a repulsa
colectiva perante a morte grotesca, mas cujos aspectos mais significativos
emergem da diferença de atitude de
Isidro que, ao contrário do que acontecera com a morte de Acácio, cantava de
alegria por ter morrido um sujo traidor,[134] e
da atitude do poder que, através do
chefe da União Nacional, o reconheceu como um ilustre patriota.
|
5.
As outras personagens |
Na
medida em que marcam atitudes estereotipadas, as personagens são apresentadas
como expressão de duas zonas culturais
(im)permeáveis, cujo contacto gera
uma zona fronteiriça heterogénea
minoritária.
Zona cultural negra:
|
Personagens |
Traços
de identidade |
|
|
Chitekulu |
Numa afirmação singular
de revolta contra a exploração e
especulação dos comerciantes brancos, este sekulo queimou toda a sua
borracha.[135] |
|
|
Ekuikui |
Defensor da produção
agrícola em vez da atividade comercial. Inspirador do ideário de
Mutu-ya-Kevela. |
|
|
Mutu-ya-Kevela |
Quebera
(designação irónica e depreciativa portuguesa) - soba bailundo rebelde - é apresentado do ponto de vista dos brancos como um vampiro sanguinário,
que bebia vinho pelo crânio dos brancos; porém, pela voz de Yaka, Mutu-ya-Kevela surge como um líder que rejeita o
negócio da escravatura, da borracha e da aguardente, que respeita as missões, para quem a força está na
palavra (boca) e não no braço.[136]
Morre,
vítima de traição da missão católica. Com a sua morte,
termina, também, o estatuto de aliado do reino do Huambo, isto em 1902,
condenando os bailundos à subalternidade. |
|
|
Sobrinho
mais velho e sucessor de Mutu |
Personagem apenas
aludida, mas que exemplifica o destino do negro-vítima da aguardente (cilada
branca): a escravatura em S. Tomé. |
|
|
Samacaca |
Soba, amigo de
Mutu-ya-Kevela, cuja acção de “guerrilha”, durante vários anos, entravou a
construção do caminho de ferro de Benguela pelos ingleses, e aterrorizou o
imaginário dos colonos |
|
|
Rufino |
Um bieno instruído que
estudara numa missão protestante,[137]e
que exemplifica o efeito libertário da missionação protestante, e
consequentemente subversivo aos olhos dos colonos. |
|
|
Mandume |
Soba que chefiou a
revolta dos Cuanhama e que morreu em 1917. |
|
|
Mwe
Bandu |
Este soba, ao chefiar a
revolta dos Mbunda, Tchokue e Lutchazi, entre 1915 e 1917, aniquilou o
comércio da cera entre o Bié e a fronteira Leste.[138] |
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Bula
Matari |
Soba que, tal como um
hipotético kiteta, teria chefiado
a revolta dos seles, dos amboins e dos sumbes, em 1917. Porém, a sua
existência no terreno talvez não passasse dum produto da imaginação, conforme
refere Tuca.[139] |
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Tuca |
Colega negro de
Alexandre na escola, cuja aceitação pelas crianças brancas resultou dos jogos
em que a guerra do Bailundo era tema[140],
pois precisavam de um negro que fizesse o papel do anti-herói Mutu-ya-Kevela. Tuca é, neste romance, a espaços, a
expressão da ambivalência cultural, embora cada vez mais aculturado. É essa
ambivalência que faz da personagem a testemunha
ocular de algumas atrocidades praticadas pelos brancos, como, por ex., a
violação da rapariga negra pelos colegas brancos[141],
imitando o capitão Calado a tomar a aldeia de Samacaca, em nome das mulheres brancas; ou, em 1917, como
tenente da guerra preta, revelando
que a causa da revolta do Amboim eram os colonos, que eram eles os principais
executantes do genocídio. Tuca descobre que é o comportamento dos colonos que
gera as futuras revoltas.[142] Porém, esta consciência do futuro não o liberta da sua condição de aculturado e explorado:
ao fim de quarenta anos de trabalho, sem reforma nem pensão por ter sido
oficial, morre “um preto bom, o Tuca
(...) com alma de branco”[143], nas palavras de
Alexandre Semedo. |
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Vilonda |
Chefe cuvale, cuja
onganda já se encontra situada em território mundombe, surge, apesar da
atitude de distanciamento em relação aos brancos, como expressão de uma
concepção de tradição reformista, visto que ao ousar sair da terra sagrada
para poder resolver o problema da seca, inicia as mulheres na agricultura.
Todavia, respeita todas as outras tradições: desde a organização da onganda,
à defesa do elao[144],
à transmissão da cultura, à previsão do futuro através do estudo das
entranhas dos animais, à cerimónia da circuncisão do filho, ou à sacralização
do boi[145]
- símbolo da identidade cuvale. O seu clã - as duas
mulheres, o filho Tyenda -, o
vizinho Ngonga e filho, serão
vítimas, em 1941, da “loucura” de Aquiles e da cobiça dos brancos,
representada por Bartolomeu Espinha. |
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Tyenda |
Filho de Vilonda: os rituais da sua
circuncisão, a visita aos parentes em território cuvale demonstram o
cumprimento rigoroso da tradição, no plano educativo. Será, no entanto, morto
por Aquiles. |
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Ngonga |
Outro cuvale - vizinho
e amigo de Vilonda - pai de Ondomba, a qual poderia ser escolhida
como esposa por Tyenda. |
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Tchipoya |
Pastor mundombe, homem
de mão de Bartolomeu, desde o ataque à onganda de Vilonda. |
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Soba
Moma |
Era o dono das terras
limítrofes da propriedade da família Semedo no Bocoio. Originário do
Bailundo, instruído[146]
e
apologista do papel civilizador dos
brancos[147],
tudo faz para não ofender os
brancos, exceto vender-lhes as suas terras. O soba Moma acabará por
ser barbaramente torturado até à morte, entre outros, por Xandinho; a segunda
mulher violada por Dionísio, as cubatas incendiadas pelo mulato Guilherme, num processo de repressão que se estendeu a
todo o território angolano. E tudo aconteceu a pretexto da procura do
catequista que clandestinamente apelava à subversão, embora o objectivo de
Bartolomeu fosse a posse das terras do soba, como de facto aconteceu, de modo
a poder materializar o seu sonho de construir um império.. |
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(os)
vimbali[148] |
Até à
inauguração do caminho de ferro de Benguela, os vimbali, ou quimbares,
serviram de intermediários no comércio de borracha e da cera. Eram chefes ou
vigias das caravanas, em representação dos sobas. |
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Cassenda |
O velho que gritava por
Suku - o seu Deus - durante a
tortura, rejeitando o Deus branco que
deixava castigar uma parte dos seus filhos...[149] |
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Kalunda |
O comandante da
guerrilha foi uma das vítimas da repressão em Cangamba, no Leste de Angola, em que Xandinho teve
parte activa. |
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Lumumba[150] |
Em 1961, mantinha forte
influência ideológica sobre os
movimentos independentistas Angolanos. |
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Branca |
Uma negra retinta,[151]
amante
de Sô Queirós, mas que nada significava para ele. |
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Rapariga
negra |
13 anos. Violada pelos
rapazes brancos (Afonso, Alexandre, Arnaldo, Amílcar) para “vingar as
mulheres brancas” perante o olhar atónito de Tuca. Vítima do estereótipo
cultural sobre a sexualidade dos negros.[152] |
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Njaya |
Vivia no Bairro da
Peça, em casa de adobe, filha de pumbeiro dum branco.[153]
Surge
na komba de Acácio, tendo
enfeitiçado A. Semedo e Ernesto Tavares. Depois de seduzida, foi abandonada
por Ernesto Tavares. Rejeita a hipótese de ser amante de A. Semedo, ao
decidir escolher o seu caminho.[154] |
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Joana |
Sem direito ao seu
próprio nome.[155]
Engravidada por Alexandre, foi expulsa de casa por Donana. Dá início ao ramo maldito da família: Ofélia Þ
Chico. |
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Ondomba |
Filha do cuvale Ngonga,
destinada a casar com Tyenda... |
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Ruca |
Num tempo em que a cor deixou de ser critério
diferenciador, Ruca, amigo e camarada de militância política de Joel, só
indirectamente pode ser "integrado" nesta zona cultural.[156] |
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Quadro 8
Zona
cultural branca
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Personagens |
Traços
de identidade |
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Aquiles |
Nasce em 1910.
Fisicamente, é uma réplica do herói grego homónimo. Um fracasso nos estudos.
Os seus interesses resumem-se a “pancadarias, almoçaradas, futebol e caça”-
capataz eficiente da Câmara.[157]
Ateu e satânico, tal como o avô e o pai,
insatisfeito, medíocre.[158]
Esta mediocridade era compensada pela violência indiscriminada em que a cor
não era um critério absoluto, pois que para Aquiles o mundo dividia-se em amigos e inimigos.[159]
Porém, em consequência da sua megalomania,[160]
a sua invulnerabilidade termina de forma trágica numa patética
caçada em território cuvale: morto pela azagaia de Vilonda, após lhe ter
morto o filho Tyenda, em 1941. Se Aquiles tipifica, pela educação, o complexo
de superioridade do colonizador, a sua natureza medíocre torna-o numa figura
inconsequente.[161] |
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Orestes |
Dominado pela mulher,
Matilde, caracteriza-se pela falta de iniciativa, pela cobardia. Vive na abulia dos Semedos. É o reverso do
homónimo príncipe grego, sedento de vingança, embora instigado por Apolo e
Electra... |
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Bartolomeu
Espinha |
Depois de ter sido
vendedor de jornais e proxeneta em Lisboa, chega a Angola em 1936, casando em
1939 com Eurídice.[162]
O
seu itinerário representa o agudizar das relações entre culturas, de 1940 a
1975. Ao contrário de Aquiles, Bartolomeu tem a ambição e o calculismo
que sempre faltaram aos Semedos, alicerçados numa completa ausência de escrúpulos e de cultura.[163]
É
este perfil que lhe permite urdir ciladas que lhe possibilitam a apropriação dos
bois dos cuvales e das terras do soba Moma. Dedicando-se sucessivamente à
cultura de algodão, de sisal, de abacaxi, de hortícolas, à criação de gado,
aos transportes, e, finalmente, à política, Bartolomeu realiza o projecto de
colonização que os Semedos tinham rejeitado entre 1880 e 1940, isto é, inicia
a realização do sonho de construir um
império no Bocoio,[164]mas
que vê interrompido pelo Movimento dos Capitães em Abril de 1974 e pela
vitória do MPLA em 1975. Só lhe resta a fuga e a conspiração. Ao contrário de
Matilde, Bartolomeu arriscara tudo e perdera.[165] |
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Alexandre
/ Xandinho |
Filho de Aquiles e de
Glória, nascido em 1935. Revela-se um zeloso
patriota; funcionário colonial, é uma peça fundamental na estratégia
urdida por Bartolomeu. Com o fim do Império, soçobra[166]
porque
compreende que, apesar de uma vida gasta a abrir estradas, a organizar
recenseamentos, a cobrar impostos[167],
terá de pagar pelo seu envolvimento nos massacres de 1961, nomeadamente no
Bocoio, e mais tarde, no Leste, na Cangamba. Perante a nova situação, tenta
infrutiferamente considerar-se angolano e não colonialista.[168]
A loucura abre-lhe as portas dum asilo de alienados mentais em Portugal. |
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Dionísio |
Filho de Aquiles e de
Glória, nascido em 1939, o primo preferido de Chucha com quem mantém uma
relação incestuosa, frustrada pelo primo Jaime. Essa frustração marcá-lo-á
para sempre: rejeitando Chucha, vinga-se violando a segunda mulher do soba
Moma... A pulsão sexual determina-lhe o comportamento, condenando-o ao
isolamento, ao silêncio. |
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|
Heitor |
Filho de Bartolomeu e
de Eurídice, nascido em 1941, Heitor, para desespero[169]
do
pai e orgulho do avô, estudou Latim e Grego até ao 7º ano no Liceu do
Lubango. Recusou continuar os estudos na metrópole. Desinteressado da
política, Heitor tinha apetência pela filosofia, embora rejeitasse a utopia
social proposta por Olívia. Gostava da terra e ajudava o pai na propriedade
do Bocoio, tornando-se num dos gestores da fazenda Espinha. |
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Jaime |
Filho de Bartolomeu e
de Eurídice, nascido em 1945. Protagonista da ruptura de Dionísio com Chucha,
revela-se libertino, espertalhão e mexido. Estuda Direito para servir os
interesses da família.[170] |
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Joel |
Filho de Irene e de
Álvaro - bisneto de Alexandre Semedo - representa a solução de integração branca na futura Angola, na perspectiva
final do bisavô. Joel-Ulisses,[171]
partidário do MPLA, opta pela permanência em Angola nas fileiras das FAPLA,
mesmo perdendo Nízia.[172] Joel-Ulisses, a
excepção dos Semedos, responde ao “chamado da terra”, e, nesta condição,
revela o indecifrável segredo de Yaka: “A estátua representa o colono (...) ridicularizado (...)
burro e ambicioso (...) é a sátira do colonialismo.”[173] Joel-Ulisses, portador
da pistola oferecida pelo tenente português e do punhal cuvale com que
Vilonda matara Aquiles, parte para a batalha de Catengue, ganha pelos sul-africanos. Acolhido pelos cuvale, integrará a guerrilha contra o
novo opressor que ocupara Benguela... |
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Bombó |
Um branco renegado que
fazia guerrilha contra os outros brancos.[174] |
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O
Tenente português |
Namorado de Chucha,
incita Joel a ficar, e explica-lhe o motivo por que todos os brancos querem
partir. Este tenente representa na obra o iluminado
Movimento dos Capitães de Abril. |
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Esmeralda |
A primeira branca a
nascer em Capangombe. Mulher de Oscar Semedo. Devota, analfabeta e discreta[175].
Morreu com o complexo de branca de
segunda. Porém, conseguiu casar o filho com branca de primeira. |
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Donana
ou D. Ana de Aragão Semedo |
Sopeira na casa dos
pais de Oscar, em Portugal. Ao casar por correspondência com Alexandre Semedo
realiza o sonho de Esmeralda de ver o filho casado com branca de primeira. Devota, profundamente racista, condena
severamente os brancos pelos seus comportamentos sexuais.[176]
Apoia
aqueles que, como Bartolomeu, têm sonhos expansionistas, condenando a
permanente indecisão do marido. O seu grande sonho era o sonho do emigrante: regressar rica à terra. |
|
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Glória |
Nascida em Benguela. A
rapariga mais bonita de Benguela em solteira. Casou com Aquiles. Viúva e
devota, foi viver com os filhos para o sapalalo, onde sempre se sentiu mal.
Revela o seu racismo quando Alexandre Semedo instala Chico como seu
vizinho de quarto.[177] |
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Matilde |
Mulher de Orestes.
Ambiciosa, intriguista, racista, condena os brancos cafrealizados, como Ernesto
Tavares.[178]
Face
à passividade de Orestes, rivaliza com Bartolomeu na condução dos negócios,
acabando por se tornar em sua aliada nos negócios, na política e na fuga. |
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Graça
(Chucha) |
Terá nascido em 1942.
Protagoniza com Dionísio e Jaimito uma cena incestuosa fundamental para a
compreensão da decadência a que o branco chegara, numa época em que se
louvava a multirracialidade portuguesa. Aceita essa relação quase como
natural. A sua volubilidade sentimental seria consequência de vingança do
destino, porque Matilde se recusara a dar-lhe o nome de Safo, a poetisa
lésbica.[179]
Todavia,
será o amor impossível por Dionísio que a conduz à permanente mudança de
parceiros, incluindo nessa listagem Chico. Acaba por sair de Angola,
evidenciando o seu complexo de superioridade rácica.[180]
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Olívia |
Nasceu em 1952.
Mística,[181]
em
parte, em consequência da educação que recebera num colégio de freiras. Mais
tarde, por influência de Alzira, uma colega de estudos na Faculdade do
Lubango, substitui o Cristianismo pelo Comunismo - Cristo por Lenine e Che
Guevara. Adepta da linha “dura” acaba também por partir para Portugal.[182] De acordo com A.
Semedo, Olívia sentir-se-ia estrangeira
na terra, em resultado da época em que nascera. |
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Quadro 9
Zona cultural mestiça
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Personagens |
Traços
de identidade |
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Isidro |
Poeta e músico, compôs,
em homenagem a Acácio, uma canção que celebrava a “liberdade, dos quintalões
e das pétalas da árvore homónima”.[183]
Durante
o komba de Acácio foi mesmo preso por incitamento à subversão. Todavia, o seu
canto, aquando da morte de Ernesto Tavares, era de alegria pois morrera um sujo traidor.[184]
Isidro foi uma das
vítimas do massacre perpetrado pelos brancos para destruir uma rede
clandestina, em 1961.[185] |
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Guilherme |
Secretário do Posto do
Bocoio: incendeia as cubatas do Moma. |
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Chico |
Nasce em 1941, filho da
mulata Ofélia e de um cabo-verdiano, neto de Alexandre Semedo, Chico
representa o ramo maldito da
família Semedo. Instruído - tinha o 5ºano do Liceu -, porém, segregado, acaba
por trocar, em 1961, o Huambo por Benguela, “cidade mestiça”.[186]
Acolhido
por A. Semedo no sapalalo, apesar da oposição da família, [187]
Chico tem plena consciência de que aquilo que o separa da restante família é
a cor.[188]Esta
consciência não o impede, porém, de “viver” com a branca Chucha um dos momentos mais caricatos da relação
multirracial, cuja consequência é a sua expulsão do sapalalo. Todavia, em 1974/75,
Chico adquire, aos olhos dos Semedos, uma importância estratégica
fundamental: a de viabilizar a permanência
dos brancos em Angola.[189]
Chico
herdava através da nominatio dos filhos - Demóstenes e
Aristóteles - o legado grego de
Oscar Semedo. Mais realista que os Semedos, e incapaz de compreender o
pensamento utópico de Alexandre de que a diferença
está na cultura e não na cor,[190]
prefere
os negócios à política, tornando-se o administrador de uma parte da herança
de Alexandre Semedo: a loja e a fazenda do Bocoio. |
|
Ermelinda |
Vivia no Bairro da
Peça. Mulata gorda, amante de Acácio. Exímia cozinheira. Arreigada à cultura
tradicional, organizou a komba em
homenagem a Acácio, com o objectivo de celebrar a utopia acaciana - a utopia
da multirracialidade. Esta audácia levou-a, porém, à cadeia, acusada de
incitamento à subversão.[191] |
|
Ofélia |
Filha de Alexandre
Semedo e de Joana. Quando adulta, rejeita o perfilhamento paterno[192]. Casada com um cabo-verdiano. Mãe de Chico. |
|
Sónia |
Uma mulata com origens
cabo-verdianas que casou com Chico. |
Quadro 10
|
· Em síntese: |
|
1. Na
configuração cultural negra, o contínuo trabalho de eliminação dos focos de revolta condenou os indígenas à morte, ou à interioridade e à clandestinidade. Em certos casos,
pouco expressivos, a uma acentuada descaracterização,
como acontece com o Tuca ou com o soba Moma. 2. A
configuração cultural mestiça, enquanto zona de fronteira, é heterogénea
porque integra dois tipos de mulatos: os mulatos-filhos-de-comerciantes que
defendem os interesses dos pais brancos; e os mulatos-descalços que tinham
sido abandonados pelos pais e viviam como os negros.[193]
Em termos prospetivos, o destino de Chico confunde-se com o lançamento da
semente neocolonialista. 3. Na
configuração cultural branca[194],
se
excetuarmos Joel, a família Semedo “vive” convencida da superioridade da cor branca, embora despreze o legado grego, e manifesta uma tal abulia que não fora o contributo
expansionista do emigrante Bartolomeu
Espinha teria morrido de inação. 4. As personagens femininas, apesar de se
inscreverem nas culturas desenhadas no masculino, por vezes, pelas suas
atitudes, revelam os limites do masculino ou prenunciam uma sociedade nova
onde masculino e feminino terão o mesmo estatuto. O critério da cor mantém-se como traço
diferenciador, embora no seio de cada cor
o estatuto do feminino possa variar: da alienação à reivindicação de
identidade própria. As personagens femininas brancas são apresentadas de
forma estereotipada: regra geral, são pouco
cultas ou analfabetas, devotas, ambiciosas e racistas. No confronto da negra com a mulata as diferenças são pouco significativas. Todavia, no
confronto com a branca, ambas se
assumem
como mais próximas do diálogo intercultural, rejeitando, no entanto, a
opressão do branco. |
|
D. A imagem como Cenário |
Como
refere D.-H. Pageaux, nesta fase da investigação é fundamental confrontar os
dados da análise textual com os dados fornecidos pela História.[195]
Ora o que a História[196] nos
mostra é que a independência do Brasil (1822) empurrou Portugal, que não os
portugueses - esses aumentaram o fluxo migratório para o Brasil - para um novo
ciclo africano, durante o qual, perdidos os rendimentos do tráfico de escravos,
necessário se tornou encontrar outras fontes de proveito.
A presença portuguesa na costa africana não tivera, de
início, carácter expansionista, pois o “contacto” com as sociedades tribais
fazia-se por intermédio das respetivas soberanias, e fora normalmente pacífico,
com interesse para as duas partes.[197] A
ocupação efectiva do espaço continental a partir das praias, tal como se propôs
na Conferência de Berlim (1884-1885), foi uma consequência da acção dos outros
Estados europeus que não visavam as populações mas as riquezas contidas no
subsolo.
Até ao 3º quartel do século XIX existe, por um lado, um núcleo colonial - geograficamente uma
rede de núcleos -, ocupando cerca de 2% do território angolano actual e, por
outro lado, um número considerável de sociedades africanas politicamente
independentes, que possuíam as características mais diversas e que, em grande
parte, mantinham uma ou outra forma de contacto, directa ou indireta com o
núcleo colonial.[198]
Seguem-se 50 anos marcados por esforços militares,
administrativos e políticos portugueses, com o objectivo de delimitar o
território e de executar a sua ocupação efectiva, em consequência das disposições contidas no Acto Geral da Conferência de Berlim: O
princípio da ocupação efectiva baseada numa autoridade suficiente para fazer
respeitar os direitos adquiridos, e o da liberdade de comércio e de trânsito.
Todavia, essa missão civilizadora
confrontou-se com a insuficiência de recursos financeiros, e, sobretudo, com a
falta de recursos humano instruídos e motivados para uma efectiva colonização
branca. Esta tarefa, até à década de 30, continuou entregue à escória que a
metrópole deportava anualmente para Angola.
|
1. Os portugueses em Angola - séc. XIX e XX: O
relançamento do projecto ultramarino |
Foram
quatro os caminhos que levaram os portugueses a Angola:
|
· O
degredo e o exílio. |
|
· Famílias portuguesas deslocam-se para a
costa de Angola, em particular, para a região de Moçâmedes, em consequência
duma insurreição armada em Pernambuco, Brasil. |
|
· A
emigração. |
|
· A
deslocação de homens para Angola, integrando as forças militares, que, após o
cumprimento do serviço militar, ficavam no território. |
Embora
a acção em Yaka decorra entre 1890 e
1975, parece fundamental avaliar a verdadeira situação da presença branca em
Angola desde que Portugal - perdido o Brasil - virou a sua atenção para esta
colónia.
O Projecto Global
Ultramarino apresentado por Sá da Bandeira, em 1836, que implicava a
abolição do tráfico de escravos e a reforma da administração ultramarina, e
que, em 1838, permitiu criar os órgãos que, ao nível da metrópole,
superintendiam os assuntos relativos ao Ultramar, é um dos primeiros passos
para a realização do sonho de Sá da Bandeira de uma colonização maciça de brancos. Porém este sonho não viria a
concretizar-se.[199]
Primeiramente, porque a tradição[200]
de deportar para Angola os condenados
exilados ou degredados era um dos elementos mais prejudiciais ao seu
desenvolvimento, como reconheceu o mesmo Sá da Bandeira ao defender que Angola
não podia continuar a ser um lugar de exílio para degredados, mas uma casa para
cidadãos portugueses honestos e trabalhadores.[201]
Apesar das boas intenções de Sá da Bandeira, Lisboa, em 1839, viu-se forçada a
recorrer novamente aos degredados para dar ímpeto ao povoamento branco e, nesse
ano, um édito real concedia passagem gratuita para África às mulheres e filhos
dos degredados.
