Capítulo segundo da Dissertação - Leitura imagológica do romance YAKA de Pepetela

 

            CAPÍTULO SEGUNDO

            1. Leitura imagológica do romance YAKA de Pepetela

         “ Toute représentation de l’altérité tend vers l’image d’Alter ou celle d’Allius.”[1]

Uma das dificuldades com que nos deparamos em termos metodológicos resulta da descontinuidade temporal deste romance. A saga da família Semedo é centrada em cinco tempos, que correspondem a cinco partes antropomórficas e simbólicas, fechadas por um Epílogo datado de 1983:

            - A BOCA /1890-1904

            - OS OLHOS / 1917

            - O CORAÇÃO / 1940-1941

            - O SEXO /1961

            - AS PERNAS / 1975

 

             De acordo com esta estruturação, cada parte impõe uma análise específica, reveladora de um rumo cujos contornos só na última parte se revelam plenamente. Porém, esse obstáculo pode ser parcialmente ultrapassado se valorizarmos o problema da expressão axiológica que determina a localização de cada elemento material na escala de valores inerente à obra, [2] porque é o horizonte axiológico que assume a função mais importante na sua organização, nomeadamente dos meios semânticos: da função eletiva [3] à função distributiva ou arquitetónica.[4]

 

            A. Da palavra à imagem

·    A alteridade inscrita no léxico

Como propõe D.-H. Pageaux, [5] para identificar o primeiro elemento constituinte da imagem, comecemos por identificar o conjunto das palavras que, no período de colonização angolana abordado em Yaka, reflecte a imagem do Outro.

           

A imagem do nativo de raiz africana

 

Léxico

Yaka: ocorrências

assassinos

106, 107

atrasados

21, 34,

beberrões

34

bichos

91

cabeças-de-alcatrão

27, 49, 51, 53, 106

cabrão/cabra

91, 101

cabrita

117

cafre(s)

39, 48, 57, 77, 91, 105, 106, 210, 211, 217

calcinhas

108, 142, 143, 255

canibais

107, 108

dissimulados

313

drogados

51, 315

facínoras

106

feiticeiros

51, 242

hereges

316

incivilizados

63

indígenas

57

ladrões

82, 111

macacos

90, 189, 216,

mangonheiro

188

matumbos

63, 99, 188

moleques / serviçal

25, 27, 28, 29, 30, 46, 50, 54, 57, 73, 79, 99, 156

negralhada

107

negro (a / os)

22, 29, 30, 34, 36, 47,56, 52, 58, 67, 68, 69, 77, 79, 80, 86, 87, 91, 93,101, 104, 111, 113, 115, 116, 121, 126, 129, 130, 137, 139, 141, 144, 145, 151, 154, 160, 163, 164, 171, 184, 185, 198, 212, 257, 285, 313, 333, 360, 362, 378, 391

pretos

63, 184, 193, 218, 377, 259, 281, 290, 304, 308, 312, 316, 337, 377

selvagens

91, 94, 144, 284, 288, 325

terroristas

265, 266, 289, 301, 307, 308, 312, 313, 316

vimbali

25, 42, 45, 47, 70, 99

            Quadro 1

 

1. A cor do Outro

                                                                                                                                                                                                                                                                                             Esmagadoramente o Outro é designado pela cor [6]. Negro é um termo ambivalente porque genérico e, simultaneamente, redutor que, regra geral, transmite a imagem da condição de inferioridade [7] do homem africano, embora, ocasionalmente, o negro possa ser tolerado quando é reconhecido como civilizado. Esta imagem negativa do Outro é intensificada com o frequente recurso ao termo preto, que, sintomaticamente, só começa a ocorrer na 3ª parte - 1940-41. Por outro lado, enquanto em certas ocorrências, embora pouco representativas do termo negro, este é utilizado como designação genérica, o termo preto ocorre sempre como expressão de uma apreciação pejorativa. A utilização do termo preto permite ainda reclassificar o mestiço como matiz do negro [8], afastando-o da zona cultural branca ou, estrategicamente, colocando-o na situação de ponte de diálogo.[9] A relevância da cor como isotopia classificadora e fundadora duma hierarquia entre os homens é ainda reforçada pelo epíteto cabeças-de-alcatrão.

            Um outro termo constituinte desta imagem de inferioridade é cafre. De origem árabe, a palavra kafr designa aquele que não professa o Islamismo. Adoptado pelos portugueses, cafre no séc. XVI designava os bárbaros, indivíduos atrasados que habitavam o interior de África. No séc. XVIII, cafre, sinónimo de escravo, economicamente representava o oiro negro dos colonos e dos régulos.[10] Este termo Ocorre, em Yaka, entre 1890 [11] e 1940, sendo posteriormente substituído pelo termo preto. Sintomaticamente, cafre gera o verbo cafrealizar para classificar o branco que se deixa seduzir pelos costumes dos africanos, ou se vê obrigado a adaptar-se a um novo estilo de vida, num processo de aculturação psicológica.[12] Em Yaka, o cafrealizado é um branco abjecto porque, aos olhos da raça branca mais ou menos instruída, a mistura é degradante. 

            Ainda no que se refere ao processo de cafrealização do branco até aos anos 20 deste século, o sociólogo, escritor e diplomata angolano Arlindo Barbeitos [13] designa-o de aculturação invertida: o português pobre e analfabeto (ou quase), sem família, adapta-se ao meio angolano, burguês ou não, e, com frequência, mistura-se mantendo o velho hábito da miscigenação e sujeitando-se às normas dos nativos. Este tempo de aculturação invertida é, no entanto, contrariada com a chegada da mulher branca a Angola.

            Num processo de segregação que se instala na língua, o branco desvaloriza o Outro, negando-lhe qualquer tipo de ética, cultura ou de instrução [selvagens, atrasados, matumbos, incivilizados, facínoras, canibais, beberrões, drogados, hereges, feiticeiros], não se coibindo de atravessar a fronteira que separa a racionalidade da irracionalidade, recusando-lhe a condição humana [macacos, bichos]. Ou quando, forçado pelas revoltas sucessivas, lhe reconhece a identidade, redu-lo à categoria de dissimulado, de terrorista, como decorre da frequência deste último termo na quarta parte do romance - O Sexo (1961). O Outro, regra geral, não possui corpo nem voz.[14]

 

2. O branco: do etnocentrismo ... à traição étnica

         A imagem do branco, traçada em Yaka, mostra-nos uma minoria masculina, pobre e quase analfabeta, desenraizada, assustada; inicialmente composta por um grande número de degredados, integrando posteriormente emigrantes pobres e semianalfabetos. Sem efectivo apoio das autoridades, o branco facilmente se vitimiza de modo a legitimar o negócio fraudulento e degradante, a eliminação do negro e a ocupação da terra. E fá-lo em nome da hierarquização das raças segundo uma escala de valor que atribui à cor branca a perfeição.[15] Por isso, o branco atribui a si próprio um estatuto de superioridade tão sólido, - porque ancorado num imaginário milenar - que lhe permite fundamentar a acção colonizadora, a fuga em 1975, e relançar as bases da política de cooperação, continuando, ainda hoje, a deificar a sua acção civilizadora ao longo dos séculos.

            Num contexto de colonização, como o angolano, o branco é educado como ser superior de forma a compensar a situação minoritária em que se sente perante o outro.[16] E assim se explica, o profundo desprezo que exibe perante todos aqueles (poucos brancos) que dialogam, apoiam, lutam lado a lado com o negro.[17]

            É, ainda, fundamental tomar em consideração que o branco não só discrimina o negro e o mulato, como discrimina o branco nascido no território africano, “criando”, assim, o branco de primeira e o branco de segunda.[18]

            Finalmente, até 1975, do ponto de vista do negro, se excetuarmos o assimilado, o branco é muitas vezes visto como traiçoeiro e aquele que mata.

Branco

19, 20, 22, 29, 36, 42, 43, 46, 47, 51, 57, 61, 63, 64, 67, 68, 78, 79, 92, 100, 101, 102, 103, 107, 108, 109, 113, 114, 127, 142, 151, 162, 163, 177, 184, 185, 200, 208, 212, 225, 227, 228, 248, 255, 257, 259, 285, 289, 290, 302, 303, 304, 305, 306, 312, 313, 314, 337, 338, 378, 379, 391

            Quadro 2

 

3. Entre o Eu e o Outro

 

            Num território vasto e inexplorado, onde a população negra é largamente maioritária, o mulato surge da relação de domínio sexual exercida pelo branco sobre a anónima mulher negra, de modo a satisfazer a cupidez e a assegurar os braços necessários à efectiva ocupação / civilização do interior da colónia. Neste sentido, o mulato é uma ferramenta, um número, raramente mais do que uma coisa.[19] Pode, todavia, ocupar territórios distintos.

            O mulato descalço, abandonado pelo pai, vive como o negro, tornando-se apenas uma tonalidade do Outro, e, consequentemente, objecto do mesmo processo de inferiorização que o negro.

            Separado da mãe negra, o mulato-filho-de-comerciante, assimilado,[20] serve o pai branco, que, todavia, nas situações de conflito com o negro, não deixa de desconfiar dele. Serve o pai branco, matando em seu nome, ou, substituindo o negro em nome da civilização.[21] Porém, esta situação foi efémera, porque com o crescimento da emigração branca, sobretudo, com a chegada de mulheres brancas, o mulato tornou-se o ramo maldito da família, nova expressão minoritária e errante...

 

Mulato

20, 22, 39, 42, 51, 53, 56, 59, 62, 77, 101, 102, 105, 111, 116, 138, 184, 186, 187, 195, 280, 281, 295, 299, 314, 330, 359.

            Quadro 3

 

 

 

 

 

 

 

 

4. Da onomástica como expressão do conflito racial

Em YAKA, os topónimos começam por revelar um espaço africano, um território, corpo parcialmente inexplorado. Progressivamente, do confronto com o espaço europeizado - Benguela - emerge o espaço africano cuja referencialidade é essencialmente assegurada pela toponímia e pela antroponímia, visto que os outros designadores da  fauna, da  flora, da gastronomia e da cultura não revelam mais do que aquilo que o colono estaria em condições de saber, exceto no que se refere à cultura cuvale.[22] Como veremos, a abundância de topónimos e de antropónimos marca a dupla dimensão do conflito, numa época em que - em consequência do movimento abolicionista e, em 1885, da partilha de África - se troca o oiro negro pela imperiosa necessidade de ocupar a terra, de modo a assegurar externamente a soberania portuguesa, e, internamente, o comércio da cera, do marfim e da produção da cana-de-açúcar,  e, sobretudo, do comércio da borracha.[23] Politicamente, em nome de uma missão civilizadora cristã, mas, na verdade, pela posse da terra,[24] os reinos são decapitados e as populações são reduzidas à condição de moleques, serviçais, contratados,  trabalhadores..., termos que, retoricamente, dissimulam[25] a manutenção da escravatura. Do ponto de vista linguístico e cultural, resta apenas a estereotipia necessária à nomeação do inimigo.[26]

             Com a ocupação do interior, a pluralidade de designações para as formas de organização das populações [kimbo, sanzala, embala, libata], reduz-se a significantes como “bairros” e “musseques”, situados no interior ou na periferia das cidades - Benguela, Lobito, Luanda -, ou ocorre para designar “espaços” hostis, embora o autor tenha o cuidado de os “integrar”, de modo a tornar o enunciado compreensível. Com a ocupação e decapitação dos múltiplos reinos [bailundo, cuamato, cuanhama, cuvale, ganguela, humbe, muíla, mundombe, lutchazi, mbunda, seles, sumbe, amboim, cuissis, tchokue], o sentido dos antropónimos africanos torna-se cada vez mais  difuso, apesar de, no plano histórico, os povos não perderem totalmente a sua identidade linguística e cultural..., porque o homem africano raramente tem  voz, só a reavendo parcialmente  se, e quando, assimilados,[27] isto é, quando absorvidos pelo processo de aculturação unilateral... o que, todavia, se revela impossível, devido, em primeiro lugar, ao complexo racialista, cuja expressão já encontrámos na análise do léxico que nomeia a alteridade africana. A voz dos vimbali, dos calcinhas - os negros civilizados - que surge como expressão da política de assimilação,[28] é, no entanto, pontual, porque, apesar da aculturação, em épocas de conflito, essa voz surge, aos ouvidos do colono, como mentora de revoltas, tornando-se, consequentemente, na primeira vítima da repressão.

Quando observamos os designadores rígidos[29] - topónimos - ao longo do romance, compreendemos que muitos destes designadores se inscrevem numa visão topológica muito próxima da relação de nomeação que o nativo mantinha com o seu espaço, embora as localidades (re) fundadas pelos europeus adotem nomes de origem não africana. Porém, o Autor opta, por exemplo, por excluir topónimos de origem europeia como Nova Lisboa (Huambo) ou Sá da Bandeira (Lubango), numa atitude reveladora da sua mundividência.

            No quadro 4, apesar do número superior de topónimos presentes na 1ª parte, verificamos a sua profusão ao longo de todo o romance, visto que estamos perante uma narrativa da ocupação e consolidação da posição portuguesa em terra africana. Ao contrário do que acontece com os antropónimos, a presença repetida dos topónimos sustenta a veracidade da narrativa - e, consequentemente a veracidade da ocupação -, porque a compreensão[30] não só do sentido mas também da sua referência se torna difícil para um leitor não familiarizado com o espaço aludido, na medida em que os topónimos surgem na maioria das vezes apenas como indicadores do local onde decorre o conflito. Se excetuarmos Benguela, Lobito, Vau de Pembe, Bocoio... quase nada é dito para além do nome próprio. A descrição das “localidades” ocupa um espaço diminuto, como se a referência do nome próprio fosse do conhecimento do leitor.

           

 

A BOCA

OS OLHOS

O CORAÇÃO

O SEXO

AS PERNAS

Território / Topónimos

Ekovongo; Mbaka; Bero; Moçâmedes; Benguela; Capangombe; Lubango; Serra de Chela; Bibala; Dombe Grande; Serra da Neve; Quilengues; Tundavala; Caconda; Huíla; Bié; Cuporolo; Catumbela; Ganguela; Lunda; Lozi; Corinje; Mbaka; Cavaco; Luanda; Huambo; Bailundo; Planalto; Massangano; Cuanza; Tchiaka; Soque; Libolo; Ngalangue; Lobito; Bimbe; Monte Saôa; Cuamato; Cuanhama; Vau de Pembe; Njyva; Cunene.

Huambo; Moxico; Benguela; Quilengues; Massangano; Amboim; Gabela; Seles; Novo Redondo; Bié; Corinje; Luanda; Catumbela; Dombe; Cavaco; Lobito; Cuanza; Massangalala;; Camunda Uco; Conda; Hiove; Caconda. 

Mundas do Hambo / Serra da Neve; Bocoio; Balombo; Cuporolo; Bibala; Capangombe; Camacuio; Caitou; Dombe Grande; Benguela; Moçâmedes; Chiquite; Pocolo; Bentiaba; serra do Pundo; Huíla; Equimina; Sombreiro; Quilengues; Cacula; Lucira. 

Benguela; Luanda; Seles; Norte; Bocoio; Lubango; Gabela; Huambo; Moxico;

Dembos; Nambuangongo; Quitexe; Quibaxe; Quiculungo; Damba; Tamboco; Mbaka; Lobito; Serra do Pundo; Moco; Camunda; Benfica; Massangalala; Caponte; Lixeira; Liro.

Norte; Leste; Cabinda; Pundo; Chela; Mundas; Moco; Mucaba; Mundas do Hambo; Benguela; Camunda; Cavaco; Dombe Grande; Caitou; Huambo; Bié; Catumbela; Lobito; Casseque; Baía Azul; Bocoio; Cangamba; Cassoco; Cubal; Ganda; Balombo.

            Quadro 4

 

            É, no entanto, no universo da antroponímia que se desenha o conflito entre dois mundos diferentes, protagonizados por personagens com visões do mundo, estereotipadas, no caso dos comerciantes, ou em ruptura, como acontece com Óscar Semedo e, principalmente, Acácio. Enquanto os topónimos nomeiam o espaço pelo qual se luta, os antropónimos espelham o conflito civilizacional que caracteriza a relação entre europeus e africanos entre 1890 e 1975..

            Dois conjuntos (quadro 5), bem delimitados, podem acolher os antropónimos. Os antropónimos de origem africana, que são progressivamente eliminados (em alguns casos, assimilados) com os seus portadores. E os antropónimos de origem europeia que se distribuem por dois subconjuntos: os de origem grega, resultantes do voluntarismo de Alexandre Semedo; e os restantes, atribuídos, por vezes, como reação ao legado civilizacional de Óscar Semedo.

            Da antroponímia africana à antroponímia do colonizador

Bula Matari

Cassenda

Chitekulu

Ekuikui

Féti

Kassanje

Kiteta

Kalunda

Lumumba

Mandume

Mbumba
Mwe Bandu

Moma

Mutu-ya-kevela[31]

Ndunduma

Ngonga

Nízia

Njaya

Ntumba

Ondomba

Ruca

Samacaca

Suku

Tchibinda-Llunga

Tchipoya

Tuca

Tyenda

Vilonda

Yaka

Afrodite

Alexandre

Alexandre (Xandinho)

Andrómeda

Antígona

Aquiles

Aristóteles

Atena

Demóstenes

Dionísio

Esopo

Eurídice

Heitor

Helena

Orestes

Penélope

Safo

Sócrates (filho de A. Semedo)

Sócrates (filho de Orestes)

Sófocles

Ulisses

 

Acácio

Afonso

Aguiar (Governador)

Agripino de Sousa

Alexandre da Macedónia

Alice

Álvaro

Amadeu

Amâncio

Américo Tomás

Amílcar

Armando

Arnaldo

Augusto

Bartolomeu

Benfica

Bíblia

Bombó

Cerveira Pereira (Gov.)

Che Guevara

Chico

Conde de Almoster

Costa

Pe. Costa

Damião

Donana

Ermelinda

Ernesto Tavares

Esmeralda

Espírito Santo

Eusébio

Glória

Graça (Chucha)

Guilherme

Hitler

Pe. Horácio

Irene

Isidro

Jaime

Jesus

Joana

João

Joel

José Carpinteiro

Lenine

Maria Madalena

Marx

Massano de Amorim (Gov.)

Matilde

Mussolini

Norton de Matos (Gov.)

Óscar

Olívia

Ofélia

Otis Redding

Pinto de Almeida (capitão)

Portugal

Rigoberto

Rufino

Salazar

Silva Porto

Sô Almeida

Sô Lima

Sô Lopes

Sô Macedo

 Sô Queirós

Sónia

Sporting

            Quadro 5

 

            Os antropónimos africanos correspondem a nomes tradicionais, indicadores dos grupos a que os seus portadores pertencem, se excetuarmos Ruca, Tuca - diminutivos que veiculam uma certa cumplicidade racial - ou Lumumba, nome africano, mas exterior ao território angolano. Por seu lado, os antropónimos europeus de raiz grega têm origem na necessidade de recriar no espaço hostil a identidade étnica e cultural, de modo a enfrentar o fantasma da ameaça que é o Outro.[32]

            Em termos de constituição da imagem do mundo  africano, para além da onomástica, há ainda que contar com o léxico - apesar de pouco diversificado - referente ao relevo [anhara, chana,] à fauna [matrindindes, mabeco, onça, pacaça, sacanjueles, ondjiri, namulilo, capota, peitinhos -celestes], à flora [bassula, bimba, imbondeiro, mulemba, tabaibo, tacula, coqueiro, acácia, palmeira-leque, mamoeiro, mangueira, pitangueira], à alimentação [calulu, chissângua, muzonguê, pirão, doces de ginguba, fuba], à profissão [cambulador, kimbanda, pumbeiro, cipaio, quimbar, quitata ], aos objetos e instrumentos [imbambas, quinda, xifuta, moringues, onjivati, sanga, azagaia, missangas, kissanje, mbulumba, ngoma, puíta] à acção [kuata-kuata, canvanza, guerra do nano, maka, mbulumbumbar, vuzumunar, lupuka, bassulas, xifutada, mujimbo] às categorias [vimbali, sekulo, soba, moleque, cafre, cabrita, calcinhas, ufeco /cafeco] e ao povoamento / habitação [cubata, embala, kimbo, sanzala, chitaca, libata, musseque, onganda, sapalalo].

            Esta enumeração do léxico, que tipifica a africanidade, mostra sumariamente que, apesar da intenção de recriar a atmosfera local, a atenção do autor se centra mais no fazer e no dizer dos homens do que na descrição do mundo físico. Por isso, certos termos adquirem um forte simbolismo no interior deste romance, como, por ex.: a chuva [água] desejada e anunciada por Yaka - símbolo da vitória sobre o colonialismo - “gritando vitória, riacho estreito que perto do Palácio (...) já era um rio e aí continuou recebendo afluentes da Peça (...) se transformando naquele mar mascarado de comício improvisado”; o rochedo azul - o “ coração do mundo” de Vilonda; a mulemba -, a árvore sagrada dos cuvale, o “centro do mundo, onde moram todos os antepassados”; o sapalalo - “o símbolo mais acabado do colonialismo”; a música [batuque] - o símbolo da tristeza e da alegria do povo; o punhal cuvale - o símbolo da comunicação entre culturas, assente no respeito pelas diferenças; a bimba - o símbolo da “impotência” dos Semedos; a estátua Yaka - o enigma por decifrar -, cuja decifração depende da mundividência do interpretante, surgindo quer como a “sátira do colonialismo” quer como defensora da “compreensão entre os homens, mesmo se diferentes”, isto é, o diálogo entre culturas.