Depois, porque esta emigração
assistida e a reputação de Angola como túmulo
do homem branco se tornaram num poderoso obstáculo à livre emigração. Neste
período, apenas a zona costeira de Angola recebeu, entre 1849 e 1851, cerca de
350 emigrantes voluntários vindos do
Brasil - em consequência de uma insurreição armada na cidade de Pernambuco,
em 1847-1848 - cuja maioria se fixou em Moçâmedes.[202]
Não encontrando alternativas para o povoamento branco do
território, os Governos continuaram a apostar nos degredados, embora tentando
controlar o seu comportamento “facinoroso” e empregar de modo produtivo o seu
trabalho. Para esse efeito, em 1876, foi decretado o estabelecimento de quatro depósitos de degredados[203] em
Angola, tendo apenas funcionado dois, a partir de 1883: um no forte de São
Filipe, em Benguela, e outro no forte de S. Miguel, em Luanda.
Entretanto, com os objectivos já referidos e, ainda, com
o propósito de apostar na produção agrícola, foram criadas colónias penais agrícolas. Em Benguela, foi criada uma colónia
penal em 1885. Por outro lado, em 1894, as colónias penais passaram também a
desempenhar uma função militar, utilizando, deste modo, os degredados como
colonos e soldados no interior de Angola. Só que estes recusavam o trabalho,
desertavam, aterrorizavam as populações locais...
Os degredados não só fracassaram como soldados, mas
também como agricultores. Eram de tal modo prejudiciais, que Portugal se viu obrigado
a confiar em tropas indígenas,
recrutadas noutras partes do território, para poder estabelecer-se em grande
parte do interior de Angola.
A título de exemplo, e para que se possa compreender o
perfil do degredado, refira-se que entre 1902 e 1914, 57% dos degredados tinham
sido condenados por crimes contra pessoas, incluindo: 921 por homicídio, 321
por agressão de que resultaram ferimentos corporais e 177 por violação. Menos
de 16% dos degredados que entraram em Angola durante este período sabiam ler,
escrever ou contar. Os degredados que entraram em Angola entre 1902 e 1914
superam largamente em número os imigrantes camponeses livres - um padrão que
persistiu até à década de 1930-1940.[204]
Quanto à 3ª via, a emigração
livre, sobretudo, de pequenos agricultores, esta revelou-se incapaz de
responder aos projectos de colonização que, entretanto, as autoridades
metropolitanas iam apresentando ao país, em consequência da avidez das
potências europeias.
Na década de 70,
sob o impulso de Andrade Corvo, Portugal conseguiu manter um período de paz e
de prosperidade nos territórios do Ultramar, defendendo a resolução dos
conflitos mais pela negociação do que pela força.
Em 1872, foi levado a cabo um importante Inquérito Parlamentar que inspirou a Lei
de 28 de Março de 1877, cujo objectivo era “canalizar a emigração para as
colónias portuguesas de África, oferecendo auxílios aos emigrantes com este
destino.” [205]
Em 1875, com o apoio de Andrade Corvo, Luciano Cordeiro
funda a Sociedade de Geografia de Lisboa,
que se torna no motor do renascimento colonial português. Entre 1877 e 1880,
esta instituição promove as primeiras grandes viagens de exploração científica
entre o Atlântico e o Índico, protagonizadas por Serpa Pinto, Hermenegildo
Capelo e Roberto Ivens.
Em 1881, a Comissão do Fundo Africano da Sociedade de
Geografia de Lisboa faz um apelo Ao Povo
português, em nome da Honra, do Direito, do Interesse e do Futuro da Pátria,
no intuito de “promover uma subscrição
nacional, permanente destinada ao estabelecimento de estações civilizadoras nos
territórios sujeitos e adjacentes ao domínio português em África.” [206]
O decreto-lei de 18 de Agosto de 1881 do Ministério de
Júlio Vilhena define o Regulamento das estações
civilizadoras,[207]e
os seus objectivos:
- conceder aos viajantes facilidades de acolhimento e
comerciais;
- facilitar a instalação de colonos pela realização de infraestruturas;
- agir no sentido de atrair os africanos ao “trabalho
civilizador”;
- promover e desenvolver o comércio em todos os seus
aspectos e tanto quanto possível pelo trabalho da população africana;
- divulgar a língua portuguesa;
- recolher dados sobre todos os aspectos da realidade das
regiões e populações circundantes.
Em 1881-1882, foram publicados dois diplomas que
incentivavam a emigração portuguesa para África, em cujo preâmbulo, não
faltavam referências à missão
civilizadora dos portugueses que deveriam iniciar os naturais na lei e no aproveitamento do trabalho culto, e
procurar modificar os usos bárbaros e
desumanos das sociedades indígenas. A Lei de 1881 instituía em Angola a
“Junta da Emigração Portuguesa”.[208]
Como se pode deduzir das medidas tomadas, as autoridades
portuguesas viam, desde a independência do Brasil, a necessidade de reorientar
o fluxo migratório para África, apesar da pouca adesão da população migrante.
Esta deslocação das populações tornou-se numa questão vital para a
sobrevivência do império colonial português a partir do Tratado de 28 de Maio de 1891, celebrado com a Inglaterra, em que o
Governo de Lisboa aceitou as condições inglesas sobre as fronteiras das suas
possessões em África. Só que o Governo para garantir essas fronteiras teria de
realizar os seguintes objectivos:[209]
|
· Ocupar
efetivamente esses territórios e consolidar neles o seu domínio. |
|
· Destruir
a resistência armada dos povos indígenas, tornando estes trabalhadores
contribuintes dóceis. |
|
· Impor
uma orientação político-económica que subordinasse as colónias à sua área
metropolitana. |
|
· Assegurar
a legitimidade internacional |
Em
23 de Abril de 1896, é promulgada uma lei que torna gratuitos os passaportes
dos emigrantes para as colónias. Tal como em 25 de Abril de 1907, é promulgada
uma lei que dispensa de passaporte os nacionais que se dirijam às possessões
portuguesas do Ultramar, dificultando simultaneamente a emigração para o
estrangeiro.
A República, em 1911, cria o Ministério das Colónias e
introduz mudanças importantes na administração colonial, com o objectivo de
promover o desenvolvimento das colónias. Nessa época, Afonso Costa pôs o dedo
na ferida ao afirmar que era urgente dar instrução
ao povo português “se não queremos caminhar para uma crise, que não teria
nenhum remédio” e ao considerar uma “utopia, as tentativas de derivação das
correntes emigratórias para a África portuguesa”.[210]
Em 1921, Norton de Matos voltou a ser nomeado como
alto-comissário para Angola com o objectivo de fazer a descentralização
administrativa e financeira, retirando benefícios do desenvolvimento colonial
sem lhe financiar os custos, tidos como demasiado elevados. Norton de Matos[211]
fundou a cidade do Huambo (mais tarde Nova Lisboa), destinada a capital no
centro geométrico do território, tomou medidas sérias para acabar com o
trabalho forçado dos indígenas, elevando o seu nível de vida e promovendo uma
colonização branca por famílias, que assegurasse o fim da mestiçagem, a que era
adverso. Embora sem uma verdadeira política de enquadramento dos emigrantes,
atraiu para Angola, entre 1920 e 1924, milhares de europeus, conseguindo um
crescimento de 75% da população branca.[212]
Esta política foi continuada por Vicente Ferreira, [213]
fervoroso adepto da colonização étnica,
entre 1926 e 1928. Por outro lado, também, em consequência, da revolução
nacional de 1926, muitos deportados políticos contribuíram para o aumento da
presença branca. [214]
Em resumo, terá sido a acção política de Norton de Matos
e do seu sucessor, Vicente Ferreira, que mais contribuiu para que Angola
surgisse como uma unidade
político-administrativa, a partir dos anos 20:
|
“É só a partir dos anos
20 deste século, que se pode começar a falar numa formação social angolana,
precariamente constituída, implantada no território então definido, sob a
forma de um conglomerado onde o núcleo colonial é o centro dominante e as
sociedades africanas são reduzidas ao status de periferia. As diferenças
entre as sociedades africanas são em parte neutralizadas e em parte
acentuadas por uma dominação colonial que recorre a uma variedade de
mecanismos, em função tanto das necessidades do núcleo (e da metrópole)
quanto das situações regionais em Angola.” |
A
construção desta unidade, baseada
numa política de descentralização em que as autoridades indígenas não perdiam
uma grande parte do seu poder é, porém, interrompida com o advento do salazarismo. O novo regime, visando
retirar o máximo proveito das colónias africanas, e, sobretudo, integrá-las
como membros de um corpo único que era a Pátria,
retoma o centralismo, que apesar das medidas aparentemente facilitadoras da
emigração para África, se contenta com a exploração do trabalho negro e retarda
o desenvolvimento do interior, possibilitando a implantação de monopólios que
limitavam a afirmação da pequena iniciativa branca, e controlavam completamente
o africano, através do contrato -
criando um novo tipo de emigração forçada no interior das Províncias: como, por
exemplo, de Cabo Verde para S. Tomé e Angola, ou de Angola para S. Tomé. Neste
contexto, a emigração de portugueses para África, que só poderia ser de
povoamento - o que implicava uma política económica e socioeducativa totalmente
diferente - só teve uma alguma expressão em momentos muito fugazes durante e
após a Segunda Grande Guerra.
De facto, entre 1929 e 1932, Salazar fez diminuir a
população branca, ao pôr termo à colonização dirigida. Até 1951, o Estado
desinteressou-se da deslocação de brancos para Angola, de modo a resolver o
problema do desemprego e da pobreza na metrópole.
Em 1950, entre os 135.355 civilizados existentes em
Angola, 78.826 são brancos. Os europeus
nascidos no território são já 42,57%. Nesta data, os brancos habitam, sobretudo, nas cidades: 45.453 habitam nas 8
principais cidades.[215] Representam
1,9% do total da população, 58,2% do total dos civilizados. Todavia, dos 78.826
brancos, 18.153 são analfabetos, o que não pode deixar de colocar dúvidas
quanto à sua capacidade civilizadora.
Entretanto, em 1952 foi criado o Fundo de Desenvolvimento e de Povoamento com o objectivo de apoiar
a colonização dirigida, bem ilustrada
pela criação dos colonatos da CELA
(fiasco absoluto) e do CUNENE.
Os Governo de Salazar (e mais tarde de Marcelo Caetano)
apostam tudo na política de integração
multirracial, cujo principal objectivo era “civilizar”, isto é, realizar a
integração social e cultural de toda a população de acordo com o modelo
metropolitano.
Em 1960, Angola
tornou-se numa colónia de povoamento,[216] em
que os brancos nascidos no território são minoritários em relação aos
emigrantes em todos os distritos, exceto no Huíla.[217] Esta
dupla origem do branco acaba por, de forma latente, gerar uma nova hierarquia,
expressa em brancos de 1ª classe
(vindos da Metrópole) e brancos de 2ª
classe (nascidos no território). Estes últimos eram, muitas vezes,
preteridos na Administração Pública, porque tendiam a ser vistos como
integrando a zona cultural dos mestiços e dos negros evoluídos, na medida em
que detinham um certo conhecimento das línguas nativas e da cultura africana,
resultante do convívio, sobretudo, na infância e na adolescência com mestiços e
negros.
Finalmente, é importante referir que, apesar de Angola, a
partir dos anos 60, surgir como colónia de povoamento, este estava reservado
apenas aos portugueses, e nesse sentido para que a colonização branca e a
integração multirracial pudessem ser realizadas, os estrangeiros tinham sido afastados quase na totalidade do
território angolano.[218]
|
2.
O Luso-tropicalismo |
Por
um lado, pelo papel que terá tido na legitimação da colonização portuguesa, e
por outro, porque Yaka se coloca nos
antípodas dessa fundamentação, torna-se necessário abordar aqui o impacto do
pensamento de Gilberto Freyre em Portugal.
Gilberto Freyre ao introduzir, na sua tese de
licenciatura, a doutrina sobre as bases da sociedade colonial luso-tropical na
formação do Brasil, lançou, no início dos anos 30 deste século, os princípios
orientadores dum modelo de colonização
portuguesa não racial, geralmente designado Luso-tropicalismo, cujas
consequências ainda não desapareceram do imaginário
colectivo português. [219]
A base da
sociedade colonial luso-tropical, lançada no Brasil, fora “a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da
família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do
português com a mulher índia (mais tarde com a negra ou a mulata), incorporada
assim à cultura económica e social do invasor.” [220]
Como argumento justificativo do tipo de colonização
levado a cabo pelo homem português, Gilberto Freyre aponta “em grande parte o
seu passado étnico, ou antes cultural, de povo indefinido entre a Europa e a
África (...) num Portugal influenciado pela África, condicionado pelo clima
africano, solapado pela mística sensual do islamismo.”[221]
A partir deste argumento, Gilberto Freyre atribui ao
homem português uma dualidade de cultura
e de raça que lhe permite uma grande
mobilidade e adaptabilidade tanto física [aclimatibilidade] como social
[miscibilidade].[222]”A
miscibilidade,
mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses se
compensaram da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em
larga escala e sobre áreas extensíssimas.”[223]
O colonizador português do Brasil foi o primeiro a
apostar na criação local de riqueza, através “da utilização e desenvolvimento
de riqueza vegetal pelo capital e pelo esforço do particular; a agricultura; a
sesmaria; a grande lavoura escravocrata (...) e do aproveitamento da gente
nativa, principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho mas como
elemento de formação da família.”[224]
Além disso, a família
foi desde o séc. XVI o grande factor colonizador no Brasil, e não a colonização por indivíduos -
aventureiros, degredados, cristãos-novos, traficantes de escravos -
contribuindo, através do seu enraizamento em novas terras, para a expansão do
“mundo” português.
Ora o mundo
português é, para Gilberto Freyre, filho da força do amor que impera sobre os preconceitos de raça, as convenções de
classe, o exagero da luxúria, no contacto dos brancos com as raças de cor. E
neste sentido defende” a democratização das sociedades humanas através da
mistura de raças, do cruzamento, da miscigenação.”[225] Finalmente,
defende “uma consciência supranacional” (...) que nos defina “como uma das
grandes federações modernas de cultura.”[226]
Em conclusão, Gilberto Freyre com esta concepção singular
do mundo português, cujo objectivo
inicial era explicar a formação da nação brasileira, acabou por gerar um
poderoso instrumento ideológico que
serviu ao Estado Novo para impor ao povo português a imagem de que na África portuguesa se estavam a construir sólidas e
harmoniosas sociedades multirraciais, que, a longo prazo, realizariam a utopia freyriana da constituição duma grande federação moderna de cultura.
|
2.1.
Um exemplo de contra-discurso cultural em Pepetela |
Uma
das obras que melhor ilustra o contra-discurso cultural[227]
de Pepetela é a peça em três actos A REVOLTA DA CASA DOS ÍDOLOS, escrita em
1979. Com esta obra, o autor contrapõe ao paradigma luso-tropical das relações
não racistas com África,[228]
uma recriação demolidora desse mito.
O luso-tropicalismo - mito romântico - surge, como vimos,
como expressão de algumas ideias-força, que acabaram por moldar o imaginário
cultural português:
|
· O fundo cultural e racial absolutamente
único de Portugal metropolitano; · A grande capacidade de adaptação às terras e
povos tropicais; · A
inexistência de legislação racial: a discriminação, a existir, dever-se-ia
atribuir a preconceitos de classe, mas nunca de cor; · Pobres
e humildes, os portugueses surgem sem as mesmas motivações exploradoras de
outros povos. |
Teria sido esta
forma de ser colectiva que nos permitiu desenvolver de imediato relações de
igualdade[229]
com
os congueses, e criar, mais tarde, a sociedade multirracial brasileira.
De certo modo, a cooperação[230] devidamente
planificada, embora, em função de objectivos determinados pela ideologia
dominante da época[231] -
expansão da fé cristã (objectivo ecuménico) e expansão económica (objectivo
nacional) -, foi iniciada por D. Manuel I, entre Portugal e o Reino do Congo.
Pelo modo como marcou o imaginário português, e, sobretudo, pelas consequências
que daí advieram para a fundamentação da precocidade da cooperação civilizadora
portuguesa, convém referir aqui o Regimento[232] de Simão da Silveira (ou
da Silva), datado de 1516, que contém
disposições que hoje caberiam bem em qualquer tratado de cooperação.
Numa época em que o respeito pelas soberanias
não-europeias não tinha qualquer significado, nem era aceite o princípio da
igualdade para todos os seres humanos, o referido regimento regista o código de conduta de Silveira durante a viagem
e, como conselheiro do Rei do Congo, junto de quem deveria trabalhar para que
entre outras, como o uso de “selo de armas”, “sinete”, “estandartes”, fossem
satisfeitas as seguintes recomendações:
|
- Necessidade de
estabelecer laços de fraternidade. - Rigoroso e exemplar
comportamento para os cooperantes: “Vos mandamos que se algum frade ou
clérigo fizer cousa que não deva, e for de mau exemplo, o não consintais lá
mais...” Tal como outros portugueses “viciosos e de mau exemplo” deveriam ser
expulsos. - Necessidade de evitar
interferências prejudiciais (obstáculos físicos e humanos). - Respeito pela vontade
da outra parte. - Formação de um número
significativo de congueses em Portugal. - Assistência técnica
nos domínios da justiça e da guerra, em que se previa o papel de
conselheiros, sem papel decisor de modo a não prejudicar os interesses da
cristandade. - Assistência técnica (oficiais mecânicos) “para lhes ensinar
em sua terra os ofícios”, por exemplo, no domínio da construção civil
(igrejas, uma casa assobradada para o rei, conforme o molde da corte
europeia). - Evitar tratar com o
rei do Congo questões essenciais para o rei de Portugal como “escravos, cobre
e marfim”, apesar de, subliminarmente, os apresentar como contrapartidas das
grandes despesas feitas com o envio de frades e de clérigos, assim como com
as dezenas de congueses que estudavam em Portugal. |
A preocupação em não incomodar o rei do Congo - D. Afonso[233] -,
em matéria de interesses terrenos, leva D. Manuel I (que sucedera a D. João II,
em 1495), qual raposa matreira, a
delegar em outrem a sua intenção de assentar em terras africanas práticas e
políticas europeias:
|
“E tudo lhe dizeis como
de vosso, sem lhe dizerdes cousa alguma de nossa parte, trabalhando o mais honestamente que vós poderdes.” [234] |
Todavia, a relação entre portugueses e
congueses, recriada por Pepetela, em A
Revolta da Casa dos Ídolos - cuja acção se inicia em 1514 -, desmente essa
visão optimista[235] das
relações entre os povos: um rei usurpador[236] e
aculturado, imposto de acordo com a norma sucessória europeia - D. Afonso[237] -
ignora o seu povo, as suas tradições, os seus “amuletos” e condena-o
progressivamente à escravatura[238],
servindo-se mesmo dos métodos inquisitoriais, acabados de introduzir em
Portugal, para ao impor a religião católica, consolidar o seu poder pessoal.
Esta recriação feita por Pepetela contraria, na quase
totalidade, a História portuguesa, pois a relação a estabelecer com o reino do
Congo não implicava ocupação ou conquista. Segundo Felner, Simão Silveira não
era capitão-mor, nem feitor, era apenas um assistente ou residente na corte do
rei do Congo.” Na obra de Pepetela, não há rasto de Silveira[239],
e do seu regimento só terá sobrado a
caricatura...
Os portugueses - os estrangeiros[240] -
são representados por três personagens-tipo: o Padre, o Capitão e o Lopes,
traficante de escravos.
O Capitão, que observa os africanos com bonomia, dá a
força necessária à acção dos dois verdadeiros vetores de expansão do
domínio português, representados pelo Padre (religião) e pelo Lopes (comércio
de escravos e de marfim) a troco de presentes que lhe permitam no regresso
aposentar-se.
O Padre, hipócrita e lascivo, vê o Congo, como “terra de
pagãos, falsos e cínicos” (...) e os seus habitantes como “gentio”:
“mentirosos... E ladrões... E lúbricos polígamos... E preguiçosos... Falsos é o
que eles são, uns Judas!”[241].
Chega mesmo a bestializá-los.[242]
Apesar do protagonismo evangelizador do Padre -
nomeadamente na estratégia de eliminação dos “amuletos”, para lhes (aos
congueses) retirar a suposta força, já que estes se encontravam divididos entre
os que aceitavam a tradição de que a força emanava da submissão à vontade dos
“espíritos”, e os que defendiam que a força residia na união do povo -, o
verdadeiro objectivo é de natureza económica: “O último embaixador que El-rei
de Portugal nos enviou com instruções era muito claro: defender ao máximo o tráfico
de escravos.“[243]
A suposta igualdade entre culturas - estrangeira
(católica, portuguesa) e conguesa - é totalmente desmentida, como se pode
deduzir do desequilíbrio de forças, sintetizadas no seguinte quadro:
|
Estrangeiros |
Congueses |
||
|
Canhões - as bolas da morte Monogamia Água benta,[244]cruz |
Cristãos Padre Norma sucessória europeia O fogo inquisitorial |
Zagaias Poligamia Amuletos Pagãos[245] |
Mani-Vunda[246]
Norma sucessória africana[247] O fogo do
ferreiro |
Em conclusão, com a escrita de A Revolta da Casa dos Ídolos, Pepetela põe em causa a visão
unilateral das relações com o Congo, recriando, através de personagens como o
ferreiro Nimi, Nanga (sobrinho de Nimi), Mpanzu-a-Nzinga (sobrinho de
Nzinga-a-Nkuvu), Masala (sobrinho do Mani-Soyo, que fora vendido por seu tio a
um português), Temona e Marido e outras Vozes (do Povo), uma outra visão do
mundo, que se opunha ao projecto de D. Manuel I de aculturação dos congueses[248]. Uma outra visão do mundo, onde ressurge o
sistema matrilinear que fora deliberadamente destruído pela norma sucessória
europeia, como o testemunham a eliminação física dos sobrinhos Nanga[249],
Mpanzu-a-Nzinga[250],
e o afastamento-eliminação de Masala[251].
Deste modo, o discurso de Pepetela surge como contra-discurso luso-tropicalista[252],
que
exclui os estrangeiros (os
portugueses) da tarefa de fundação da nação angolana, entregando-a ao Povo que,
tal como os congueses do séc. XVI, deverá opor-se à presença portuguesa e
ocidental..., mas, não menos importante, Pepetela opõe-se a um simples retorno
às origens, ao tempo dos manis.
Esta análise
sumária de A Revolta da Casa dos Ídolos
impôs-se aqui porque a visão da relação entre colonizador e colonizado, em
Pepetela, evoluiu, entre 1979 e 1983: da rejeição absoluta do luso-tropicalismo para um discurso de passagem, defensor do contributo branco
para a formação da nação angolana. Em YAKA, apesar do papel dominador do branco
português, este já não é apresentado como estrangeiro...
dando-se mesmo o caso - após um longo período de consciencialização - de uma
minoria branca (Alexandre Semedo e Joel-Ulisses) se empenhar totalmente na
libertação de Angola da presença estrangeira - sul-africana.
|
3.
A insurreição dos povos angolanos |
Como
momentos fundadores da identidade angolana, Pepetela no romance
Yaka, depois de sumária referência ao
conflito, em 1893, com os Dombes e os Cuvales, à 3ª revolta dos Humbe, em 1897,[253] evoca
de forma mais detalhada: a revolta dos Bailundos, a vitória dos Cuamatos, a
revolta dos Mbunda, a revolta dos Amboins, dos Seles e dos Sumbes, a revolta
dos Cuvale, a revolta de 61, e finalmente, a vitória do MPLA sobre os restantes
movimentos de libertação.
3.1. Na 1ª
parte - A BOCA - Pepetela constrói a personagem Mutu-ya-Kevela, baseando-se em grande parte na informação
histórica fornecida pelo historiador francês René Pélissier. Uma outra
personagem Samacaca é também
esboçada, a partir da pouca informação reunida pelo mesmo historiador.
Fundamental é também a recriação da humilhação portuguesa no Vau de Pembe, em 25 de Setembro de
1904, após a já trágica morte do conde
de Almoster, em 12 de Dezembro de 1897.
3.1.1.