 

            B.  A imagem ou a relação hierarquizada

Este romance comporta vários planos narrativos, em que para além do relato omnisciente, na terceira pessoa[33],  surge significativamente um narrador - Yaka[34] - com uma função discursiva - interrogadora, interpretativa[35] e, ao mesmo tempo, profética -, perante o qual a função narrativa[36] de A. Semedo adquire uma irremediável, mas vibrante dimensão humana, marcada inapelavelmente pelo tempo - tal como acontece com os restantes e fugazes narradores, e, por isso, apesar da importância narrativa de A. Semedo, o seu estatuto é subalterno em relação a Yaka já que este se dirige a um “auditor” cuja capacidade de compreender nunca é posta em causa. Todavia, isto não quer dizer que haja uma renúncia à omnisciência. Yaka usufrui de uma significativa delegação do saber, da visão por parte do narrador omnisciente. E nesse sentido, o relato omnisciente e o relato / discurso subjetivo de Yaka tornam-se complementares e portadores de uma mensagem cujo significado terá levado tragicamente oitenta e cinco anos a decifrar por uma consciência (de A. Semedo)  que nunca se libertará totalmente, pois a sua expressão far-se-á através do discurso indireto livre sem chegar plenamente ao monólogo interior.[37] Uma mensagem cuja (in)compreensão se distribui por cinco partes distintas, mas que, quando reunidas, poderão gerar o corpo identitário correspondente ao  imaginário colectivo.

            A complexidade desta narrativa pode ser sumariamente observada no quadro seguinte:

           

A BOCA

 A 3ª p. alterna com a 1ª p., ora de Yaka ora, sob a forma de discurso indireto livre, com a de A. Semedo, e ainda do Soldado.

OS OLHOS

A 3ª p. alterna com a 1ª p. de Yaka ora, sob a forma de discurso indireto livre, ora com a 1ª p. de A. Semedo.

O CORAÇÃO

A 3ª p. alterna ora com a 1ªp. de Yaka ora, sob a forma de discurso indireto livre, com a de: A. Semedo, Vilonda, Aquiles e Orestes.

O SEXO

A 3ª p. alterna ora com a 1ª p. de Yaka, ora com a de: Chucha, Dionísio, Jaime. Sob a forma de discurso indireto livre, a 3ª p. alterna com a 1ª de A. Semedo, Bartolomeu, Agente da Pide, assim como com a 1ª p. pl. de vozes anónimas.

AS PERNAS

A 3ª p. alterna ora com a 1ª p. de Yaka ora, sob a forma de discurso indireto livre, com a de A. Semedo.

            Quadro 6

 

1. A determinação teleológica

Essa diferença de estatuto dos narradores permite as sucessivas transformações na visão do mundo de A. Semedo, e a relação obstinada e secreta com Yaka, à semelhança da relação do homem com a divindade, enquanto o olhar globalizante (mítico) de Yaka anuncia / simboliza um destino que a consciência localizada e focalizante[38] de A. Semedo procura incessantemente sem o conseguir antever.

            O desencontro entre A. Semedo e Yaka visa fins diversos e complementares. As duas vozes são formuladas em função do destinatário. Através de Yaka, o destinatário descobre/ compreende uma determinação teleológica que escapa aos protagonistas da acção: o mito da nação angolana é anterior à sua própria fundação, e está presente em cada revolta, em cada afirmação identitária: na acção e na voz das personagens africanas[39].

            É a natureza axiológica desta relação hierárquica que, apesar do diálogo adiado e frustrante de A. Semedo com Yaka ao longo de 85 anos, - e supostamente materializado na redação das memórias a partir de 1951-[40], deixa antever a possibilidade da construção da unidade angolana, sob a condução do MPLA, e da integração do colono branco nesse projecto, materializada no bisneto Joel-Ulisses[41].     

            Este escopo constrói-se, com avanços e aparentes recuos,[42] nas seguintes situações narrativas:

            1. Na voz de Yaka, quando, na 1ª parte - A Boca - comenta o nascimento de Alexandre Semedo, que poderia ser “a chuva única, talvez sem água, que ia ligar a boca aos olhos e às pernas e ao sexo, ainda isolados em desconfianças.”[43] Yaka assume-se como narrador da estória de A. Semedo, definindo como seu interlocutor aquele que tiver capacidade de entendimento e de sofrimento.[44]

            Yaka surge como consciência de uma Angola - corpo fragmentado e disperso -, ainda sem sentimento identitário. Esse corpo, ciclicamente, rebela-se em nome de uma identidade, como acontece com Mutu-ya-Kevela - a boca.[45] Nesta fase, Yaka opõe ao braço (a força) a boca (a persuasão).

            Tal como perante o nascimento de A. Semedo, Yaka, face à instalação do caminho de ferro de Benguela, interroga-se se “esse comboio vai trazer a minha música ou vai assoprar a chuva de música para longe, com o puf-puf e o fumo dele?”[46] A música e a chuva surgem como símbolos da realização da determinação teleológica.

            2. Na voz de Yaka, quando, no início da 2ª parte-Os Olhos - revela que, afinal, o comboio inglês elimina[47] tudo o que eram sinais da identidade angolana: os vimbali perderam importância económica, passaram a pagar imposto indígena; o herói africano Mutu-ya-Kevela foi esquecido. Para, um pouco mais adiante, explicar que os novos sinais - as revoltas dos sumbes, dos seles e dos amboins - ganhavam maior dimensão porque se integravam num movimento de revolta que ultrapassava as fronteiras angolanas. E era essa consciência que anunciava a realização do sonho angolano[48], na medida em que as suas raízes se robusteciam no tempo e no espaço.

            Finalmente, a derrota dos sumbes e dos seles, em Outubro de 1917, ironicamente com os anteriores derrotados - os bailundos - a puxar contra eles o canhão[49]. A derrota que significava, no imediato, para os seles e os sumbes, o desmoronar da utopia: a impossibilidade de recuperar as terras vermelhas boas para o café; de pôr termo ao imposto de cubata, às razias, às rusgas, às violações... Significava a sujeição a programas de reordenamento da população, a substituição dos sobas por regedores indígenas nomeados pelo Governo, a obrigatoriedade de trabalhar nas roças... Apesar do reforço do colonialismo, Yaka declara que os olhos dos sumbes, dos seles e dos amboins guardam a força do movimento revolucionário que lavrou em Outubro de 1917, prontos a saltar sobre a presa colonialista.[50]

            3. Na voz de Yaka, quando na 3ª parte - O Coração - narra, como testemunha, a morte de Vilonda - símbolo da autonomia cuvale -, trespassado pelas balas, sem, contudo, ser atingido no coração.[51] Essa autonomia que residia, apenas, na criação e sacralização do gado, que era permanentemente objecto da cobiça dos colonos, e que, mais uma vez, justificava o ataque aos cuvale, embora, sob o pretexto, de vingar a morte do colono Aquiles. Para os cuvale, essa derrota significou a humilhação total, porque a sua identidade media-se pelas manadas que possuíam... todavia, os olhos e o coração profundamente martirizados mantinham acesa a chama da revolta.

4. Na voz de Yaka[52], quando[53], na 4ª parte - O Sexo - relata o caos dos massacres do Bocoio (soba Moma), da Camunda,  do Benfica (Isidro) e da Massangalala em Benguela; da Caponte, da Lixeira e do Liro no Lobito, dando voz, alternadamente, aos sitiantes e sitiados - sob forma de discurso indireto livre fragmentado -, no intuito de dar expressão à simultaneidade da acção persecutória (de que são exemplos, a tortura e morte de Moma, a violação da segunda mulher de Moma por Dionísio, o incêndio das cubatas do Moma, a prisão e morte de Isidro, a ablação do sexo de Cassenda que se recusava a pronunciar o nome de Deus[54]), em grande parte do território angolano, com a descoberta da relação proibida entre Chucha e Chico.[55] Relação, que, parodisticamente[56], se torna exemplo e prova da multirracialidade que reinaria em Angola - assinalando o nascimento do Império -, inquisitorialmente apregoad(o/a) pelo coro das vozes de Salazar, de Américo Tomás, do Governador-Geral e de “todos os bispos e padres e madres que rezam incansavelmente para que esta portentosa Angola seja sempre Portugal (...).[57]

5. Quando, na 5ª parte - As pernas - em que se assiste, numa atitude de clara hierarquização, a uma redução das vozes da narrativa, assim como à clarificação da mundivisão de cada um dos narradores fundamentais,  a voz de Yaka abre a narrativa através de símbolos - o orvalho, chuviscos, chuvas dispersas, o trovão medonho, as nuvens grossas - que esclarecem retoricamente o sentido final da acção histórica anunciado pelas revoltas dos “ bailundos e sumbes e seles e cuvales e outros olhos lá do Norte e do Leste e nas danças e no batuque de noites sem fim levados mesmo para o outro lado do mar...”[58] A revelação de uma finalidade, que, independentemente, dos homens condicionava de forma cumulativa a sua acção, de tal modo que os acontecimentos de 1974, “do outro lado do mar”, ribombam como “trovão” da vitória nacionalista, dolorosamente preparada pela História, apesar do sentimento identitário estar ainda longe das preocupações dos cuvale, dos seles ou dos do Norte, para quem o fundamental era “reaver as manadas do antigamente e o orgulho de gente inconquistável”, ou “as terras boas do café”[59]. 

            Todavia, Yaka determina - através do  “segundo estouro do trovão”, que assinala a chegada dos guerrilheiros nacionalistas a Luanda - como heróis da História o Movimento e o Povo, e exclui - recorrendo para o efeito à caricatura - “os senhores do Império”, e “outros recém-chegados, gordos e luzidios de festins ianques com ou sem gorros de pele de leopardo e bengalas de soba falso”.[60] É ao Movimento - Owiñi oku soma, o Povo no poder[61] - que compete, pela sua acção, cimentar a unidade dos povos e criar a nação. Por isso, o “terceiro estouro do trovão” se fez ouvir com a chegada dos guerrilheiros do MPLA a Benguela que irão derrotar as restantes forças.

            É, finalmente, Yaka quem narra o pesadelo de Xandinho, envolto e torturado pelas “sombras” do soba Moma e do comandante Kalunda, sob a forma de “olhos de peixe morto” e de “jiboia”, revisitando o passado em que “armadilhara” e torturara o comandante, matando-o à baioneta - repetindo cem vezes o gesto; relembrando, também, a morte do soba Moma à coronhada, executada pelo mulato Guilherme, sob as ordens de Bartolomeu. Enquanto tentava repelir as “sombras” que o condenavam, Xandinho considerava-se “bom angolano”[62] e cumpridor dos “deveres de administrador colonial”, ameaçando ordalizar-se para se mostrar invulnerável porque inculpável. Esta opção narrativa terá resultado do facto de só Yaka - porque suficientemente distante - poder compreender o sentido do pesadelo de Xandinho, visto que Xandinho configura a demência[63] e o complexo de culpa do colonialismo protagonizado por uma parte da família Semedo.  A acção de Xandinho revela-se como a antítese total da teoria multirracial portuguesa, enquanto a sua argumentação não passa de um processo hipócrita de desculpabilização. Este tipo de acção acabou por conduzir senão à morte pelo menos à alienação total do sistema colonial.

           

2. Outras vozes narrativas

Menos hegemónicas, porém necessárias à representação da plurivisão que caracteriza a acção e o comportamento do colonizador, outras vozes, (in)dependentes do narrador omnisciente, se fazem “ouvir”:

             1. A do soldado escapado do Vale do Pembe - embriagado[64] - que narra o desastre do Cuamato, imaginando-se um novo soba com bois e mulheres roubados aos Cuanhamas, finalmente livre da miséria da Beira Baixa, da burrice dos Governadores e da diarreia dos padres, mesmo que cafrealizado.

            A narrativa surge sob a forma de discurso indireto livre, embora liberto pela cumplicidade do narrador omnisciente. Por outras palavras, a paródia das autoridades coloniais, militares e religiosas é “deixada” picarescamente a um subalterno.

            Pela boca do soldado é feita a avaliação da natureza civilizadora do colonialismo entre 1890 e 1904.

 2. A voz de Aquiles emerge a espaços, sob a forma de discurso indireto livre - em O coração - de modo que não se confunda com a do narrador omnisciente: é a voz violenta da frustração do “branco numa terra de pretos” sempre pronto a vingar-se em negros, mulatos e brancos[65], cuja clubística e venatória visão do mundo se cingia a um universo onde não havia meios-termos.[66] Voz que desdenha da sabedoria dos gregos e da Bíblia. Voz que quer eliminar os “mucubais” e os cafres. Voz que, apesar de tudo, despreza os sonhos expansionistas dos Bartolomeus...

3. A voz de Vilonda - em O Coração - que se dirige aos “seus” - à sua cultura - a propósito da transgressão à ordem que regia a comunidade cuvale[67], e cuja memória (oral) terá sido preservada por Ondomba conforme testemunha a epígrafe que abre a 3ª parte. A voz que interroga o sentido da morte de Tyenda, e confirma as previsões da namulilo e das entranhas do cabrito.[68]

 

            4. A voz de Orestes - em O Coração - que (se) interroga, após a morte de Aquiles, a “chefia da família”, o lugar do primogénito num universo onde A. Semedo se rege por cânones cada vez mais afastados da cultura dominante (nos anos 40).[69]

5. No que concerne às restantes vozes - excetuando o caso de pluriperspectiva que será abordado mais adiante - o narrador omnisciente encontra-se muito próximo, como acontece por ex. -- no desiderato de recriar a atmosfera pós - 4 fevereiro de 1961-,   com as “reflexões” de Bartolomeu Espinha sobre o modo como abanar a árvore das patacas e sobre a índole dos filhos e sobrinhos face ao seu projecto expansionista,[70] sobre a lealdade do soba Moma, acusando-o de conspiração... Ou com as informações do Agente da Pide, que, de forma fragmentada, citam[71] os panfletos revolucionários; ou do mesmo Agente que acusa os brancos de traição, de serem agentes do comunismo internacional. Ou das vozes anónimas, em pânico, dos empregados do comércio e dos artesãos que pedem armas; dos fazendeiros que pedem a tropa contra as rede clandestina[72], nascida nos “areais vermelhos dos musseques de Luanda, rede cheia de armas russas, homens fanáticos e drogados com liamba (...).[73]

 

3. Um caso de pluriperspectiva[74]

Na 4ª parte - O Sexo - no que respeita ao episódio da “relação incestuosa entre primos”, surge uma outra forma de omnisciência, que resulta da pluriperspectiva.

Primeiramente, a voz de Chucha “dirige-se” a Dionísio, o primo preferido, como se lhe narrasse a aproximação, a génese do desejo, a relação sexual testemunhada por Jaime - sem a noção do bem e do mal -, a relação vivida com Jaime - finalmente, consciente do erro...[75]

            Posteriormente, é Dionísio que se “dirige” a Chucha, evocando a génese marinha do desejo, confessando a sua timidez, o pavor da recusa, a descoberta, quase simultânea, do amor e da frustração, provocada pela voz do primo Jaime e, sobretudo, pela relação edipiana e catártica vivida por Chucha, numa poderosa síntese dos mitos helénico-cristãos, que acabaria por o destruir.[76] Num segundo momento, Dionísio volta a ”dirigir-se” a Chucha, recusando o diálogo, e acusando-a - como Jaime previra - de ser como as do Bairro Benfica, e anunciando a relação entre Chucha e “esse mulato que dizem ser nosso primo.”[77]

            Finalmente, Jaime - sobrepondo o prazer aos preconceitos / valores sociais -, “dirige-se” também a Chucha para se desresponsabilizar, mostrando-lhe que era ela a responsável por ter estragado a vida, e que Dionísio não passava de um produto da sociedade.[78]             

Em relação a este episódio, apesar da omnisciência que resulta da pluriperspectiva, o fundamental é que, axiologicamente, o narrador omnisciente não assume o discurso, numa atitude de maior distanciamento ético em relação ao comportamento sexual da família colonial, tal como Yaka se mantém ausente, ocupando-se apenas do essencial: a interpretação do sentido das revoltas protagonizadas pelos africanos.

            Em conclusão, não é tanto a oposição entre instâncias narrativas que estrutura o texto imagotípico, mas a diferença de estatuto das vozes narrativas. Axiologicamente, a voz de Yaka - portadora da ideologia anticolonial - sobrepõe-se pelo grau de conscientização a todas as restantes vozes, mesmo à do narrador omnisciente, que, apesar do seu aparente distanciamento ideológico, deixa sempre antever uma intenção crítica no modo como dá voz a personagens, como Alexandre Semedo, Vilonda...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

            C. As personagens

Se no que respeita às vozes da narrativa, há uma diferença de estatuto que contribui para a interpretação  do texto imagotípico, no  que respeita à sua estruturação, as personagens desenham uma típica oposição entre culturas, problematizada, a espaços, pela consciência de algumas personagens de raiz europeia: Óscar Semedo, Acácio, Ernesto Tavares, Alexandre Semedo, Joel... Sobretudo, Alexandre Semedo que desempenha a função de observador da sua sorte - o duplo registo - [79], perspectivando, deste modo, uma indagação reflexiva, também ela capaz de influir na atitude do destinatário da obra.

            Como vimos na referência feita à origem e distribuição dos antropónimos presentes nesta obra, também as personagens podem ser distribuídas por dois conjuntos significativos.

            No que se refere ao conjunto de raiz europeia, convém distinguir as personagens nascidas em Portugal continental das nascidas em Angola.

 

Portugal continental[80]

Angola

 

Óscar Semedo

Acácio

Aninhas (Donana)

Bartolomeu Espinha

Agripino de Sousa

Sô Almeida

Sô Queirós

Sô Lopes

Sô Macedo

Agente da Pide

Esmeralda

Alexandre Semedo

Ernesto Tavares

Aquiles

Glória

Xandinho

Irene

Álvaro

Dionísio

Sócrates

Orestes

Matilde

Graça (Chucha)

Sócrates (II)

Eurídice

Heitor

Jaime

Olívia

Joel

Rufino

            Quadro 7

 

            Esta dualidade acabará por originar uma discriminação entre os brancos, assente na distinção entre brancos de primeira e brancos de segunda, apesar da maioria dos brancos de primeira serem degredados ou emigrantes desclassificados. A presença destes degredados faz-se sentir sobretudo na 1ª e 2ª partes do romance, tendo, depois de cumpridas as penas, enveredado pela atividade comercial e, alguns, mais tarde, pela produção de café. A atividade económica dominante em A Boca é o comércio da borracha e do álcool - isto é, o comerciante português comprava a borracha aos africanos a troco de aguardente, armas e vestuário...

            Regra geral, os degredados[81] eram presos de direito comum, sem qualquer tipo de escrúpulo - analfabetos ou quase[82] -, que tinham cometido crimes de sangue na Metrópole, e por isso o tipo de relação que protagonizam no seu contacto com os africanos é o mais anticivilizacional possível: vigarizam e, através do álcool, degradam impunemente[83]; exploram o trabalho forçado e fazem tábua rasa do direito do africano à terra[84].

 

1. O comerciante[85]

Personagem referencial social, e consequentemente objecto de estereotipia, o comerciante, na figura de Agripino de Sousa, é uma das forças anticivilizacionais, na medida em que simultaneamente se opõe ao modelo de colonização inglês, à mestiçagem, aos brancos defensores dos direitos dos negros,[86] e, em particular, se revela adepto da concepção de que o negro não era uma cor, mas uma condição.[87]

            Em síntese, Agripino de Sousa, defensor da ocupação armada e sexual,[88] explora a força dos filhos mulatos como condutores de caravanas ou como capatazes, enquanto os desvaloriza.[89] Depois da “crise do comércio da borracha”, transforma-se em grande roceiro.[90]

            Ao lado de Agripino de Sousa - personagem paradigmática da exploração colonial entre 1880 e 1940 - surgem outros comerciantes cuja principal ambição era ir morrer na Metrópole, e cuja falta de coragem,[91] medo e indecisão servem para mostrar o isolamento em que se encontravam num território em que, até 1920, a população branca não ultrapassava 0,48% do total da população.[92] Estes comerciantes não formavam uma efectiva burguesia porque não eram criadores de riqueza, ou exploradores activos dela, não passavam de intermediários.[93]

            Ao serviço de um destes comerciantes - Sô Queirós - entra Óscar Semedo - fundador da família Semedo, “paradigmática da saga de povoamento dos brancos na colónia”[94]-, que, após 10 anos de degredo na região de Moçâmedes, se desloca com a mulher Esmeralda[95] e filho - nascido, em 1890, durante uma acidentada viagem - para Benguela. Impedido de regressar à Metrópole, tinha “projectos portugueses” para o filho, porém, apesar de ser branco de primeira, era um branco da última condição,[96] cuja proverbial indecisão resultava da natureza contraditória da sua cultura e da sua acção: republicano e anglófobo; era contra o tráfico de escravos e contra a rapina dos comerciantes; contrário aos defensores da autonomia da colónia[97]... iniciou o filho na leitura dos Gregos, determinando deste modo uma das vertentes megalómanas do carácter de Alexandre Semedo.

 

2. Acácio ou a utopia da cidade das flores rubras da acácia

Personagem cuja visão do mundo a coloca em situação de conflito com os comerciantes brancos acaba por ser assassinado, a mando de Agripino de Sousa. Degredado político - anarquista e republicano -, ideologicamente, adepto de Proudhon e de Bakunin, ataca a sede do lucro[98] do comerciante e do roceiro, e a missionação dos padres. Defende os direitos das populações.[99] Amigo dos negros[100], mantinha uma relação com a mulata Ermelinda, recusando, contudo, a vida a dois, em nome da liberdade de cada um. Vive permanentemente a frustração de se sentir colono, ao viver dos lucros dos colonos que provinham dos “roubos aos negros”.[101]

            Sintomaticamente, a morte de Acácio torna-se num acontecimento simbólico para negros e mulatos. Anunciada - no estilo de Fernão Lopes[102] e de forma hiperbólica - pelas vozes das crianças, em consonância com a voz de Yaka: “gritando o mujimbo crescente, sangue é areia na praia, ao pé dos coqueiros enche tudo, explode na cor das flores de acácia, soluçando. O sol mesmo, quando morre no mar, não é tão vermelho como o chão e as paredes da barbearia.”[103]

            O episódio da morte e do enterro - transformado em komba[104] - anuncia uma Angola diferente e desejada pelos africanos, uma Angola multirracial, caso os brancos estejam dispostos a seguir o exemplo de Acácio, cuja morte os deveria redimir dos crimes cometidos ao longo da colonização.

            Apesar da sua eventual referencialidade, a função desta personagem é a de desenhar a utopia da libertação do homem independentemente da cor, iniciando Alexandre Semedo - o único que é (in)formalmente preparado para realizar a utopia acaciana -  na interpretação dos sinais do tempo[105]: a queda dos preços da borracha; as alterações económicas e sociais provocadas pela inauguração do caminho de ferro de Benguela; a tese dos oficiais invencíveis face ao desastre do Cuamato[106]; as relações entre brancos e negros; a discriminação entre brancos[107]...

            Finalmente, Acácio, cujo nome é motivado pela árvore-símbolo de Benguela, a acácia, prefigura o mito pessoal de Pepetela de uma cidade-mestiça[108] fundadora da angolanidade.

 

           

 

3. Alexandre Semedo, dividido entre a identidade étnica e a assunção de uma nova identidade cultural[109]

Sintomaticamente nascido em 1890 - momento axial da obra e da História, porque supostamente daria à história angolana um novo curso -, entre Bibala e Quilengues sob a mulemba sagrada dos Cuvale, Alexandre Semedo[110] acaba tragicamente por representar a indecisão do branco angolano - homem dividido entre as raízes ancestrais (ocidentais) e o apelo da terra (angolana).

            O apego desesperado à origem étnica manifesta-se no aproveitamento narcísico que faz do legado cultural paterno.[111] Esta necessidade narcísica de preservar a identidade étnica surge, primeiramente, como autodefesa num espaço onde a diferença se torna permanentemente visível e fantasmaticamente ameaçadora, e posteriormente, como resultado dum efectivo conflito cultural. É neste contexto que Alexandre Semedo gera uma típica família colonial, quase-ilha num espaço tornado hostil. E por isso, numa tentativa de preservar a identidade étnica, e de recriar naquele espaço uma pátria regenerada, liberta das taras que estigmatizavam a pátria de origem, Alexandre Semedo insiste em executar a operação simbólica da nomeação[112] dos filhos, netos e bisnetos com nomes gregos, que, todavia, não estiveram à altura dos projectos de acção inscritos em cada nome próprio, se excetuarmos a singularidade de Joel-Ulisses, cujo “batismo” tardio, correspondeu mais à filosofia da nomeação africana do que à europeia.[113]

            Este apego à origem étnica atinge ironicamente o clímax na noite de 14 de Julho de 1917, quando Alexandre Semedo gritou para posteridade a necessidade de eliminar os negros.[114] Nesse momento, interrompe as conversas com Yaka (que só em 1940 retomará ) pela urgência de defender a civilização, de reafirmar - face às revoltas dos seles, dos amboins e dos sumbes, face ao autonomismo defendido por Ernesto Tavares, e face à rejeição de Njaya - a sua condição de português.[115] Esta euforia prolonga-se até à catástrofe - a  morte  do primogénito Aquiles que terá um profundo efeito traumático[116] em Alexandre Semedo, deixando-o num estado de abulia quase permanente. 

            A par deste traço do carácter de Alexandre Semedo, desenvolve-se um outro que, progressivamente vai determinando o seu afastamento do complexo étnico português e ocidental. Este outro traço resulta do apelo da terra / mátria que marca o nascimento e se completa com a morte[117]- e não apenas de uma vida frustrada.[118]

            Esse afastamento é expresso primeiramente pelo inevitável contacto com o outro, e ulteriormente pela presença física de símbolos dessa mesma alteridade e pela escrita reflexiva dessa memória.

            Desse contacto com o outro, surgem a ambígua amizade por Tuca, a paixão frustrada por Njaya, a relação com “Joana”, efémera, mas geradora do ramo maldito da família. Por seu lado, o sapalalo - símbolo do colonialismo - vai-se enchendo, contra a vontade da família, da alteridade africana: a enigmática estátua Yaka, herdada do pai; o mobiliário do salão;[119] o cinzeiro tchokue de pé alto, que representava Tchibinda-Llunga;[120] o punhal na sua bainha de couro que pertencera ao cuvale Vilonda, que matara Aquiles; objetos de cestaria e entrançados...

            Também a escrita das suas memórias em forma de conversas para a estátua YAKA, e as leituras etnográficas sobre o Leste e o Norte, após a morte de Donana (1951), acentuam o distanciamento de Alexandre Semedo da sua origem étnica, apesar do projecto inicial ser para consumo exclusivo da família. As memórias acabaram por iniciar[121] a catarse necessária à assunção reflexiva da alteridade.[122]

            Em síntese, a lenta aprendizagem de Alexandre Semedo, enquanto o isola, o distancia da família e do complexo étnico português, leva-o a profetizar[123] a inevitabilidade do homem novo, como forma de superar o medo[124] das minorias branca e mestiça. Nesse sentido, depois de reconhecer, através de Chico, o ramo maldito da família, deixando-lhe a administração da loja e a fazenda do Bocoio, rebatiza Joel como Joel-Ulisses, o que conseguiu o seu objectivo (...), a excepção dos Semedos, legando-lhe o sapalalo,[125] o punhal cuvale de Vilonda, que matara o avô Aquiles,[126] as memórias, e, finalmente, a interpretação dos sinais dos tempos, que a seu modo o aproxima da visão do mundo de Acácio e da determinação teleológica de Yaka:

 

A estátua e o punhal explicam. Cada coisa tem em si a cultura, a História da sua criação. São aspectos que não se destroem, que acabam por vir à tona apesar da repressão, da imposição das ideias e das culturas. (...) E um dia essas vontades todas juntas explodem e não há exército nem religião que as possam travar. Se compreendes isto, deixas de ter medo, porque para acabar com o medo, já sabes, é preciso liberdade, deixar os homens desenvolver o génio que têm neles. Considerá-los iguais aos outros, os que fizeram palácios de mármore, todos têm o seu génio, a sua cultura, só que pode ser diferente.[127]

 

 

 

4. Ernesto Tavares (1881-1940): as metamorfoses[128] do branco angolano.

 Estudou em Luanda. Porém, limitado pela sua condição de branco de segunda, trocou o funcionalismo público pela profissão de ajudante de despachante, estabelecendo-se mais tarde como despachante.

            Lascivo, anglófobo, e politicamente sinuoso, passou por várias fases:

            - Saudoso dos independentistas benguelenses do século XIX, defende, contra Lisboa, a tese autonomista,[129] que foi, todavia, seriamente posta à prova com o desastre do Cuamato. Durante alguns anos, mantém-se, porém, partidário da independência de Benguela.[130]

            - Adepto da Kuribeka[131], torna-se membro do Grémio Lusitano em 1910, defendendo a unidade e indivisibilidade da Pátria portuguesa, e propondo a substituição da realeza (e, sobretudo, dos jesuítas) por uma República democrática, laica, racionalista.

            - Adversário activo dos golpistas que criaram o Estado Novo, que acusava de monárquico, acabou por defender a dissolução do Grémio Lusitano, aderindo à União Nacional de Salazar[132], e manifestava enorme simpatia por Hitler e Mussolini quando morreu.

            Apesar da sua significativa versatilidade ideológica, é pela lascívia que Ernesto assume maior representatividade no romance, no que respeita à relação do homem branco com a mulher negra. Pela sua atividade sexual, Ernesto Tavares - subjugado ao culto do phalus - tipifica o europeu, que nunca foi, a quem a diferença de raça e de cultura estimula as fantasias e as pulsões sexuais[133], assegurando-lhe, neste domínio, um sucesso, que, por exemplo, Alexandre Semedo nunca obteve.

            Paradoxalmente, desse sucesso restará apenas a repulsa colectiva perante a morte grotesca, mas cujos aspectos mais significativos emergem da diferença de atitude de Isidro que, ao contrário do que acontecera com a morte de Acácio, cantava de alegria por ter morrido um sujo traidor,[134] e da atitude do poder que, através do chefe da União Nacional, o reconheceu como um ilustre patriota.

    

5. As outras personagens

Na medida em que marcam atitudes estereotipadas, as personagens são apresentadas como expressão de duas zonas culturais (im)permeáveis, cujo contacto gera uma zona fronteiriça heterogénea minoritária.

 

            Zona cultural negra:

 

Personagens

Traços de identidade

 

Chitekulu

Numa afirmação singular de revolta contra a exploração e especulação dos comerciantes brancos, este sekulo queimou toda a sua borracha.[135]

 

Ekuikui

Defensor da produção agrícola em vez da atividade comercial. Inspirador do ideário de Mutu-ya-Kevela.

 

Mutu-ya-Kevela

Quebera (designação irónica e depreciativa portuguesa) - soba bailundo rebelde - é apresentado do ponto de vista dos brancos como um vampiro sanguinário, que bebia vinho pelo crânio dos brancos; porém, pela voz de Yaka, Mutu-ya-Kevela surge como um líder que rejeita o negócio da escravatura, da borracha e da aguardente, que respeita as missões, para quem a força está na palavra (boca) e não no braço.[136] Morre, vítima de traição da missão católica.

Com a sua morte, termina, também, o estatuto de aliado do reino do Huambo, isto em 1902, condenando os bailundos à subalternidade.

 

Sobrinho mais velho e sucessor de Mutu

Personagem apenas aludida, mas que exemplifica o destino do negro-vítima da aguardente (cilada branca): a escravatura em S. Tomé.

 

Samacaca

Soba, amigo de Mutu-ya-Kevela, cuja acção de “guerrilha”, durante vários anos, entravou a construção do caminho de ferro de Benguela pelos ingleses, e aterrorizou o imaginário dos colonos

 

Rufino

Um bieno instruído que estudara numa missão protestante,[137]e que exemplifica o efeito libertário da missionação protestante, e consequentemente subversivo aos olhos dos colonos.

 

Mandume

Soba que chefiou a revolta dos Cuanhama e que morreu em 1917.

 

Mwe Bandu

Este soba, ao chefiar a revolta dos Mbunda, Tchokue e Lutchazi, entre 1915 e 1917, aniquilou o comércio da cera entre o Bié e a fronteira Leste.[138]

 

Bula Matari

Soba que, tal como um hipotético kiteta, teria chefiado a revolta dos seles, dos amboins e dos sumbes, em 1917. Porém, a sua existência no terreno talvez não passasse dum produto da imaginação, conforme refere Tuca.[139]

 

Tuca

Colega negro de Alexandre na escola, cuja aceitação pelas crianças brancas resultou dos jogos em que a guerra do Bailundo era tema[140], pois precisavam de um negro que fizesse o papel do anti-herói Mutu-ya-Kevela. Tuca é, neste romance, a espaços, a expressão da ambivalência cultural, embora cada vez mais aculturado. É essa ambivalência que faz da personagem a testemunha ocular de algumas atrocidades praticadas pelos brancos, como, por ex., a violação da rapariga negra pelos colegas brancos[141], imitando o capitão Calado a tomar a aldeia de Samacaca, em nome das mulheres brancas; ou, em 1917, como tenente da guerra preta, revelando que a causa da revolta do Amboim eram os colonos, que eram eles os principais executantes do genocídio. Tuca descobre que é o comportamento dos colonos que gera as futuras revoltas.[142]

Porém, esta consciência do futuro não o liberta da sua condição de aculturado e explorado: ao fim de quarenta anos de trabalho, sem reforma nem pensão por ter sido oficial, morre “um preto bom, o Tuca (...) com alma de branco[143], nas palavras de Alexandre Semedo.

 

Vilonda

Chefe cuvale, cuja onganda já se encontra situada em território mundombe, surge, apesar da atitude de distanciamento em relação aos brancos, como expressão de uma concepção de tradição reformista, visto que ao ousar sair da terra sagrada para poder resolver o problema da seca, inicia as mulheres na agricultura. Todavia, respeita todas as outras tradições: desde a organização da onganda, à defesa do elao[144], à transmissão da cultura, à previsão do futuro através do estudo das entranhas dos animais, à cerimónia da circuncisão do filho, ou à sacralização do boi[145] - símbolo da identidade cuvale.

O seu clã - as duas mulheres, o filho Tyenda -, o vizinho Ngonga e filho, serão vítimas, em 1941, da “loucura” de Aquiles e da cobiça dos brancos, representada por Bartolomeu Espinha.

 

Tyenda

Filho de Vilonda: os rituais da sua circuncisão, a visita aos parentes em território cuvale demonstram o cumprimento rigoroso da tradição, no plano educativo.

Será, no entanto, morto por Aquiles.

 

Ngonga

Outro cuvale - vizinho e amigo de Vilonda - pai de Ondomba, a qual poderia ser escolhida como esposa por Tyenda.

 

Tchipoya

Pastor mundombe, homem de mão de Bartolomeu, desde o ataque à onganda de Vilonda.

 

Soba Moma

Era o dono das terras limítrofes da propriedade da família Semedo no Bocoio. Originário do Bailundo, instruído[146] e apologista do papel civilizador dos brancos[147], tudo faz para não ofender os brancos, exceto vender-lhes as suas terras.

O soba Moma acabará por ser barbaramente torturado até à morte, entre outros, por Xandinho; a segunda mulher violada por Dionísio, as cubatas incendiadas pelo mulato Guilherme, num processo de repressão que se estendeu a todo o território angolano. E tudo aconteceu a pretexto da procura do catequista que clandestinamente apelava à subversão, embora o objectivo de Bartolomeu fosse a posse das terras do soba, como de facto aconteceu, de modo a poder materializar o seu sonho de construir um império..  

 

(os) vimbali[148]

 Até à inauguração do caminho de ferro de Benguela, os vimbali, ou quimbares, serviram de intermediários no comércio de borracha e da cera. Eram chefes ou vigias das caravanas, em representação dos sobas.

 

Cassenda

O velho que gritava por Suku - o seu Deus - durante a tortura, rejeitando o Deus branco que deixava castigar uma parte dos seus filhos...[149]

 

Kalunda

O comandante da guerrilha foi uma das vítimas da repressão em Cangamba, no Leste de Angola, em que Xandinho teve parte activa.

 

Lumumba[150]

Em 1961, mantinha forte influência ideológica sobre os movimentos independentistas Angolanos.

 

Branca

Uma negra retinta,[151] amante de Sô Queirós, mas que nada significava para ele.

Rapariga negra

13 anos. Violada pelos rapazes brancos (Afonso, Alexandre, Arnaldo, Amílcar) para “vingar as mulheres brancas” perante o olhar atónito de Tuca. Vítima do estereótipo cultural sobre a sexualidade dos negros.[152]

Njaya

Vivia no Bairro da Peça, em casa de adobe, filha de pumbeiro dum branco.[153] Surge na komba de Acácio, tendo enfeitiçado A. Semedo e Ernesto Tavares. Depois de seduzida, foi abandonada por Ernesto Tavares. Rejeita a hipótese de ser amante de A. Semedo, ao decidir escolher o seu caminho.[154]

Joana

Sem direito ao seu próprio nome.[155] Engravidada por Alexandre, foi expulsa de casa por Donana. Dá início ao ramo maldito da família: Ofélia Þ Chico.

Ondomba

Filha do cuvale Ngonga, destinada a casar com Tyenda...

Ruca

Num tempo em que a cor deixou de ser critério diferenciador, Ruca, amigo e camarada de militância política de Joel, só indirectamente pode ser "integrado" nesta zona cultural.[156]

            Quadro 8

            Zona cultural branca

 

Personagens

Traços de identidade

 

Aquiles

Nasce em 1910. Fisicamente, é uma réplica do herói grego homónimo. Um fracasso nos estudos. Os seus interesses resumem-se a “pancadarias, almoçaradas, futebol e caça”- capataz eficiente da Câmara.[157] Ateu e satânico, tal como o avô e o pai, insatisfeito, medíocre.[158] Esta mediocridade era compensada  pela violência indiscriminada em que a cor não era um critério absoluto, pois que para Aquiles o mundo dividia-se em amigos e inimigos.[159] Porém, em consequência da sua megalomania,[160] a sua invulnerabilidade  termina de forma trágica numa patética caçada em território cuvale: morto pela azagaia de Vilonda, após lhe ter morto o filho Tyenda, em 1941. Se Aquiles tipifica, pela educação, o complexo de superioridade do colonizador, a sua natureza medíocre torna-o numa figura inconsequente.[161]

 

Orestes

Dominado pela mulher, Matilde, caracteriza-se pela falta de iniciativa, pela cobardia. Vive na abulia dos Semedos. É o reverso do homónimo príncipe grego, sedento de vingança, embora instigado por Apolo e Electra...

 

Bartolomeu Espinha

Depois de ter sido vendedor de jornais e proxeneta em Lisboa, chega a Angola em 1936, casando em 1939 com Eurídice.[162] O seu itinerário representa o agudizar das relações entre culturas, de 1940 a 1975. Ao contrário de Aquiles, Bartolomeu tem a ambição e o calculismo que sempre faltaram aos Semedos, alicerçados numa completa ausência de escrúpulos e de cultura.[163] É este perfil que lhe permite urdir ciladas que lhe possibilitam a apropriação dos bois dos cuvales e das terras do soba Moma. Dedicando-se sucessivamente à cultura de algodão, de sisal, de abacaxi, de hortícolas, à criação de gado, aos transportes, e, finalmente, à política, Bartolomeu realiza o projecto de colonização que os Semedos tinham rejeitado entre 1880 e 1940, isto é, inicia a realização do sonho de construir um império no Bocoio,[164]mas que vê interrompido pelo Movimento dos Capitães em Abril de 1974 e pela vitória do MPLA em 1975. Só lhe resta a fuga e a conspiração. Ao contrário de Matilde, Bartolomeu arriscara tudo e perdera.[165]

 

Alexandre / Xandinho

Filho de Aquiles e de Glória, nascido em 1935. Revela-se um zeloso patriota; funcionário colonial, é uma peça fundamental na estratégia urdida por Bartolomeu. Com o fim do Império, soçobra[166] porque compreende que, apesar de uma vida gasta a abrir estradas, a organizar recenseamentos, a cobrar impostos[167], terá de pagar pelo seu envolvimento nos massacres de 1961, nomeadamente no Bocoio, e mais tarde, no Leste, na Cangamba. Perante a nova situação, tenta infrutiferamente considerar-se angolano e não colonialista.[168] A loucura abre-lhe as portas dum asilo de alienados mentais em Portugal.

 

Dionísio

Filho de Aquiles e de Glória, nascido em 1939, o primo preferido de Chucha com quem mantém uma relação incestuosa, frustrada pelo primo Jaime. Essa frustração marcá-lo-á para sempre: rejeitando Chucha, vinga-se violando a segunda mulher do soba Moma... A pulsão sexual determina-lhe o comportamento, condenando-o ao isolamento, ao silêncio.

 

Heitor

Filho de Bartolomeu e de Eurídice, nascido em 1941, Heitor, para desespero[169] do pai e orgulho do avô, estudou Latim e Grego até ao 7º ano no Liceu do Lubango. Recusou continuar os estudos na metrópole. Desinteressado da política, Heitor tinha apetência pela filosofia, embora rejeitasse a utopia social proposta por Olívia. Gostava da terra e ajudava o pai na propriedade do Bocoio, tornando-se num dos gestores da fazenda Espinha.

 

Jaime

Filho de Bartolomeu e de Eurídice, nascido em 1945. Protagonista da ruptura de Dionísio com Chucha, revela-se libertino, espertalhão e mexido. Estuda Direito para servir os interesses da família.[170]

 

Joel

Filho de Irene e de Álvaro - bisneto de Alexandre Semedo - representa a solução de integração branca na futura Angola, na perspectiva final do bisavô. Joel-Ulisses,[171] partidário do MPLA, opta pela permanência em Angola nas fileiras das FAPLA, mesmo perdendo Nízia.[172]

Joel-Ulisses, a excepção dos Semedos, responde ao “chamado da terra”, e, nesta condição, revela o indecifrável segredo de Yaka: “A estátua representa o colono (...) ridicularizado (...) burro e ambicioso (...) é a sátira do colonialismo.”[173]

Joel-Ulisses, portador da pistola oferecida pelo tenente português e do punhal cuvale com que Vilonda matara Aquiles, parte para a batalha de Catengue, ganha pelos sul-africanos. Acolhido pelos cuvale, integrará a guerrilha contra o novo opressor que ocupara Benguela...

 

Bombó

Um branco renegado que fazia guerrilha contra os outros brancos.[174]

 

O Tenente português

Namorado de Chucha, incita Joel a ficar, e explica-lhe o motivo por que todos os brancos querem partir. Este tenente representa na obra o iluminado Movimento dos Capitães de Abril.

 

Esmeralda

A primeira branca a nascer em Capangombe. Mulher de Oscar Semedo. Devota, analfabeta e discreta[175]. Morreu com o complexo de branca de segunda. Porém, conseguiu casar o filho com branca de primeira.

Donana ou D. Ana de Aragão Semedo

Sopeira na casa dos pais de Oscar, em Portugal. Ao casar por correspondência com Alexandre Semedo realiza o sonho de Esmeralda de ver o filho casado com branca de primeira. Devota, profundamente racista, condena severamente os brancos pelos seus comportamentos sexuais.[176] Apoia aqueles que, como Bartolomeu, têm sonhos expansionistas, condenando a permanente indecisão do marido. O seu grande sonho era o sonho do emigrante:  regressar rica à terra.

Glória

Nascida em Benguela. A rapariga mais bonita de Benguela em solteira. Casou com Aquiles. Viúva e devota, foi viver com os filhos para o sapalalo, onde sempre se sentiu mal. Revela o seu racismo quando Alexandre Semedo instala Chico como seu vizinho de quarto.[177]

Matilde

Mulher de Orestes. Ambiciosa, intriguista, racista, condena os brancos cafrealizados, como Ernesto Tavares.[178] Face à passividade de Orestes, rivaliza com Bartolomeu na condução dos negócios, acabando por se tornar em sua aliada nos negócios, na política e na fuga.