Mutu-ya-Kevela, herói da guerra luso-ovimbunda de 1902[254]
O
factor mais importante desta guerra terá sido a queda dos preços de compra da
borracha a partir de 1899. Os caravaneiros ovimbundos recusavam-se a aceitar
menos de metade do que era habitual pela borracha comercializada.[255]
A presença, em território ovimbundo, de quatro missões
norte-americanas é outro factor a ter em conta. Estas missões protestantes[256] ensinavam
em inglês e em umbundo. E ao contrário dos espiritanos[257]
também presentes, os protestantes manifestavam uma atitude de oposição ao
comércio luso-ovimbundo, pois eram contra o tráfico de serviçais para S. Tomé e
contra a venda de aguardente.
Porém, o detonador da revolta terá sido a recusa do macota Mutu-a-Quebera ou Mutu-ya-Kevela
em se responsabilizar pelo pagamento de “quatro ancoretas de aguardente para
celebrar o falecimento do soba do Bailundo, Hundugulu. (...) Intimado a
comparecer a 7 de Abril, Mutu-ya-Kevela disse que se recusava a comparecer
perante o oficial visto que os Bailundos não
queriam mais brancos na região.”[258]
A hipotética aliança com os sobados de Quipeio (Cipeyo),
Huambo (Wambu), Tasso(?), Soque (Quiaca), Quibanda (Civanda), Bimbe (Demba)
poderia destruir a rede comercial portuguesa. Estes reinos, porém, não
conseguiram unir esforços, o que acabou por facilitar a difícil reação
portuguesa.
Depois de a 15 de Abril, três comerciantes brancos terem
sido assaltados e espoliados, de a 12 de Maio, o soba de Galanga ter atacado
uma casa comercial com 6.000 homens, de alguns carregadores terem sido
assassinados, o capitão-mor português, a 15 de Maio, fez cair numa cilada o
soba Kalandula, prendendo-o juntamente com vários seculos. Os guerreiros de Kalandula tentaram defendê-lo, mas, como
resposta portuguesa, a embala foi
tomada e incendiada.
Começara a guerra. Mutu-ya-Kevela - eleito, em Junho,
soba do Bailundo -, procurou alianças com os reinos vizinhos, de modo a cortar
as pistas entre o Bié e Caconda, o Bailundo e o leste, a fortaleza e o leste.
Não conseguiu, porém, o apoio dos sobas
grandes da Quiaca e do Huambo.
As consequências foram, por um lado, a fuga dos
sertanejos para a fortaleza do Bailundo, enquanto as suas lojas eram tomadas
pelos revoltosos, o assassínio de comerciantes brancos e mestiços; alguns
transformados em escravos e enviados para os reinos vizinhos; outros
transformados em carregadores. Mutu-ya-Kevela conseguia, assim, afastar os
portugueses de uma área de mais de 50.000 Km2, poupando, todavia, as missões
católica e protestante.
Apesar da falta de meios e da desorganização, Pais
Brandão, que saiu do Libolo a 17 de Junho com uma pequena força,[259] acabou
por matar Mutu-ya-Kevela, no dia 4 de Agosto de 1902, com uma bala disparada de
longe e, sobretudo, com a cumplicidade do Pe. Joseph Goepp, superior da missão
católica.
Só a 20 de Outubro de 1902, a insurreição dos ovimbundos
ficou completamente dominada: nove reinos tinham perdido a sua autonomia (Bailundo,
Huambo, Quiaca, Quibanda, Galanga, Sambo, Quipeio, Quibula e Bié). Pela última
vez, os ovimbundos - numa afirmação de nacionalismo sem par -, ameaçaram o
edifício comercial português do Centro de Angola até ao Katanga.[260]
Apesar da pacificação do Planalto, foi ainda necessário,
em 1904, eliminar a resistência nativa organizada a partir do Bimbe por
Samacaca[261] e
pelo soba Moma.
3.1.2. A vitória
dos Cuamatos no Vau de Pembe (25 de Setembro de 1904)
Os
portugueses tinham decidido passar à ofensiva no Sul de Angola, para ocupar o
território, situado além-Cunene, face ao expansionismo alemão do general von
Trotha. Com esse objectivo, uma coluna militar atravessou o Cunene em Vau de
Pembe, deparando com os Cuamatos, cuja estratégia de cerco consistiu em matar
os bois e os cavalos para paralisar a coluna, e depois esperar pelo
destacamento de reconhecimento, comandado pelo capitão Pinto de Almeida. Os
Cuamatos, ocultos entre as árvores, começaram por disparar sobre os oficiais e
depois avançaram, eliminando rapidamente a cavalaria e a artilharia, combatendo
corpo-a-corpo. O governador Aguiar, que se deixara ficar no acampamento a 2 ou
3 Km de distância, acabou por colaborar no morticínio ao mandar usar a
artilharia, que mal apontada disparava sobre os sobreviventes que saíam do
mato... Em menos de duas horas, os Portugueses perderam 16 oficiais, 12
sargentos, 109 soldados europeus e 168 soldados africanos...[262]
3.2. Na 2ª parte-Os
OLHOS - Pepetela, após breve referência à morte de Mandume, chefe dos
Cuanhamas, alude sumariamente à revolta
dos Mbunda, dos Luchazes e dos Tchokue,[263] procurando,
posteriormente, através da narração da revolta
dos Amboins, dos Seles e dos Sumbes, estabelecer a linha de força que
conduzirá o leitor aos acontecimentos no Noroeste Angolano, em 1961.
3.2.1. A revolta
dos Bunda, dos Luchazes e dos Tchokue
Em
Outubro de 1916, as casas dos brancos foram atacadas e incendiadas e os
servidores ovimbundos foram queimados nas fogueiras, com o objectivo de
libertar o território bunda da presença branca.[264]
O mesmo aconteceu nos Luchazes, assim como no norte e oeste de Angola, entre
Outubro e Janeiro de 1917. A repressão desta revolta teve como consequência a
migração dos Luchazes, dos Bundas e dos Quiocos para o Congo Belga e para a
Rodésia do Norte.
3.2.2. A revolta
de 1917
Factores que contribuíram para o eclodir desta revolta:
|
· a debilidade numérica dos brancos e dos seus
militares; · a natureza moral desses brancos -
escravizadores, ladrões de terras, e antigos degredados - atraídos pela
corrida ao café; · até 1915, pelo menos, os roceiros não se
contentavam com o trabalho forçado ou obrigatório, recorriam à escravatura; · a implantação dos brancos nas colinas era
acompanhada da espoliação fundiária; · a venda de armas e de pólvora continuava a
realizar-se dois anos depois do decreto de 1913, que a proibia; · a
obrigatoriedade do imposto de cubata; · a
destituição dos sobas e a
deportação dos cabecilhas. |
O facto de várias etnias protagonizarem esta revolta,
transformou-a na insurreição que maior afinidade teve com a revolta do Noroeste
angolano, em 1961.
Como de costume, perante esta insurreição, e evitando
reconhecer a sua responsabilidade, os portugueses apontaram, mais uma vez, o estrangeiro-os alemães,[265] os ingleses
e os boers - como instigador.
A causa próxima do conflito teve lugar a 28 de Abril de
1917, quando um comerciante branco foi assassinado no Amboim. Os assassinos
refugiaram-se no Seles, não tendo sido encontrados pela tropa enviada em sua
perseguição. Em compensação, foram presas mulheres que deviam ser levadas para
a sede da capitania-mor, em Uco. Durante o percurso, por entre plantações, na
margem esquerda do Cuvo, a tropa foi atacada tendo sido obrigada a libertar as
mulheres e a refugiar-se numa fazenda. Os revoltosos expulsaram a tropa da
fazenda, originando cinco mortos; as fazendas do vale do Cuvo foram
saqueadas... Entretanto, no Amboim, alguns brancos foram assassinados pelos
criados ou envenenados pelos cozinheiros.[266]
A 6 de Maio, Puay e Cuacra foram atacadas por 2000
“gentios”, as comunicações com a capitania-mor do Seles e com Novo Redondo
foram cortadas. As tropas enviadas em socorro de Novo Redondo eram diminutas.
As mulheres e os filhos (mestiços) refugiaram-se na Gabela e na fazenda de
Isaac Telo. Os comerciantes de Novo Redondo e de Benguela, sentindo-se
ameaçados, exigiram tropas ao Governador-Geral, Massano de Amorim, que
conhecendo bem a responsabilidade dos sertanejos não se terá deixado inquietar.
Perante a inoperância das forças portuguesas, os insurretos
queimaram todas as fazendas e casas comerciais do Seles e começaram a fazer o
mesmo no Amboim... Em Novo Redondo, a psicose atingiu o paroxismo: onde
estivesse um africano, estava um inimigo; as mulheres refugiaram-se em barcos,
pensou-se em cercar a povoação com arames eletrificados.
A 29 de Junho de 1917, foi decretado o estado de sítio no
Amboim, no Seles e no concelho de Novo Redondo. Só a 14 de Julho as tropas do capitão Sepúlveda Rodrigues entraram na
Gabela, libertaram a fazenda do Longué, que estava cercada havia meses com oitenta
pessoas por trás dos muros.
Em Setembro, as operações de repressão acentuaram-se com
a chegada de uma coluna de 3.000 auxiliares ovimbundos[267]
- descendentes das guerras do Nano - e, que finalmente poderiam saciar a fome
de vingança. Foi esta coluna que, fazendo uma guerra de extermínio, permitiu
aos Portugueses dominar a situação em princípios de Outubro de 1917.
A perseguição contra os revoltosos continuou até 1920.
Por exemplo, na já referida fazenda do Longué, a justiça era expedita ao
procurar conhecer o paradeiro dos mandantes, em particular de Bula Matari: [268] os
presos do sexo masculino morriam pouco depois dos interrogatórios. Quanto às
mulheres, eram mandadas trabalhar para as estradas e para as fazendas, cujo
café não parece ter sido queimado. E terminou num holocausto.[269]
3.3. A extensa
referência feita ao Povo Cuvale, justifica-se pelo protagonismo que Pepetela
lhe atribui quer na 3ª parte - O CORAÇÃO -, quer na 5ª parte - AS PERNAS. Os
Cuvales, em Yaka, surgem, de certo modo, como expressão nostálgica, em tempo de
guerra, de uma “mediania dourada”.
3.3.1. O Povo cuvale
Os Cuvales,[270] segunda
tribo herero - cerca de 4.000 a 5.000
pessoas, em 1940-1941 -, viviam da pastorícia. Apascentavam os seus rebanhos
desde o Coporolo até ao Curoca, a oeste do planalto. Recusavam-se a trabalhar
para o colono branco. A frequência com que assaltavam os rebanhos dos brancos e
das populações submetidas tornaram-nos uma ameaça para a paz portuguesa.
Porém, o conflito era, sobretudo, consequência da cobiça
de funcionários desonestos e de comerciantes de rapina portugueses. Os
comerciantes exploravam a sua fraqueza pelo álcool para os obrigar a
desfazer-se do gado.
A causa próxima dos incidentes de 1940-1941 foi a
seguinte: Um velho funante embriagou três cuvales para mandar marcar, enquanto
eles dormiam, os bois cobiçados e os afastar da manada. Acordados, os Cuvales
maltrataram o funante, mataram-lhe dois criados, recuperaram os bois, e, como
represália, levaram todos os animais do funante. Os administradores,
conhecedores do sucedido, decidiram que era necessário acabar com os Cuvales.
Como era hábito, declaradas as hostilidades, estes seminómadas refugiaram-se
com o gado nas Mundas do Hambo a leste do posto de Chiquite, na Serra de
Guendelengo ou em diversos redutos montanhosos do Pocolo.
A 4 de Setembro de 1940, provavelmente em consequência do
incidente atrás relatado, o governador da Huíla pediu a intervenção dos
militares. A acção de 400 soldados portugueses, com o auxílio de 500 Cuanhamas,
e cerca de uma centena de mestiços e, sobretudo, fazendo intervir um avião
metralhador para localizar e dispersar os Cuvales, durou, numa 1ª fase, cerca
de 3 meses. Numa 2ª fase, que se prolongou até 15 de Fevereiro de 1941,
reforçada a tropa em homens e recorrendo a um 2º avião, a operação militar
saldou-se em 3.500 prisioneiros e na ocupação do território cuvale. Uma parte destes
prisioneiros acabou por ser executada. Mais de 600 homens foram enviados para
as roças de S. Tomé com um contrato de dois anos. Os restantes foram
encaminhados para a Diamang, deportados para a colónia penitenciária de Damba,
“cedidos” às propriedades agrícolas de Moçâmedes e de Vila Arriaga, assim como
à Câmara Municipal de Moçâmedes.
Quanto ao gado, 90% do total terá sido confiscado (19701
cabeças declaradas) e entregue aos indígenas fiéis (Quilengues, Cuanhamas,
Cuamatos) ou, com maior certeza, vendido em leilão a Europeus ávidos de gado
barato.
Os Cuvales sobreviventes - em 20 anos - e após
cumprimento da pena, conseguiram reconstituir os efectivos pecuários,[271]
e a partir de 1974-1975, surgem como um dos baluartes do MPLA, não por
convicção ideológica, mas porque a UNITA surgia associada aos Ovimbundos, povo vizinho e inimigo que
sempre cobiçara o gado cuvale. Por outro lado, e estrategicamente, o MPLA,
soube apresentar-se aos olhos destas populações como mweneputo,[272]ou
seja como sucessor lógico do poder anterior, promovendo alguns notáveis cuvale
a “activistas-notáveis”, devolvendo-lhes, deste modo, o poder de representar
localmente os interesses do Partido e do Estado. Neste contexto, assistiu-se,
em 1974-1975, a uma incorporação maciça dos Cuvales nas Fapla, contrariando a
tendência anterior para rejeitar qualquer alistamento, durante o período
colonial.[273] Com
o tempo, os Cuvales, mesmo desmobilizados, tornaram-se numa milícia sempre
pronta a intervir ao serviço do MPLA, dando ao mesmo tempo continuidade à
recuperação socio-económica que o grupo tinha encetado após o exílio de 1941,
através da reconstituição das manadas e dos rebanhos.
Apesar da ligação profunda que mantém com o actual Poder,
os Cuvales continuam a preservar a sua identidade, e, sobretudo, uma cultura
que pelo seu particularismo acabará mais cedo ou mais tarde, face aos desígnios
de um Estado centralizador, por reviver situações dolorosas já experimentadas
no passado.
3. 4. Na 4ª
parte - O SEXO - Pepetela evoca as consequências da revolta de 1961. O colono
vê, em toda a parte, um novo inimigo - o terrorista
- ao serviço do estrangeiro.[274] E
utiliza essa ameaça para intensificar
a repressão sobre o negro e o mulato, apesar da acção reformista do
novo ministro do Ultramar, Adriano Moreira.
3.4.1. A revolta
de 1961
Na
madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de patriotas angolanos atacou a
prisão de S. Paulo, o aquartelamento da Companhia Móvel da PSP e a Casa de
Reclusão Militar.[275] Os
revoltosos perderam quarenta elementos e as forças da ordem sete. Os
sobreviventes refugiaram-se nas matas do Norte e Nordeste de Angola. Durante os
funerais, colonos brancos em fúria massacram centenas de negros.[276]
Entretanto, a 15 e 16 de Fevereiro de 1961, grupos de camponeses bakongos,
enquadrados pela UPA, atacaram postos administrativos, vias de comunicação,
povoações e sanzalas, mutilando e matando homens, mulheres e crianças europeus,
assim como assimilados negros ou
mulatos, considerados agentes dos portugueses. A resposta portuguesa foi rápida
e brutal e não se limitou à região dos
ataques rebeldes. Foram à pressa formadas e armadas milícias brancas. O reino do terror instalou-se.[277]
Em consequência destes acontecimentos, Salazar remodelou
o Governo, chamando para as pastas do Ultramar e dos Estrangeiros, Adriano
Moreira e Franco Nogueira. Enquanto o primeiro, durante a sua breve acção
governativa, aposta no povoamento por
elementos europeus, de modo a dar sequência ao princípio fundamental da política
de integração multirracial, sem
a qual não haveria nem paz nem civilização na África Negra, [278]
seguindo o exemplo da formação do Brasil. Entre outras medidas, Adriano
Moreira revoga o Estatuto do Indígena, determinando que “o povo português está submetido a uma lei política que é igual para
todos, sem distinção de raças, de religião ou de teor cultural dominante.”[279] Reorganiza
as regedorias rurais, cujos gestores
seriam eleitos na forma tradicional pelos moradores.[280]
Regulamenta a Ocupação e Concessão de
Terras nas Províncias Ultramarinas, assegurando o interesse e direito das
populações sobre os terrenos por elas ocupados ou explorados, e determinando
punição severa para a deslocação das populações.[281] Por
seu lado, Franco Nogueira, o rosto do regime, tenta moldar a realidade
internacional, fazendo crer que tudo o que se passa em África e, em particular,
em Angola, é obra dos comunistas.
3. 5. É já na
5ª parte-As PERNAS - que Pepetela evoca a retirada portuguesa de Angola, e que,
para além de recriar a “guerra” de 1975, entre os vários movimentos de
libertação, pela posse da região e da cidade de Benguela, e a invasão
sul-africana, retoma - para explicar as razões da fuga da família Semedo - a
luta anticolonial, nomeadamente no Leste de Angola.
3.5.1. A Frente
Leste
Em
1966, o MPLA abrira a Frente Leste, onde se desenrolaram os principais
acontecimentos militares até ao 25 de Abril. No Leste, em 1968, morreram Hoji ia Henda,[282]
num ataque ao quartel de Caripande, o médico Américo Boavida, perto do rio Lweji. O maior número de baixas do
MPLA deu-se em 1968, quando cem guerrilheiros do MPLA foram apanhados pelos
portugueses devido a traição de um soba que atraiu a uma cilada o comandante
Veneno “Fati”. Em consequência deste episódio, nasce a “Revolta do Leste”, que
em 1972 é aprofundada pela “Revolta Activa”.
3.5.2. A luta
fratricida
Com o 25 de Abril de 1974 e, apesar da intenção
portuguesa de proceder à descolonização,[283] o
MPLA reivindica a independência imediata, e os três movimentos, em 1974, tentam
ocupar e controlar áreas cada vez maiores, para surgirem em posição de força na
negociação do cessar-fogo com os portugueses.
Após a assinatura dos acordos do Alvor em 15 de Janeiro
de 1975, instala-se em Luanda o Governo de Transição quadripartido. Porém em
Agosto, após sangrentos confrontos em Luanda, a FNLA e a UNITA são expulsas da
capital, inviabilizando a formação de um exército único de 30.000 homens e as
prometidas eleições.
O conflito internacionaliza-se: os sul-africanos entram
no território angolano em Setembro; forças cubanas e catanguesas atuam ao lado
das FAPLA, em meados de Outubro, contra os mercenários de Holden Roberto.
A independência, a 11 de Novembro de 1975, é comemorada
ao som de morteiros disparados bem próximo da capital. No Huambo, a FNLA e a
UNITA proclamam a República Democrática de Angola, que rapidamente se desfaz
com a expulsão do movimento de Holden Roberto das áreas da UNITA.
Zairenses, sul-africanos e cubanos substituem as forças
portuguesas. No dia 11 de Novembro, os soviéticos fazem uma ponte aérea para
descarregar equipamento militar, em Luanda, e um navio descarrega os primeiros
seis BM 21,[284]
que seguem directamente para a frente contra os sul-africanos, que tinham
avançado até ao rio Keve e tomado Novo Redondo, sem, todavia, conseguirem
entrar em Porto Amboim. Entretanto, em Dezembro de 1975, Cuba envia para Angola
mais de 7.000 soldados.
Em Fevereiro de 1976, as FAPLA tomam Lobito e Benguela à
UNITA. A 27 de Março do mesmo ano, os sul-africanos retiram-se do território
angolano. O MPLA celebra vitória.
3.5.3. A
retirada dos portugueses
Enquanto,
os movimentos autonomistas lutavam no terreno pelo controlo do território, e
ainda antes da assinatura dos acordos do Alvor, a 15 de Janeiro de 1975, já
teriam regressado a Portugal 50.000 portugueses de Angola.[285] Os
brancos mais activos criaram uma série de partidos brancos, uns pró-MFA, outros
contra. Outros aderiram aos movimentos de libertação, sobretudo à UNITA e à
FNLA.
A
Operação de Repatriamento de Angola começou no dia 13 de Maio
e terminou a 9 de Novembro de 1975. Para além dos aviões portugueses, estiveram
envolvidos nesta ponte aérea, aviões americanos desde o final de Agosto, e
aviões da França, da RFA, da Grã-Bretanha, da RDA e da URSS, desde princípios
de Setembro, chegando a registar-se uma média diária de 15 voos, entre Luanda e
Lisboa.
Segundo Gonçalves Ribeiro,[286] 400
mil portugueses terão saído de Angola para Portugal, para além dos que partiram
para outros rumos, nomeadamente, para a África do Sul. Em meados de Agosto de
1975, cerca de 20.000 portugueses tinham cruzado a fronteira da África do Sul.
4. A questão
étnico-linguística
Se
a componente étnica não deixa de estar sempre presente ao longo do romance
YAKA, na medida em que, pelo menos até 1961, a autoria das revoltas é sempre
atribuída a uma ou várias etnias,[287]
o mesmo não acontece com as respetivas línguas.
Neste sentido, é útil conhecer a distribuição das línguas
locais e o seu estatuto face à língua de colonização, de modo a compreender o
sentido das opções do romancista. Este escreve em Português, língua de
colonização que, tal como as outras línguas de colonização (Francês e Inglês),
nunca foi falado por mais de 10% da população nativa, sobretudo nas zonas de
maior contacto com o colonizador - litoral, cidades, cinturas de exploração
mineira - com quase exclusão das zonas rurais.[288] Paradoxalmente,
o escritor africano, ao optar pela língua do colonizador, contribui com o seu
prestígio para alimentar, por um lado, no imaginário
da antiga metrópole, a (falsa) ideia de
uma grande área linguística e cultural, que, afinal, continua a dever a sua
existência à manutenção pelo novo poder
da dicotomia élite-povo,[289]
e por outro, transforma a língua de colonização na chave da mobilidade social, perpetuando a opressão.
Este divórcio veiculado pela literatura resulta da
maioria dos autores francófonos, anglófonos ou lusófonos terem sido
profundamente aculturados pelas culturas metropolitanas, adoptando o
preconceito do colonizador em relação às potencialidades das línguas dos povos
colonizados.
Foi
essa desvalorização que originou que, em termos de estatuto, a letra da lei portuguesa reservasse às línguas
vernaculares o papel de auxiliares de aprendizagem do Português. Essa
desvalorização das línguas vernaculares, teve como contrapartida o reforço
significativo do ensino do português quer após o início da guerra colonial
(1961)[290]
quer após a independência de Angola (1975).[291]
Ora a realidade sociolinguística de Angola sempre se
revelou um poderoso obstáculo a políticas linguicídias, mesmo que isso tenha
significado a segregação dos povos.