Graça (Chucha)

Terá nascido em 1942. Protagoniza com Dionísio e Jaimito uma cena incestuosa fundamental para a compreensão da decadência a que o branco chegara, numa época em que se louvava a multirracialidade portuguesa. Aceita essa relação quase como natural. A sua volubilidade sentimental seria consequência de vingança do destino, porque Matilde se recusara a dar-lhe o nome de Safo, a poetisa lésbica.[179] Todavia, será o amor impossível por Dionísio que a conduz à permanente mudança de parceiros, incluindo nessa listagem Chico. Acaba por sair de Angola, evidenciando o seu complexo de superioridade rácica.[180]

Olívia

Nasceu em 1952. Mística,[181] em parte, em consequência da educação que recebera num colégio de freiras. Mais tarde, por influência de Alzira, uma colega de estudos na Faculdade do Lubango, substitui o Cristianismo pelo Comunismo - Cristo por Lenine e Che Guevara. Adepta da linha “dura” acaba também por partir para Portugal.[182]  De acordo com A. Semedo, Olívia sentir-se-ia estrangeira na terra, em resultado da época em que nascera.

            Quadro 9

 

 

 

 

 

 

 

 

            Zona cultural mestiça

 

Personagens

Traços de identidade

Isidro

Poeta e músico, compôs, em homenagem a Acácio, uma canção que celebrava a “liberdade, dos quintalões e das pétalas da árvore homónima”.[183] Durante o komba de Acácio foi mesmo preso por incitamento à subversão. Todavia, o seu canto, aquando da morte de Ernesto Tavares, era de alegria pois morrera um sujo traidor.[184]

Isidro foi uma das vítimas do massacre perpetrado pelos brancos para destruir uma rede clandestina, em 1961.[185]

Guilherme

Secretário do Posto do Bocoio:  incendeia as cubatas do Moma.

Chico

Nasce em 1941, filho da mulata Ofélia e de um cabo-verdiano, neto de Alexandre Semedo, Chico representa o ramo maldito da família Semedo. Instruído - tinha o 5ºano do Liceu -, porém, segregado, acaba por trocar, em 1961, o Huambo por Benguela, “cidade mestiça”.[186] Acolhido por A. Semedo no sapalalo, apesar da oposição da família, [187] Chico tem plena consciência de que aquilo que o separa da restante família é a cor.[188]Esta consciência não o impede, porém, de “viver” com a branca Chucha um dos momentos mais caricatos da relação multirracial, cuja consequência é a sua expulsão do sapalalo.

Todavia, em 1974/75, Chico adquire, aos olhos dos Semedos, uma importância estratégica fundamental: a de viabilizar a permanência dos brancos em Angola.[189] Chico herdava através da nominatio dos filhos - Demóstenes e Aristóteles - o legado grego de Oscar Semedo. Mais realista que os Semedos, e incapaz de compreender o pensamento utópico de Alexandre de que a diferença está na cultura e não na cor,[190] prefere os negócios à política, tornando-se o administrador de uma parte da herança de Alexandre Semedo: a loja e a fazenda do Bocoio.

Ermelinda

Vivia no Bairro da Peça. Mulata gorda, amante de Acácio. Exímia cozinheira. Arreigada à cultura tradicional, organizou a komba em homenagem a Acácio, com o objectivo de celebrar a utopia acaciana - a utopia da multirracialidade. Esta audácia levou-a, porém, à cadeia, acusada de incitamento à subversão.[191]

Ofélia

Filha de Alexandre Semedo e de Joana. Quando adulta, rejeita o perfilhamento paterno[192].  Casada com um cabo-verdiano. Mãe de Chico.

Sónia

Uma mulata com origens cabo-verdianas que casou com Chico.

            Quadro 10

 

·      Em síntese:

 

1.    Na configuração cultural negra, o contínuo trabalho de eliminação dos focos de revolta condenou os indígenas à morte, ou à interioridade e à clandestinidade. Em certos casos, pouco expressivos, a uma acentuada descaracterização, como acontece com o Tuca ou com o soba Moma.

2.    A configuração cultural mestiça, enquanto zona de fronteira, é heterogénea porque integra dois tipos de mulatos: os mulatos-filhos-de-comerciantes que defendem os interesses dos pais brancos; e os mulatos-descalços que tinham sido abandonados pelos pais e viviam como os negros.[193] Em termos prospetivos, o destino de Chico confunde-se com o lançamento da semente neocolonialista.

3.    Na configuração cultural branca[194], se excetuarmos Joel, a família Semedo “vive” convencida da superioridade da cor branca, embora despreze o legado grego, e manifesta uma tal abulia que não fora o contributo expansionista do emigrante Bartolomeu Espinha teria morrido de inação.

4.    As personagens femininas, apesar de se inscreverem nas culturas desenhadas no masculino, por vezes, pelas suas atitudes, revelam os limites do masculino ou prenunciam uma sociedade nova onde masculino e feminino terão o mesmo estatuto. O critério da cor mantém-se como traço diferenciador, embora no seio de cada cor o estatuto do feminino possa variar: da alienação à reivindicação de identidade própria. As personagens femininas brancas são apresentadas de forma estereotipada: regra geral, são pouco cultas ou analfabetas, devotas, ambiciosas e racistas. No confronto da negra com a mulata as diferenças são pouco significativas. Todavia, no confronto com a branca, ambas se assumem           como mais próximas do diálogo intercultural, rejeitando, no entanto, a opressão do branco.

 

D.  A imagem como Cenário

Como refere D.-H. Pageaux, nesta fase da investigação é fundamental confrontar os dados da análise textual com os dados fornecidos pela História.[195]

            Ora o que a História[196] nos mostra é que a independência do Brasil (1822) empurrou Portugal, que não os portugueses - esses aumentaram o fluxo migratório para o Brasil - para um novo ciclo africano, durante o qual, perdidos os rendimentos do tráfico de escravos, necessário se tornou encontrar outras fontes de proveito.

            A presença portuguesa na costa africana não tivera, de início, carácter expansionista, pois o “contacto” com as sociedades tribais fazia-se por intermédio das respetivas soberanias, e fora normalmente pacífico, com interesse para as duas partes.[197] A ocupação efectiva do espaço continental a partir das praias, tal como se propôs na Conferência de Berlim (1884-1885), foi uma consequência da acção dos outros Estados europeus que não visavam as populações mas as riquezas contidas no subsolo.

            Até ao 3º quartel do século XIX existe, por um lado, um núcleo colonial - geograficamente uma rede de núcleos -, ocupando cerca de 2% do território angolano actual e, por outro lado, um número considerável de sociedades africanas politicamente independentes, que possuíam as características mais diversas e que, em grande parte, mantinham uma ou outra forma de contacto, directa ou indireta com o núcleo colonial.[198]

            Seguem-se 50 anos marcados por esforços militares, administrativos e políticos portugueses, com o objectivo de delimitar o território e de executar a sua ocupação efectiva, em consequência das disposições contidas no Acto Geral da Conferência de Berlim: O princípio da ocupação efectiva baseada numa autoridade suficiente para fazer respeitar os direitos adquiridos, e o da liberdade de comércio e de trânsito. Todavia, essa missão civilizadora confrontou-se com a insuficiência de recursos financeiros, e, sobretudo, com a falta de recursos humano instruídos e motivados para uma efectiva colonização branca. Esta tarefa, até à década de 30, continuou entregue à escória que a metrópole deportava anualmente para Angola.

 

1.  Os portugueses em Angola - séc. XIX e XX: O relançamento do projecto ultramarino

Foram quatro os caminhos que levaram os portugueses a Angola:

·      O degredo e o exílio.

·        Famílias portuguesas deslocam-se para a costa de Angola, em particular, para a região de Moçâmedes, em consequência duma insurreição armada em Pernambuco, Brasil.

·      A emigração.

·      A deslocação de homens para Angola, integrando as forças militares, que, após o cumprimento do serviço militar, ficavam no território.

Embora a acção em Yaka decorra entre 1890 e 1975, parece fundamental avaliar a verdadeira situação da presença branca em Angola desde que Portugal - perdido o Brasil - virou a sua atenção para esta colónia.

            O Projecto Global Ultramarino apresentado por Sá da Bandeira, em 1836, que implicava a abolição do tráfico de escravos e a reforma da administração ultramarina, e que, em 1838, permitiu criar os órgãos que, ao nível da metrópole, superintendiam os assuntos relativos ao Ultramar, é um dos primeiros passos para a realização do sonho de Sá da Bandeira de uma colonização maciça de brancos. Porém este sonho não viria a concretizar-se.[199]

            Primeiramente, porque a tradição[200] de deportar para Angola os condenados exilados ou degredados era um dos elementos mais prejudiciais ao seu desenvolvimento, como reconheceu o mesmo Sá da Bandeira ao defender que Angola não podia continuar a ser um lugar de exílio para degredados, mas uma casa para cidadãos portugueses honestos e trabalhadores.[201] Apesar das boas intenções de Sá da Bandeira, Lisboa, em 1839, viu-se forçada a recorrer novamente aos degredados para dar ímpeto ao povoamento branco e, nesse ano, um édito real concedia passagem gratuita para África às mulheres e filhos dos degredados.

            Depois, porque esta emigração assistida e a reputação de Angola como túmulo do homem branco se tornaram num poderoso obstáculo à livre emigração. Neste período, apenas a zona costeira de Angola recebeu, entre 1849 e 1851, cerca de 350 emigrantes voluntários vindos do Brasil - em consequência de uma insurreição armada na cidade de Pernambuco, em 1847-1848 - cuja maioria se fixou em Moçâmedes.[202]

            Não encontrando alternativas para o povoamento branco do território, os Governos continuaram a apostar nos degredados, embora tentando controlar o seu comportamento “facinoroso” e empregar de modo produtivo o seu trabalho. Para esse efeito, em 1876, foi decretado o estabelecimento de quatro depósitos de degredados[203] em Angola, tendo apenas funcionado dois, a partir de 1883: um no forte de São Filipe, em Benguela, e outro no forte de S. Miguel, em Luanda.

            Entretanto, com os objectivos já referidos e, ainda, com o propósito de apostar na produção agrícola, foram criadas colónias penais agrícolas. Em Benguela, foi criada uma colónia penal em 1885. Por outro lado, em 1894, as colónias penais passaram também a desempenhar uma função militar, utilizando, deste modo, os degredados como colonos e soldados no interior de Angola. Só que estes recusavam o trabalho, desertavam, aterrorizavam as populações locais...

            Os degredados não só fracassaram como soldados, mas também como agricultores. Eram de tal modo prejudiciais, que Portugal se viu obrigado a confiar em tropas indígenas, recrutadas noutras partes do território, para poder estabelecer-se em grande parte do interior de Angola.

            A título de exemplo, e para que se possa compreender o perfil do degredado, refira-se que entre 1902 e 1914, 57% dos degredados tinham sido condenados por crimes contra pessoas, incluindo: 921 por homicídio, 321 por agressão de que resultaram ferimentos corporais e 177 por violação. Menos de 16% dos degredados que entraram em Angola durante este período sabiam ler, escrever ou contar. Os degredados que entraram em Angola entre 1902 e 1914 superam largamente em número os imigrantes camponeses livres - um padrão que persistiu até à década de 1930-1940.[204]

            Quanto à 3ª via, a emigração livre, sobretudo, de pequenos agricultores, esta revelou-se incapaz de responder aos projectos de colonização que, entretanto, as autoridades metropolitanas iam apresentando ao país, em consequência da avidez das potências europeias.

             Na década de 70, sob o impulso de Andrade Corvo, Portugal conseguiu manter um período de paz e de prosperidade nos territórios do Ultramar, defendendo a resolução dos conflitos mais pela negociação do que pela força.

            Em 1872, foi levado a cabo um importante Inquérito Parlamentar que inspirou a Lei de 28 de Março de 1877, cujo objectivo era “canalizar a emigração para as colónias portuguesas de África, oferecendo auxílios aos emigrantes com este destino.” [205]

            Em 1875, com o apoio de Andrade Corvo, Luciano Cordeiro funda a Sociedade de Geografia de Lisboa, que se torna no motor do renascimento colonial português. Entre 1877 e 1880, esta instituição promove as primeiras grandes viagens de exploração científica entre o Atlântico e o Índico, protagonizadas por Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens.

            Em 1881, a Comissão do Fundo Africano da Sociedade de Geografia de Lisboa faz um apelo Ao Povo português, em nome da Honra, do Direito, do Interesse e do Futuro da Pátria, no intuito de “promover uma subscrição nacional, permanente destinada ao estabelecimento de estações civilizadoras nos territórios sujeitos e adjacentes ao domínio português em África.” [206]

            O decreto-lei de 18 de Agosto de 1881 do Ministério de Júlio Vilhena define o Regulamento das estações civilizadoras,[207]e os seus objectivos:

            - conceder aos viajantes facilidades de acolhimento e comerciais;

            - facilitar a instalação de colonos pela realização de infraestruturas;

            - agir no sentido de atrair os africanos ao “trabalho civilizador”;

            - promover e desenvolver o comércio em todos os seus aspectos e tanto quanto possível pelo trabalho da população africana;

            - divulgar a língua portuguesa;

            - recolher dados sobre todos os aspectos da realidade das regiões e populações circundantes.

            Em 1881-1882, foram publicados dois diplomas que incentivavam a emigração portuguesa para África, em cujo preâmbulo, não faltavam referências à missão civilizadora dos portugueses que deveriam iniciar os naturais na lei e no aproveitamento do trabalho culto, e procurar modificar os usos bárbaros e desumanos das sociedades indígenas. A Lei de 1881 instituía em Angola a “Junta da Emigração Portuguesa”.[208]

            Como se pode deduzir das medidas tomadas, as autoridades portuguesas viam, desde a independência do Brasil, a necessidade de reorientar o fluxo migratório para África, apesar da pouca adesão da população migrante. Esta deslocação das populações tornou-se numa questão vital para a sobrevivência do império colonial português a partir do Tratado de 28 de Maio de 1891, celebrado com a Inglaterra, em que o Governo de Lisboa aceitou as condições inglesas sobre as fronteiras das suas possessões em África. Só que o Governo para garantir essas fronteiras teria de realizar os seguintes objectivos:[209]

·      Ocupar efetivamente esses territórios e consolidar neles o seu domínio.

·      Destruir a resistência armada dos povos indígenas, tornando estes trabalhadores contribuintes dóceis.

·      Impor uma orientação político-económica que subordinasse as colónias à sua área metropolitana.

·      Assegurar a legitimidade internacional

Em 23 de Abril de 1896, é promulgada uma lei que torna gratuitos os passaportes dos emigrantes para as colónias. Tal como em 25 de Abril de 1907, é promulgada uma lei que dispensa de passaporte os nacionais que se dirijam às possessões portuguesas do Ultramar, dificultando simultaneamente a emigração para o estrangeiro.

            A República, em 1911, cria o Ministério das Colónias e introduz mudanças importantes na administração colonial, com o objectivo de promover o desenvolvimento das colónias. Nessa época, Afonso Costa pôs o dedo na ferida ao afirmar que era urgente dar instrução ao povo português “se não queremos caminhar para uma crise, que não teria nenhum remédio” e ao considerar uma “utopia, as tentativas de derivação das correntes emigratórias para a África portuguesa”.[210]

            Em 1921, Norton de Matos voltou a ser nomeado como alto-comissário para Angola com o objectivo de fazer a descentralização administrativa e financeira, retirando benefícios do desenvolvimento colonial sem lhe financiar os custos, tidos como demasiado elevados. Norton de Matos[211] fundou a cidade do Huambo (mais tarde Nova Lisboa), destinada a capital no centro geométrico do território, tomou medidas sérias para acabar com o trabalho forçado dos indígenas, elevando o seu nível de vida e promovendo uma colonização branca por famílias, que assegurasse o fim da mestiçagem, a que era adverso. Embora sem uma verdadeira política de enquadramento dos emigrantes, atraiu para Angola, entre 1920 e 1924, milhares de europeus, conseguindo um crescimento de 75% da população branca.[212]

            Esta política foi continuada por Vicente Ferreira, [213] fervoroso adepto da colonização étnica, entre 1926 e 1928. Por outro lado, também, em consequência, da revolução nacional de 1926, muitos deportados políticos contribuíram para o aumento da presença branca. [214]

            Em resumo, terá sido a acção política de Norton de Matos e do seu sucessor, Vicente Ferreira, que mais contribuiu para que Angola surgisse como uma unidade político-administrativa, a partir dos anos 20:

“É só a partir dos anos 20 deste século, que se pode começar a falar numa formação social angolana, precariamente constituída, implantada no território então definido, sob a forma de um conglomerado onde o núcleo colonial é o centro dominante e as sociedades africanas são reduzidas ao status de periferia. As diferenças entre as sociedades africanas são em parte neutralizadas e em parte acentuadas por uma dominação colonial que recorre a uma variedade de mecanismos, em função tanto das necessidades do núcleo (e da metrópole) quanto das situações regionais em Angola.”

A construção desta unidade, baseada numa política de descentralização em que as autoridades indígenas não perdiam uma grande parte do seu poder é, porém, interrompida com o advento do salazarismo. O novo regime, visando retirar o máximo proveito das colónias africanas, e, sobretudo, integrá-las como membros de um corpo único  que era a Pátria, retoma o centralismo, que apesar das medidas aparentemente facilitadoras da emigração para África, se contenta com a exploração do trabalho negro e retarda o desenvolvimento do interior, possibilitando a implantação de monopólios que limitavam a afirmação da pequena iniciativa branca, e controlavam completamente o africano, através do contrato - criando um novo tipo de emigração forçada no interior das Províncias: como, por exemplo, de Cabo Verde para S. Tomé e Angola, ou de Angola para S. Tomé. Neste contexto, a emigração de portugueses para África, que só poderia ser de povoamento - o que implicava uma política económica e socioeducativa totalmente diferente - só teve uma alguma expressão em momentos muito fugazes durante e após a Segunda Grande Guerra.

            De facto, entre 1929 e 1932, Salazar fez diminuir a população branca, ao pôr termo à colonização dirigida. Até 1951, o Estado desinteressou-se da deslocação de brancos para Angola, de modo a resolver o problema do desemprego e da pobreza na metrópole.

            Em 1950, entre os 135.355 civilizados existentes em Angola, 78.826 são brancos. Os europeus nascidos no território são já 42,57%. Nesta data, os brancos habitam, sobretudo, nas cidades: 45.453 habitam nas 8 principais cidades.[215] Representam 1,9% do total da população, 58,2% do total dos civilizados. Todavia, dos 78.826 brancos, 18.153 são analfabetos, o que não pode deixar de colocar dúvidas quanto à sua capacidade civilizadora.

            Entretanto, em 1952 foi criado o Fundo de Desenvolvimento e de Povoamento com o objectivo de apoiar a colonização dirigida, bem ilustrada pela criação dos colonatos da CELA (fiasco absoluto) e do CUNENE.

            Os Governo de Salazar (e mais tarde de Marcelo Caetano) apostam tudo na política de integração multirracial, cujo principal objectivo era “civilizar”, isto é, realizar a integração social e cultural de toda a população de acordo com o modelo metropolitano.

             Em 1960, Angola tornou-se numa colónia de povoamento,[216] em que os brancos nascidos no território são minoritários em relação aos emigrantes em todos os distritos, exceto no Huíla.[217] Esta dupla origem do branco acaba por, de forma latente, gerar uma nova hierarquia, expressa em brancos de 1ª classe (vindos da Metrópole) e brancos de 2ª classe (nascidos no território). Estes últimos eram, muitas vezes, preteridos na Administração Pública, porque tendiam a ser vistos como integrando a zona cultural dos mestiços e dos negros evoluídos, na medida em que detinham um certo conhecimento das línguas nativas e da cultura africana, resultante do convívio, sobretudo, na infância e na adolescência com mestiços e negros.

            Finalmente, é importante referir que, apesar de Angola, a partir dos anos 60, surgir como colónia de povoamento, este estava reservado apenas aos portugueses, e nesse sentido para que a colonização branca e a integração multirracial pudessem ser realizadas, os estrangeiros tinham sido afastados quase na totalidade do território angolano.[218] 

           

2. O Luso-tropicalismo

Por um lado, pelo papel que terá tido na legitimação da colonização portuguesa, e por outro, porque Yaka se coloca nos antípodas dessa fundamentação, torna-se necessário abordar aqui o impacto do pensamento de Gilberto Freyre em Portugal.  

            Gilberto Freyre ao introduzir, na sua tese de licenciatura, a doutrina sobre as bases da sociedade colonial luso-tropical na formação do Brasil, lançou, no início dos anos 30 deste século, os princípios orientadores dum modelo de colonização portuguesa não racial, geralmente designado Luso-tropicalismo, cujas consequências ainda não desapareceram do imaginário colectivo português. [219]

            A base da sociedade colonial luso-tropical, lançada no Brasil, fora “a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia (mais tarde com a negra ou a mulata), incorporada assim à cultura económica e social do invasor.” [220]

            Como argumento justificativo do tipo de colonização levado a cabo pelo homem português, Gilberto Freyre aponta “em grande parte o seu passado étnico, ou antes cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África (...) num Portugal influenciado pela África, condicionado pelo clima africano, solapado pela mística sensual do islamismo.”[221]

            A partir deste argumento, Gilberto Freyre atribui ao homem português uma dualidade de cultura e de raça que lhe permite uma grande mobilidade e adaptabilidade tanto física [aclimatibilidade] como social [miscibilidade].[222]A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses se compensaram da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas.”[223]

            O colonizador português do Brasil foi o primeiro a apostar na criação local de riqueza, através “da utilização e desenvolvimento de riqueza vegetal pelo capital e pelo esforço do particular; a agricultura; a sesmaria; a grande lavoura escravocrata (...) e do aproveitamento da gente nativa, principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho mas como elemento de formação da família.”[224]

            Além disso, a família foi desde o séc. XVI o grande factor colonizador no Brasil, e não a colonização por indivíduos - aventureiros, degredados, cristãos-novos, traficantes de escravos - contribuindo, através do seu enraizamento em novas terras, para a expansão do “mundo” português.