4.1. Mosaico
etno-cultural[292]
|
Umbundo |
É a língua do grupo Ovimbundo - situado no Centro-Oeste -
que representa pouco mais de 30% da população. Sendo a principal língua
vernácula de Angola, potencialmente, o Umbundo
poderá tornar-se numa de língua de prestígio,[293]devido
à percentagem de falantes e ao facto de se situar numa zona do território
onde utentes seus dominam outras línguas locais, para além da considerável diáspora dos Ovimbundos. |
|
Quimbundo |
É a língua dos Mbundos da Zona Luanda-Cuanza
Norte-Malange, com cerca de 20%. Historicamente, apesar de ser a 2ª língua
quanto ao número de falantes, o Quimbundo
adquiriu algum prestígio por ser falado na região de maior interacção
luso-africana. |
|
Kikongo |
É a língua dos Bacongo falada nas províncias do
Norte, com cerca de 15%. O Quicongo goza
do estatuto de ser uma língua transfronteiriça. |
|
Lunda-Quioco |
É a língua falada por Lundas e Quiocos no Nordeste de Angola. Tal como o Kicongo, também o Lunda-Quioco é falado para além da
fronteira. |
|
Ganguela |
É a língua falada pelos
Ganguelas nos distritos do Bié,
Moxico, Cuando-Cubango, e, ainda entre outros, pelos Luchazes e Bundas. |
|
Nhaneca-Humbe |
É a língua falada por
algumas populações residentes nos distritos da Huíla e do Namibe, em
particular pelos Quilengues. |
|
Cuanhama |
É a língua dos Ambós, compreendendo, entre outros,
os Cuanhamas e os Cuamatos. |
|
Donga |
É a língua dos Dongas, a sul do Cuando-Cubango. |
|
Herero |
É a língua dos Hereros, compreendendo os Cuvales, os Dombes e outras populações residentes nos distritos do Namibe, da
Huíla e de Benguela. |
Para além de todos estes povos de origem banta, no
território angolano, ainda que demograficamente pouco representativas,
encontram-se outras populações, como os Cuissi,
de origem vatua, e os Koi-san (pejorativamente designados por
Bosquímanos), sem esquecer as
minorias Mestiça e Branca, cuja
língua - o português - foi declarada
língua oficial de Angola em 10 de
Dezembro de 1975.[294]
Apesar da representatividade das línguas locais,
nomeadamente do umbundo, do quimbundo e do quicongo, foi em português
que a literatura nasceu, apesar de marginalizada
- ou mesmo hostilizada, porque os
escritores se tornaram anticolonialistas, sobretudo a partir de 1950. Nasceu em
português com a publicação do
Boletim Oficial, em 1845, que para além de difundir as leis, acolhia também
artigos, contos e narrativas várias. Todavia, o português raramente era língua
materna.[295]
Em 1966, estavam
registadas 407 espécies bibliográficas em e sobre línguas vernaculares, sendo
mais de 80% da autoria de missionários,
que procuravam, em primeiro lugar, a evangelização, depois a educação e, em
particular, a aprendizagem da leitura e da escrita nas próprias línguas e
também o seu conhecimento por alienígenas. Cerca de 40% desses espécies
reportam-se ao umbundo, 17% ao quimbundo, 13% ao quioco, 12% ao quicongo...[296] Porém,
em termos globais, o esforço das missões
não é significativo, porque há muito tempo que o linguicismo tinha iniciado a sua tarefa de substituir a religião na
sua função “civilizadora”.
Em síntese, quer o colonizador quer o novo poder
instituído - perante a complexidade sociolinguística e sociocultural do
território angolano - e em nome de uma visão ideológica (linguicismo), segundo a qual a um país deve corresponder uma
língua, optaram por impor uma língua que, se, por um lado, lhes permite
integrar o espaço da lusofonia,[297]
por
outro lado, contribui para o adiamento[298] da afirmação identitária de importantes
comunidades, ou mesmo para o seu aniquilamento...
Num país plurilingue, em que a língua portuguesa era a
única efetivamente utilizada na escola e na administração pública, o governo
angolano acabou por instituí-la como instrumento político de unificação
nacional não apenas por falta de recursos materiais e humanos, mas, sobretudo,
porque era nela que se baseava o seu próprio poder, isto é, foi nela que o
poder se constituiu - e essa terá sido a maior vitória do colonizador.
|
5.
Pepetela[299] |
|
“La personnalité humaine ne devient historiquement réelle et
culturellement productive qu’en tant que partie d’un tout social, dans sa
classe et à travers sa classe. (...) Seule cette localisation sociale et
historique rend l’homme réel et détermine le contenu de sa création personnelle
et culturelle.”[300] |
O
longo caminho percorrido até aqui, no sentido de confrontar YAKA com os dados
fornecidos pela História da relação
entre colonizador e colonizado em Angola, nos últimos 120 anos, - isto é, de
estabelecer a ligação entre processo histórico e produção textual e de
caracterizar o imaginário subjacente[301]
- só ficará concluído com a “localização social e histórica” de Artur Carlos
Maurício Pestana dos Santos.
|
5.
1. O Homem |
Artur
Carlos Maurício Pestana dos Santos - Pepetela
("pestana" em umbundo) pseudónimo com que assina a sua obra -,
nasceu em Benguela a 29 de Outubro de 1941. É angolano de seis gerações e à sua
designou-a "da utopia". Pelo lado do pai, virá da Beira Alta ou da
Beira Baixa. Do Brasil, pelo lado da mãe. Esta emigração dos pentavós maternos
teve origem numa insurreição armada na cidade brasileira de Pernambuco. Em
meados do século XIX, os avós maternos encontravam-se entre os fundadores da
cidade de Moçâmedes.
Esses avós eram portugueses (ou brasileiros, já?) mas
"com mistura" (de ciganos, de indianos, de qualquer coisa assim), o
que explica aquele tom de pele do escritor que, à primeira vista, nem branco
nem preto parece, mas mestiço - desejo profundo de Pepetela de justificar no
corpo o imaginário que transporta para os livros. Livros que tanto devem à
mitologia africana quanto subsidiários são da cultura europeia.[302]
Artur Santos, nascido em Benguela,[303] cidade
que se caracterizava pela frequente mestiçagem de muitas famílias dedicadas ao
comércio, como a sua, e pelo tradicional liberalismo - foi a única, em todo o
Império, onde Delgado ganhou oficialmente as eleições em 1958. Foi na escola
primária que a professora lhe descobriu a vocação para contar histórias. Apesar
de durante a infância, não ter sentido o papel segregador da cor, quando chegou aos 12 anos, acabou
descobrir a discriminação racial, talvez por influência de um tio jornalista,
republicano e anticolonialista, que lhe deu a ler certas obras, assim como pela
leitura dos romances clássicos que compunham a biblioteca do pai.[304] É
por essa época que descobre o nacionalismo, através da poesia do amigo e poeta
Aires de Almeida que evocava a realidade local, benguelense e angolana. É neste
contexto que no boletim do colégio Nuno Álvares publicou um pequeno conto, onde
já estava presente a dimensão social.
O prosseguimento dos estudos no Lubango - cidade onde a
sociedade branca era, excecionalmente, majoritária e manifestamente racista -
acabou por agudizar-lhe a consciência da segregação racial.[305]
Em 1958, Artur Santos frequentava o 7º ano, alínea F, do
Liceu Diogo Cão no Lubango. Lá conheceu o padre Noronha, um luso-indiano de
Goa, professor de filosofia que gostava de falar da revolução cubana e de Fidel
Castro e, que, em 1958, o mobilizou para a campanha eleitoral de Arlindo
Vicente, candidato da esquerda.[306] Este
padre exerceu uma tal influência no desabrochar da consciência da identidade
angolana em Artur Santos que este quando chegou a Lisboa, para continuar os
estudos, já tinha plena consciência de que Angola era um país e não uma
província ultramarina.
Nos quatro anos que viveu em Portugal, frequentou a Casa
dos Estudantes do Império[307] -
ambiente, que considera o seu meio natural e que descreveu na 1ª parte de
"A Geração da Utopia",[308]
onde rememora a greve académica de 1962 e a sua fuga ao serviço militar -,
depois de ter trocado o Instituto Superior Técnico pelo Curso de História da
Faculdade de Letras de Lisboa, porque lhe interessavam muito mais os problemas
sociais.
Na Casa dos Estudantes do Império, colaborou em Mensagem,[309] e
participou na formação da R.I.A. - Reunião Interassociações - que teve um papel
importante na coordenação da greve estudantil em 1962.
Ao desertar, foi inicialmente para Paris - viveu 6 meses
em Belleville, e ganhava uns francos na Imprimerie Desfossés, varrendo o chão
-, onde se enquadrou com a "malta" do MPLA, apesar de só se ter
filiado em Argel. Em Paris deve ter lido toda a obra de Boris Vian, e ainda
Gide, Vaillant e Malraux.
Algum tempo depois, partiu para Argel - para o Centro de Estudos Angolanos -[310] onde
se licenciou em Sociologia. Durante esse
período, trabalhou na elaboração de uma "História de Angola" e de um
"Manual de Alfabetização”, escrevendo Muana
Puó, em 1969.[311]
Seis anos depois de ter chegado a Argel, Pepetela parte para
Angola - Cabinda - como "guerrilheiro" e escritor.[312]
A Literatura foi um dos motivos que o levou à guerrilha.[313] E
é nessa dupla qualidade, de guerrilheiro e de escritor, que descobre na escrita
um meio que lhe permitia suprir a
inexistência de suportes didáticos adequados ao combate político,[314] reflectir
sobre as contradições da luta armada, teorizar a experiência adquirida no
contacto com os guerrilheiros no campo de batalha.[315]
Durante os cinco anos que participou na luta armada,
dedicou-se ao trabalho de educação e organização das populações,
transformando-se num quadro político-militar. Primeiro em Cabinda, e desde
1972, na Frente Leste (onde comandou um grupo de combate de sete homens).[316]
Em Novembro de 1974, temo-lo em Luanda a instalar a
primeira delegação do MPLA na capital de Angola. À beira da independência, ele
era o responsável pela Educação e pela Orientação política do MPLA, apesar de
continuar a participar na acção militar:
|
" Quando o
exército sul-africano desfez o exército angolano e conquistou Benguela,
apanhei duas doenças providenciais: uma hepatite deixou-me fora de combate, enquanto
casava (com Filomena, em 1975). Se não fosse isso, agora estaria morto."
[317] |
Entretanto,
Agostinho Neto nomeou-o para o ministério da Educação, como vice-ministro
(1977-82), de onde, apesar da importância da acção educativa,[318] desejava
sair para poder escrever, o que aconteceu em Dezembro de 1982.
|
5.1.1.
Da génese e intencionalidade de YAKA |
Pepetela
começou a escrever YAKA, no dia 2 de Janeiro de 1983, embora a sua preparação
tenha começado em 1979 ou 1980.[319]
Este projecto integra-se na linha
temática, inaugurada por Muana Puó,
da formação da nação angolana, e por isso dá plena expressão à
preferência do autor pela História, isto é, pelo passado, no sentido de
reencontrar as raízes da nação angolana.
Foi essa procura que o levou a YAKA[320] ou,
melhor, aos jagas / yakas - o “cazumbi antecipado da
nacionalidade” -, na medida em que esta organização social guerreira,
originária da Lunda, teria, no passado longínquo, criado uma série de estados
desde o Congo ao Sul de Angola,[321] passando
pelo planalto central.
Na
tentativa de alicerçar essa unidade futura,
e devido à extensão temporal e territorial, Pepetela optou por YAKA como
representação crítica da realidade, dividindo o romance em cinco
momentos[revoltas]” significativos da própria história da região.”[322]
|
5.
2. Pepetela, escritor da angolanidade? |
Como
afirma Jacques Chevrier,[323] uma
literatura só existe a partir do
momento em que ela põe à disposição do leitor um certo número de obras cuja
especificidade temática e estilística provém do enraizamento numa cultura e nos
modelos de que se inspira, o que implica o estudo minucioso das preocupações de
cada escritor, do seu estilo, das influências literárias e culturais que a sua
obra reflecte, do imaginário em que mergulham as suas criações, do “génio” da
nação ou do grupo étnico de que ele se faz simultaneamente o porta-voz e o
espelho.
Ora a literatura é, em Angola, um dos instrumentos
fundamentais de construção da angolanidade, se a entendermos no sentido em que foi definida por José Carlos
Venâncio,[324]
embora numa dimensão prospetiva:
|
"O resultado da
maneira muito específica de os intelectuais angolanos (...) de os dirigentes
políticos, apreenderem o espaço geopolítico herdado do colonialismo e a
consequente predisposição de o quererem transformar em espaço nacional por
meio da sua (des)alienação em relação às sociedades periféricas, às
sociedades tradicionais." [325] |
Como
já vimos, Pepetela, ao referir-se às suas “preocupações de fundo”, na sua obra, mostra-se plenamente consciente
deste objectivo:
|
“Há um tema que é
comum, que é o tema da formação da nação angolana. Isso faz o denominador
comum.” [326] |
Confrontado com a possibilidade de a preocupação
ideológica - a formação da nação -,
poder prejudicar o valor literário da sua obra, Pepetela considera mesmo que a
sua opção é comum à de muitos outros escritores que participaram na formação
das respetivas nações. De acordo com essa orientação, a sua escrita
inicialmente didática[327]-
no
sentido pessoal, reflexivo, e no
sentido do outro, estudantes e
guerrilheiros -, passou a uma fase de
intervenção directa,[328] como
aconteceu com A Revolta da Casa dos
Ídolos pensada para o grande público - no caso, o do teatro.
YAKA, integrando-se na fase da formação activa da ideia de angolanidade
- espaço, cujas fronteiras devem ser respeitadas porque traçadas com o sangue
das vítimas do colonialismo, independentemente da origem étnica e cultural -,
surge, no entanto, como forma legitimação do papel da minoria branca que optou
por participar na formação da nação angolana.
|
5.2.1.
Da opção linguística à construção da angolanidade |
Mas
a angolanidade não se inscreve apenas
no quadro da opção ideológica. A angolanidade
- que deverá ser expressão do complexo mosaico linguístico e cultural angolano
- passa inexoravelmente pela opção linguística.
Pepetela, à semelhança da maioria dos escritores
angolanos, viu-se forçado, pela
matriz revolucionária e minoritária da independência angolana, a escrever todas
as suas obras em português, como se a morte
do colonizador não passasse de uma efémera ilusão..., talvez porque a ideia de angolanidade seja ainda uma projeção do
sonho colonial, absorvido pelas elites locais, educadas pelo Norte para
explorar o Sul...
De matriz linguística e cultural portuguesa,[329] Pepetela
integra esse grupo de angolanos - de origens diversas e historicamente hostis
-, unidos pelo projecto de destituir o colonizador, mas que, separados pelas línguas e culturas de pertença, paradoxalmente só
podem agir na língua do colonizador.
Situação ilustrada, em 1971, no romance Mayombe, através do narrador Muatiânvua:
|
“Querem hoje que eu
seja tribalista? De que tribo?, pergunto
eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, não de só de Angola, como de
África? Não falo eu o swahili, não aprendi eu o haussa com um nigeriano? Qual
é a minha língua, eu, que não dizia uma frase sem empregar palavras de línguas
diferentes? E agora, que utilizo para falar com os camaradas, para deles ser
compreendido? O português. A que tribo angolana pertence a língua
portuguesa?” [330] |
Neste
romance, escrito durante a luta de libertação, a língua portuguesa desempenha
uma função veicular, na medida em que
naquela situação plurilingue e pluriétnica vivida na Base, só ela permitia o diálogo no seio da guerrilha. É esta
dificuldade de comunicação que justifica a decisão tomada, em 1975, pelas novas
autoridades, de declarar o Português como língua oficial, apesar das, já
referidas, reticências do Presidente Agostinho Neto.
Mais tarde, Pepetela acaba por defender uma visão
peculiar e alinhada da situação
linguística e cultural de Angola, como se pode ver pelo seguinte comentário ao censo de Luanda de 1983, em que 98% da
população respondia “saber falar português” face às perguntas: “Que língua é
que fala?” e “Que línguas nacionais é que fala?”
|
“Mas o facto curioso -
curioso e que ao mesmo tempo pode ser preocupante (...) -, é que dois terços
das crianças com menos de 14 anos de idade só falavam português - já não
falavam kimbundu, umbundu ou kikongo: só português... O português é que é a
língua materna de dois terços da população desses municípios, que nós podemos
mais ou menos generalizar, da população de Luanda... E, portanto, a questão
que eu punha-os portugueses, por exemplo, estão muito preocupados com a
preservação da língua portuguesa nas antigas colónias (...), eu estou
preocupado é com a preservação das línguas nacionais, porque parece que o
português vai desalojar completamente as línguas nacionais se não houver um
esforço de preservação dessas línguas (...)”[331] |
Baseando-se nos dados fornecidos pelo Censo de Luanda, acaba por confundir a
“ilha Luanda” com a situação linguística global de Angola. Assim se explica
que, ao contrário de outros estudiosos desta questão que entendem que o
português deve ser estudado como L2 devido à sua expressão minoritária,
Pepetela defenda o bilinguismo, por razões mais culturais do que linguísticas,
reduzindo-o sintomaticamente a um subsistema:
|
“Eu acho que era
preciso desenvolver esforços no sentido de haver um bilinguismo regional.
Digamos, claro, o português é a língua que serve de unidade, oficial - que
seria falado por todo o lado -, mas que cada pessoa pudesse conservar a
língua da sua região de origem, ou, enfim, a que está mais praticada...Que
pudesse, portanto, manter-se esse bilinguismo. E, por esses dados de
Luanda, parece que a tendência será ter um monolinguismo só... É
isso que é preocupante... Porque, realmente, há uma série de dados da cultura
que estão associados à língua e que se poderão perder.”[332] |
A defesa de um bilinguismo regional surge, por
conseguinte, como suporte de um biculturalismo
regional, cuja função será preservar a tradição de modo a construir a angolanidade[333]
(espaço em que os particularismos regionais terão como missão suportar a
ideologia identitária), que no pensamento de Pepetela se apresenta como síntese
da tradição e da modernidade, como se poderá ver no
romance Lueji - O Nascimento de um
Império.
Este projecto identitário baseia-se, com o fito de unir o
que está efetivamente separado, no caldeamento de culturas, muitas de suporte
oral, que desaparecerão da memória
angolana, se não for desenvolvida uma política que fomente o bilinguismo.
Sendo impossível imaginar a preservação de uma cultura oral sem o suporte
escrito - pelo menos até há uns anos -, isto é, sem o desenvolvimento das línguas
maternas, Pepetela justifica, deste modo, a necessidade de preservar as
línguas, independentemente da sua origem africana ou europeia, embora à língua
portuguesa destine o papel de unir,
de ser expressão privilegiada da modernidade
angolana:
|
“Evidentemente, eu
penso que a nossa literatura precisa de ir à tradição - e eu, sempre que
posso, tento ir, procurar raízes. Isto é uma sociedade com muitas fontes -
não só fontes propriamente africanas, mas que são diversas, conforme as
regiões, conforme as culturas e as etnias; mas depois, toda a influência
europeia, quer de Portugal, quer do resto da Europa, quer do próprio Brasil,
etc. Há um caldear de culturas, aqui, e nós temos de ir procurando raízes
daquilo que faz uma certa identidade. “ [334] |
Em síntese, o bilinguismo é uma necessidade para
Pepetela por razões de natureza cultural e ideológica, não o equacionando
abertamente do ponto de vista do ensino, porque a sua tese,
baseada na “ ilha Luanda”, tende,
também, a apresentar a língua portuguesa como língua materna - embora influenciada pelas línguas banto muito mais
a nível fónico do que propriamente da estrutura -, capaz, de, a médio prazo, se
tornar no suporte dominante da angolanidade - isto é, da modernidade -, deixando às línguas locais o papel de suportes da tradição.
O modo como um homem que, durante bastante tempo, foi o
segundo responsável pelo Ministério da Educação angolano, vê o problema do
planeamento linguístico é, todavia, preocupante, porque tudo leva a crer que a
situação linguística no território angolano é muito mais complexa, como se pode
comprovar por um artigo de Annette Endruschat que, talvez, permita compreender
um pouco melhor este problema:
|
“Cada vez mais
angolanos entram (...) em contacto com formas escritas de literatura (...) A
quase totalidade das obras literárias está escrita em língua portuguesa, mas
somente 30% dos angolanos possuem
actualmente uma competência comunicativa na língua veicular do país, função
definida do português. A maioria da
população desconhece ou a domina somente como língua segunda de maneira insuficiente. “[335] |
A.
Endruschat, contrariando a ideia da hegemonia da língua portuguesa e,
principalmente, apontando para a inevitabilidade de um desenvolvimento
específico do português em Angola, caracteriza a situação linguística de
Angola:
|
“Como o país se
encontra numa situação bi - e mesmo Multilingual e porque as funções de
comunicação do português e das línguas nacionais respectivamente ainda não
estão claramente definidas e separadas, é, natural que, sobretudo, na
linguagem falada, se produzam interferências entre estas línguas.” |
E
indica os principais factores que condicionam a situação do português:
|
· A
situação bilingual que se traduz por interferências entre o português e as
línguas bantas; · O
desenvolvimento social, económico e cultural independente do país: o que se
traduz por novas necessidades de comunicação e sobretudo pela renovação
lexical; · A
ausência de uma influência normativa permanente, que se traduz pelo
surgimento de particularidades linguísticas no português angolano: no estrato
fonológico-fonético, a abertura das vogais finais e a nasalação e aspiração
de vogais; no estrato lexical surgem numerosas palavras de origem banta,
sobretudo designações de fauna, flora, religião e cultura tradicionais, mas
também expressões emocionais; no estrato sintático, ocorrem transformações sintáticas
por influência das estruturas sintáticas bantas.[336] |
|
6.
A imagem como cenário - confronto e síntese |
|
“ Il convient de faire non une confrontation simple, mécanique entre
texte et contexte, mais un détour par l’Histoire, surtout celle des
mentalités, des sensibilités. Et c’est bien sûr ce détour qui éloigne aussi
l’imagologie de la littérature stricto
sensu. Il est nécessaire mais non suffisant. En effet, l’interprétation
de l’image ne relève pas seulement de l’histoire. Elle requiert outre une
étude sur sa nature poétique, au sens le plus neutre (partie d’un tout qu’est
le texte littéraire), une étude fondée sur des données qui ressortissent à
l’anthropologie culturelle.”[337] |
A
leitura a que procedemos de YAKA, assim como o estudo de alguns aspectos
significativos da História da colonização de Angola, permite-nos, em primeiro
lugar, confirmar a profunda relação estabelecida por Pepetela entre História /
Sociologia / Literatura, nomeadamente no que concerne à criação literária.
Dir-se-ia que a “localização social e histórica” do homem / escritor tornou
inevitável o “conteúdo da sua criação pessoal e cultural”.[338]
Ou, por outras palavras, terá sido a necessidade do homem se situar que gerou essa inevitabilidade,
isto é, que forçou a criação literária a abraçar a História, num movimento de
reconstituição do passado que permitisse alicerçar as opções do presente,
nomeadamente, as opções do homem Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos,
profundamente empenhado em não separar a atividade literária da
responsabilidade cívico-ideológica, como acontecera com muitos escritores no tempo do Romantismo.[339]
Em termos gerais,
a obra de Pepetela é expressão de uma cosmovisão,[340]
que passa, da descoberta da diferença[341] de
cor
como factor de discriminação, para um
radical contra-discurso cultural,
evoluindo, por força da conflitualidade étnica que mina o MPLA, para um discurso de passagem,[342] isto
é, um discurso de diálogo entre grupos (incluindo a minoria branca)
empenhados, apesar de tudo, no mesmo projecto de nação.
Deste modo, YAKA tem como objectivo mostrar como os traços diferenciais, que durante a colonização separaram os homens, devem, agora,
uni-los na construção da nação angolana. YAKA dá, por outro lado, passagem ao homem de raiz europeia para
que possa participar ativamente na construção da angolanidade.
Esta passagem
precisa, contudo, de ser explicada à
maioria negra[343]
- secularmente oprimida -, o que implica atribuir à História um papel
fundamental na determinação do sentido último e messiânico dos acontecimentos,
que durante muito tempo escapara à cegueira do colonizador, e quantas vezes do
colonizado!
Por isso, o escritor teve que simultaneamente
reconstituir a história da relação
colonial e delinear a desejada passagem para a integração das minorias
branca e mestiça na nação angolana.
Este desencontro entre o sentido da História e a cegueira do
colonizador é simbolizado pela impossibilidade dos Semedos entenderem o sentido
de YAKA - objecto-imagem - : a ixiptla que era para os indígenas mexicanos “o recetáculo
dum poder, presença indiciada,
epifânica; atualização de uma força infusa num objecto, de uma existência.”[344] Isto
é, o objecto estátua - representação, eventual, de um guerreiro
formador de chefias -, torna-se operatório, porque gerador de uma imagem dinamizadora de uma nova
(re)criação comunitária, liberta,
finalmente, do domínio que caracterizara a colonização europeia. YAKA - objecto e
imagem primordial - pretende rememorar o primeiro modelo de colonização: o
modelo estético.[345]
Todavia, do ponto de vista do escritor, essa cegueira
colonizadora não é absoluta e definitiva, na medida em que é um Semedo - Oscar
- que a carrega consigo e a lega a outro Semedo - Alexandre, que, apesar de,
durante muitos anos, a ter visto apenas como objecto, acaba progressivamente por se deixar impregnar pela imagem[346] emanada
pela estátua. Deste modo, Alexandre instaura tibiamente,[347] no
seio dos Semedos, a dissidência, que é a base da utopia que se caracteriza pela
procura de uma sociedade perfeita ou, pelo menos, de uma sociedade menos
injusta. É essa utopia que move o
último dos Semedos - Joel/Ulisses - para quem YAKA é a imagem matricial,[348] e que permitirá, ou não?,
a passagem, isto é, a integração das
minorias na nação angolana, através da transfiguração[349] de
uma parte dos Semedos.