            Ora o mundo português é, para Gilberto Freyre, filho da força do amor que impera sobre os preconceitos de raça, as convenções de classe, o exagero da luxúria, no contacto dos brancos com as raças de cor. E neste sentido defende” a democratização das sociedades humanas através da mistura de raças, do cruzamento, da miscigenação.”[225] Finalmente, defende “uma consciência supranacional” (...) que nos defina “como uma das grandes federações modernas de cultura.”[226]

            Em conclusão, Gilberto Freyre com esta concepção singular do mundo português, cujo objectivo inicial era explicar a formação da nação brasileira, acabou por gerar um poderoso instrumento ideológico que serviu ao Estado Novo para impor ao povo português a imagem de que na África portuguesa se estavam a construir sólidas e harmoniosas sociedades multirraciais, que, a longo prazo, realizariam a utopia freyriana da constituição duma grande federação moderna de cultura.

           

2.1. Um exemplo de contra-discurso cultural em Pepetela

Uma das obras que melhor ilustra o contra-discurso cultural[227] de Pepetela é a peça em três actos A REVOLTA DA CASA DOS ÍDOLOS, escrita em 1979. Com esta obra, o autor contrapõe ao paradigma luso-tropical das relações não racistas com África,[228] uma recriação demolidora desse mito.

            O luso-tropicalismo - mito romântico - surge, como vimos, como expressão de algumas ideias-força, que acabaram por moldar o imaginário cultural português:

·       O fundo cultural e racial absolutamente único de Portugal metropolitano;

·       A grande capacidade de adaptação às terras e povos tropicais;

·      A inexistência de legislação racial: a discriminação, a existir, dever-se-ia atribuir a preconceitos de classe, mas nunca de cor;

·      Pobres e humildes, os portugueses surgem sem as mesmas motivações exploradoras de outros povos.

 

 

            Teria sido esta forma de ser colectiva que nos permitiu desenvolver de imediato relações de igualdade[229] com os congueses, e criar, mais tarde, a sociedade multirracial brasileira.

            De certo modo, a cooperação[230] devidamente planificada, embora, em função de objectivos determinados pela ideologia dominante da época[231] - expansão da fé cristã (objectivo ecuménico) e expansão económica (objectivo nacional) -, foi iniciada por D. Manuel I, entre Portugal e o Reino do Congo. Pelo modo como marcou o imaginário português, e, sobretudo, pelas consequências que daí advieram para a fundamentação da precocidade da cooperação civilizadora portuguesa, convém referir aqui o Regimento[232] de Simão da Silveira (ou da Silva), datado de 1516, que contém disposições que hoje caberiam bem em qualquer tratado de cooperação.

            Numa época em que o respeito pelas soberanias não-europeias não tinha qualquer significado, nem era aceite o princípio da igualdade para todos os seres humanos, o referido regimento regista o código de conduta de Silveira durante a viagem e, como conselheiro do Rei do Congo, junto de quem deveria trabalhar para que entre outras, como o uso de “selo de armas”, “sinete”, “estandartes”, fossem satisfeitas as seguintes recomendações:

 

- Necessidade de estabelecer laços de fraternidade.

- Rigoroso e exemplar comportamento para os cooperantes: “Vos mandamos que se algum frade ou clérigo fizer cousa que não deva, e for de mau exemplo, o não consintais lá mais...” Tal como outros portugueses “viciosos e de mau exemplo” deveriam ser expulsos.

- Necessidade de evitar interferências prejudiciais (obstáculos físicos e humanos).

- Respeito pela vontade da outra parte.

- Formação de um número significativo de congueses em Portugal.

- Assistência técnica nos domínios da justiça e da guerra, em que se previa o papel de conselheiros, sem papel decisor de modo a não prejudicar os interesses da cristandade.

- Assistência técnica (oficiais mecânicos) “para lhes ensinar em sua terra os ofícios”, por exemplo, no domínio da construção civil (igrejas, uma casa assobradada para o rei, conforme o molde da corte europeia).

- Evitar tratar com o rei do Congo questões essenciais para o rei de Portugal como “escravos, cobre e marfim”, apesar de, subliminarmente, os apresentar como contrapartidas das grandes despesas feitas com o envio de frades e de clérigos, assim como com as dezenas de congueses que estudavam em Portugal.

 

            A preocupação em não incomodar o rei do Congo - D. Afonso[233] -, em matéria de interesses terrenos, leva D. Manuel I (que sucedera a D. João II, em 1495), qual raposa matreira, a delegar em outrem a sua intenção de assentar em terras africanas práticas e políticas europeias:

“E tudo lhe dizeis como de vosso, sem lhe dizerdes cousa alguma de nossa parte, trabalhando o mais honestamente que vós poderdes.” [234]

 Todavia, a relação entre portugueses e congueses, recriada por Pepetela, em A Revolta da Casa dos Ídolos - cuja acção se inicia em 1514 -, desmente essa visão optimista[235] das relações entre os povos: um rei usurpador[236] e aculturado, imposto de acordo com a norma sucessória europeia - D. Afonso[237] - ignora o seu povo, as suas tradições, os seus “amuletos” e condena-o progressivamente à escravatura[238], servindo-se mesmo dos métodos inquisitoriais, acabados de introduzir em Portugal, para ao impor a religião católica, consolidar o seu poder pessoal.

            Esta recriação feita por Pepetela contraria, na quase totalidade, a História portuguesa, pois a relação a estabelecer com o reino do Congo não implicava ocupação ou conquista. Segundo Felner, Simão Silveira não era capitão-mor, nem feitor, era apenas um assistente ou residente na corte do rei do Congo.” Na obra de Pepetela, não há rasto de Silveira[239], e do seu regimento só terá sobrado a caricatura...

            Os portugueses - os estrangeiros[240] - são representados por três personagens-tipo: o Padre, o Capitão e o Lopes, traficante de escravos.

            O Capitão, que observa os africanos com bonomia, dá a força necessária à acção dos dois verdadeiros vetores de expansão do domínio português, representados pelo Padre (religião) e pelo Lopes (comércio de escravos e de marfim) a troco de presentes que lhe permitam no regresso aposentar-se.

            O Padre, hipócrita e lascivo, vê o Congo, como “terra de pagãos, falsos e cínicos” (...) e os seus habitantes como “gentio”: “mentirosos... E ladrões... E lúbricos polígamos... E preguiçosos... Falsos é o que eles são, uns Judas!”[241]. Chega mesmo a bestializá-los.[242]

            Apesar do protagonismo evangelizador do Padre - nomeadamente na estratégia de eliminação dos “amuletos”, para lhes (aos congueses) retirar a suposta força, já que estes se encontravam divididos entre os que aceitavam a tradição de que a força emanava da submissão à vontade dos “espíritos”, e os que defendiam que a força residia na união do povo -, o verdadeiro objectivo é de natureza económica: “O último embaixador que El-rei de Portugal nos enviou com instruções era muito claro: defender ao máximo o tráfico de escravos.“[243]

            A suposta igualdade entre culturas - estrangeira (católica, portuguesa) e conguesa - é totalmente desmentida, como se pode deduzir do desequilíbrio de forças, sintetizadas no seguinte quadro:

 

Estrangeiros

Congueses

Canhões - as bolas da morte

Monogamia

Água benta,[244]cruz

Cristãos

Padre

Norma sucessória europeia

O fogo inquisitorial

Zagaias

Poligamia

Amuletos

Pagãos[245]

Mani-Vunda[246]

Norma sucessória africana[247]

 O fogo do ferreiro

 

            Em conclusão, com a escrita de A Revolta da Casa dos Ídolos, Pepetela põe em causa a visão unilateral das relações com o Congo, recriando, através de personagens como o ferreiro Nimi, Nanga (sobrinho de Nimi), Mpanzu-a-Nzinga (sobrinho de Nzinga-a-Nkuvu), Masala (sobrinho do Mani-Soyo, que fora vendido por seu tio a um português), Temona e Marido e outras Vozes (do Povo), uma outra visão do mundo, que se opunha ao projecto de D. Manuel I de aculturação dos congueses[248].  Uma outra visão do mundo, onde ressurge o sistema matrilinear que fora deliberadamente destruído pela norma sucessória europeia, como o testemunham a eliminação física dos sobrinhos Nanga[249], Mpanzu-a-Nzinga[250], e o afastamento-eliminação de Masala[251].

            Deste modo, o discurso de Pepetela surge como contra-discurso luso-tropicalista[252], que exclui os estrangeiros (os portugueses) da tarefa de fundação da nação angolana, entregando-a ao Povo que, tal como os congueses do séc. XVI, deverá opor-se à presença portuguesa e ocidental..., mas, não menos importante, Pepetela opõe-se a um simples retorno às origens, ao tempo dos manis.

             Esta análise sumária de A Revolta da Casa dos Ídolos impôs-se aqui porque a visão da relação entre colonizador e colonizado, em Pepetela, evoluiu, entre 1979 e 1983: da rejeição absoluta do luso-tropicalismo para um discurso de passagem, defensor do contributo branco para a formação da nação angolana. Em YAKA, apesar do papel dominador do branco português, este já não é apresentado como estrangeiro... dando-se mesmo o caso - após um longo período de consciencialização - de uma minoria branca (Alexandre Semedo e Joel-Ulisses) se empenhar totalmente na libertação de Angola da presença estrangeira - sul-africana.

           

3. A insurreição dos povos angolanos

Como momentos fundadores da identidade angolana, Pepetela no romance Yaka, depois de sumária referência ao conflito, em 1893, com os Dombes e os Cuvales, à 3ª revolta dos Humbe, em 1897,[253] evoca de forma mais detalhada: a revolta dos Bailundos, a vitória dos Cuamatos, a revolta dos Mbunda, a revolta dos Amboins, dos Seles e dos Sumbes, a revolta dos Cuvale, a revolta de 61, e finalmente, a vitória do MPLA sobre os restantes movimentos de libertação.

            3.1. Na 1ª parte - A BOCA - Pepetela constrói a personagem Mutu-ya-Kevela, baseando-se em grande parte na informação histórica fornecida pelo historiador francês René Pélissier. Uma outra personagem Samacaca é também esboçada, a partir da pouca informação reunida pelo mesmo historiador. Fundamental é também a recriação da humilhação portuguesa no Vau de Pembe, em 25 de Setembro de 1904, após a já trágica morte do conde de Almoster, em 12 de Dezembro de 1897.

 

            3.1.1. Mutu-ya-Kevela, herói da guerra luso-ovimbunda de 1902[254]

O factor mais importante desta guerra terá sido a queda dos preços de compra da borracha a partir de 1899. Os caravaneiros ovimbundos recusavam-se a aceitar menos de metade do que era habitual pela borracha comercializada.[255]

            A presença, em território ovimbundo, de quatro missões norte-americanas é outro factor a ter em conta. Estas missões protestantes[256] ensinavam em inglês e em umbundo. E ao contrário dos espiritanos[257] também presentes, os protestantes manifestavam uma atitude de oposição ao comércio luso-ovimbundo, pois eram contra o tráfico de serviçais para S. Tomé e contra a venda de aguardente.

            Porém, o detonador da revolta terá sido a recusa do macota Mutu-a-Quebera ou Mutu-ya-Kevela em se responsabilizar pelo pagamento de “quatro ancoretas de aguardente para celebrar o falecimento do soba do Bailundo, Hundugulu. (...) Intimado a comparecer a 7 de Abril, Mutu-ya-Kevela disse que se recusava a comparecer perante o oficial visto que os Bailundos não queriam mais brancos na região.”[258]

            A hipotética aliança com os sobados de Quipeio (Cipeyo), Huambo (Wambu), Tasso(?), Soque (Quiaca), Quibanda (Civanda), Bimbe (Demba) poderia destruir a rede comercial portuguesa. Estes reinos, porém, não conseguiram unir esforços, o que acabou por facilitar a difícil reação portuguesa.

            Depois de a 15 de Abril, três comerciantes brancos terem sido assaltados e espoliados, de a 12 de Maio, o soba de Galanga ter atacado uma casa comercial com 6.000 homens, de alguns carregadores terem sido assassinados, o capitão-mor português, a 15 de Maio, fez cair numa cilada o soba Kalandula, prendendo-o juntamente com vários seculos. Os guerreiros de Kalandula tentaram defendê-lo, mas, como resposta portuguesa, a embala foi tomada e incendiada.

            Começara a guerra. Mutu-ya-Kevela - eleito, em Junho, soba do Bailundo -, procurou alianças com os reinos vizinhos, de modo a cortar as pistas entre o Bié e Caconda, o Bailundo e o leste, a fortaleza e o leste. Não conseguiu, porém, o apoio dos sobas grandes da Quiaca e do Huambo.

            As consequências foram, por um lado, a fuga dos sertanejos para a fortaleza do Bailundo, enquanto as suas lojas eram tomadas pelos revoltosos, o assassínio de comerciantes brancos e mestiços; alguns transformados em escravos e enviados para os reinos vizinhos; outros transformados em carregadores. Mutu-ya-Kevela conseguia, assim, afastar os portugueses de uma área de mais de 50.000 Km2, poupando, todavia, as missões católica e protestante.

            Apesar da falta de meios e da desorganização, Pais Brandão, que saiu do Libolo a 17 de Junho com uma pequena força,[259] acabou por matar Mutu-ya-Kevela, no dia 4 de Agosto de 1902, com uma bala disparada de longe e, sobretudo, com a cumplicidade do Pe. Joseph Goepp, superior da missão católica.

            Só a 20 de Outubro de 1902, a insurreição dos ovimbundos ficou completamente dominada: nove reinos tinham perdido a sua autonomia (Bailundo, Huambo, Quiaca, Quibanda, Galanga, Sambo, Quipeio, Quibula e Bié). Pela última vez, os ovimbundos - numa afirmação de nacionalismo sem par -, ameaçaram o edifício comercial português do Centro de Angola até ao Katanga.[260]

            Apesar da pacificação do Planalto, foi ainda necessário, em 1904, eliminar a resistência nativa organizada a partir do Bimbe por Samacaca[261] e pelo soba Moma.

 

            3.1.2. A vitória dos Cuamatos no Vau de Pembe (25 de Setembro de 1904)

Os portugueses tinham decidido passar à ofensiva no Sul de Angola, para ocupar o território, situado além-Cunene, face ao expansionismo alemão do general von Trotha. Com esse objectivo, uma coluna militar atravessou o Cunene em Vau de Pembe, deparando com os Cuamatos, cuja estratégia de cerco consistiu em matar os bois e os cavalos para paralisar a coluna, e depois esperar pelo destacamento de reconhecimento, comandado pelo capitão Pinto de Almeida. Os Cuamatos, ocultos entre as árvores, começaram por disparar sobre os oficiais e depois avançaram, eliminando rapidamente a cavalaria e a artilharia, combatendo corpo-a-corpo. O governador Aguiar, que se deixara ficar no acampamento a 2 ou 3 Km de distância, acabou por colaborar no morticínio ao mandar usar a artilharia, que mal apontada disparava sobre os sobreviventes que saíam do mato... Em menos de duas horas, os Portugueses perderam 16 oficiais, 12 sargentos, 109 soldados europeus e 168 soldados africanos...[262]

 

            3.2. Na 2ª parte-Os OLHOS - Pepetela, após breve referência à morte de Mandume, chefe dos Cuanhamas, alude sumariamente à revolta dos Mbunda, dos Luchazes e dos Tchokue,[263] procurando, posteriormente, através da narração da revolta dos Amboins, dos Seles e dos Sumbes, estabelecer a linha de força que conduzirá o leitor aos acontecimentos no Noroeste Angolano, em 1961.

 

            3.2.1. A revolta dos Bunda, dos Luchazes e dos Tchokue

Em Outubro de 1916, as casas dos brancos foram atacadas e incendiadas e os servidores ovimbundos foram queimados nas fogueiras, com o objectivo de libertar o território bunda da presença branca.[264] O mesmo aconteceu nos Luchazes, assim como no norte e oeste de Angola, entre Outubro e Janeiro de 1917. A repressão desta revolta teve como consequência a migração dos Luchazes, dos Bundas e dos Quiocos para o Congo Belga e para a Rodésia do Norte.

 

            3.2.2. A revolta de 1917

            Factores que contribuíram para o eclodir desta revolta:

·       a debilidade numérica dos brancos e dos seus militares;

·       a natureza moral desses brancos - escravizadores, ladrões de terras, e antigos degredados - atraídos pela corrida ao café;

·       até 1915, pelo menos, os roceiros não se contentavam com o trabalho forçado ou obrigatório, recorriam à escravatura;

·       a implantação dos brancos nas colinas era acompanhada da espoliação fundiária;

·       a venda de armas e de pólvora continuava a realizar-se dois anos depois do decreto de 1913, que a proibia;

·      a obrigatoriedade do imposto de cubata;

·      a destituição dos sobas e a deportação dos cabecilhas.

 

            O facto de várias etnias protagonizarem esta revolta, transformou-a na insurreição que maior afinidade teve com a revolta do Noroeste angolano, em 1961.

            Como de costume, perante esta insurreição, e evitando reconhecer a sua responsabilidade, os portugueses apontaram, mais uma vez, o estrangeiro-os alemães,[265]  os ingleses e os boers - como instigador.

            A causa próxima do conflito teve lugar a 28 de Abril de 1917, quando um comerciante branco foi assassinado no Amboim. Os assassinos refugiaram-se no Seles, não tendo sido encontrados pela tropa enviada em sua perseguição. Em compensação, foram presas mulheres que deviam ser levadas para a sede da capitania-mor, em Uco. Durante o percurso, por entre plantações, na margem esquerda do Cuvo, a tropa foi atacada tendo sido obrigada a libertar as mulheres e a refugiar-se numa fazenda. Os revoltosos expulsaram a tropa da fazenda, originando cinco mortos; as fazendas do vale do Cuvo foram saqueadas... Entretanto, no Amboim, alguns brancos foram assassinados pelos criados ou envenenados pelos cozinheiros.[266]

            A 6 de Maio, Puay e Cuacra foram atacadas por 2000 “gentios”, as comunicações com a capitania-mor do Seles e com Novo Redondo foram cortadas. As tropas enviadas em socorro de Novo Redondo eram diminutas. As mulheres e os filhos (mestiços) refugiaram-se na Gabela e na fazenda de Isaac Telo. Os comerciantes de Novo Redondo e de Benguela, sentindo-se ameaçados, exigiram tropas ao Governador-Geral, Massano de Amorim, que conhecendo bem a responsabilidade dos sertanejos não se terá deixado inquietar. 

            Perante a inoperância das forças portuguesas, os insurretos queimaram todas as fazendas e casas comerciais do Seles e começaram a fazer o mesmo no Amboim... Em Novo Redondo, a psicose atingiu o paroxismo: onde estivesse um africano, estava um inimigo; as mulheres refugiaram-se em barcos, pensou-se em cercar a povoação com arames eletrificados.

            A 29 de Junho de 1917, foi decretado o estado de sítio no Amboim, no Seles e no concelho de Novo Redondo. Só a 14 de Julho as tropas do capitão Sepúlveda Rodrigues entraram na Gabela, libertaram a fazenda do Longué, que estava cercada havia meses com oitenta pessoas por trás dos muros.

            Em Setembro, as operações de repressão acentuaram-se com a chegada de uma coluna de 3.000 auxiliares ovimbundos[267] - descendentes das guerras do Nano - e, que finalmente poderiam saciar a fome de vingança. Foi esta coluna que, fazendo uma guerra de extermínio, permitiu aos Portugueses dominar a situação em princípios de Outubro de 1917.

            A perseguição contra os revoltosos continuou até 1920. Por exemplo, na já referida fazenda do Longué, a justiça era expedita ao procurar conhecer o paradeiro dos mandantes, em particular de Bula Matari: [268] os presos do sexo masculino morriam pouco depois dos interrogatórios. Quanto às mulheres, eram mandadas trabalhar para as estradas e para as fazendas, cujo café não parece ter sido queimado. E terminou num holocausto.[269]

 

            3.3. A extensa referência feita ao Povo Cuvale, justifica-se pelo protagonismo que Pepetela lhe atribui quer na 3ª parte - O CORAÇÃO -, quer na 5ª parte - AS PERNAS. Os Cuvales, em Yaka, surgem, de certo modo, como expressão nostálgica, em tempo de guerra, de uma “mediania dourada”.

 

            3.3.1. O Povo cuvale

            Os Cuvales,[270] segunda tribo herero - cerca de 4.000 a 5.000 pessoas, em 1940-1941 -, viviam da pastorícia. Apascentavam os seus rebanhos desde o Coporolo até ao Curoca, a oeste do planalto. Recusavam-se a trabalhar para o colono branco. A frequência com que assaltavam os rebanhos dos brancos e das populações submetidas tornaram-nos uma ameaça para a paz portuguesa.

            Porém, o conflito era, sobretudo, consequência da cobiça de funcionários desonestos e de comerciantes de rapina portugueses. Os comerciantes exploravam a sua fraqueza pelo álcool para os obrigar a desfazer-se do gado.

            A causa próxima dos incidentes de 1940-1941 foi a seguinte: Um velho funante embriagou três cuvales para mandar marcar, enquanto eles dormiam, os bois cobiçados e os afastar da manada. Acordados, os Cuvales maltrataram o funante, mataram-lhe dois criados, recuperaram os bois, e, como represália, levaram todos os animais do funante. Os administradores, conhecedores do sucedido, decidiram que era necessário acabar com os Cuvales. Como era hábito, declaradas as hostilidades, estes seminómadas refugiaram-se com o gado nas Mundas do Hambo a leste do posto de Chiquite, na Serra de Guendelengo ou em diversos redutos montanhosos do Pocolo.