A dissidência no território angolano,
como vimos, não se manifesta apenas através de Alexandre Semedo e de Joel ou do
guerrilheiro Bombó, ela encontra-se latente
na proverbial indecisão de Oscar Semedo, e manifesta
no barbeiro Acácio, ele próprio vítima de discriminação pela parte dos
comerciantes brancos.
Apesar da sua
fraca representatividade, a dissidência está presente quase que
de forma contínua, entre 1890 e 1975 [350] num
território, em que, a diferença de número,
isto é, a enorme desproporção entre negros e brancos, gerava na minoria branca um medo[351] medular
cuja resposta primária foi a substituição do diálogo pela agressividade, embora as situações de conflitualidade, a partir da
década de 40, sejam propagandisticamente diminuídas, na medida em que seriam
apenas o reflexo de uma minoria negra que ainda não compreendera a bondade da
estratégia multirracial[352] traçada
para Angola. No entanto, a agressividade
estava instaurada na nomeação do outro,[353] o
que conduzia à sua desvalorização ética e cultural,[354] excluindo-o
da participação efectiva na tão propalada civilização,
a recusar-lhe a dimensão humana ou, nos momentos de maior tensão, eliminá-lo.[355]
É essa agressividade
que emerge do comportamento dos
Agripinos, dos Aquiles e Xandinhos, dos Bartolomeus, das Donanas e Matildes. Um
comportamento racista - que ilustra, resume e simboliza a relação colonial - [356] e
em que, em proveito psicológico[357] e
económico do acusador, este põe
permanentemente em acção uma estratégia
de argumentação racista, que lhe permite dominar o colonizado e legitimar a
sua presença na colónia, em nome de um imperativo civilizador, cujas raízes se
encontravam já inscritas no imaginário medieval, nomeadamente no espírito de
cruzada.[358]
Ora a opção ficcional de Pepetela consistiu em introduzir
a dissidência
neste cenário de conflitualidade, em que o sistema colonial gera
progressivamente a destruição simbólica da vítima, desumanizando-a, para,
finalmente, a eliminar, sem qualquer complexo de culpa. Apesar da
monstruosidade da acção denunciada, a dissidência permite, em nome do
pragmatismo, eliminar a responsabilidade do colonizador e, simultaneamente,
legitimar a desejada transfiguração do
homem branco num homem igual aos
outros homens, independentemente da origem, do passado e da cor.
Deste modo, o romance YAKA surge em 1983, num primeiro
plano, como sistema modelizante[359] da angolanidade e, num segundo plano, como sistema modelizante da portugalidade,
gerando a expectativa de um diálogo
intercultural, em que à língua portuguesa - sistema modelizante primário - estaria “naturalmente” reservada a
função catalisadora,[360]
num
mecanismo regulado pelo mesmo princípio ideacional que levara Alexandre Semedo
a nomear filhos, netos e bisnetos com antropónimos gregos.
[1] - J.-M. Moura, L'imagologie littéraire : essai
de mise au point historique et critique, p. 287.
[2] - T.
Todorov, Mikhaïl Bakhtine, le principe
dialogique, p. 284.
[3] - Todorov / Bakhtine: “na escolha do material
lexical, na escolha dos epítetos, das metáforas e outros tropos (...) e,
finalmente, do tema no sentido
restrito do termo.”
[4] - Esta função, também designada composicional por Bakhtine, “determina o
lugar hierárquico do elemento verbal no conjunto da obra, o seu nível, assim
como a estrutura do conjunto. “
[5] - Daniel-Henri Pageaux - La littérature générale et comparée, p. 64.
[6] - Como se o branco não fosse um hipónimo
de cor, esta palavra é geralmente mencionada em Yaka como classificadora do Outro: p. 188, 281, 300, 301, 375.
[7] - Esta condição
de inferioridade é claramente comprovada no momento da “partida”,
aparentemente injustificada, de um nativo branco, como Álvaro, pai de Joel:
“Era superior aos negros, tinha estatuto de branco. (...) É duro para quem toda
a vida viveu pensando ter inferiores. (...) Não pode aceitar o risco de ser
inferior aos que ele toda a vida considerou inferiores.” Yaka, p. 378.
[8] - [Chico:] “Eu já me via negro e protetor de
todos os brancos.” Yaka, p. 391.
[9] - Esta situação estratégica do mestiço
angolano é, no entanto, pouco significativa devido à sua fraca expressão
demográfica, ao contrário do que acontece, por exemplo, com o povo de Cabo
Verde, e que Jorge Barbosa exprimiu de forma tão bela, no poema Povo : “Conflito numa alma só / de duas
almas contrárias / buscando-se, amalgamando-se / numa secular fusão / (...) /
Na alma do povo ficou / esta ansiedade profunda / - qualquer coisa de indeciso
/ entre o clima tropical / e o espelho de Portugal.” Cf. Arquipélago, 1935.
[10] - Castro Soromenho - Expedição ao País do Ouro Branco, p. 7.
[11] - Apesar desta conceito negativo, H. Capelo e
R. Ivens, Apêndice in De
Angola à Contracosta (1886), caracterizam positivamente o cafre
(grupo bantu) nos seguintes termos: “O Cafre tem o prognatismo do Negro, mas
faz lembrar o homem do Norte. (...) habita (...) ao sueste da África, entre o
Zambeze e o país dos Hotentotes, que eles repeliram em suas guerras de leste
para oeste. São de estatura alta, pele pardo-torrada e belo aspecto físico. “-
p. 235. E concluem o retrato: “O que comprova principalmente a superioridade
intelectual dos Cafres é que os seus progressos não têm sido devidos ao
maometismo, como os das populações do Sudão...” - p. 241-242.
[12] - Cf. Yaka, respetivamente, p. 88 e 208, em
que, no 1º caso, um soldado português sonha tornar-se “soba com bois e
mulheres”, libertando-se da miséria em que nasceu; e no 2º caso, Matilde
desacredita Ernesto Tavares: --” Agora acreditam em brancos cafrealizados que passam a vida a dormir
com negras.”
Castro Soromenho a
propósito deste processo de aculturação
psicológica, caracteriza o modo de vida dos colonos: “Viviam com mesa farta
e rodeados de mulheres indígenas, cuja influência se tornou tão forte no seu
espírito que a breve trecho trocaram a sua moral pela do cafre. Esses homens
incultos e facilmente influenciáveis, perderam a sua religião e acabaram por
adoptar as crenças do selvagem, de forma que o maior número lhe dá crédito e
praticam o mesmo que fazem os cafres.” Op.cit., p.15
A propósito das noções de
aculturação e de aculturação psicológica, ver Félix Neto, Psicologia da Migração Portuguesa, p. 42.
Todavia, a cafrealização, neste romance, não passa
dum fenómeno periférico, embora tivesse desempenhado um papel importante até
aos anos 20, época que deu início à destruição da burguesia angolana.
[13] - Michel Laban - Encontro com escritores, 2º vol., Porto, Fund. Eng. António de
Almeida, 1991.
[14] - Cfr. Pires Laranjeira - A Negritude Africana de Língua Portuguesa, p. 337.
[15] -Vale a pena atentar na refutação de Albert
Jacquard a este propósito: “La phrase (...) ‘la race blanche plus parfaite que les autres’, n’est même pas une erreur,
elle est dépourvue de sens. (...) Que le généticien démontre que la notion de
race est sans fondement, que le logicien mette en évidence l’absurdité des
hiérarchies globales, cela n’entame en rien l’attitude du raciste, parce que
cette attitude n’a, fondamentalement, aucun rapport avec la réalité biologique
ou avec la logique.” Au regard de la science, in Le Courier de l’Unesco, mars 1996.
[16]
- Alexandre Semedo auto-penitencia-se, referindo-se a Aquiles: “Eduquei-o dessa
maneira, de ser superior porque branco. Tudo podia acontecer. Adivinhei que ele
ia fazer uma loucura, deixei-o fazer. Se eu não fui, seria o meu filho um
herói. Herói? É isso ser herói? Matei-o, apenas.” Yaka, p. 248.
[17] - Várias são as referências ao branco que compreende, apoia ou luta
lado a lado com o negro: Acácio,
comandante Bombó e Joel são as personagens que materializam essa dissidência
étnica.
[18] - Ernesto Tavares: “O certo é que sou branco
de segunda por ter nascido aqui. Não tenho acesso a todos os graus do
funcionalismo público.” Yaka, p. 78.
[19] - “Em Capangombe havia uma centena de
famílias brancas, a maior parte degredados, uns tantos militares e alguns
“brasileiros”. Também mulatos, era coisa
que
crescia como capim.” Yaka, p.
20. Ou “mulatos se fazem mesmo sem querer” Yaka, p. 56.
[20] - “Nunca houve um mulato que fale bem
português e ande calçado, que seja contra nós [portugueses].” Yaka, p.62.
[21] - São os filhos mulatos de Agripino de Sousa
que assassinam Acácio. Registe-se a propósito da educação do mulato a seguinte afirmação de A. Semedo: “Nascidos nas
guerras de kuata-kuata, crescidos nas caravanas onde o chicote é o primeiro
brinquedo, educados na perseguição de escravos fugidos... usam bala esses?
Yaka, p. 113.
Por outro lado, Sô Lima
defende que o mulato deve ocupar progressivamente o lugar do negro: “Quando os
meus filhos forem maiores, ponho o negro na rua. Bar civilizado só tem criado
mulato. “Yaka, p. 77.
[22] - Neste caso, como refere T. Todorov a
propósito dos colonos, dos comerciantes e dos empresários, os colonos
portugueses revelam-se inimigos do
exotismo, porque “ignorent l’autre, ne pensent en toutes circonstances qu’à
eux-mêmes...” in Nous et les Autres,
p. 440.
[23] -
Thérèse Pujolle, L’Afrique Noire,
p.52.
[24] -
Le schéma de prise de possession sera partout le même, qu’il s’agisse de
colonisation française, britannique, allemande ou portugaise : conquête
militaire du territoire, institution d’une autorité politique de contrôle,
exploitation des ressources minières évacuées, sans transformation, par de
grandes infrastructures (rail, fleuve, route, ports maritimes). Sur la côte du
continent sont ainsi tracées des frontières irréversibles : nouveaux espaces
linguistiques (francophone, anglophone, lusophone) ...” Thérèse Pujolle,
op.cit. p. 59.
Em Yaka, como estratégias de ocupação, há que
destacar: a queda dos preços da
borracha, a acção militar, a construção do caminho de ferro de Benguela pelos ingleses,
a exploração intensiva das roças e o isolamento dos espaços linguísticos
africanos, através da imposição do estatuto
do assimilado.
[25] - Uma das funções da ideologia é precisamente dissimular o comportamento do
colonizador.
[26] - Estamos, neste caso, perante os fenómenos
de “asemia” e de estereotipia. Como
afirma Sélim Abou : “Cette perversion sémantique du langage est inhérent à la
nature du discours idéologique lui-même.” Op. cit. p. 150.
[27] - A
assimilação consiste em querer transformar as “raças” indígenas à imagem de
Portugal, acreditando que esta é a incarnação perfeita dos valores universais. A este propósito, Cfr. T. Todorov, in Nous et les Autres, p. 346.
[28] -
Para Sélim Abou, a assimilação “est
une des formes de l’échec de l’acculturation (...) Processus d’ajustement
mécanisé à l’engrenage social, c’est-à-dire aussi bien aliénation dans la
stérétypie qui a pour effet la pathologie de la déculturation et, au terme, de
la dépersonnalisation.” Op. cit. p. 59-60.
[29] - Expressão de Kripke, retomada por Pires
Laranjeira, A Negritude Africana de
Língua Portuguesa, p.324.
[30] -
“El sentido de un nombre propio lo comprende todo aquel que conoce el lenguaje
o el conjunto de designaciones al que pertenece; pero com ello, la referencia,
caso de que exista, queda sólo parcialmente iluminada. Un conocimiento completo
de la referencia implicaría que, de cada sentido dado, pudiéramos indicar inmediatamente
si le pertenece o no. Esto no lo logramos nunca.” G. Frege - Sobre Sentido y
Referencia, in Estudios sobre
Semantica, p. 51-52.
[31] - Mutu-ya-kevela ou Quebera, como é depreciativamente designado pelos portugueses. Este
fenómeno de deformação é, no entanto,
ainda mais significativo, quando Donana ao rejeitar o nome original da criada,
lhe chama Joana.
[32] - Como veremos quem melhor corporiza, durante
um largo período, a necessidade de se autodefender da ameaça que é o Outro é Alexandre Semedo, que se referia a essa ameaça, designando-a: o medo, o grande medo.
[33] - “O narrador está fora dos acontecimentos
narrados: refere os factos sem nenhuma alusão a si mesmo. “in As vozes do
romance, p. 62, por Óscar Tacca.
[34] - Pires Laranjeira caracteriza Yaka como
“desempenha(ndo) o importantíssimo papel de narrador alternativo e de parceiro mudo de confidências de Alexandre
Semedo.” Cfr. Literaturas Africanas de
Expressão Portuguesa, p. 153.
[35] - De certa forma esta função interpretativa
corresponde ao pensamento de Henry James, sintetizado por Michel Zéraffa: le travail du romancier consistait
essentiellement à saisir et à concevoir des rapports entre les faits. Il
s’agissait d’un travail d’intelligence et de rationalité, en tous points
comparable à celui de l’historien, car ce dernier a lui aussi pour tâche
d’établir des relations entre des faits qui autrement n’auraient aucun sens.” in La
Révolution Romanesque, p. 33-34.
[36] - Esta função é a da présentation indirecte - Gide, Journal,
1922 - cujo objectivo será dissociar o autor do narrador.
[37] - “A diferença fundamental entre uma e outra
modalidade está em que no estilo indireto
livre, a perspectiva mantém o ponto de vista original do narrador, enquanto
no monólogo interior, essa
perspectiva se ordena a partir do ponto de vista do personagem. “O. Tacca, op.
cit. p. 77.
[38] - “Localizada” porque situada num meio que a influência, e “focalizante”
porque o universo romanesco estará, em parte, centrado sobre si, e dela
receberá o sentido e a forma. Como
consequência, o “herói” é cada vez menos uma testemunha : “les messages qu’il reçoit de son milieu et qu’il filtre, ne lui servent
qu’à donner (lentement) une forme et un sens à son être. Et cette forme et ce
sens vont progressivement l’isoler d’une réalité sociale à laquelle, pourtant,
il continue d’appartenir et de participer.” M. Zéraffa, op. cit.
p.34. Em síntese, como veremos, este quadro teórico traçado por Henry James
corresponde quase por completo ao desenho
da personagem A. Semedo, que adquire uma “consciência” própria à custa da
renúncia e do desinteresse.
[39] - Mutu-ya-kevela, Vilonda, Njaya...
[40] - “Depois de Donana falecer, começou a
escrever as suas memórias. Em forma de conversas para a estátua Yaka. “in Yaka,
p. 277.
[41] - Segundo Pires Laranjeira, Joel tem o nome
do profeta bíblico que anunciou o juízo final. Para a família Semedo, o “juízo
final”, foi a saída de Angola - op.cit. 154.
[42] - Aparentes, porque, de acordo com a
mundivisão de Yaka, o mundo é regido por leis que ultrapassam a efémera
compreensão humana.
[43] - Yaka, p. 24.
[44] - “Estou para ver. E para contar a quem
entende. Sofrendo.” Yaka, p. 25.
[45] - “Mutu-ya-Kevela tem a cabeça quente. Ele já
sabe onde está a sua força. Não é no braço que empunha a arma. A sua força está
na boca, onde pode penetrar a aguardente traiçoeira, mas donde podem sair as
palavras que arrastam os outros.” Yaka, p. 55.
[46] - Yaka, p. 96.
[47] - “Mutu-ya-Kevela? Está onde? Os miúdos até
desaprenderam o nome dele. Não há nome que fica quando o comboio inglês
avança.” Yaka, p. 99.
[48] - “Os olhos apontavam a lonjura da minha
criação.” Yaka, p. 131.
[49] -
Yaka, p. 165.
[50] -
Yaka, p. 166.
[51] - Yaka, p. 246.
[52] - Yaka, p. 311-317.
[53] - A pretexto da suposta “onda antiportuguesa
na ONU”, protagonizada pelo “dedo de Moscovo” e “apoiada por catequistas
protestantes.” in Yaka, p. 317.
[54] - “e o velho no último sopro que grita Deus
não é Suku, Suku nunca castigou Féti, e pensou já sem forças para gritar este
Féti nosso, nascido na água e que foi o primeiro homem, por que que nos
nasceram assim para sofrer isto tudo” in Yaka, p. 317.
[55] - “saiba que Chucha estava na cama do seu
neto Chico, esse mulatão infecto que você impôs aqui em casa” in Yaka, p. 314.
[56] - “pois não é a melhor prova de
multirracialidade a Chucha ter ido para a cama com o primo mulato, expulso à
noite do sapalalo com os sapatos na mão e ainda a apertar as calças” in Yaka,
p. 316.
[57] -
Yaka, p. 316.
[58] -
Yaka, p. 321.
[59] -
Yaka, p. 322.
[60] - Yaka, p. 323. O herói é assim o MPLA (o
Movimento), enquanto a FNLA e a UNITA não passariam de movimentos
“estrangeirados” fantoches completamente desconhecidos das populações... Esta
tese é confirmada pelo modo como o exército da FNLA e da UNITA, à sua chegada a
Benguela, são caracterizados: “depois das grandes chuvadas e trovoadas
começaram a se instalar os exércitos, primeiro o verde de gorros de leopardo
que só falavam línguas estranhas e passavam em jipes muito aprumados e limpos,
e armas luzidias, depois os que diziam só falar umbundo, nos olhos o medo e nas
mãos bengalas de soba. “Yaka, p. 326.
[61] - Yaka, p. 327.
[62] - Como defesa, Xandinho argumenta: “a maior
prova que tenho é este meu primo querido que até é mulato, a nossa família é
assim de todas as cores, provavelmente a minha avó era negra, não têm pois o
direito de me condenar como colono, de me expulsar...” Yaka, p. 359.
[63] - No essencial, Xandinho herdou a demência do pai,
Aquiles. Em termos funcionais, ambos desempenham o mesmo papel no sistema
colonial, embora separados pela ascensão social da família - Aquiles, capataz
eficiente na Câmara; Xandinho termina zelosamente a sua carreira como
Administrador de concelho.
[64]
- Se a embriaguez gera um discurso caótico, este não pode ser entendido apenas
como efeito realista, mas como opção
discursiva que se integra plenamente no contexto de enunciação: estatuto do
militar, espaço onde decorre a narração (bar), ambiguidade política dos
interlocutores. E que decorre, também, da tradição - é como se a relação entre o narrador omnisciente e o soldado fosse da
mesma natureza da que é “definida” por Sócrates ao referir-se à relação dos
deuses com os poetas: “ E se a divindade lhes tira a razão e se serve deles
como ministros (...), é para nos ensinar, a nós que ouvimos que não é por eles
que dizem coisas tão admiráveis - pois estão fora da sua razão -, mas que é a
própria divindade que fala e que se faz ouvir através deles.” Ver Platão, Íon, ed. Inquérito, 2ªed., p.53.
[65] - “Nesta vida de merda de branco numa terra
de pretos” ou “Pudera, esses filhos da puta de mulatos que jogavam no
“Portugal” tinham a mania de dar fintas(...) in Yaka, p. 184.
[66] - “Os conhecidos, e eram certamente todos os
habitantes da cidade, se dividiam claramente em amigos e inimigos. (...) A cor não contava. “in Yaka, p.187-188.
[67] - “Quebraste a tradição, um dia vais pagar.
Quebrei a tradição? (...) Que tradição manda os homens morrer de fome?” in
Yaka, p. 177.
[68] - in Yaka, p. 228.
[69] - “Havia esteiras pintadas nas paredes.
Também quindas e cestos. Coisas que o pai comprava aos povos do interior. Os
cinzeiros altos tinham esculturas de animais ou rostos de pessoas. A estátua Yaka
estava no canto esquerdo da sala e olhava para os que entravam. (...) Mas na
sala só se punha aquilo que o pai queria. Isso, e os nomes dos filhos e netos.
[70] - Yaka, p. 287.
[71] - “A liberdade está a chegar, se mostrem para
que libertemos o País dos brancos, no dia 2 de Abril, onde virem um branco, lhe
cortem a cabeça (...)” in Yaka, p. 303.
[72] - Yaka, p. 302-305.
[73] - Yaka, p. 315.
[74]
- “Existe, pois, outra forma de omnisciência (...) que consiste em saber tudo,
já não de um ponto de vista superior e inumano, à maneira do narrador
omnisciente, mas acumulando a informação que sobre um personagem (ou episódio)
têm os restantes. “O. Tacca, op. cit. p. 90.
[75] - Yaka, p.251-254.
[76] - Yaka, p. 268-270.
[77] - Yaka, p. 310.
[78] -
Yaka, p. 282-283.
[79] -
O. Tacca, op. cit. p. 127.
[80] - Das personagens oriundas de Portugal
continental, só Sô Almeida, Aninhas, Bartolomeu Espinha e o Agente da Pide não
eram degredados.
[81] - “Os degredados foram em grande parte
responsáveis pela imagem negativa de Angola que a maioria do povo português
teve durante cinco séculos da presença portuguesa no território.” Gerald
Bender, Angola sob o domínio Português,
p. 93
[82]
- “Até às primeiras décadas do séc. XX, a maior parte dos portugueses que
viviam em Angola eram degredados, culturalmente inferiores aos africanos.” G.
Bender, op. cit. p. 291.
[83] - “Embora muitos funcionários se queixassem
da ruína e mesmo da mortandade que o comércio do álcool provocava na população
africana, como também no caso da escravatura e do trabalho forçado, pouco
podiam fazer para eliminar esta odiosa atividade comercial. “Bender, op. cit.
p. 209.
[84] - “Entre 1912 e 1932, foram postas de lado 25
382 hectares de terras para “reservas indígenas” e deram-se 1000 hectares (com
títulos) a indivíduos africanos. Durante o mesmo período, mais do dobro daquela
área (62 678 hectares) foi concedida a 198 estrangeiros e uma extensão quinze
vezes maior (404 917 hectares) foi distribuída por colonos portugueses.”
Bender, op. cit. p. 214.
[85] - “Comerciantes, é a riqueza de troca que nos
interessa. Quando se esgota um filão busca-se outro. Durante séculos não houve
em Angola outro filão que o escravo. Isso bastava para nos tornar aí presentes
e como presentes irradiar, manter a maneira de ser nacional sem necessidade de
ser ou de se sentir agente de qualquer vontade colonizadora bem precisa. “Eduardo
Lourenço, Retrato (póstumo) do nosso colonialismo inocente II, p. 7.
[86] - Acácio terá sido assassinado pelos filhos
mulatos de Agripino.
[87] - “Nós, os que estamos a construir esta
terra. Nós, os civilizadores desta negralhada. Vamos pôr isto direito, nem que
seja a ferro e fogo.” in Yaka, p. 107.
[88] - A principal causa da miscigenação deverá ser atribuída à ausência de mulheres brancas no
território. Logo que as mulheres brancas começaram a chegar em maior número ao
território angolano assistiu-se a uma diminuição da importância social do
mestiço.
[89] - “Não era tanto pelo filho, que era mulato e
mulatos se fazem mesmo sem querer.” in Yaka, p. 56.
[90] - Nas roças roubadas aos seles, “o chicote
funcionava todo o dia e por nada. E mandava crucificar gente. Cru-ci-fi-car. “in
Yaka, p. 158
[91] - Sô Almeida e Sô Macedo, face à queda dos
preços da borracha, suicidaram-se.
[92] - Os mestiços nessa data não iam além dos
0,18%. G. Bender, op. cit. p. 47.
[93] - A propósito da natureza da nossa burguesia
nacional desde o início da Expansão, consultar Eduardo Lourenço, op. cit.
p. 8.
[94] - Pires Laranjeira, op. cit., p. 147.
[95] - A primeira branca a nascer em Capangombe:
analfabeta, discreta, beata, amachucada pela erudição do marido. Morreu com o
complexo de branca de segunda, embora
tenha realizado o sonho de deixar o filho casado com branca de primeira.
[96] - Yaka, p. 30.
[97] - “Não havia força para nos defendermos dos
negros, os arautos da autonomia eram apenas agentes dos alemães ou dos
ingleses.” in Yaka, p. 87.
[98] - “A sede do lucro cria sempre novas ideias e
novos homens.” In Yaka. p. 41
“- A culpa é da propriedade. A frase ficou a
tremular nas flores rubras da acácia da rua.
- A propriedade suja, emporcalha, torna os
homens piores que bichos. A propriedade é o roubo, dizia Proudhon, é isso.” in
Yaka, p. 74.
[99] - “Os negros tinham de ser completamente
libertos da escravatura, e nunca podiam ser os padres a civilizar os negros,
deviam vir muitos professores.” in Yaka, p. 32.
[100] - “Um branco diferente” in Yaka, p. 61.
[101] - Yaka, p. 104.
[102] - “A notícia foi buscar Alexandre Semedo à
loja, empurrou-o na bicicleta até na barbearia:
- Mataram Sô Acácio! Os
miúdos do Bairro de Benfica e da Peça, descalços, ranho no nariz, corriam pelas
ruas, gritando: - Mataram Sô Acácio! in Yaka, p. 110.
[103] - Yaka, p. 111.
[104] - “Acácio vai ficar vivo connosco na nossa música”
... porque fora o único branco que defendia os negros.” in Yaka, respetivamente,
p. 116 e 115.
[105] - Ou num plano da mitologia colonial: “o
carácter brando das nossas relações com o indígena, o carácter não-guerreiro da
nossa empresa colonial, a capacidade ímpar de compreensão de raças, costumes e
religiões diferentes da nossa, a facilidade de miscigenação.” Eduardo
Lourenço, op. cit.p.6.
[106] - “O nosso orgulho nacional não nos permite
reconhecer que os negros nos derrotaram, a culpa tem de ser sempre dos
estrangeiros que se metiam no meio só por inveja da Pátria lusa....” in Yaka,
p. 93.
[107] - Quando se comemorou o tricentenário da
fundação de Benguela, durante “o jantar oferecido no Hotel Paris aos europeus
com mais de trinta anos de residência no distrito”, foi rejeitada a entrada a
Acácio, porque lá dentro estava a elite da terra. in Yaka, p. 104.
[108] - Cfr. artigos: “Cidade das Acácias Rubras”;
“O canto do matricinde”; “O Conquistador de Benguela” in Público,
respectivamente a 160593, 200693, 271194.
[109] -
“La fusion de l’ethnicité et de la culture définit, sur le plan culturel, un
stade analogue au stade préœdipien de la fusion de l’enfant avec sa mère (...),
la “matrie”. (...) En d’autres termes, l’identité ethnique est le premier
moment de l’identité culturel. “Selin Abou, op.cit. p.44.
Por outras palavras, esta passagem resultaria do seguinte pressuposto : “Être raisonnable et
libre, l’homme est appelé à dépasser son identité socio-culturelle
particulière, pour viser l’identité d’homme qui l’englobe et la transcende.
Sélin Abou, op.cit., p. 245.
[110] - Alexandre, como Alexandre Magno, não
estará, todavia, à altura da acção empreendedora do seu “modelo”. Essa dúvida,
de resto, é expressa pelo pai: “Não sei se és como ele.” Yaka, p.81
[111] - “Do pai me veio o gosto pelos gregos e suas
lendas e tragédias. Aos filhos pus sempre nomes gregos: Aquiles, Orestes,
Sócrates e Eurídice...” Yaka, p.
130.
[112] -
“ La nomination, qui est l’opération
symbolique centrale accomplie par le père, (...) n’a de sens et de valeur que
dans la mesure où elle inscrit l’enfant dans une lignée qui plonge ses racines
dans le passé et défie l’avenir, une lignée qui assure sa survie dans la
mémoire reconnaissante de ses successeurs, une lignée qui lui donne même le
sentiment que la mort n’est pas la mort, mais le renouvellement et la
consécration de la vie.” Sélin Abou, op.cit. p. 217-218.
[113] - “O nome duma pessoa é uma coisa muito
importante. Nisso os negros ensinam-nos muito (...). O verdadeiro nome, o
definitivo, só é dado depois da puberdade, quando a pessoa mostrou qualidades
que podem ajudar a escolher o nome conforme. Sempre estive de acordo com essa
filosofia.” Yaka, p. 130.
[114] - “Merda! Não se pode viver sempre com medo.
Temos de acabar com eles. (...) Enquanto houver negros viveremos no medo.”
Yaka, p. 137. Este grito é precisamente proferido no dia 14 de Julho,
data-símbolo da libertação dos oprimidos.
[115] - Yaka, p. 147: “Não eram portugueses? Se
havia alguma coisa que nunca tinha posto em dúvida era isso.”
Yaka, p. 150: Essa de que
não somos portugueses é que não, ninguém aceita isso. E a Pátria, e Camões?
Referindo-se a Tuca e a
Njaya, Alexandre Semedo proclama: “Negros! Encostou à parede e vomitou.” Yaka,
p. 164.
[116] - Alexandre Semedo remete-se ao silêncio como
punição pela educação que dera a
Aquiles: “Eduquei-o dessa maneira, de ser superior porque branco. Tudo podia
acontecer. Adivinhei que ele ia fazer uma loucura, deixei-o fazer. Se não fui
eu, seria o meu filho um herói. Herói? É isso ser herói? Matei-o, apenas.”
Yaka, p. 248.
[117] - “A escrava, talvez por velhice, deixou-me
cair no pó. Segundos apenas. Os suficientes para no meu corpo ficar misturado o
pó da terra e os líquidos que trazia comigo ao sair da mãe.” Yaka, p. 18.
“A terra que a boca de
Alexandre Semedo morde lhe sabe bem. (...) Leva esse sabor e cheiro da terra
molhada para cima da pitangueira, onde fica a balouçar, para sempre.” Yaka, p.
395.
[118] - A frustração inscreve-se no quotidiano de
Alexandre Semedo: a morte de Acácio; o casamento com Aninhas para satisfação do
sonho materno de ver o filho casado com branca
de primeira; as quitatas; o Bar Lima; a loja - “vida mais medíocre e
castrante não havia”; “Joana”; Njaya; a morte de Aquiles; os netos só se
interessavam por futebol, mulheres, negócios ou a administração - uns
apolíticos...
[119] - “Todo o mobiliário do salão era de verga e
de palhinha. Feito localmente por um velho lunda especialista em verga.” Yaka,
p.206.
[120] - Herói civilizador no romance de Pepetela, Lueji,
o nascimento dum Império.
[121] -
Iniciar e não realizar plenamente, porque Alexandre Semedo não entendeu a voz de Yaka:” Não escreverás,
abandonaste a escrita, porque tens medo. Ias chegar à conclusão te sentes bem
com essa imagem de ti próprio. Que tudo é máscara. Crítico passivo duma
situação, dela vivendo. Crítico, para ter a consciência tranquila. Mas lutar,
romper com tudo? Por isso é melhor parar de escrever, para não ir fundo demais
e depois não poder voltar atrás.” Yaka, p. 279.
[122] - “As memórias paravam com a revolta do
Seles, de que ele hoje tinha uma opinião radicalmente diferente. Foi escrevendo
que se separou delas e hoje as sentia como punhaladas do passado. (...) Mas era
exclusivamente para ele, pois se tratava de ter uma visão diferente do
antigamente. Não ia convencer ninguén.”
Yaka, p. 278.
[123] - Profetizar, no sentido que lhe é
atribuído por Maurice Blanchot : “Mais la parole prophétique annonce un
impossible avenir, ou fait de l’avenir qu’elle annonce et parce qu’elle
l’annonce quelque chose d’impossible, qu’on ne saurait vivre et qui doit
bouleverser toutes les données sûres de l’existence. Quand la parole devient
prophétique, ce n’est pas l’avenir qui est donné, c’est le présent qui est retiré et toute possibilité d’une présence
ferme, stable et durable. In Le Livre à venir, p.117-118.
[124]
- “O medo, aquele medo que Alexandre conhecia muito bem por o sentir desde que
nasceu, esse medo estava em cada um deles. Não nele, tinha ultrapassado há
muito.” Yaka, p. 367.
[125] - “O símbolo mais acabado do colonialismo.”
Yaka, p. 390.
[126] - Yaka, p. 384-385: “Os Semedos todos, a
começar por mim, sempre foram a bimba que está no meio do rio. As correntes
levam-na para um lado ou outro. O Aquiles talvez pudesse ser a primeira
excepção, se tivesse cabeça. Mas nunca teve.”
[127] - Yaka, p. 386.
[128] - “Ernesto era um catavento e cada década
encontrou nele opiniões e acções diferentes. Só em relação às mulheres foi
constante, sempre a mudar de negra para negra.” Yaka, p. 197.
[129] - Esta tese era defendida pelo Jornal
luandense A Defeza de Angola. Porém,
a presença branca era claramente insuficiente quer face aos ingleses e alemães,
quer face aos negros. Este realismo é assumido, embora por razões ideológicas
diferentes, por Óscar Semedo e Agripino de Sousa. Yaka, p.86 e p. 92.
[130] - Ernesto Tavares, em diálogo com Alexandre
Semedo, rejeita a sua condição de
português:
“- Não somos portugueses?
- Nada temos a ver com aquilo. Somos
benguelenses, o que é muito diferente.” Yaka, p. 147.
Ernesto Tavares
“representaria” o sentir da “gente miúda”: “No Bairro Benfica, as pessoas
pensavam como ele. Brancos pobres, nascidos nas casas baixas, mulatos a
trabalhar por conta própria ou para brancos, negros filhos de vimbali e
pumbeiros, os habitantes do Benfica. “Yaka, p. 151.
[131] - Em 1887, existia uma loja maçónica em
Moçâmedes, segundo José Mattoso, História
de Portugal, vol. V, p.210. Benguela seria maçónica sem o saber, “tão
maçónica como a sua árvore sagrada, a acácia.” Yaka, p. 199.
[132] “O discurso mudou, passou a berrar contra os
comunistas, os anarcossindicalistas, os democratas (...) Traidores da Pátria
Portuguesa vende Pátrias lacaios de Moscovo querem dar este País de mão beijada
aos negros renegar Os Lusíadas!” Yaka, p.198.
[133] - Cfr. Gerald J. Bender, Angola sob o domínio português - mito e realidade, p. 64.
Ernesto Tavares, de
acérrimo autonomista acaba como o exemplo mais completo da rejeição do espírito
luso-tropicalista: “Este era o Ernesto que levavam agora a enterrar, sempre
fiel à mulher negra. Rico, nunca casou. Também não mantinha uma ligação por
mais de três meses. Nunca reconheceu nenhum filho, não tinha família.” Yaka, p.
198.
[134] - Yaka, p. 196.
[135] - “- Fiquem com a vossa borracha, brancos. A
Chitekulu ninguém rouba. Olhem, brancos, olhem a vossa borracha.”
[136] - É esta mesma apologia do lugar primordial
da palavra que encontramos na poema
de Agostinho Neto: Sinto na minha voz as
vozes duma multidão / no coração
sinto um mundo / No meu braço um
exército (...) in A Renúncia
Impossível.
[137] - A acção educativa dos missionários
protestantes é alvo da desconfiança dos católicos. A doutrina protestante era
designada sintomaticamente de gangrena protestante, e é sempre
associada a todas as revoltas e manifestações de independência. Cf. Yaka: p.
48,49, 64, 108, 285, 289, 304, 317.
[138] - Yaka, p. 109.
[139] - Yaka, p. 159.
[140] - O papel (de)formativo do jogo com base na
História: “a guerra do Bailundo era melhor brincadeira tinham inventado”. Yaka,
p. 66.
[141] - Tuca não participou na violação. Fugia das
lutas com os bandos porque “era o negro que todos queriam bater” (...) “Isso e
as sessões colectivas com raparigas negras. Com brancas nem tinha dessas
sessões, era pecado.” Yaka, p.68-69.
[142] - “- Vão -se revoltar outra vez. Não vão
esquecer o que lhes estão a fazer.” (...) “Mata-se para ficar com as terras.”
(...) “Estamos só a deitar lenha no fogo. Qualquer dia há uma fogueira que
ninguém apaga.” Yaka, p. 161.
[143] - Yaka, p. 259.
[144] - “Que [os brancos]
deixassem intactos os objetos das mulheres, as casas, que não chegassem ao
elao, onde só amigos podem sentar. O cheiro deles não podia conspurcar o fogo
sagrado.” Yaka, p.228.
[145] - “Cuvale não vende boi, como vai vender o
pai e o filho? Yaka, p. 177.
[146] - “Moma falava bem português, tinha mesmo
andado numa escola qualquer, pois sabia ler. Provavelmente numa missão
protestante...” Yaka, p. 288.
[147] - [Os terroristas querem] “- Expulsar os brancos?
Tão nossos amigos... Antes dos brancos virem, os pretos sabiam fazer o quê? Os
brancos nos ensinaram a fazer tudo.” Yaka, p. 289.
[148] - “Os vimbali, assim chamados porque imitavam
os brancos - todos podiam fazer contas e alguns sabiam ler...” Yaka, p. 42.
[149] - “Deus não é Suku, Suku nunca castigou Féti
(...) este Féti nosso, nascido na água e que foi o primeiro homem...” Yaka, p.
317.
[150] - Patrice Lumumba, dirigente do Movimento
Nacional Congolês a partir de 1957, contrário às tendências secessionistas e
defendendo o ideal da independência. Em 1960 torna-se primeiro-ministro, mas
pouco tempo depois é assassinado.
[151] - “A amante, Branca, uma negra liberta, não
contava. O mais que tinha recebido do meu padrinho era esse nome de Branca,
para substituir o indígena, indizível. (...) Quando ele morresse, ela voltava
para o kimbo dos pais, sem nada.” Yaka, p. 30
[152] - “Gozou que nem uma negra. (...) Ela não conta.
(...)Vamos lá compreender os negros.” Yaka, p. 68.
[153] - “Eram negros civilizados.” Yaka, p. 129.
[154] - “Com branco nunca mais. Vou arranjar um
homem, um dia, mas um igual. Não quero homem que de dia é uma coisa, de noite
outra coisa.” Yaka, p. 163.
[155] “Tinha outro nome, do Kimbo, mas Donana disse
nunca vou pronunciar esse nome de negra, passas a ser Joana. Ela não queria,
tinha o seu próprio nome, não era a patroa que a ia batizar à força. Mas teve
de ceder, senão ia tundada de casa e precisava de emprego.” Yaka, p. 121.
[156] - A mãe era "lavadeira" na casa de
Heitor Espinha. Um outro indício da cor de
Ruca é-nos dado através da gastronomia: "Joel (...) há dez anos que almoça
aos sábados na casa dela, pirão de milho com calulu." Yaka, p. 374.
[157] - “Para dar chapadas e pontapés, pôr os
negros a trabalhar.” Yaka, p. 171.
[158] - “Nesta vida de merda de branco numa terra
de pretos.” Yaka, p. 184
[159] - Yaka, p. 187.
[160] - “Eu sou o herói, o mais forte, o mais
conhecedor.” Yaka, p. 219.
[161] - Neste sentido, não parece consistente a
tese de Alexandre Pinheiro Torres que apresenta Aquiles como “um dos
protagonistas de Yaka”, colocando mesmo a hipótese de ser o principal. Cfr. Yaka
(ou o calcanhar de Aquiles?), in Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa, p. 197.
[162] - Para Alexandre Pinheiro Torres, Bartolomeu,
“embora não se chame Orfeu terá de ir ao inferno, não para rever a amada, mas
para chamar a si as terras dos negros “, creio, no entanto, que quem vê
transformada a vida num inferno são os negros. Op. cit., p.200.
[163] - Yaka, p. 171.
[164] - “Terreno virgem para ocupar. Maior que
metade sul de Portugal, à espera dele. Era só ter os meios.” (...) “Havia mesmo
a árvore das patacas, não era aldrabice, o problema era saber escolher o
momento e a maneira de a abanar.” (...) Para construir esse império, “precisava
de um pequeno exército, cuja cúpula seriam os filhos e os sobrinhos.” Yaka, p.
286-287.
[165] - “Os impérios não se criam pondo o dinheiro
fora, mas investindo tudo. E ele estava quase a criar o seu império. Arriscou
tudo por um império e perdeu.” Yaka, p. 364.
[166] - Neste aspecto, Xandinho é a expressão
acabada da sina dos Semedos (Óscar Þ
AlexandreÞAquilesÞ
Xandinho), como refere Bartolomeu: “Ele sempre foi um pobre de espírito, um
fraco, parece sina dos Semedos, para fazer qualquer coisa precisava de receber
ordens.” Yaka, p. 362.
[167] - Yaka, p. 332.
[168] - “Pois é, agora sou colonialista e vão fazer
inquérito. Com certeza até vão dizer que não sou angolano. (...) E se falam de
sangue (...) também temos sangue negro na família. Está aqui o Chico para o
provar.” Yaka, p. 333.
[169] - O pragmatismo de Bartolomeu foi contrariado
pela influência de A. Semedo: Heitor “deveria ter ido para Portugal estudar
Direito ou Agronomia” (...) mas ““foi estudar essas merdices de gregos...”
Yaka, p. 287.
[170] - Como dirá Bartolomeu: “É preciso alguém que
saiba de leis na família, para poder driblá-las quando necessário.” Yaka, p.
287.
[171] - Finalmente, A. Semedo descobre na família
um ser capaz de fazer jus ao nome, e, por isso, batiza-o com o nome do “mais
hábil e manhoso dos gregos” - Ulisses -, esperando que ele chegue a Ítaca, isto
é, esperando que a angolanidade “integre” harmoniosamente o legado grego...
Yaka, p. 384.
Se pensarmos a herança de
A. Semedo, em termos prospetivos, verificaremos que a presença do homem branco
em Angola tanto é assegurada através do neocolonialismo económico (Chico) como
da influência cultural e ideológica ocidental (Joel/Ulisses).
[172] - Em resposta ao convite de Nízia, Joel
responde-lhe: “Não saio daqui, esta é a minha terra.” E pela primeira vez
frente a Yaka, Joel informa o bisavô: “Vou ser soldado de Angola porque há um
momento na vida em que tem de se escolher o seu próprio caminho (...) e agora
(...) é preciso escolher o seu próprio país.”
Yaka, respectivamente, p. 376 e p. 384.
[173] - Yaka, p. 387.
[174] - “E os piores são esses brancos deles, como
esse Bombó, no Leste comia criancinhas brancas todos os dias. “Yaka, p. 338.
[175] - “Falava pouco, dizia só conheço Capangombe
e Benguela, não sabia ler, se sentia amachucada pela erudição de Óscar Semedo.
Às vezes se percebia que tinha ideias diferentes do marido, mas não
contrariava.” Yaka, p. 33.
[176] - A propósito da negra que Alexandre Semedo engravidara, Donana dirá: “Uma filha de
escravos! Estes homens não têm vergonha, nem parecem brancos.” Yaka, p.101.
[177] - “E o que vai andar ele a fazer à noite,
ainda por cima com a cor que tem?” Yaka, p. 295.
[178] - Yaka, p. 208.
Matilde não concorda com o
acolhimento de Chico, em nome dos preconceitos sociais: “Tenho relações na alta
e vão torcer o nariz quando virem que espécie de família temos.” Yaka, p. 299.
[179] - Yaka, p. 262.
[180] - Perante Joel, Chucha argumenta: “A vida
aqui vai ser bem chata com os pretos a mandar. Yaka, p. 377. Ou ainda face à
necessidade de ter de trabalhar em Portugal: “- Claro. Lá entre iguais... Lá
não é vergonha trabalhar.” Yaka, p. 379.
[181] - “Vivia na ansiedade de crença.” Yaka, p.
272.
[182] - “Aí sim, há partidos e grupos que lutam
pelos trabalhadores, que têm uma ideologia proletária segura é aí que se
prepara a revolução socialista.” Yaka, p. 380.
[183] - Yaka, p.122.
[184] - Yaka, p. 196.
[185]
- “Sacudida a cama de tábuas curvas de barril jaz desconjuntada no chão com
Isidro sobre as tábuas partidas, uma lasca espetada na barriga, mas que não era
ferida mortal”; Isidro foi enviado para Luanda de avião e “no meio do mar
abriram a portinhola do avião e lhe empurraram com o pé...” Yaka, p. 313 e 316.
[186] - “É que o Huambo não dá para viver. Está a
ver a minha cor, não é?” Yaka, p.280
[187] - “Os da casa não apreciavam mesmo nada a
intromissão do passado vergonhoso de Alexandre no sapalalo e desaprovavam o
convite feito ao mulato para viver com eles. “Yaka, p. 295
[188] - “Conheço estas reações por causa da minha
cor.” Ou “mas agora um tipo mais escuro é logo terrorista.” Yaka,
respectivamente, p. 300 e p. 301.
[189] - Por
pressão dos Semedos, Chico que tem consciência que “esse sangue negro sempre
foi uma mancha na família, exceto para o avô” (...) “já se via negro e protetor
de todos os brancos.” Yaka, respectivamente, p. 333 e p. 391.
[190] - Yaka, p. 391.
[191] - Yaka, p. 123.
[192] - “Depois de casada é que sou perfilhada?”
Yaka, p. 282.
[193] - Yaka, p. 42.
[194] - Devido ao extenso comentário desenvolvido
anteriormente, não faço aqui referência explícita a Oscar e Alexandre Semedo
nem a Acácio ou a Ernesto Tavares, que, à sua maneira, problematizam a relação
intercultural enquanto a maioria das restantes personagens a cristalizam de
forma primária.
[195] -
Estes dados “sont de nature politique, diplomatique, voire économique, et
correspondent à l’époque contemporaine du texte ; ce sont aussi les lignes de
force qui régissent une culture à un moment donné et dont l’examen permet de
voir si le texte est en conformité ou non avec une certaine situation sociale
et culturelle, à quelles traditions idéologique, culturelle, littéraire,
esthétique il correspond (...) ; quel imaginaire il exploite et à quel
imaginaire il s’adresse.” Op.cit. p. 69
[196] - Adelino Almeida, A partilha de África no
século XIX e a definição dos limites dos territórios portugueses, in Africana, Março, 1994.
[197] - Como refere Carlos Pacheco - historiador
angolano - em artigo publicado pelo “Público” (050595): “Angola reparte-se por
um mosaico de povos distintos entre si étnica e culturalmente, sendo que os
seus processos históricos se desenvolveram praticamente sem interrupção e de
forma autónoma, durante séculos até à Conferência de Berlim. A chamada
‘soberania colonial portuguesa’ circunscrita até então ao litoral e a umas
escassas centenas de milhas para o interior, pouco (ou nada) afetava esses
povos do vasto sertão que, longe de viverem sujeitos à Coroa portuguesa,
desfrutavam de limites de jurisdição territorial próprios.”
[198] - Wilhelm H. Franz, Sobre a articulação
dos modos de produção em Angola, in Análise
Social, vol. XIX, 1983.
[199] - Maria Manuela Lucas, Organização do
Império, in História de Portugal,
vol. V (direcção de José Matoso), Lisboa, 1993.
[200] - Este processo de libertar Portugal, e, mais
tarde, o Brasil dos “elementos nocivos” teve início nas primeiras décadas do
séc. XV e só terminou em 1954.
[201] - No que se refere ao papel dos degredados em Angola, cfr. Gerald J.
Bender, capítulo Os degredados e o sistema da colonização penal, in Angola sob o domínio português.
[202] - Em entrevista concedida a Michel Laban,
Pepetela alude precisamente aos seus antepassados “brasileiros”: O meu trisavô,
talvez, pertence à primeira leva de colonos que se instalaram em Moçâmedes -
parece, eu não posso confirmar, mas que vindo de Pernambuco, no Brasil,
parece...” in Angola - Encontro com Escritores,
p. 784.
[203] - “Todos os deportados (homens e mulheres)
deveriam ficar aprisionados nestes depósitos e dali eram enviados para
projectos de obras públicas.” G. Bender, op. cit., p. 120.