            A 4 de Setembro de 1940, provavelmente em consequência do incidente atrás relatado, o governador da Huíla pediu a intervenção dos militares. A acção de 400 soldados portugueses, com o auxílio de 500 Cuanhamas, e cerca de uma centena de mestiços e, sobretudo, fazendo intervir um avião metralhador para localizar e dispersar os Cuvales, durou, numa 1ª fase, cerca de 3 meses. Numa 2ª fase, que se prolongou até 15 de Fevereiro de 1941, reforçada a tropa em homens e recorrendo a um 2º avião, a operação militar saldou-se em 3.500 prisioneiros e na ocupação do território cuvale. Uma parte destes prisioneiros acabou por ser executada. Mais de 600 homens foram enviados para as roças de S. Tomé com um contrato de dois anos. Os restantes foram encaminhados para a Diamang, deportados para a colónia penitenciária de Damba, “cedidos” às propriedades agrícolas de Moçâmedes e de Vila Arriaga, assim como à Câmara Municipal de Moçâmedes.

            Quanto ao gado, 90% do total terá sido confiscado (19701 cabeças declaradas) e entregue aos indígenas fiéis (Quilengues, Cuanhamas, Cuamatos) ou, com maior certeza, vendido em leilão a Europeus ávidos de gado barato.

            Os Cuvales sobreviventes - em 20 anos - e após cumprimento da pena, conseguiram reconstituir os efectivos pecuários,[271] e a partir de 1974-1975, surgem como um dos baluartes do MPLA, não por convicção ideológica, mas porque a UNITA surgia associada aos Ovimbundos, povo vizinho e inimigo que sempre cobiçara o gado cuvale. Por outro lado, e estrategicamente, o MPLA, soube apresentar-se aos olhos destas populações como mweneputo,[272]ou seja como sucessor lógico do poder anterior, promovendo alguns notáveis cuvale a “activistas-notáveis”, devolvendo-lhes, deste modo, o poder de representar localmente os interesses do Partido e do Estado. Neste contexto, assistiu-se, em 1974-1975, a uma incorporação maciça dos Cuvales nas Fapla, contrariando a tendência anterior para rejeitar qualquer alistamento, durante o período colonial.[273] Com o tempo, os Cuvales, mesmo desmobilizados, tornaram-se numa milícia sempre pronta a intervir ao serviço do MPLA, dando ao mesmo tempo continuidade à recuperação socio-económica que o grupo tinha encetado após o exílio de 1941, através da reconstituição das manadas e dos rebanhos.

            Apesar da ligação profunda que mantém com o actual Poder, os Cuvales continuam a preservar a sua identidade, e, sobretudo, uma cultura que pelo seu particularismo acabará mais cedo ou mais tarde, face aos desígnios de um Estado centralizador, por reviver situações dolorosas já experimentadas no passado.

 

            3. 4. Na 4ª parte - O SEXO - Pepetela evoca as consequências da revolta de 1961. O colono vê, em toda a parte, um novo inimigo - o terrorista - ao serviço do estrangeiro.[274] E utiliza essa ameaça para intensificar a repressão sobre o negro e o mulato, apesar da acção reformista do novo ministro do Ultramar, Adriano Moreira.

 

            3.4.1. A revolta de 1961

Na madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de patriotas angolanos atacou a prisão de S. Paulo, o aquartelamento da Companhia Móvel da PSP e a Casa de Reclusão Militar.[275] Os revoltosos perderam quarenta elementos e as forças da ordem sete. Os sobreviventes refugiaram-se nas matas do Norte e Nordeste de Angola. Durante os funerais, colonos brancos em fúria massacram centenas de negros.[276] Entretanto, a 15 e 16 de Fevereiro de 1961, grupos de camponeses bakongos, enquadrados pela UPA, atacaram postos administrativos, vias de comunicação, povoações e sanzalas, mutilando e matando homens, mulheres e crianças europeus, assim como assimilados negros ou mulatos, considerados agentes dos portugueses. A resposta portuguesa foi rápida e brutal e não se limitou à região dos ataques rebeldes. Foram à pressa formadas e armadas milícias brancas. O reino do terror instalou-se.[277]

            Em consequência destes acontecimentos, Salazar remodelou o Governo, chamando para as pastas do Ultramar e dos Estrangeiros, Adriano Moreira e Franco Nogueira. Enquanto o primeiro, durante a sua breve acção governativa, aposta no povoamento por elementos europeus, de modo a dar sequência ao princípio fundamental da política  de integração multirracial, sem a qual não haveria nem paz nem civilização na África Negra, [278] seguindo o exemplo da formação do Brasil. Entre outras medidas, Adriano Moreira  revoga o Estatuto do Indígena, determinando que “o povo português está submetido a uma lei política que é igual para todos, sem distinção de raças, de religião ou de teor cultural dominante.”[279] Reorganiza as regedorias rurais, cujos gestores seriam eleitos na forma tradicional pelos moradores.[280] Regulamenta a Ocupação e Concessão de Terras nas Províncias Ultramarinas, assegurando o interesse e direito das populações sobre os terrenos por elas ocupados ou explorados, e determinando punição severa para a deslocação das populações.[281] Por seu lado, Franco Nogueira, o rosto do regime, tenta moldar a realidade internacional, fazendo crer que tudo o que se passa em África e, em particular, em Angola, é obra dos comunistas.

 

            3. 5. É já na 5ª parte-As PERNAS - que Pepetela evoca a retirada portuguesa de Angola, e que, para além de recriar a “guerra” de 1975, entre os vários movimentos de libertação, pela posse da região e da cidade de Benguela, e a invasão sul-africana, retoma - para explicar as razões da fuga da família Semedo - a luta anticolonial, nomeadamente no Leste de Angola.

 

 

 

            3.5.1. A Frente Leste

Em 1966, o MPLA abrira a Frente Leste, onde se desenrolaram os principais acontecimentos militares até ao 25 de Abril. No Leste, em 1968, morreram Hoji ia Henda,[282] num ataque ao quartel de Caripande, o médico Américo Boavida, perto do rio Lweji. O maior número de baixas do MPLA deu-se em 1968, quando cem guerrilheiros do MPLA foram apanhados pelos portugueses devido a traição de um soba que atraiu a uma cilada o comandante Veneno “Fati”. Em consequência deste episódio, nasce a “Revolta do Leste”, que em 1972 é aprofundada pela “Revolta Activa”.

 

            3.5.2. A luta fratricida

            Com o 25 de Abril de 1974 e, apesar da intenção portuguesa de proceder à descolonização,[283] o MPLA reivindica a independência imediata, e os três movimentos, em 1974, tentam ocupar e controlar áreas cada vez maiores, para surgirem em posição de força na negociação do cessar-fogo com os portugueses.

            Após a assinatura dos acordos do Alvor em 15 de Janeiro de 1975, instala-se em Luanda o Governo de Transição quadripartido. Porém em Agosto, após sangrentos confrontos em Luanda, a FNLA e a UNITA são expulsas da capital, inviabilizando a formação de um exército único de 30.000 homens e as prometidas eleições.

            O conflito internacionaliza-se: os sul-africanos entram no território angolano em Setembro; forças cubanas e catanguesas atuam ao lado das FAPLA, em meados de Outubro, contra os mercenários de Holden Roberto.

            A independência, a 11 de Novembro de 1975, é comemorada ao som de morteiros disparados bem próximo da capital. No Huambo, a FNLA e a UNITA proclamam a República Democrática de Angola, que rapidamente se desfaz com a expulsão do movimento de Holden Roberto das áreas da UNITA.

            Zairenses, sul-africanos e cubanos substituem as forças portuguesas. No dia 11 de Novembro, os soviéticos fazem uma ponte aérea para descarregar equipamento militar, em Luanda, e um navio descarrega os primeiros seis BM 21,[284] que seguem directamente para a frente contra os sul-africanos, que tinham avançado até ao rio Keve e tomado Novo Redondo, sem, todavia, conseguirem entrar em Porto Amboim. Entretanto, em Dezembro de 1975, Cuba envia para Angola mais de 7.000 soldados.

            Em Fevereiro de 1976, as FAPLA tomam Lobito e Benguela à UNITA. A 27 de Março do mesmo ano, os sul-africanos retiram-se do território angolano. O MPLA celebra vitória.

            3.5.3.  A retirada dos portugueses

Enquanto, os movimentos autonomistas lutavam no terreno pelo controlo do território, e ainda antes da assinatura dos acordos do Alvor, a 15 de Janeiro de 1975, já teriam regressado a Portugal 50.000 portugueses de Angola.[285] Os brancos mais activos criaram uma série de partidos brancos, uns pró-MFA, outros contra. Outros aderiram aos movimentos de libertação, sobretudo à UNITA e à FNLA.

             A Operação de Repatriamento de Angola começou no dia 13 de Maio e terminou a 9 de Novembro de 1975. Para além dos aviões portugueses, estiveram envolvidos nesta ponte aérea, aviões americanos desde o final de Agosto, e aviões da França, da RFA, da Grã-Bretanha, da RDA e da URSS, desde princípios de Setembro, chegando a registar-se uma média diária de 15 voos, entre Luanda e Lisboa.

            Segundo Gonçalves Ribeiro,[286] 400 mil portugueses terão saído de Angola para Portugal, para além dos que partiram para outros rumos, nomeadamente, para a África do Sul. Em meados de Agosto de 1975, cerca de 20.000 portugueses tinham cruzado a fronteira da África do Sul.

 

            4. A questão étnico-linguística

Se a componente étnica não deixa de estar sempre presente ao longo do romance YAKA, na medida em que, pelo menos até 1961, a autoria das revoltas é sempre atribuída a uma ou várias etnias,[287] o mesmo não acontece com as respetivas línguas.

            Neste sentido, é útil conhecer a distribuição das línguas locais e o seu estatuto face à língua de colonização, de modo a compreender o sentido das opções do romancista. Este escreve em Português, língua de colonização que, tal como as outras línguas de colonização (Francês e Inglês), nunca foi falado por mais de 10% da população nativa, sobretudo nas zonas de maior contacto com o colonizador - litoral, cidades, cinturas de exploração mineira - com quase exclusão das zonas rurais.[288] Paradoxalmente, o escritor africano, ao optar pela língua do colonizador, contribui com o seu prestígio para alimentar, por um lado, no imaginário da antiga metrópole, a  (falsa) ideia de uma grande área linguística e cultural, que, afinal, continua a dever a sua existência à manutenção pelo novo poder da dicotomia élite-povo,[289] e por outro, transforma a língua de colonização na chave da mobilidade social, perpetuando a opressão.

            Este divórcio veiculado pela literatura resulta da maioria dos autores francófonos, anglófonos ou lusófonos terem sido profundamente aculturados pelas culturas metropolitanas, adoptando o preconceito do colonizador em relação às potencialidades das línguas dos povos colonizados.

            Foi essa desvalorização que originou que, em termos de estatuto, a letra da lei portuguesa reservasse às línguas vernaculares o papel de auxiliares de aprendizagem do Português. Essa desvalorização das línguas vernaculares, teve como contrapartida o reforço significativo do ensino do português quer após o início da guerra colonial (1961)[290] quer após a independência de Angola (1975).[291]

            Ora a realidade sociolinguística de Angola sempre se revelou um poderoso obstáculo a políticas linguicídias, mesmo que isso tenha significado a segregação dos povos.

 

 

 

 

 

            4.1. Mosaico etno-cultural[292]

 

Umbundo

É a língua do grupo Ovimbundo - situado no Centro-Oeste - que representa pouco mais de 30% da população. Sendo a principal língua vernácula de Angola, potencialmente, o Umbundo poderá tornar-se numa de língua de prestígio,[293]devido à percentagem de falantes e ao facto de se situar numa zona do território onde utentes seus dominam outras línguas locais, para além da considerável diáspora dos Ovimbundos. 

Quimbundo

É a língua dos Mbundos da Zona Luanda-Cuanza Norte-Malange, com cerca de 20%. Historicamente, apesar de ser a 2ª língua quanto ao número de falantes, o Quimbundo adquiriu algum prestígio por ser falado na região de maior interacção luso-africana.

Kikongo

É a língua dos Bacongo falada nas províncias do Norte, com cerca de 15%. O Quicongo goza do estatuto de ser uma língua transfronteiriça.

Lunda-Quioco

É a língua falada por Lundas e Quiocos no Nordeste de Angola. Tal como o Kicongo, também o Lunda-Quioco é falado para além da fronteira.

Ganguela

É a língua falada pelos Ganguelas nos distritos do Bié, Moxico, Cuando-Cubango, e, ainda entre outros, pelos Luchazes e Bundas.

Nhaneca-Humbe

É a língua falada por algumas populações residentes nos distritos da Huíla e do Namibe, em particular pelos Quilengues.

Cuanhama

É a língua dos Ambós, compreendendo, entre outros, os Cuanhamas e os Cuamatos.

Donga

É a língua dos Dongas, a sul do Cuando-Cubango.

Herero

É a língua dos Hereros, compreendendo os Cuvales, os Dombes e outras populações residentes nos distritos do Namibe, da Huíla e de Benguela.

 

            Para além de todos estes povos de origem banta, no território angolano, ainda que demograficamente pouco representativas, encontram-se outras populações, como os Cuissi, de origem vatua, e os Koi-san (pejorativamente designados por Bosquímanos), sem esquecer as minorias Mestiça e Branca, cuja língua - o português - foi declarada língua oficial de Angola em 10 de Dezembro de 1975.[294]

            Apesar da representatividade das línguas locais, nomeadamente do umbundo, do quimbundo e do quicongo, foi em português que a literatura nasceu, apesar de marginalizada - ou mesmo hostilizada, porque os escritores se tornaram anticolonialistas, sobretudo a partir de 1950. Nasceu em português com a publicação do Boletim Oficial, em 1845, que para além de difundir as leis, acolhia também artigos, contos e narrativas várias. Todavia, o português raramente era língua materna.[295]

             Em 1966, estavam registadas 407 espécies bibliográficas em e sobre línguas vernaculares, sendo mais de 80% da autoria de missionários, que procuravam, em primeiro lugar, a evangelização, depois a educação e, em particular, a aprendizagem da leitura e da escrita nas próprias línguas e também o seu conhecimento por alienígenas. Cerca de 40% desses espécies reportam-se ao umbundo, 17% ao quimbundo, 13% ao quioco, 12% ao quicongo...[296] Porém, em termos globais, o esforço das missões não é significativo, porque há muito tempo que o linguicismo tinha iniciado a sua tarefa de substituir a religião na sua função “civilizadora”.

            Em síntese, quer o colonizador quer o novo poder instituído - perante a complexidade sociolinguística e sociocultural do território angolano - e em nome de uma visão ideológica (linguicismo), segundo a qual a um país deve corresponder uma língua, optaram por impor uma língua que, se, por um lado, lhes permite integrar o espaço da lusofonia,[297] por outro lado, contribui para o adiamento[298] da afirmação identitária de importantes comunidades, ou mesmo para o seu aniquilamento...

            Num país plurilingue, em que a língua portuguesa era a única efetivamente utilizada na escola e na administração pública, o governo angolano acabou por instituí-la como instrumento político de unificação nacional não apenas por falta de recursos materiais e humanos, mas, sobretudo, porque era nela que se baseava o seu próprio poder, isto é, foi nela que o poder se constituiu - e essa terá sido a maior vitória do colonizador.

 

5. Pepetela[299]

 

“La personnalité humaine ne devient historiquement réelle et culturellement productive qu’en tant que partie d’un tout social, dans sa classe et à travers sa classe. (...) Seule cette localisation sociale et historique rend l’homme réel et détermine le contenu de sa création personnelle et culturelle.”[300]

O longo caminho percorrido até aqui, no sentido de confrontar YAKA com os dados fornecidos pela História da relação entre colonizador e colonizado em Angola, nos últimos 120 anos, - isto é, de estabelecer a ligação entre processo histórico e produção textual e de caracterizar o imaginário subjacente[301] - só ficará concluído com a “localização social e histórica” de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos.

 

5. 1. O Homem

                        Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos - Pepetela ("pestana" em umbundo) pseudónimo com que assina a sua obra -, nasceu em Benguela a 29 de Outubro de 1941. É angolano de seis gerações e à sua designou-a "da utopia". Pelo lado do pai, virá da Beira Alta ou da Beira Baixa. Do Brasil, pelo lado da mãe. Esta emigração dos pentavós maternos teve origem numa insurreição armada na cidade brasileira de Pernambuco. Em meados do século XIX, os avós maternos encontravam-se entre os fundadores da cidade de Moçâmedes.

            Esses avós eram portugueses (ou brasileiros, já?) mas "com mistura" (de ciganos, de indianos, de qualquer coisa assim), o que explica aquele tom de pele do escritor que, à primeira vista, nem branco nem preto parece, mas mestiço - desejo profundo de Pepetela de justificar no corpo o imaginário que transporta para os livros. Livros que tanto devem à mitologia africana quanto subsidiários são da cultura europeia.[302]

            Artur Santos, nascido em Benguela,[303] cidade que se caracterizava pela frequente mestiçagem de muitas famílias dedicadas ao comércio, como a sua, e pelo tradicional liberalismo - foi a única, em todo o Império, onde Delgado ganhou oficialmente as eleições em 1958. Foi na escola primária que a professora lhe descobriu a vocação para contar histórias. Apesar de durante a infância, não ter sentido o papel segregador da cor, quando chegou aos 12 anos, acabou descobrir a discriminação racial, talvez por influência de um tio jornalista, republicano e anticolonialista, que lhe deu a ler certas obras, assim como pela leitura dos romances clássicos que compunham a biblioteca do pai.[304] É por essa época que descobre o nacionalismo, através da poesia do amigo e poeta Aires de Almeida que evocava a realidade local, benguelense e angolana. É neste contexto que no boletim do colégio Nuno Álvares publicou um pequeno conto, onde já estava presente a dimensão social.

            O prosseguimento dos estudos no Lubango - cidade onde a sociedade branca era, excecionalmente, majoritária e manifestamente racista - acabou por agudizar-lhe a consciência da segregação racial.[305]

            Em 1958, Artur Santos frequentava o 7º ano, alínea F, do Liceu Diogo Cão no Lubango. Lá conheceu o padre Noronha, um luso-indiano de Goa, professor de filosofia que gostava de falar da revolução cubana e de Fidel Castro e, que, em 1958, o mobilizou para a campanha eleitoral de Arlindo Vicente, candidato da esquerda.[306] Este padre exerceu uma tal influência no desabrochar da consciência da identidade angolana em Artur Santos que este quando chegou a Lisboa, para continuar os estudos, já tinha plena consciência de que Angola era um país e não uma província ultramarina.

            Nos quatro anos que viveu em Portugal, frequentou a Casa dos Estudantes do Império[307] - ambiente, que considera o seu meio natural e que descreveu na 1ª parte de "A Geração da Utopia",[308] onde rememora a greve académica de 1962 e a sua fuga ao serviço militar -, depois de ter trocado o Instituto Superior Técnico pelo Curso de História da Faculdade de Letras de Lisboa, porque lhe interessavam muito mais os problemas sociais.

            Na Casa dos Estudantes do Império, colaborou em Mensagem,[309] e participou na formação da R.I.A. - Reunião Interassociações - que teve um papel importante na coordenação da greve estudantil em 1962.

            Ao desertar, foi inicialmente para Paris - viveu 6 meses em Belleville, e ganhava uns francos na Imprimerie Desfossés, varrendo o chão -, onde se enquadrou com a "malta" do MPLA, apesar de só se ter filiado em Argel. Em Paris deve ter lido toda a obra de Boris Vian, e ainda Gide, Vaillant e Malraux.

            Algum tempo depois, partiu para Argel - para o Centro de Estudos Angolanos -[310] onde se licenciou em Sociologia.  Durante esse período, trabalhou na elaboração de uma "História de Angola" e de um "Manual de Alfabetização”, escrevendo Muana Puó, em 1969.[311]

            Seis anos depois de ter chegado a Argel, Pepetela parte para Angola - Cabinda - como "guerrilheiro" e escritor.[312] A Literatura foi um dos motivos que o levou à guerrilha.[313] E é nessa dupla qualidade, de guerrilheiro e de escritor, que descobre na escrita um meio que lhe permitia suprir a inexistência de suportes didáticos adequados ao combate político,[314] reflectir sobre as contradições da luta armada, teorizar a experiência adquirida no contacto com os guerrilheiros no campo de batalha.[315]

            Durante os cinco anos que participou na luta armada, dedicou-se ao trabalho de educação e organização das populações, transformando-se num quadro político-militar. Primeiro em Cabinda, e desde 1972, na Frente Leste (onde comandou um grupo de combate de sete homens).[316]

            Em Novembro de 1974, temo-lo em Luanda a instalar a primeira delegação do MPLA na capital de Angola. À beira da independência, ele era o responsável pela Educação e pela Orientação política do MPLA, apesar de continuar a participar na acção militar:

" Quando o exército sul-africano desfez o exército angolano e conquistou Benguela, apanhei duas doenças providenciais: uma hepatite deixou-me fora de combate, enquanto casava (com Filomena, em 1975). Se não fosse isso, agora estaria morto." [317]

Entretanto, Agostinho Neto nomeou-o para o ministério da Educação, como vice-ministro (1977-82), de onde, apesar da importância da acção educativa,[318] desejava sair para poder escrever, o que aconteceu em Dezembro de 1982.

           

5.1.1. Da génese e intencionalidade de YAKA

Pepetela começou a escrever YAKA, no dia 2 de Janeiro de 1983, embora a sua preparação tenha começado em 1979 ou 1980.[319] Este projecto integra-se na linha temática, inaugurada por Muana Puó, da formação da nação angolana, e por isso dá plena expressão à preferência do autor pela História, isto é, pelo passado, no sentido de reencontrar as raízes da nação angolana.

            Foi essa procura que o levou a YAKA[320] ou, melhor, aos jagas / yakas - o “cazumbi antecipado da nacionalidade” -, na medida em que esta organização social guerreira, originária da Lunda, teria, no passado longínquo, criado uma série de estados desde o Congo ao Sul de Angola,[321] passando pelo planalto central.