[204] - G. Bender, op. cit. p. 133.
[205] - Manuela Aguiar, in Políticas e
Estratégias para as Comunidades Portuguesa I, Univ. Aberta, 1993/94.
[206] - Luciano Cordeiro, Questões Coloniais, (org. por A. Farinha de Carvalho).
[207] - Estas deveriam ter ao seu serviço: um
comandante, um ou mais missionários, um médico (“naturalista” e “geógrafo”, se
possível), alguns mestres de artes e ofícios e alguns ajudantes, alguns
agricultores práticos. Estes deveriam instalar-se em casas e oficinas
construídas em “sítios salubres e aptos para a agricultura e comércio” e dispor
de máquinas, instrumentos, sementes e animais... Cfr. Ângela Guimarães, A questão colonial - introdução a um debate,
p.1085-1086, Análise Social, vol.
XIX, 1983.
[208] - Manuela Aguiar, op. cit.
[209] - Arnaldo Madureira, A colonização portuguesa em África - 1890 / 1910 -, p. 13.
[210] - Manuela Aguiar, op. cit.
[211] - Orlando Ribeiro, Destinos do Ultramar, p.68.
[212] - Em 1920, os brancos eram 20.700 enquanto em
1924, esse número atingia os 36.192.
[213] -
“Tout comme Norton de Matos, Vicente Ferreira (1926-1928) croit en l’avenir
blanc de l’Angola et à la colonisation ethnique de l’Afrique portugaise, grâce
à la fondation de familles blanches stables, le métissage lui paraissant ‘une
erreur grave’. Véritable théoricien de la colonisation blanche en Angola, il la
veut saine, robuste et agraire, selon des modèles fort proches de la
colonisation fasciste en Lybie.” René Pélissier, La Colonie du Minotaure, p.35.
Sobre a tese da colonização
étnica [apresentada por Vicente Ferreira, na 22ª subsecção do II
Congresso da União Nacional, em Maio de 1944], ver de Rui Ferreira da Silva, Racismo
e colonização étnica de Angola, in Revista
de História, Junho 95. Adepto da “colonização científica”, Vicente Ferreira
defende que a colonização seja levada a cabo pelo Estado, envolvendo:
capitalistas e empreendedores; técnicos e especialistas (emigrantes
temporários, contratados pelo Estado ou por empresas privadas que, no caso de
se dar aumento da população branca, acabariam por se tornar nos ‘criadores das
novas nacionalidades portuguesas’; trabalhadores rurais que devem constituir o
núcleo fundamental da ‘colonização étnica’. Defende a criação dos “casais de família”
[isto é, a exploração fundiária de tipo médio] e a colonização política [a
ocupação e exploração de terras menos férteis, mas, que por interesses
estratégicos, justifiquem o seu povoamento com população branca - a exemplo do
que aconteceu com a colonização promovida pelo Caminho de ferro de Benguela].
Partidário de um rigoroso segregacionismo
racial, Vicente Ferreira rejeita a miscigenação, e por isso condena a
colonização feita por “aventureiros e desclassificados” porque são eles que em
geral fomentam a mestiçagem, difundem doenças, mendigam e sobrecarregam as
obras de assistência.
[214] - Em 1927, o número de brancos já atingia os
42.843.
[215] - Em Angola, em 1950, só 2.746 brancos eram
agricultores: Congo - 415; Malange - 110; Bié - 270; Benguela - 1146; Huila - 805.
[216] - Em 1960, viviam em Angola 172.529 brancos,
isto é, 3,6% da população do território a civilizar. 62% desses brancos viviam
nas cidades. Do total de brancos, 50.921 tinham nascido no território.: 3153, em Benguela; 3118 em Moçâmedes;
8590, em Sá da Bandeira; 11761, em Luanda. Cfr.
R. Pélissier - La Colonie du
Minotaure, p. 32.
[217] - 9535 nascidos no território contra 8443
emigrantes, Pélissier, op.cit. p. 44-45.
[218] - Em 1960, só havia 3.103 [Destes, os brancos
estrangeiros seriam apenas 1820?] estrangeiros em Angola: 404 alemães
(comunidade que estabilizara desde 1940), plantadores de café e de sisal; os
restantes, eram quase todos missionários católicos (franceses, italianos e
holandeses) e, sobretudo, protestantes. A presença dos missionários, em
particular dos protestantes, era a mais preocupante para as autoridades
portuguesas pela influência que exerciam sobre os nativos.
[219] - Gerald Bender, op. cit., p.29: “Para o luso-tropicalismo é central a crença de
que os contactos culturais variados e intensivos dos primeiros habitantes de
Portugal originaram uma civilização singular capaz de existir em termos
amistosos com todas as outras civilizações.”
[220] - Gilberto Freyre (1933) - Casa Grande &Senzala, 10ª ed., p.17.
[221] - G. Freyre, op. cit., p.18.
[222] - Mas como refere G. Bender, devem ser
consideradas “duas importantes questões que determinam a relevância para as
afirmações luso-tropicais destes séculos de ocupação e contactos estrangeiros:
1) Serão a adaptabilidade e a assimilação de traços estrangeiros peculiares aos
Portugueses? 2) A assimilação de traços estrangeiros levará necessariamente ao
comportamento luso-tropical? Op.
cit. p. 29.
[223] - G.
Freyre, op. cit. p. 22.
[224] -
G. Freyre, op. cit. p. 29.
Na obra O Mundo que o Português Criou, Gilberto
Freyre retoma o argumento da singularidade
do homem português - produto de constante interpenetração de valores culturais
diversos e de abundante miscigenação - como factor decisivo do seu
comportamento no contacto com os outros povos. Destaca, nomeadamente: “a
tendência para assimilar elementos estranhos. E assimilá-los sem violência,
dada a oportunidade que sempre, ou quase sempre lhes tem dado, de se exprimirem.
De modo que a assimilação se faz docemente e por interpenetração.” E explica
que o facto de a colonização assentar na mestiçagem
“não permitiu nunca que se endurecesse em antagonismos absolutos aquela
separação dos homens em senhores e escravos, imposta pelo sistema de produção.
Nem que se desenvolvesse exageradamente uma mística de branquidade ou de
fidalguia. Op. cit., respectivamente, p. 36 e p. 41.
[225] - O mestiço
surgiria, deste modo, como a materialização da “perfection du processus
intégrateur prêté au lusotropicalisme.” Todavia, por exemplo em Angola, teoria
e prática divergiam: Em 1960, os mestiços estavam em regressão. E dos 53.392 mestiços existentes em Angola,
mais de dois mil seriam cabo-verdianos que, na Administração Pública, eram
preferidos aos mestiços angolanos porque mais bem assimilados. Cfr. René
Pélissier - La Colonie du Minotaure...,
p. 54.
[226] - G. Freyre - O mundo que o Português Criou, p. 46-47.
[227] - Mª Helena Ortega Ortiz Assumpção designa
este discurso como “um movimento de reavaliação
da memória cultural”, em que apesar da acção do colonizador e dos manis -
uma entidade mais antiga da nação angolana que detinha o poder religioso,
militar e económico, Kuntuala (Futuro, em português) avista, no final da peça,
a luz (a luz de Nanga) da independência nacional. In A identidade nacional
na dramaturgia angolana, Actes du
Colloque International, p. 52.
[228] -
Gerald J. Bender (1976): “Talvez pelo facto de os primeiros contactos
portugueses com os Bacongos terem sido os mais igualitários nos cinco séculos
de Portugal em África é que este período surge frequentemente citado pelos
escritores luso-tropicais como resumindo a natureza das relações raciais e
culturais de Portugal em África.” In Angola
sob o Domínio Português - Mito e Realidade, ed. Sá da Costa, Lisboa, 1980.
[229] - Mário António F. Oliveira, na palestra Uma primeira experiência de cooperação
entre a Europa e a África (Évora, Junho 1980) exalta essa cooperação do
seguinte modo: “aqui trazemos a experiência longínqua entre Portugal e o Reino
do Congo, a que não faltaram os atributos que hoje honram e enobrecem os actos
de cooperação mais dignos, desde o
escrupuloso respeito pela soberania nacional da outra parte à atenção rigorosa
e às prioridades por ela estabelecidas.” p. 35, in Reler África, Inst. de Antropologia da Univ. de Coimbra, 1990.
[230] - ver reflexão minha (não publicada) Que
futuro para a cooperação com África?, no âmbito do módulo “Políticas e
Estratégias para a Cooperação”, Out. 1994.
[231] - O que nos prova que não existe cooperação
plena: nela encontramos sempre o quadro
de referência cultural dos intervenientes, quer na retaguarda quer no
terreno, tornando extremamente difícil encontrar um mediador cultural capaz de assegurar a passagem entre esferas culturais diferenciadas. Ver Robert Muchembled, L’invention de l’homme moderne, éd. Fayard, Paris, 1988.
[232] - in Angola
- Apontamentos sobre a Ocupação e o Início do Estabelecimento dos Portugueses
no Congo, Angola e Benguela - Extraído de documentos históricos, por
Alfredo de Albuquerque Felner, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933, pp.
383-390.
[233] - D. Afonso reinou entre 1506 e 1543.
[234] - Essa intenção de D. Manuel I manifestou-se,
em particular, no capítulo religioso: ao fazer educar, em Lisboa, D. Henrique -
filho do rei D. Afonso -, que acabou por ser nomeado bispo de Utica pelo Papa -
o primeiro bispo africano.
[235] - “Há neste documento (o dito Regimento), como noutros, um calor de digna fraternidade que não
se repetiria muitas vezes na História das relações entre Europeus e Africanos
(...) Essas relações não poderiam apenas ter sido cimentadas pelos interesses
recíprocos - que os havia - mas também pelo catolicismo comum.” Mário Oliveira,
op. cit., p. 37.
[236] - Usurpador porque, de acordo com José
Redinha, a regra sucessória “é hereditária, matrilinear, cabendo ao primogénito
da irmã mais velha do chefe reinante, em virtude de a linha feminina defender a
estirpe e os direitos de sangue pela evidência da maternidade. (...) O sistema
matrilinear é observado para o efeito do direito sucessório, de cargos, de
títulos e até de ofícios.” p. 69, in Etnossociologia
do Nordeste de Angola, Ag. G. do Ultramar, Lisboa, 1958
[237] - Devido ao contacto com a cultura portuguesa
(batismo), “Nzinga-a-Nkuvu” passou a chamar-se D. João I, e o seu filho mais
velho, “Mbemba Nzinga”, D. Afonso, que tivera mais de dez anos de instrução em
Lisboa. “Mas o povo chamou-lhes sempre pelos seus nomes. “in A Revolta da Casa dos Ídolos, p. 18.
[238] - De acordo com Bender, op.cit., pp. 36-37:
“Enquanto nas duas primeiras décadas do contacto, cerca de 60.000 escravos
tinham sido retirados do Congo, de 1506 a 1575 foram exportados 345.000.
Inclusive, muitos sacerdotes, enviados para evangelizar a pedido de Afonso,
entregaram-se à prática lucrativa de comprar e vender escravos.”
[239] - Silveira terá morrido pouco depois da sua
chegada ao Congo.
[240] - “(...) Os estrangeiros, os que nos
trouxeram a guerra e a traição, as sotainas e a perfídia...” Op. cit., p. 17.
[241] - Op. cit., pp. 46-47.
[242] - “Negro burro”, “um cachorro assanhado”, referindo-se
a um dos elementos (Nanga) da “negralhada” Op. cit., pp. 85, 87. Também, o
Capitão, embora genericamente, se refere às mulheres como “lindas porcas”. p.
89. O Lopes trata os populares como
cães: “Soldados, matem esses cães!” p. 138. Anteriormente, Mpanzu-a-Nzinga
comparara a presença portuguesa no Congo ao convívio com uma “cobra venenosa”.
pp. 23-24
[243] - Op. cit., p. 57.
[244] - “A água benta era um feitiço grande.” (...)
“O Rei pensava que era uma força maior que a dos espíritos. Ele supunha que a
força dos portugueses vinha da água benta!” Op. cit., pp. 26-27.
[245] - O Padre “dizia que nós éramos pagãos, que é
uma doença que só se cura pelo fogo. Fiquei admirado, pois o fogo queima mas
não cura.” Op. cit., p.41
[246] - “0 primeiro
eleitor do Reino, o guarda dos espíritos dos antepassados.” Op. cit., p. 19.
[247] - Enquanto pela norma sucessória africana, o
rei deveria ser proposto pelo primeiro eleitor do Reino e aprovado pelo Colégio
eleitoral, a norma europeia consagrava a sucessão directa de pai para filho. É
neste contexto que Mpanzu-a-Nkuvu, o principal candidato, e sobrinho do Rei,
foi morto e substituído por D. Afonso, com o apoio dos canhões portugueses e
dos principais congoleses - manis -, mais interessados no comércio dos escravos
e do marfim do que em preservar as tradições.
[248] - Tal como afirma Bender, op. cit., p. 37: “O
seu regimento (...) constituía um
plano magistral para a aculturação dos Bacongos.”
[249] - A réplica do ferreiro Nimi mostra bem a
intenção de Pepetela de (re)criar a implantação do sistema matrilinear:
“Desconfiar do meu sobrinho, eu? Do filho mais velho de minha irmã? Daquele que
receberá tudo o que hoje é meu e que de mim já está a receber a arte de
trabalhar o ferro, a minha arte? Estás louco. “Op. cit., p. 16
[250] - Novamente o ferreiro Nimi: “(...) Os
portugueses e os canhões colocaram-se, claro, do lado do usurpador. Este, com
um exército menos numeroso, mas com os canhões, conseguiu vencer. O herdeiro
legítimo ficou com os seus homens, morto no terreno de combate.” pp. 24-25,
op. cit.
[251] - Depois de ter sido vendido por seu tio,
Masala é-lhe devolvido, como refere Mani-Vunda: “O Mani-Soyo ficará contente de
o reaver... Além disso, é sobrinho dum mani. É um gesto de boa vontade em
relação ao Mani-Soyo...”, op.cit., p. 135.
[252] - Um bom exemplo do discurso
luso-tropicalista é nos dado por José Osório de Oliveira: “Simpatia pelos
Negros, não creio que outro povo colonizador tenha tido mais do que o nosso. O
que não tivemos. até há pouco tempo, foi curiosidade científica pelo Negro, exatamente
por o considerarmos nosso semelhante, e não objecto de análise.” p. 20, Contribuição portuguesa para o conhecimento
da alma negra, Lisboa, 1952.
Também José Redinha sintetiza eloquentemente a
nossa original visão do mundo: “A colonização portuguesa, sinónimo de cultura,
bem expressa no seu método de assimilação cultural, caracteriza-se por factos
da maior importância, como sejam a ausência de ódios religiosos, de teorias de
espaço vital, de sistemas de segregação, ou dessas deploráveis atitudes etnocidas
modernamente sistematizadas sob a designação de genocídio.” Op. cit., p. 212.
[253] - É durante esta revolta que o tenente João
Carlos de Saldanha de Oliveira e Daun, conde de Almoster é morto, tendo
provocado no Portugal de 1897-1898 uma enorme emoção.
[254] - Mutu-ya-Kevela, na perspectiva dos
missionários norte-americanos, revelou-se um reformista, defendeu o fim da
arbitrariedade colonial e a liberdade, opôs-se ao comércio de escravos e de
aguardente.
[255] - Cfr.
René Pélissier - História das
Campanhas de Angola - resistência e
revoltas 1845-1941, vol. II, p. 81
[256]
- Apesar da “velha aliança” com Inglaterra e de esta ter dado um contributo
essencial para a construção do caminho de ferro de Benguela, a acção educativa,
social e espiritual dos missionários ingleses e norte-americanos foi sempre
associada pelos portugueses ao fomento da sublevação dos nativos, gerando-se,
sobretudo, nos momentos de maior crise, uma atitude colectiva de anglofobia.
Porém, esta atitude não era mais do que um aspecto particular da xenofobia
portuguesa que, apesar de algumas exceções, sempre limitou a entrada e
controlou a presença de estrangeiros
em Angola. Significativamente, esta atitude, cujo fundamento é de raiz
religiosa, materializou-se respectivamente num estereótipo e numa personagem-tipo: “a gangrena protestante” e o
“catequista /enfermeiro protestante”.
[257] - Os espiritanos
franceses - de origem alsaciana - instalaram-se inicialmente na Huíla, em 1881,
por iniciativa do Pe. Duparquet, com o objectivo de barrar a passagem aos
protestantes alemães, que tinham aberto duas missões no Cuanhama. Como agentes
civilizadores instruíram uma pequena camada de futuros artífices, empregados
comerciais e outros colaboradores do mundo branco.
A acção dos espiritanos, à semelhança de outras missões católicas, foi bem
aceite pelos portugueses, na medida em que estes não punham em questão o modelo
de colonização português: um modelo fundado na expansão do catolicismo e, por
isso, menos aberto ao comércio livre, à livre iniciativa, à emancipação do
homem.
[258] -
René Pélissier, op. cit. p. 83.
[259] - A força inicial de Pais Brandão era
composta por 42 soldados de primeira linha e 36 de segunda, uma peça, 100
obuses e 40.000 cartuchos. Mutu-ya-Kevela, por seu lado, teria 6.000 homens,
mas mal preparados para se opor ao fogo inimigo.
[260] -
René Pélissier, op. cit. p.92-94.
[261] - Samacaca há mais de 10 anos que constituíra
um pequeno bando sempre pronto a pelejar e que durante a construção do caminho
de ferro de Benguela se revelou um poderoso obstáculo à sua prossecução.
[262] -
René Pélissier, op. cit. p.191-192. Estas páginas são uma fonte
fundamental para Pepetela, quando dá a palavra ao soldado-testemunha que, bêbedo, narra a humilhação portuguesa.
[263] -
Yaka, p. 109.
[264] - René
Pélissier, op. cit. p.134-137.
[265] - Segundo o “comando das forças em operação
(...) os insurretos batem-se bem e são arrogantes, facto que tende a demonstrar
que são dirigidos por Alemães que atuam por intermédio de “nativos civilizados”
e assimilados. “René Pélissier, op. cit. p. 47.
[266] - Este é um outro comportamento repetidamente
atribuído aos criados africanos em situações de sublevação e que efetivamente
parece um estereótipo gerado pelo
próprio imaginário do colonizador, na medida em que nas restantes situações
estes criados são dedicados e dóceis.
[267] - Os Ovimbundos temiam, contudo, ao embarcar
do Lobito e de Benguela que alguma traição os encaminhasse para as roças de S.
Tomé. Cfr. René Pélissier, op. cit. p. 56.
[268] - Sobre Bula Matari (Bulamatari) não se sabe
nada de concreto: seria um desconhecido ou o “misterioso Dr. Pierre,
“luxemburguês” e assimilável, portanto, a um belga? Este desconhecido teria
dado ordem para que fossem mortos todos os brancos e todos os negros que
soubessem português.
[269] - “As montanhas tinham sido testemunhas de
suplícios horrorosos. O sangue avermelhara a terra até às fronteiras do
Bailundo. O incêndio reduzira a cinzas tudo quanto o braço humano havia
edificado.” António Leite de Magalhães, Província
de Angola. Distrito do Cuanza-Sul..., p. 16.
[270] - René Pélissier: “Um cuvale era um homem que
não se vergava nem perante os cipaios nem perante os brancos pelo simples
motivo de que ninguém ousava aventurar-se nas secas montanhas onde dissimulavam
os seus bois.” Op. cit. p. 268
Hoje, como no passado, “le groupe de gens qui se
disent et sont dits Kuvale est formé de
populations qui pratiquent l’élevage et une maigre agriculture à partir de
rivières le plus souvent à sec qui à la saison des pluies portent une partie
des abondantes précipitations des plateaux de Benguela et de la Huila jusqu’à
l’Atlantique (...) Ils constituent avec les “Mundombe” et les Kwando au Nord,
les Nguendelengo au Nord-Est, les Kakahona et les Ndimba au Sud-Est, les
Kwanyioka et les Himba au Sud , les formations sociales de langue et références
culturelles herero qui aujourd’hui, à
la suite de la partition coloniale et de la formation étatique actuelle, se
retrouvent en territoire angolais.” Ver R. Duarte de Carvalho, Les pasteurs
Kuvale, in Politique Africaine -
L’Angola dans la guerre, nº57, p. 87.
[271] -
“On a sans doute réactivé avec la dernière énergie toutes les possibilités de
circulation des personnes et du bétail par les voies de la succession et de
l’alliance, des classes d’âge et sur toutes les bases de solidarité. Toute la
force de travail disponible fut parallèlement investie dans la pratique de
l’agriculture du maïs, qui dans des conditions normales répugne nettement aux
hommes, dans le travail aux docks du port de Moçâmedes (aujourd’hui Namibe),
canalisant avec obstination et ténacité le produit de ce travail vers
l’acquisition de bétail. Tout cela permit qu’en peu de temps les Kuvale
rétablissant leur manière de vivre, consacrée à la possession et à la
reproduction de bétail. Dès ce moment, la prestation de services à tiers se vit
de nouveau réduite au minimum suffisant pour payer en liquide l’impôt - qui
semble d’ailleurs avoir été déjà au départ du malheur souffert en 1941.” R.
Duarte de Carvalho, op. cit. p. 91.
[272] -
“ Mweneputo, expression composée dans
laquelle mwene signifie maître et puto Portugal. Ver R. D. de
Carvalho, op. cit. p.89.
[273] - Com a independência de Angola, os cuvales
recuperaram o território e o gado abandonados pelos europeus, e, ao
alistarem-se nas Fapla, puderam retomar a antiga prática da razia, visto que a
cultura cuvale continua a identificar guerra e razia.
[274] - “Os terroristas? Querem expulsar os
brancos, destruir as fazendas, queimar as casas. Foi o Lumumba que mandou.
Yaka, p. 289.
[275] - Em torno desta operação existe ainda hoje
controvérsia, na medida em que quer o MPLA quer a UPA reivindicam a sua
autoria. Segundo o historiador Carlos Pacheco quem organizou a operação terá
sido a UPA, com apoio de organizações norte-americanas. A UPA terá sido criada
em 1954, sob a sigla UPNA (União das Populações do Norte de Angola). Em 1960, a
UPA detinha o controle da situação política em Luanda e, face ao aumento da
repressão, defende a acção directa contra o regime colonial, com ataques
simultâneos em várias regiões, derrube de postes eléctricos e a tomada de
postos emissores. Apesar do desacordo de Holden Roberto, que desconfiava da
fidelidade dos mulatos ao movimento nacionalista, com o apoio do American Committee on Africa - através,
sobretudo, da acção das missões protestantes e, em particular, de Melvin Blake
-, uma centena de operários negros lançou o ataque quixotesco que provocou uma
violenta reação portuguesa. Todavia, esta operação foi reivindicada pelo MPLA,
reforçando, deste modo, a tese salazarista da mão vermelha de Moscovo. Cf.
José Eduardo Agualusa, in “Público” de 4 de Fevereiro de 1995.
João Paulo Guerra, sem partilhar
plenamente a tese do MPLA sobre a autoria da operação, não deixa de aceitar os
objectivos definidos por Mário de Andrade sobre a insurreição: “libertar
dirigentes nacionalistas presos” e “aproveitar o impacto da presença dos
jornalistas estrangeiros em Luanda à espera do Santa Maria.” in Memória das Guerras Coloniais, p. 177.
[276] - De acordo com Rui Ramos, a 5 de Fevereiro
de 1961, teriam sido mortos 5.000 africanos. Por sua vez, no dia 15 e 16 de
Março do mesmo ano, a UPA teria eliminado 2.000 colonos e 10.000 bailundos. Cf.
As décadas da sangria, in Expresso,
de 2 de Fevereiro de 1991.
[277] - João Paulo Guerra citando o missionário
Malcom McVeeigh, op. cit. p.178-179.
[278] - Cf. Adriano Moreira, Política de
Integração, in Boletim Geral do Ultramar, nº 434-435.
[279] - Adriano Moreira, op. cit., p. 12.
[280] - Adriano Moreira, op. cit. p. 14.
[281] - Adriano Moreira, op. cit. p. 19.
[282] - O
mês de Abril (de 1968), mês da morte do herói nacional e patrono da juventude
-Hoji ia Henda- tornou-se, para o MPLA, num símbolo da luta pela independência
de Angola.