            Na tentativa de alicerçar essa unidade futura, e devido à extensão temporal e territorial, Pepetela optou por YAKA como representação crítica da realidade, dividindo o romance em cinco momentos[revoltas]” significativos da própria história da região.”[322]

 

5. 2. Pepetela, escritor da angolanidade?

Como afirma Jacques Chevrier,[323] uma literatura só existe a partir do momento em que ela põe à disposição do leitor um certo número de obras cuja especificidade temática e estilística provém do enraizamento numa cultura e nos modelos de que se inspira, o que implica o estudo minucioso das preocupações de cada escritor, do seu estilo, das influências literárias e culturais que a sua obra reflecte, do imaginário em que mergulham as suas criações, do “génio” da nação ou do grupo étnico de que ele se faz simultaneamente o porta-voz e o espelho.

            Ora a literatura é, em Angola, um dos instrumentos fundamentais de construção da angolanidade, se a entendermos no sentido em que foi definida por José Carlos Venâncio,[324] embora numa dimensão prospetiva:

 

"O resultado da maneira muito específica de os intelectuais angolanos (...) de os dirigentes políticos, apreenderem o espaço geopolítico herdado do colonialismo e a consequente predisposição de o quererem transformar em espaço nacional por meio da sua (des)alienação em relação às sociedades periféricas, às sociedades tradicionais." [325]

Como já vimos, Pepetela, ao referir-se às suas “preocupações de fundo”, na sua obra, mostra-se plenamente consciente deste objectivo:

 

“Há um tema que é comum, que é o tema da formação da nação angolana. Isso faz o denominador comum.” [326]

 

            Confrontado com a possibilidade de a preocupação ideológica - a formação da nação -, poder prejudicar o valor literário da sua obra, Pepetela considera mesmo que a sua opção é comum à de muitos outros escritores que participaram na formação das respetivas nações. De acordo com essa orientação, a sua escrita inicialmente didática[327]- no sentido pessoal, reflexivo, e no sentido do outro, estudantes e guerrilheiros -, passou a uma fase de intervenção directa,[328] como aconteceu com A Revolta da Casa dos Ídolos pensada para o grande público - no caso, o do teatro.

             YAKA, integrando-se na fase da formação activa da ideia de angolanidade - espaço, cujas fronteiras devem ser respeitadas porque traçadas com o sangue das vítimas do colonialismo, independentemente da origem étnica e cultural -, surge, no entanto, como forma legitimação do papel da minoria branca que optou por participar na formação da nação angolana.

           

5.2.1. Da opção linguística à construção da angolanidade   

Mas a angolanidade não se inscreve apenas no quadro da opção ideológica. A angolanidade - que deverá ser expressão do complexo mosaico linguístico e cultural angolano - passa inexoravelmente pela opção linguística.

            Pepetela, à semelhança da maioria dos escritores angolanos, viu-se forçado, pela matriz revolucionária e minoritária da independência angolana, a escrever todas as suas obras em português, como se a morte do colonizador não passasse de uma efémera ilusão..., talvez porque a ideia de angolanidade seja ainda uma projeção do sonho colonial, absorvido pelas elites locais, educadas pelo Norte para explorar o Sul...

            De matriz linguística e cultural portuguesa,[329] Pepetela integra esse grupo de angolanos - de origens diversas e historicamente hostis -, unidos pelo projecto de destituir o colonizador, mas que, separados pelas línguas e culturas de pertença, paradoxalmente só podem agir na língua do colonizador. Situação ilustrada, em 1971, no romance Mayombe, através do narrador Muatiânvua:

 

“Querem hoje que eu seja tribalista?

De que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, não de só de Angola, como de África? Não falo eu o swahili, não aprendi eu o haussa com um nigeriano? Qual é a minha língua, eu, que não dizia uma frase sem empregar palavras de línguas diferentes? E agora, que utilizo para falar com os camaradas, para deles ser compreendido? O português. A que tribo angolana pertence a língua portuguesa?” [330]

Neste romance, escrito durante a luta de libertação, a língua portuguesa desempenha uma função veicular, na medida em que naquela situação plurilingue e pluriétnica vivida na Base, só ela permitia o diálogo no seio da guerrilha. É esta dificuldade de comunicação que justifica a decisão tomada, em 1975, pelas novas autoridades, de declarar o Português como língua oficial, apesar das, já referidas, reticências do Presidente Agostinho Neto.

            Mais tarde, Pepetela acaba por defender uma visão peculiar e alinhada da situação linguística e cultural de Angola, como se pode ver pelo seguinte comentário ao censo de Luanda de 1983, em que 98% da população respondia “saber falar português” face às perguntas: “Que língua é que fala?” e “Que línguas nacionais é que fala?”

“Mas o facto curioso - curioso e que ao mesmo tempo pode ser preocupante (...) -, é que dois terços das crianças com menos de 14 anos de idade só falavam português - já não falavam kimbundu, umbundu ou kikongo: só português... O português é que é a língua materna de dois terços da população desses municípios, que nós podemos mais ou menos generalizar, da população de Luanda... E, portanto, a questão que eu punha-os portugueses, por exemplo, estão muito preocupados com a preservação da língua portuguesa nas antigas colónias (...), eu estou preocupado é com a preservação das línguas nacionais, porque parece que o português vai desalojar completamente as línguas nacionais se não houver um esforço de preservação dessas línguas (...)”[331]

 

            Baseando-se nos dados fornecidos pelo Censo de Luanda, acaba por confundir a “ilha Luanda” com a situação linguística global de Angola. Assim se explica que, ao contrário de outros estudiosos desta questão que entendem que o português deve ser estudado como L2 devido à sua expressão minoritária, Pepetela defenda o bilinguismo, por razões mais culturais do que linguísticas, reduzindo-o sintomaticamente a um subsistema:

“Eu acho que era preciso desenvolver esforços no sentido de haver um bilinguismo regional. Digamos, claro, o português é a língua que serve de unidade, oficial - que seria falado por todo o lado -, mas que cada pessoa pudesse conservar a língua da sua região de origem, ou, enfim, a que está mais praticada...Que pudesse, portanto, manter-se esse bilinguismo. E, por esses dados de Luanda, parece que a tendência será ter um monolinguismo só... É isso que é preocupante... Porque, realmente, há uma série de dados da cultura que estão associados à língua e que se poderão perder.”[332]

            A defesa de um bilinguismo regional surge, por conseguinte, como suporte de um biculturalismo regional, cuja função será preservar a tradição de modo a construir a angolanidade[333] (espaço em que os particularismos regionais terão como missão suportar a ideologia identitária), que no pensamento de Pepetela se apresenta como síntese da tradição e da modernidade, como se poderá ver no romance Lueji - O Nascimento de um Império.

            Este projecto identitário baseia-se, com o fito de unir o que está efetivamente separado, no caldeamento de culturas, muitas de suporte oral, que desaparecerão da memória angolana, se não for desenvolvida uma política que fomente o bilinguismo. Sendo impossível imaginar a preservação de uma cultura oral sem o suporte escrito - pelo menos até há uns anos -, isto é, sem o desenvolvimento das línguas maternas, Pepetela justifica, deste modo, a necessidade de preservar as línguas, independentemente da sua origem africana ou europeia, embora à língua portuguesa destine o papel de unir, de ser expressão privilegiada da modernidade angolana:

“Evidentemente, eu penso que a nossa literatura precisa de ir à tradição - e eu, sempre que posso, tento ir, procurar raízes. Isto é uma sociedade com muitas fontes - não só fontes propriamente africanas, mas que são diversas, conforme as regiões, conforme as culturas e as etnias; mas depois, toda a influência europeia, quer de Portugal, quer do resto da Europa, quer do próprio Brasil, etc. Há um caldear de culturas, aqui, e nós temos de ir procurando raízes daquilo que faz uma certa identidade. “ [334]

            Em síntese, o bilinguismo é uma necessidade para Pepetela por razões de natureza cultural e ideológica, não o equacionando abertamente do ponto de vista do ensino, porque a sua tese, baseada na “ ilha Luanda”,  tende, também, a apresentar a língua portuguesa como língua materna - embora influenciada pelas línguas banto muito mais a nível fónico do que propriamente da estrutura -, capaz, de, a médio prazo, se tornar no suporte dominante da angolanidade - isto é, da modernidade -, deixando às línguas locais o papel de suportes da tradição.

            O modo como um homem que, durante bastante tempo, foi o segundo responsável pelo Ministério da Educação angolano, vê o problema do planeamento linguístico é, todavia, preocupante, porque tudo leva a crer que a situação linguística no território angolano é muito mais complexa, como se pode comprovar por um artigo de Annette Endruschat que, talvez, permita compreender um pouco melhor este problema:

 

“Cada vez mais angolanos entram (...) em contacto com formas escritas de literatura (...) A quase totalidade das obras literárias está escrita em língua portuguesa, mas somente 30% dos angolanos possuem actualmente uma competência comunicativa na língua veicular do país, função definida do português. A maioria da população desconhece ou a domina somente como língua segunda de maneira insuficiente. “[335]

A. Endruschat, contrariando a ideia da hegemonia da língua portuguesa e, principalmente, apontando para a inevitabilidade de um desenvolvimento específico do português em Angola, caracteriza a situação linguística de Angola:

“Como o país se encontra numa situação bi - e mesmo Multilingual e porque as funções de comunicação do português e das línguas nacionais respectivamente ainda não estão claramente definidas e separadas, é, natural que, sobretudo, na linguagem falada, se produzam interferências entre estas línguas.” 

E indica os principais factores que condicionam a situação do português:

·      A situação bilingual que se traduz por interferências entre o português e as línguas bantas;

·      O desenvolvimento social, económico e cultural independente do país: o que se traduz por novas necessidades de comunicação e sobretudo pela renovação lexical;

·      A ausência de uma influência normativa permanente, que se traduz pelo surgimento de particularidades linguísticas no português angolano: no estrato fonológico-fonético, a abertura das vogais finais e a nasalação e aspiração de vogais; no estrato lexical surgem numerosas palavras de origem banta, sobretudo designações de fauna, flora, religião e cultura tradicionais, mas também expressões emocionais; no estrato sintático, ocorrem transformações sintáticas por influência das estruturas sintáticas bantas.[336]

 

           

 

 

 

6. A imagem como cenário - confronto e síntese

 

“ Il convient de faire non une confrontation simple, mécanique entre texte et contexte, mais un détour par l’Histoire, surtout celle des mentalités, des sensibilités. Et c’est bien sûr ce détour qui éloigne aussi l’imagologie de la littérature stricto sensu. Il est nécessaire mais non suffisant. En effet, l’interprétation de l’image ne relève pas seulement de l’histoire. Elle requiert outre une étude sur sa nature poétique, au sens le plus neutre (partie d’un tout qu’est le texte littéraire), une étude fondée sur des données qui ressortissent à l’anthropologie culturelle.”[337]

A leitura a que procedemos de YAKA, assim como o estudo de alguns aspectos significativos da História da colonização de Angola, permite-nos, em primeiro lugar, confirmar a profunda relação estabelecida por Pepetela entre História / Sociologia / Literatura, nomeadamente no que concerne à criação literária. Dir-se-ia que a “localização social e histórica” do homem / escritor tornou inevitável o “conteúdo da sua criação pessoal e cultural”.[338] Ou, por outras palavras, terá sido a necessidade do homem se situar que gerou essa inevitabilidade, isto é, que forçou a criação literária a abraçar a História, num movimento de reconstituição do passado que permitisse alicerçar as opções do presente, nomeadamente, as opções do homem Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, profundamente empenhado em não separar a atividade literária da responsabilidade cívico-ideológica, como acontecera com muitos  escritores no tempo do Romantismo.[339]

             Em termos gerais, a obra de Pepetela é expressão de uma cosmovisão,[340] que passa, da descoberta da diferença[341] de cor como factor de discriminação, para um radical contra-discurso cultural, evoluindo, por força da conflitualidade étnica que mina o MPLA, para um discurso de passagem,[342] isto é, um discurso de diálogo entre grupos (incluindo a minoria branca) empenhados, apesar de tudo, no mesmo projecto de nação.

            Deste modo, YAKA tem como objectivo mostrar como os traços diferenciais, que durante a colonização separaram os homens, devem, agora, uni-los na construção da nação angolana. YAKA dá, por outro lado, passagem ao homem de raiz europeia para que possa participar ativamente na construção da angolanidade.

            Esta passagem precisa, contudo, de ser explicada à maioria negra[343] - secularmente oprimida -, o que implica atribuir à História um papel fundamental na determinação do sentido último e messiânico dos acontecimentos, que durante muito tempo escapara à cegueira do colonizador, e quantas vezes do colonizado!

            Por isso, o escritor teve que simultaneamente reconstituir a história da relação colonial e delinear a desejada passagem para a integração das minorias branca e mestiça na nação angolana.

            Este desencontro  entre o sentido da História e a cegueira do colonizador é simbolizado pela impossibilidade dos Semedos entenderem o sentido de YAKA - objecto-imagem - : a  ixiptla  que era para os indígenas mexicanos “o recetáculo dum poder,  presença indiciada, epifânica; atualização de uma força infusa num objecto, de uma existência.”[344] Isto é, o objecto estátua -  representação, eventual, de um guerreiro formador de chefias -, torna-se operatório, porque gerador de uma imagem dinamizadora de uma nova (re)criação comunitária, liberta, finalmente,  do domínio que caracterizara a colonização europeia. YAKA - objecto e imagem primordial - pretende rememorar o primeiro modelo de colonização: o modelo estético.[345]

            Todavia, do ponto de vista do escritor, essa cegueira colonizadora não é absoluta e definitiva, na medida em que é um Semedo - Oscar - que a carrega consigo e a lega a outro Semedo - Alexandre, que, apesar de, durante muitos anos, a ter visto apenas como objecto, acaba progressivamente por se deixar impregnar pela imagem[346] emanada pela estátua. Deste modo, Alexandre instaura tibiamente,[347] no seio dos Semedos, a dissidência, que é a base da utopia que se caracteriza pela procura de uma sociedade perfeita ou, pelo menos, de uma sociedade menos injusta. É essa utopia que move o último dos Semedos - Joel/Ulisses - para quem YAKA é a imagem matricial,[348]  e que permitirá, ou não?, a passagem, isto é, a integração das minorias na nação angolana, através da transfiguração[349] de uma parte dos Semedos.

            A dissidência no território angolano, como vimos, não se manifesta apenas através de Alexandre Semedo e de Joel ou do guerrilheiro Bombó, ela encontra-se latente na proverbial indecisão de Oscar Semedo, e manifesta no barbeiro Acácio, ele próprio vítima de discriminação pela parte dos comerciantes brancos.

             Apesar da sua fraca representatividade, a dissidência está presente quase que de forma contínua, entre 1890 e 1975 [350] num território, em que, a diferença  de número, isto é, a enorme desproporção entre negros e brancos, gerava na minoria branca um medo[351] medular cuja resposta primária foi a substituição do diálogo pela agressividade, embora as situações de conflitualidade, a partir da década de 40, sejam propagandisticamente diminuídas, na medida em que seriam apenas o reflexo de uma minoria negra que ainda não compreendera a bondade da estratégia multirracial[352] traçada para Angola. No entanto, a agressividade estava instaurada na nomeação do outro,[353] o que conduzia à sua desvalorização ética e cultural,[354] excluindo-o da participação efectiva na tão propalada civilização, a recusar-lhe a dimensão humana ou, nos momentos de maior tensão, eliminá-lo.[355]

            É essa agressividade que emerge do comportamento dos Agripinos, dos Aquiles e Xandinhos, dos Bartolomeus, das Donanas e Matildes. Um comportamento racista - que ilustra, resume e simboliza a relação colonial - [356] e em que, em proveito psicológico[357] e económico do acusador, este põe permanentemente em acção uma estratégia de argumentação racista, que lhe permite dominar o colonizado e legitimar a sua presença na colónia, em nome de um imperativo civilizador, cujas raízes se encontravam já inscritas no imaginário medieval, nomeadamente no espírito de cruzada.[358]

            Ora a opção ficcional de Pepetela consistiu em introduzir a dissidência neste cenário de conflitualidade, em que o sistema colonial gera progressivamente a destruição simbólica da vítima, desumanizando-a, para, finalmente, a eliminar, sem qualquer complexo de culpa. Apesar da monstruosidade da acção denunciada, a dissidência permite, em nome do pragmatismo, eliminar a responsabilidade do colonizador e, simultaneamente, legitimar a desejada transfiguração do homem branco num homem igual aos outros homens, independentemente da origem, do passado e da cor.

            Deste modo, o romance YAKA surge em 1983, num primeiro plano, como sistema modelizante[359] da angolanidade e, num segundo plano, como sistema modelizante da portugalidade, gerando a expectativa de um diálogo intercultural, em que à língua portuguesa - sistema modelizante primário - estaria “naturalmente” reservada a função catalisadora,[360] num mecanismo regulado pelo mesmo princípio ideacional que levara Alexandre Semedo a nomear filhos, netos e bisnetos com antropónimos gregos.

 

 



[1] - J.-M. Moura, L'imagologie littéraire : essai de mise au point historique et critique, p. 287.

[2]  - T. Todorov, Mikhaïl Bakhtine, le principe dialogique, p. 284.

[3]  - Todorov / Bakhtine: “na escolha do material lexical, na escolha dos epítetos, das metáforas e outros tropos (...) e, finalmente, do tema no sentido restrito do termo.”

[4]  - Esta função, também designada composicional por Bakhtine, “determina o lugar hierárquico do elemento verbal no conjunto da obra, o seu nível, assim como a estrutura do conjunto. “

[5]  - Daniel-Henri Pageaux - La littérature générale et comparée, p. 64.

[6]  - Como se o branco não fosse um hipónimo de cor, esta palavra é geralmente mencionada em Yaka como classificadora do Outro: p. 188, 281, 300, 301, 375.

[7]  - Esta condição de inferioridade é claramente comprovada no momento da “partida”, aparentemente injustificada, de um nativo branco, como Álvaro, pai de Joel: “Era superior aos negros, tinha estatuto de branco. (...) É duro para quem toda a vida viveu pensando ter inferiores. (...) Não pode aceitar o risco de ser inferior aos que ele toda a vida considerou inferiores.” Yaka, p. 378.

[8]  - [Chico:] “Eu já me via negro e protetor de todos os brancos.” Yaka, p. 391.

[9]  - Esta situação estratégica do mestiço angolano é, no entanto, pouco significativa devido à sua fraca expressão demográfica, ao contrário do que acontece, por exemplo, com o povo de Cabo Verde, e que Jorge Barbosa exprimiu de forma tão bela, no poema Povo : “Conflito numa alma só / de duas almas contrárias / buscando-se, amalgamando-se / numa secular fusão / (...) / Na alma do povo ficou / esta ansiedade profunda / - qualquer coisa de indeciso / entre o clima tropical / e o espelho de Portugal.” Cf. Arquipélago, 1935.

[10]  - Castro Soromenho - Expedição ao País do Ouro Branco, p. 7.

[11]  - Apesar desta conceito negativo, H. Capelo e R. Ivens, Apêndice in   De Angola à Contracosta (1886), caracterizam positivamente o cafre (grupo bantu) nos seguintes termos: “O Cafre tem o prognatismo do Negro, mas faz lembrar o homem do Norte. (...) habita (...) ao sueste da África, entre o Zambeze e o país dos Hotentotes, que eles repeliram em suas guerras de leste para oeste. São de estatura alta, pele pardo-torrada e belo aspecto físico. “- p. 235. E concluem o retrato: “O que comprova principalmente a superioridade intelectual dos Cafres é que os seus progressos não têm sido devidos ao maometismo, como os das populações do Sudão...” - p. 241-242.

[12]  - Cf. Yaka, respetivamente, p. 88 e 208, em que, no 1º caso, um soldado português sonha tornar-se “soba com bois e mulheres”, libertando-se da miséria em que nasceu; e no 2º caso, Matilde desacredita Ernesto Tavares: --” Agora acreditam em brancos cafrealizados que passam a vida a dormir com negras.”

Castro Soromenho a propósito deste processo de aculturação psicológica, caracteriza o modo de vida dos colonos: “Viviam com mesa farta e rodeados de mulheres indígenas, cuja influência se tornou tão forte no seu espírito que a breve trecho trocaram a sua moral pela do cafre. Esses homens incultos e facilmente influenciáveis, perderam a sua religião e acabaram por adoptar as crenças do selvagem, de forma que o maior número lhe dá crédito e praticam o mesmo que fazem os cafres.” Op.cit., p.15

A propósito das noções de aculturação e de aculturação psicológica, ver Félix Neto, Psicologia da Migração Portuguesa, p. 42.

Todavia, a cafrealização, neste romance, não passa dum fenómeno periférico, embora tivesse desempenhado um papel importante até aos anos 20, época que deu início à destruição da burguesia angolana.

[13]  - Michel Laban - Encontro com escritores, 2º vol., Porto, Fund. Eng. António de Almeida, 1991. 

[14]  - Cfr. Pires Laranjeira - A Negritude Africana de Língua Portuguesa, p. 337.

[15]  -Vale a pena atentar na refutação de Albert Jacquard a este propósito: “La phrase (...) ‘la race blanche plus parfaite que les autres’, n’est même pas une erreur, elle est dépourvue de sens. (...) Que le généticien démontre que la notion de race est sans fondement, que le logicien mette en évidence l’absurdité des hiérarchies globales, cela n’entame en rien l’attitude du raciste, parce que cette attitude n’a, fondamentalement, aucun rapport avec la réalité biologique ou avec la logique.” Au regard de la science, in Le Courier de l’Unesco, mars 1996.

[16] - Alexandre Semedo auto-penitencia-se, referindo-se a Aquiles: “Eduquei-o dessa maneira, de ser superior porque branco. Tudo podia acontecer. Adivinhei que ele ia fazer uma loucura, deixei-o fazer. Se eu não fui, seria o meu filho um herói. Herói? É isso ser herói? Matei-o, apenas.” Yaka, p. 248.

[17]  - Várias são as referências ao branco que compreende, apoia ou luta lado a lado com o negro: Acácio, comandante Bombó e Joel são as personagens que materializam essa dissidência étnica.