[283] - Para Angola foi traçado o seguinte plano:
cessar-fogo com todos os movimentos de libertação; governo provisório de
coligação, em que estariam representados os agrupamentos
étnicos mais representativos, o que obviamente incluía a etnia branca; dois anos mais tarde,
eleição de uma Assembleia Constituinte por sufrágio universal, que faria a nova
Constituição e marcaria novas eleições legislativas.
[284] - Os BM 21 (lança-roquetes de 40 canos) eram
conhecidos na gíria local pelos “Mona Caxitos).
[285] - Como recorda Vieira de Almeida: “A maioria
teimava em permanecer, porque não tinha percebido logo o que se estava a
passar: oriundos de meios pobres, pouco
cultos, tinham-se estabelecido em Angola como se estivessem no Minho ou em
Trás-os-Montes. É provável que nunca se tivessem reconhecido numa Angola
independente. Cf. Público Magazine de
2 de Julho de 1995.
[286] - À determinação de Gonçalves Ribeiro terá
ficado a dever-se em grande parte o êxito da Operação de Repatriamento de
Angola. Gonçalves Ribeiro abandonou Angola às 23 h e 55 m do dia 10 de Novembro
de 1975.
[287] - Sobre a história do termo “etnia”, ver Catherine Coquery-Vidrovitch - Du bon
usage de l’éthnicité, in Le Monde
Diplomatique de Juillet 1994 - que explica a diversa e frequentemente
contraditória utilização do termo desde 1787: até meados do século XIX, as
“etnias” eram os povos não cristãos (os “pagãos”; os “selvagens”); por volta de
1880, com o surgimento do imperialismo colonial, o termo é recuperado pela
etnografia, sendo popularizado pelos investigadores alemães a partir de etnikum, gerando uma enorme confusão
entre o sentido racial, linguístico e psico-social; com o início da
descolonização, nos anos 50 deste século, os antropólogos regeneraram-lhe o
sentido ao defenderem a ideia de que os povos pré-coloniais tinham, como os
outros, uma história tão digna de interesse como os outros.
[288] - Cf. Mário António F. Oliveira, O
Português em África: Língua de élites ou língua de massas? in Reler África, p. 390. De notar que não
há nenhuma certeza sobre o número efectivo de falantes do português em Angola.
Por exemplo, referindo-se ao período pós-independência, e a propósito das
vantagens do ensino do Português como L2 em Angola, Pilar Vasquez Cuesta caracteriza a situação
linguística angolana do seguinte modo: “Daí que o ensino do português tenha de
distinguir entre esse escasso 20% de falantes que têm o português como língua
materna e o restante 80%, integrado por monolingues ou poliglotas nas
diferentes línguas africanas do país e indivíduos que, tendo como materna uma
língua africana, possuem conhecimentos mais ou menos superficiais da portuguesa.”
Ver O Ensino do Português enquanto Língua 2 em Angola, in Angolê, nº1, Março de 1990.
[289] - No essencial, a situação do português não é
diferente da do francês ou do Inglês, como refere François Grosjean, Life with two
languages, in Introduction to
Bilingualism: “English and French are barriers between the elite (an
estremely small minority, often educated in Britain and France) and the masses.”
[290] - Ver René Rodrigues da Silva, Síntese da
Situação Educacional em Angola, 1966: Entre 1957 e 1966, o número de alunos
que frequentaram as escolas angolanas quase que quadruplicou, apesar do sucesso
escolar raramente ultrapassar os 55%; para o ensino primário, o número de
estabelecimentos de ensino triplicou, tendo quase quadruplicado o número de
professores, numa campanha designada levar
a escola à sanzala. Da leitura desta Síntese fica, porém, uma
certeza: apesar do ensino em Angola “não deixar de considerar as
características da realidade sociológica da Província”, sobretudo, na
pré-primária e na primária, o facto é que todo o aluno que entrasse na escola
ficava sujeito “ao plano nacional português”. E note-se que a classe
pré-primária, 1ª classe do ensino infantil, instituído em 1927 pelo Alto-Comissário
Vicente Ferreira, visava a prática do uso
oral corrente da língua portuguesa, independentemente da língua materna de
cada aluno.
[291] - De acordo com dados referentes a 1990, e
sendo o português língua oficial de
Angola, o analfabetismo rondava os 58,3%; a taxa global de insucesso atingia
50,2%, com a repetência a 25,9% e a taxa de abandono escolar a 24,3%.
[292] - Cf. Jonuel Gonçalves, Angola - o retrato
de um mosaico etno-cultural, in Público
de 31 de Maio de 1991. Ver também Mário António F. Oliveira, Línguas de
Angola. O Quimbundo, op. cit.
[293] - Para
melhor compreendermos, no passado, a resistência
à ocupação portuguesa, e, no presente, o conflito
com o poder central, é importante recordar, como refere Mário A. Oliveira, “que
entre os Bundos, mais do que entre quaisquer outras populações de Angola, a alfabetização nem sempre foi simultânea
com a lusofonização.” Op. cit. p. 77.
[294] - Embora o Presidente angolano, Agostinho
Neto, no discurso da sessão solene de proclamação da União de Escritores de
Angola, tenha afirmado: “O uso exclusivo da língua portuguesa, como língua
oficial, veicular e utilizável actualmente na nossa literatura, não resolve os
nossos problemas.” in Manuel Ferreira, Que
futuro para a Língua Portuguesa em África?, p. 42.
[295] - Françoise et Jean-Michel Massa, Mondes
lusophones d’Afrique, écritures lusographes, in Revue de Littérature Comparée, janvier-mars 1993 : “Presque jamais
le portugais n’est (ou n’était) langue maternelle. Toutefois grâce à un
enseignement dopé depuis l’indépendance, grâce au prestige de l’école, à la
radio (et la télévision quand elle existe) l’aire du portugais gagne
spectaculairement du terrain.” p. 72.
[296] - Mário António Oliveira, op.cit. p. 75.
[297] - É preciso tomar em consideração que o
colonizador na sua relação com a colónia, a
passou a ver como uma parte de um todo, como uma província de uma nação multirracial, cuja língua -o português- deveria desempenhar
um papel fundamental na consolidação de uma frágil fronteira permanentemente ameaçada do exterior, e, quantas vezes,
do interior. Ora a fronteira
reivindicada pela lusofonia parece
sofrer da mesma fragilidade da pretérita e suposta nação multirracional.
[298] - Como refere, numa visão optimista, Manuel
Ferreira ao reportar-se às opções governamentais dos PALOP: “A língua
portuguesa como língua oficial, e as
línguas maternas como meios de expressão originária da cultura africana e
meio de comunicação fundamental para as populações, aguardando-se a oportunidade material para a concretização de acções
capazes de as tornar num instrumento na aprendizagem da leitura e veículo de
outros saberes elaborados.” op. cit. p. 23.
[299] - Obra publicada:
|
As Cinco Vidas de Teresa (1962), in Novos Contos de África, col.
Imbondeiro, Sá da Bandeira Muana Puó (1969), 1ªed., ed. 70, 1978; 2ª ed. D.
Quixote, 1995 As aventuras de Ngunga (1972), 1ª ed., ed. 70, 1976. A Corda (1976), U.E.A., 1978. A revolta da Casa dos Ídolos (1979), 1ª ed., ed. 70, 1980. Mayombe (1971) U.E.A.; ed.70, 1980. Yaka (1983), ed. D. Quixote. O Cão e os Caluandas, ed. D. Quixote, 1985. Lueji, o Nascimento dum Império, D. Quixote, 1990. A Geração da Utopia, ed. D. Quixote, 1992. O Desejo de Kianda, ed. D. Quixote, 1995. |
[300] -
Mikhaïl Bakhtine (T. Todorov / M.
Bakhtine le principe dialogique) p. 51-52.
[301] -
Daniel-Henri Pageaux, op. cit. p. 69.
[302]
- Entrevista a Rodrigues da Silva, JL
de 29 de Março de 1995.
[303] - O escritor afirma-se "furiosamente
benguelense", assim acentuando "um certo bairrismo" anti Luanda,
que remonta ao séc. XVII quando aquilo que hoje designamos por Angola estava
dividido entre a colónia desse nome e o reino de Benguela.
O conquistador de Benguela
terá sido Manuel Cerveira Pereira, chegado àquela terra em 1617, depois de
anteriormente ter sido um odiado governador de Angola. Ilibado das graves
acusações que lhe eram feitas, o rei Filipe nomeou-o, em 1615, governador e conquistador
de Benguela, que passou a gozar de estatuto independente de Luanda.
Sobre a atribulada vida do
primeiro governador de Benguela, ver Pepetela: Cidade das Acácias Rubras,
Público de 16 de Maio de 1993; O
Conquistador de Benguela, Público
de 27 de Novembro de 1994.
[304] - Pepetela: “Lembro-me que li os anarquistas
- com 12, 13 anos de idade... Os Bakunine e tal, os portugueses do
anarco-sindicalismo, que depois desapareceram. (...) O meu pai tinha uma
biblioteca razoável de romances clássicos. (...) E eu sempre li muito (...) e
penso que isso começou a caldear certas ideias, sei lá, de igualdade,
fraternidade, Revolução Francesa, a literatura dessa fase - Saint Simon,
Proudhon.” p. 780, in Michel Laban, Angola
- Encontro com Escritores, II vol.
Não é difícil encontrar ecos das fontes e do
pensamento veiculado pelas obras mencionadas no desenho de personagens como
Acácio (um tio-avô, que fora degredado para Angola por razões políticas, e o
tio jornalista) ou Óscar Semedo (o pai de Alexandre Semedo) em YAKA. A educação
de Alexandre Semedo reflecte claramente a de Artur C. M. P. dos Santos.
[305] - “Chego ao Lubango e encontro uma sociedade
em que o racismo era a nota predominante.” (...) “Lubango e Huambo deviam ser
as cidades mais racistas de Angola.” in Michel Laban, op.cit. p. 781 e 783.
Este confronto entre cidades está bem expresso em YAKA, quando Chico - neto
mestiço de Alexandre Semedo - foge do Huambo para Benguela, porque, apesar de
assimilado, se sentia totalmente discriminado. Por outro lado, é, sobretudo, no
Lubango que o jovem Artur Santos descobre uma outra diferença, não de cor, mas entre brancos nascidos em Angola e
brancos oriundos da metrópole, importante na construção de algumas
personagens de YAKA, como, por exemplo, Bartolomeu Espinha: o branco do Lubango era “um pequeno
agricultor em Portugal, um explorado, de repente tinha terras e tinha pessoas
em quem mandar... Eu acho que é o pior
tipo de gente que há, é aquele que vai defender os privilégios até à morte.”
in Michel Laban, op. cit., p. 783.
[306] - Pepetela: “Porque era o único que falava de
Angola na sua plataforma eleitoral. Todos os outros falavam de Portugal e das
colónias como parte integrante de Portugal. Ele começava a separar Angola. in
M. Laban, op. cit., p. 782.
[307] - Na Casa dos Estudantes do Império conheceu
ou reencontrou Costa Andrade, Daniel Chipenda, Júlio de Almeida, Paulo Jorge,
Portela Santos, Carlos Ervedosa ... que o “orientaram” para a área da
literatura.
[308] - Romance publicado em 1992.
[309] - É na Mensagem que publica alguns
contos. Em 1962, publica em Novos Contos
de África, As cinco Vidas de
Teresa.
[310] - Participou, em 1964, na criação do Centro
de Estudos Angolanos com “o Abranches, o Adolfo Maria, o Kasesa, e o João
Vieira Lopes” e cujo objectivo era produzir documentação sobre Angola, de modo
a “fazer o levantamento de (...) todas as áreas possíveis da realidade angolana
(...) e também ajudar o MPLA no sentido da propaganda exterior.” in Michel
Laban, op. cit. p. 789.
Este Centro de Estudos em
1969 foi transferido para Brazzaville, tendo a sua atividade sido muito
reduzida a partir de 1972.
[311] - Nessa altura, assinava Carlos Pestana.
Antes de passar a assinar Pepetela, ainda assinou Artur Pestana
[312]
- "A consciência desse destino literário possui-a o escritor desde a
adolescência em Angola, quando se lhe revelam os brasileiros Graciliano Ramos,
Jorge Amado e José Lins do Rego, ou desde Portugal onde descobre Hemingway, com
Faulkner, Steinbeck e Horace McCoy,
uma das suas referências (ao lê-lo estamos sempre a vê-lo como
personagem principal, e ele escreve sobre o quotidiano como se fosse ao ritmo
do próprio dia." Em Portugal, Pepetela descobre também Eça
("foi o escritor que me tocou mais", responsável pela reprovação na
disciplina de Literatura Portuguesa, no exame de 7º ano no Liceu Pedro Nunes.)
Ibidem
[313]
- "Independentemente do dever patriótico, sentia que a guerrilha me era
necessária como experiência literária. E a literatura foi sempre o que eu quis
fazer. O resto aconteceu em função disso. Ibidem.
[314] - As
aventuras de Ngunga (1972) são
expressão dessa preocupação didática... o mesmo acontecendo, de certo modo com
a peça de teatro A Corda (1976).
[315] - Mayombe
(1971) é talvez a obra que melhor exprime as contradições vividas pelo
comissário político, Pepetela.
[316] - Esta participação na acção militar
encontra-se, também, referenciada em A Chana (1972), 2ª parte de A Geração da Utopia.
[317] - Entrevista ao
FORUM
[318] - De que se orgulhava, como podemos antever
pela apreciação que faz do trabalho realizado: "Até 1980, havia escolas
nos sítios mais recuados do país, onde nem havia militares, polícia ou
administrador local. Os livros escolares eram distribuídos gratuitamente. Um
milhão de adultos estava alfabetizado." Em termos de política educativa
defendia: a ligação da Escola ao Meio; o aproveitamento das línguas locais; o
respeito pela tradição.
[319] - Enquanto esteve no Ministério da Educação,
fotocopiou e leu toda a documentação, sobretudo, histórica que encontrou
referente à região de Benguela. E, principalmente, tomou como referência
principal as obras do historiador René Pélissier.
[320] - YAKA “é uma alegoria ou um rito da
nacionalidade. Por isso, a estátua (...) é dali, desse povo aparentado com os
jagas - aparentado ou não, porque ninguém sabe muito bem quem são esses jagas
-, mas é para dar uma ideia, de
facto, da unidade - que talvez seja
um termo forte de mais -, mas de pontos
comuns em todo o território...” in Michel Laban, op. cit. p. 803.
[321] Esta tese defendida por muitos etnólogos é,
no entanto, problematizada por Mesquitela Lima, para quem o grupo Jaga - encontrado por Battel, entre
1600-1601, próximo da foz do rio Keve, onde, em 1617, seria fundada
Benguela-a-Velha /Porto Amboím - “poderia não ser mais do que (...) um grupo de
caravaneiros ou uma horda de guerreiros, que fazia “razzias” aos outros povos.”
in Os Kyaka de Angola, p.174-175.
A primeira referência aos Jagas é feita por Almada, em 1594, no
“Relatório Anual dos Jesuítas”, ao afirmar que os Jagas eram Iakas e que em
Angola, eram conhecidos pelo termo ginda.
[322] - Michel
Laban, op.cit. p. 800.
[323] - Op.
cit., p. 230
[324] - Literatura
e Poder na África Lusófona, p. 24.
[325] - J.C. Venâncio em Uma perspectiva etnológica da literatura angolana, p. 121, estabelece
que foi a “geração de 50" que lançou as bases culturais da mudança
socio-política, que é a partir desse momento que se pode falar de uma
"literatura angolana e duma estética da angolanidade."
[326] - Michel Laban, Encontro com Pepetela
(Luanda, 4-4-1988), in Angola - Encontro
com Escritores, II vol., p. 771
[327] - Sobretudo obras como A Corda e Mayombe cujo
objectivo era a mobilização das pessoas, ou mesmo como acontece com As aventuras de Ngunga, escritas para
serem utilizadas como “textos” nas escolas... Todavia, a preocupação com a
realidade colonial já se revelara em As
cinco vidas de Teresa, que denuncia o preconceito racista, numa sociedade
benguelense extremamente mestiça. Descreve os costumes brancos, sempre prontos
a abusar das jovens pretas. Manuel, escriturário, rapaz branco para quem a
educação aproxima Teresa das raparigas brancas. Mas “à posse feliz da virgem
segue-se o rictus de nojo... perante o beijo procurado por Teresa”. Manuel
rejeita com um último argumento: “Até seria despedido da firma se casasse com
uma negra.”
Em As
Aventuras de Ngunga, Ngunga, órfão de 13 anos - que fora adoptado e
explorado pelo presidente Kafuxi, responsável pela população de uma série de
aldeias -, queria saber se em toda a
parte os homens eram iguais, só pensando neles. Ngunga que “nunca tinha
visto um branco”, criado do chefe da Pide, recusa o patrão colonialista. A
escola era uma grande vitória sobre o
colonialismo.
[328]
- De certo modo, Pepetela realiza, nesta fase, o tópico clássico de “numa mão a
pena e na outra a espada”.
[329] - Embora confrontada com uma matriz
ideológica aparentemente anticolonialista e, consequentemente, antiportuguesa.
[330] - Mayombe,
pp. 139-140, 3ª ed., ed. 70, Lisboa, 1988.
[331] - in
Michel Laban, pp.814-815.
[332] - in
Michel Laban, p. 815.
[333] - no sentido da “procura” quotidiana da
Heimat (pátria), tal como é definida pelo filósofo alemão Ernst Bloch.
Neste contexto, a “procura” da angolanidade surge intimamente ligada à defesa
da liberdade. Cfr. Entrevista Pepetela: um construtor da angolanidade,
in José Carlos Venâncio, Literatura e
poder na África lusófona, pp. 95-99.
[334] - in Michel Laban, p. 812.
[335] - Annette Endruschat, A língua falada como
força motriz do desenvolvimento do português angolano, p. 8, in Angolê, nº1, Março de 1990.
[336] - Face à transformação do português de
Angola, Pepetela mostra-se muito mais comedido do que outros escritores
angolanos (p. ex. Óscar Ribas, Jofre Rocha, Uanhenga Xitu, Boaventura Cardoso,
Luandino Vieira...):” Há uma estrutura de palavras - certas palavras que hoje
são nacionais: maka, mujimbo..., que provavelmente nunca mais se perderão, não
vão ser substituídas por outro modismo qualquer. Ao passo que há muitas
palavras ou expressões, ou até estruturas, que podem ser ocasionais. E,
portanto, há o risco de uma pessoa utilizar isso num livro e, daqui a dez anos,
ser preciso pôr uma nota de rodapé...” Michel Laban, op. cit. p. 815-816.
[337] -
Daniel-H. Pageaux - La littérature
générale et comparée, p. 69.
[338] - M.
Bakhtine, op. cit., p. 51-52.
[339]
- A propósito da diferença de estatuto entre autor e escritor, cf.
Carlos Reis, in O Conhecimento da
Literatura, p. 54-55.
[340] -
No sentido que L. Goldmann atribui ao conceito “visão do mundo” : “ ensemble
des aspirations, des sentiments, et des idées qui réunit les membres d’un
groupe et les oppose aux autres groupes.” in Théorie littéraire, Sociologie de la littérature par Edmond
Cros, p. 143.
[341] - A diferença, entendida enquanto traços diferenciais, cuja importância
reside não na substância em si, mas na significação que lhe é atribuída ao
longo dos tempos. Cf. Albert Memmi, Le
racisme, p. 55-56.
[342] - Toda a passagem
supõe uma porta ..., porém, no
caso angolano, ela parece ter-se fechado já que as últimas obras de Pepetela -
como acontece com outros autores angolanos - se tornaram discurso de desilusão.
[343] - Paradoxalmente, esta explicação, pelas circunstâncias em que o escritor se vê obrigado a
publicar a sua obra e pelo facto de ela atingir cada vez mais um público não
angolano, surge, sobretudo, como uma poderosa esquematização do conflito
colonial.
[344] - A noção ixiptla é nos explicada
por Gruzinski, e citada por Michel Maffesoli, La Contemplation du Monde - figures
du style communautaire, p.110-111.
[345] -
Modelo estético, no sentido em que M. Maffesoli define “estilo estético” : “La
vie comme oeuvre d’art, en quelque sorte, ou encore l’esthétique comme manière de sentir et d’éprouver en commun.” Op.
cit., p. 45
[346] - Neste sentido, a imagem é portadora de cultura, na medida em que proporciona uma
atitude radicalmente diferente da atitude de domínio. A imagem remete para a Verwindung heideggeriana, visto que
permite retomar, aceitar, distorcer elementos arcaicos em uma situação
contemporânea..., isto é, em vez de uma atitude de discriminação, favorece o
“sentir com”. Cf. M. Maffesoli, op. cit., p. 105.
[347]
- Apesar de habitar o sapalalo -
símbolo do colonialismo - Alexandre Semedo acaba por acumular no quarto uma
grande quantidade de objetos “familiares” de YAKA: punhal cuvale, esteiras,
cestarias, máscaras, cinzeiros com esculturas de animais, quindas, mobília de
verga, etc. Mesmo no jardim, encontramos uma pitangueira e uma mangueira.
[348] - “Também pressinto (...) que ela fala duma
compreensão entre os homens. (...) Já estamos a lutar juntos, homens de raças
diferentes.” Yaka, p. 388-389.
[349] - A transfiguração é a passagem de uma figura a outra. Neste sentido, o romance YAKA -
enquanto imagem - tem como duplo
objectivo legitimar a actual presença
branca, porque herdeira da dissidência,
que lentamente aprendera a “sentir com” e, por outro lado, divulgar essa transfiguração,
porque, como refere M. Maffesoli, “il n’y a pas de produit sans une image qui le fasse connaître et
permette de le diffuser ou de le vendre.” Op. cit. p.111.
[350] - Relembremos, todavia, que Alexandre Semedo,
entre 1917 e 1940, interrompe as suas “conversas” com a estátua Yaka.
[351] - Como vimos em Yaka, o medo é um dos traços caracterizadores de personagens centrais como Oscar
Semedo, Alexandre Semedo, Agripino de Sousa, Xandinho, Chico, Tuca, Soba Moma.
Apesar da diferença de cor, o medo é, em cada caso, expressão da
situação de minoria: minoria branca,
minoria mestiça e minoria negra assimilada.
[352] - Estratégia essa alicerçada no luso-tropicalismo freyriano.
[353] - Como vimos, em A cor do Outro, a
propósito da relevância da cor como
isotopia classificadora e fundadora de uma diferenciação racista.
[354]
- O discurso do colono branco recorre, em particular, a campos
semânticos específicos -a cor, a religião, a instrução, o sexo - para criar a
imagem de inferioridade do outro que lhe permita afirmar a sua superioridade racial.
[355] - As múltiplas revoltas contra a presença
branca, sobretudo, contra o modo de agir do colonizador, serviram
sistematicamente para que as autoridades, ou os próprios colonos, levassem a
cabo genocídios de maior ou menor dimensão.
[356] - Albert
Memmi, op. cit. p. 50.
[357] - O complexo de inferioridade que na
metrópole marcava o futuro colono / emigrante português - pobre, analfabeto;
degredado ou exilado - encontra nas colónias o terreno adequado à superação
dessa inferioridade, reproduzindo, em grande parte, ou aperfeiçoando os métodos
de que fora vítima ao longo dos séculos: o eterno explorado torna-se no explorador
implacável, porque, apesar de tudo, continua na situação de minoria.
[358]
- François de Medeiros :
“L’accoutumance qui s’est produite des siècles durant, avec la répétition des
clichés abondamment orchestrés par les encyclopédistes dans les livres de
merveilles et les auteurs de moralités et d’allégories sommaires, semble avoir
laissé des traces dans la mentalité de la société médiévale et préparé une
entreprise de domination.” Op. cit. p. 268.
[359] - No sentido em que o sistema modelizante é definido por V.V. Ivanov: “o programa de
comportamento do indivíduo ou da coletividade.” Cf. Vítor M. de Aguiar e Silva,
Teoria da Literatura, 8ª ed., p. 92.
[360] - O que ajuda a compreender as nossas
conclusões sobre o modo diferenciado como Pepetela encara o bilinguismo e o
biculturalismo em Angola: o que está efetivamente em causa é a função matricial
da língua portuguesa e a consequente desvalorização das línguas africanas.
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