[18]  - Ernesto Tavares: “O certo é que sou branco de segunda por ter nascido aqui. Não tenho acesso a todos os graus do funcionalismo público.” Yaka, p. 78.

[19]  - “Em Capangombe havia uma centena de famílias brancas, a maior parte degredados, uns tantos militares e alguns “brasileiros”. Também mulatos, era coisa que crescia como capim.”  Yaka, p. 20. Ou “mulatos se fazem mesmo sem querer” Yaka, p. 56.

[20]  - “Nunca houve um mulato que fale bem português e ande calçado, que seja contra nós [portugueses].” Yaka, p.62.

[21]  - São os filhos mulatos de Agripino de Sousa que assassinam Acácio. Registe-se a propósito da educação do mulato a seguinte afirmação de A. Semedo: “Nascidos nas guerras de kuata-kuata, crescidos nas caravanas onde o chicote é o primeiro brinquedo, educados na perseguição de escravos fugidos... usam bala esses? Yaka, p. 113. 

Por outro lado, Sô Lima defende que o mulato deve ocupar progressivamente o lugar do negro: “Quando os meus filhos forem maiores, ponho o negro na rua. Bar civilizado só tem criado mulato. “Yaka, p. 77.

[22]  - Neste caso, como refere T. Todorov a propósito dos colonos, dos comerciantes e dos empresários, os colonos portugueses revelam-se inimigos do exotismo, porque “ignorent l’autre, ne pensent en toutes circonstances qu’à eux-mêmes...” in Nous et les Autres, p. 440.

[23]  - Thérèse Pujolle, L’Afrique Noire, p.52.

[24]  - Le schéma de prise de possession sera partout le même, qu’il s’agisse de colonisation française, britannique, allemande ou portugaise : conquête militaire du territoire, institution d’une autorité politique de contrôle, exploitation des ressources minières évacuées, sans transformation, par de grandes infrastructures (rail, fleuve, route, ports maritimes). Sur la côte du continent sont ainsi tracées des frontières irréversibles : nouveaux espaces linguistiques (francophone, anglophone, lusophone) ...” Thérèse Pujolle, op.cit. p. 59.

Em Yaka, como estratégias de ocupação, há que destacar:  a queda dos preços da borracha, a acção militar, a construção do caminho de ferro de Benguela pelos ingleses, a exploração intensiva das roças e o isolamento dos espaços linguísticos africanos, através da imposição do estatuto do assimilado.

[25]  - Uma das funções da ideologia é precisamente dissimular o comportamento do colonizador.

[26]  - Estamos, neste caso, perante os fenómenos de “asemia” e de estereotipia. Como afirma Sélim Abou : “Cette perversion sémantique du langage est inhérent à la nature du discours idéologique lui-même.” Op. cit. p. 150.

[27]  - A assimilação consiste em querer transformar as “raças” indígenas à imagem de Portugal, acreditando que esta é a incarnação perfeita dos valores universais. A este propósito, Cfr. T. Todorov, in Nous et les Autres, p. 346.

[28]  - Para Sélim Abou, a assimilação “est une des formes de l’échec de l’acculturation (...) Processus d’ajustement mécanisé à l’engrenage social, c’est-à-dire aussi bien aliénation dans la stérétypie qui a pour effet la pathologie de la déculturation et, au terme, de la dépersonnalisation.” Op. cit. p. 59-60.

[29]  - Expressão de Kripke, retomada por Pires Laranjeira, A Negritude Africana de Língua Portuguesa, p.324.

[30]  - “El sentido de un nombre propio lo comprende todo aquel que conoce el lenguaje o el conjunto de designaciones al que pertenece; pero com ello, la referencia, caso de que exista, queda sólo parcialmente iluminada. Un conocimiento completo de la referencia implicaría que, de cada sentido dado, pudiéramos indicar inmediatamente si le pertenece o no. Esto no lo logramos nunca.” G. Frege - Sobre Sentido y Referencia, in Estudios sobre Semantica, p. 51-52.

[31]  - Mutu-ya-kevela ou Quebera, como é depreciativamente designado pelos portugueses. Este fenómeno de deformação é, no entanto, ainda mais significativo, quando Donana ao rejeitar o nome original da criada, lhe chama Joana.

[32]  - Como veremos quem melhor corporiza, durante um largo período, a necessidade de se autodefender da ameaça que é o Outro é Alexandre Semedo, que se referia a essa ameaça, designando-a: o medo, o grande medo.

[33]  - “O narrador está fora dos acontecimentos narrados: refere os factos sem nenhuma alusão a si mesmo. “in As vozes do romance, p. 62, por Óscar Tacca.

[34]  - Pires Laranjeira caracteriza Yaka como “desempenha(ndo) o importantíssimo papel de narrador alternativo e de parceiro mudo de confidências de Alexandre Semedo.” Cfr. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, p. 153.

[35]  - De certa forma esta função interpretativa corresponde ao pensamento de Henry James, sintetizado por Michel Zéraffa: le travail du romancier consistait essentiellement à saisir et à concevoir des rapports entre les faits. Il s’agissait d’un travail d’intelligence et de rationalité, en tous points comparable à celui de l’historien, car ce dernier a lui aussi pour tâche d’établir des relations entre des faits qui autrement n’auraient aucun sens.” in La Révolution Romanesque, p. 33-34.

[36]  - Esta função é a da présentation indirecte - Gide, Journal, 1922 - cujo objectivo será dissociar o autor do narrador.

[37]  - “A diferença fundamental entre uma e outra modalidade está em que no estilo indireto livre, a perspectiva mantém o ponto de vista original do narrador, enquanto no monólogo interior, essa perspectiva se ordena a partir do ponto de vista do personagem. “O. Tacca, op. cit. p. 77.

[38]  - “Localizada” porque situada num meio que a influência, e “focalizante” porque o universo romanesco estará, em parte, centrado sobre si, e dela receberá o sentido e a forma. Como consequência, o “herói” é cada vez menos uma testemunha : “les messages qu’il reçoit de son milieu et qu’il filtre, ne lui servent qu’à donner (lentement) une forme et un sens à son être. Et cette forme et ce sens vont progressivement l’isoler d’une réalité sociale à laquelle, pourtant, il continue d’appartenir et de participer.M. Zéraffa, op. cit. p.34. Em síntese, como veremos, este quadro teórico traçado por Henry James corresponde quase por completo ao desenho da personagem A. Semedo, que adquire uma “consciência” própria à custa da renúncia e do desinteresse.

[39] - Mutu-ya-kevela, Vilonda, Njaya...

[40]  - “Depois de Donana falecer, começou a escrever as suas memórias. Em forma de conversas para a estátua Yaka. “in Yaka, p. 277.

[41]  - Segundo Pires Laranjeira, Joel tem o nome do profeta bíblico que anunciou o juízo final. Para a família Semedo, o “juízo final”, foi a saída de Angola - op.cit. 154.

[42]  - Aparentes, porque, de acordo com a mundivisão de Yaka, o mundo é regido por leis que ultrapassam a efémera compreensão humana.

[43]  - Yaka, p. 24.

[44]  - “Estou para ver. E para contar a quem entende. Sofrendo.” Yaka, p. 25.

[45]  - “Mutu-ya-Kevela tem a cabeça quente. Ele já sabe onde está a sua força. Não é no braço que empunha a arma. A sua força está na boca, onde pode penetrar a aguardente traiçoeira, mas donde podem sair as palavras que arrastam os outros.” Yaka, p. 55.

[46]  - Yaka, p. 96.

[47]  - “Mutu-ya-Kevela? Está onde? Os miúdos até desaprenderam o nome dele. Não há nome que fica quando o comboio inglês avança.” Yaka, p. 99.

[48]  - “Os olhos apontavam a lonjura da minha criação.” Yaka, p. 131.

[49]  - Yaka, p. 165.

[50]  - Yaka, p. 166.

[51]  - Yaka, p. 246.

[52]  - Yaka, p. 311-317.

[53]  - A pretexto da suposta “onda antiportuguesa na ONU”, protagonizada pelo “dedo de Moscovo” e “apoiada por catequistas protestantes.” in Yaka, p. 317.

[54]  - “e o velho no último sopro que grita Deus não é Suku, Suku nunca castigou Féti, e pensou já sem forças para gritar este Féti nosso, nascido na água e que foi o primeiro homem, por que que nos nasceram assim para sofrer isto tudo” in Yaka, p. 317.

[55]  - “saiba que Chucha estava na cama do seu neto Chico, esse mulatão infecto que você impôs aqui em casa” in Yaka, p. 314.

[56]  - “pois não é a melhor prova de multirracialidade a Chucha ter ido para a cama com o primo mulato, expulso à noite do sapalalo com os sapatos na mão e ainda a apertar as calças” in Yaka, p. 316.

[57]  - Yaka, p. 316.

[58]  - Yaka, p. 321.

[59]  - Yaka, p. 322.

[60]  - Yaka, p. 323. O herói é assim o MPLA (o Movimento), enquanto a FNLA e a UNITA não passariam de movimentos “estrangeirados” fantoches completamente desconhecidos das populações... Esta tese é confirmada pelo modo como o exército da FNLA e da UNITA, à sua chegada a Benguela, são caracterizados: “depois das grandes chuvadas e trovoadas começaram a se instalar os exércitos, primeiro o verde de gorros de leopardo que só falavam línguas estranhas e passavam em jipes muito aprumados e limpos, e armas luzidias, depois os que diziam só falar umbundo, nos olhos o medo e nas mãos bengalas de soba. “Yaka, p. 326. 

[61]  - Yaka, p. 327.

[62]  - Como defesa, Xandinho argumenta: “a maior prova que tenho é este meu primo querido que até é mulato, a nossa família é assim de todas as cores, provavelmente a minha avó era negra, não têm pois o direito de me condenar como colono, de me expulsar...” Yaka, p. 359.

[63]  - No essencial, Xandinho herdou a demência do pai, Aquiles. Em termos funcionais, ambos desempenham o mesmo papel no sistema colonial, embora separados pela ascensão social da família - Aquiles, capataz eficiente na Câmara; Xandinho termina zelosamente a sua carreira como Administrador de concelho.

[64] - Se a embriaguez gera um discurso caótico, este não pode ser entendido apenas como efeito realista, mas como opção discursiva que se integra plenamente no contexto de enunciação: estatuto do militar, espaço onde decorre a narração (bar), ambiguidade política dos interlocutores. E que decorre, também, da tradição  - é como se a relação entre  o narrador omnisciente e o soldado fosse da mesma natureza da que é “definida” por Sócrates ao referir-se à relação dos deuses com os poetas: “ E se a divindade lhes tira a razão e se serve deles como ministros (...), é para nos ensinar, a nós que ouvimos que não é por eles que dizem coisas tão admiráveis - pois estão fora da sua razão -, mas que é a própria divindade que fala e que se faz ouvir através deles.” Ver Platão, Íon, ed. Inquérito, 2ªed., p.53.

[65]  - “Nesta vida de merda de branco numa terra de pretos” ou “Pudera, esses filhos da puta de mulatos que jogavam no “Portugal” tinham a mania de dar fintas(...) in Yaka, p. 184.

[66]  - “Os conhecidos, e eram certamente todos os habitantes da cidade, se dividiam claramente em amigos e inimigos. (...) A cor não contava. “in Yaka, p.187-188.

[67]  - “Quebraste a tradição, um dia vais pagar. Quebrei a tradição? (...) Que tradição manda os homens morrer de fome?” in Yaka, p. 177.

[68]  - in Yaka, p. 228.

[69]  - “Havia esteiras pintadas nas paredes. Também quindas e cestos. Coisas que o pai comprava aos povos do interior. Os cinzeiros altos tinham esculturas de animais ou rostos de pessoas. A estátua Yaka estava no canto esquerdo da sala e olhava para os que entravam. (...) Mas na sala só se punha aquilo que o pai queria. Isso, e os nomes dos filhos e netos.

[70]  - Yaka, p. 287.

[71]  - “A liberdade está a chegar, se mostrem para que libertemos o País dos brancos, no dia 2 de Abril, onde virem um branco, lhe cortem a cabeça (...)” in Yaka, p. 303.

[72]  - Yaka, p. 302-305.

[73]  - Yaka, p. 315.

[74] - “Existe, pois, outra forma de omnisciência (...) que consiste em saber tudo, já não de um ponto de vista superior e inumano, à maneira do narrador omnisciente, mas acumulando a informação que sobre um personagem (ou episódio) têm os restantes. “O. Tacca, op. cit. p. 90.

[75]  - Yaka, p.251-254.

[76]  - Yaka, p. 268-270.

[77]  - Yaka, p. 310.

[78]  - Yaka, p. 282-283.

[79]  - O. Tacca, op. cit. p. 127.

[80]  - Das personagens oriundas de Portugal continental, só Sô Almeida, Aninhas, Bartolomeu Espinha e o Agente da Pide não eram degredados.

[81]  - “Os degredados foram em grande parte responsáveis pela imagem negativa de Angola que a maioria do povo português teve durante cinco séculos da presença portuguesa no território.” Gerald Bender, Angola sob o domínio Português, p. 93

[82] - “Até às primeiras décadas do séc. XX, a maior parte dos portugueses que viviam em Angola eram degredados, culturalmente inferiores aos africanos.” G. Bender, op. cit.  p. 291.

[83]  - “Embora muitos funcionários se queixassem da ruína e mesmo da mortandade que o comércio do álcool provocava na população africana, como também no caso da escravatura e do trabalho forçado, pouco podiam fazer para eliminar esta odiosa atividade comercial. “Bender, op. cit. p. 209.

[84]  - “Entre 1912 e 1932, foram postas de lado 25 382 hectares de terras para “reservas indígenas” e deram-se 1000 hectares (com títulos) a indivíduos africanos. Durante o mesmo período, mais do dobro daquela área (62 678 hectares) foi concedida a 198 estrangeiros e uma extensão quinze vezes maior (404 917 hectares) foi distribuída por colonos portugueses.” Bender, op. cit. p. 214.

[85]  - “Comerciantes, é a riqueza de troca que nos interessa. Quando se esgota um filão busca-se outro. Durante séculos não houve em Angola outro filão que o escravo. Isso bastava para nos tornar aí presentes e como presentes irradiar, manter a maneira de ser nacional sem necessidade de ser ou de se sentir agente de qualquer vontade colonizadora bem precisa. “Eduardo Lourenço, Retrato (póstumo) do nosso colonialismo inocente II, p. 7.

[86]  - Acácio terá sido assassinado pelos filhos mulatos de Agripino.

[87]  - “Nós, os que estamos a construir esta terra. Nós, os civilizadores desta negralhada. Vamos pôr isto direito, nem que seja a ferro e fogo.” in Yaka, p. 107.

[88]  - A principal causa da miscigenação deverá ser atribuída à ausência de mulheres brancas no território. Logo que as mulheres brancas começaram a chegar em maior número ao território angolano assistiu-se a uma diminuição da importância social do mestiço.

[89]  - “Não era tanto pelo filho, que era mulato e mulatos se fazem mesmo sem querer.” in Yaka, p. 56.

[90]  - Nas roças roubadas aos seles, “o chicote funcionava todo o dia e por nada. E mandava crucificar gente. Cru-ci-fi-car. “in Yaka, p. 158

[91]  - Sô Almeida e Sô Macedo, face à queda dos preços da borracha, suicidaram-se.

[92]  - Os mestiços nessa data não iam além dos 0,18%. G. Bender, op. cit.  p. 47.

[93]  - A propósito da natureza da nossa burguesia nacional desde o início da Expansão, consultar Eduardo Lourenço, op. cit. p. 8.

[94]  - Pires Laranjeira, op. cit., p. 147.

[95]  - A primeira branca a nascer em Capangombe: analfabeta, discreta, beata, amachucada pela erudição do marido. Morreu com o complexo de branca de segunda, embora tenha realizado o sonho de deixar o filho casado com branca de primeira.

[96]  - Yaka, p. 30.

[97]  - “Não havia força para nos defendermos dos negros, os arautos da autonomia eram apenas agentes dos alemães ou dos ingleses.” in Yaka, p. 87.

[98]  - “A sede do lucro cria sempre novas ideias e novos homens.” In Yaka. p. 41

  “- A culpa é da propriedade. A frase ficou a tremular nas flores rubras da acácia da rua.

   - A propriedade suja, emporcalha, torna os homens piores que bichos. A propriedade é o roubo, dizia Proudhon, é isso.” in Yaka, p. 74.

[99]  - “Os negros tinham de ser completamente libertos da escravatura, e nunca podiam ser os padres a civilizar os negros, deviam vir muitos professores.” in Yaka, p. 32.

[100]  - “Um branco diferente” in Yaka, p. 61.

[101]  - Yaka, p. 104.

[102]  - “A notícia foi buscar Alexandre Semedo à loja, empurrou-o na bicicleta até na barbearia:

- Mataram Sô Acácio! Os miúdos do Bairro de Benfica e da Peça, descalços, ranho no nariz, corriam pelas ruas, gritando: - Mataram Sô Acácio! in Yaka, p. 110.            

[103]  - Yaka, p. 111.

[104]  - “Acácio vai ficar vivo connosco na nossa música” ... porque fora o único branco que defendia os negros.” in Yaka, respetivamente, p. 116 e 115.

[105]  - Ou num plano da mitologia colonial: “o carácter brando das nossas relações com o indígena, o carácter não-guerreiro da nossa empresa colonial, a capacidade ímpar de compreensão de raças, costumes e religiões diferentes da nossa, a facilidade de miscigenação.” Eduardo Lourenço, op. cit.p.6.

[106]  - “O nosso orgulho nacional não nos permite reconhecer que os negros nos derrotaram, a culpa tem de ser sempre dos estrangeiros que se metiam no meio só por inveja da Pátria lusa....” in Yaka, p. 93.

[107]  - Quando se comemorou o tricentenário da fundação de Benguela, durante “o jantar oferecido no Hotel Paris aos europeus com mais de trinta anos de residência no distrito”, foi rejeitada a entrada a Acácio, porque lá dentro estava a elite da terra. in Yaka, p. 104.

[108]  - Cfr. artigos: “Cidade das Acácias Rubras”; “O canto do matricinde”; “O Conquistador de Benguela” in Público, respectivamente a 160593, 200693, 271194. 

[109]  - “La fusion de l’ethnicité et de la culture définit, sur le plan culturel, un stade analogue au stade préœdipien de la fusion de l’enfant avec sa mère (...), la “matrie”. (...) En d’autres termes, l’identité ethnique est le premier moment de l’identité culturel. “Selin Abou, op.cit. p.44.

Por outras palavras, esta passagem resultaria do seguinte pressuposto : “Être raisonnable et libre, l’homme est appelé à dépasser son identité socio-culturelle particulière, pour viser l’identité d’homme qui l’englobe et la transcende. Sélin Abou, op.cit., p. 245.

[110]  - Alexandre, como Alexandre Magno, não estará, todavia, à altura da acção empreendedora do seu “modelo”. Essa dúvida, de resto, é expressa pelo pai: “Não sei se és como ele.” Yaka, p.81

[111]  - “Do pai me veio o gosto pelos gregos e suas lendas e tragédias. Aos filhos pus sempre nomes gregos: Aquiles, Orestes, Sócrates e Eurídice...” Yaka, p. 130.

[112]  - “ La nomination, qui est l’opération symbolique centrale accomplie par le père, (...) n’a de sens et de valeur que dans la mesure où elle inscrit l’enfant dans une lignée qui plonge ses racines dans le passé et défie l’avenir, une lignée qui assure sa survie dans la mémoire reconnaissante de ses successeurs, une lignée qui lui donne même le sentiment que la mort n’est pas la mort, mais le renouvellement et la consécration de la vie.” Sélin Abou, op.cit. p. 217-218.

[113]  - “O nome duma pessoa é uma coisa muito importante. Nisso os negros ensinam-nos muito (...). O verdadeiro nome, o definitivo, só é dado depois da puberdade, quando a pessoa mostrou qualidades que podem ajudar a escolher o nome conforme. Sempre estive de acordo com essa filosofia.” Yaka, p. 130.

[114]  - “Merda! Não se pode viver sempre com medo. Temos de acabar com eles. (...) Enquanto houver negros viveremos no medo.” Yaka, p. 137. Este grito é precisamente proferido no dia 14 de Julho, data-símbolo da libertação dos oprimidos.

[115]  - Yaka, p. 147: “Não eram portugueses? Se havia alguma coisa que nunca tinha posto em dúvida era isso.”

Yaka, p. 150: Essa de que não somos portugueses é que não, ninguém aceita isso. E a Pátria, e Camões?

Referindo-se a Tuca e a Njaya, Alexandre Semedo proclama: “Negros! Encostou à parede e vomitou.” Yaka, p. 164.

[116]  - Alexandre Semedo remete-se ao silêncio como punição pela educação que dera a Aquiles: “Eduquei-o dessa maneira, de ser superior porque branco. Tudo podia acontecer. Adivinhei que ele ia fazer uma loucura, deixei-o fazer. Se não fui eu, seria o meu filho um herói. Herói? É isso ser herói? Matei-o, apenas.” Yaka, p. 248.

[117]  - “A escrava, talvez por velhice, deixou-me cair no pó. Segundos apenas. Os suficientes para no meu corpo ficar misturado o pó da terra e os líquidos que trazia comigo ao sair da mãe.” Yaka, p. 18.

“A terra que a boca de Alexandre Semedo morde lhe sabe bem. (...) Leva esse sabor e cheiro da terra molhada para cima da pitangueira, onde fica a balouçar, para sempre.” Yaka, p. 395.

[118]  - A frustração inscreve-se no quotidiano de Alexandre Semedo: a morte de Acácio; o casamento com Aninhas para satisfação do sonho materno de ver o filho casado com branca de primeira; as quitatas; o Bar Lima; a loja - “vida mais medíocre e castrante não havia”; “Joana”; Njaya; a morte de Aquiles; os netos só se interessavam por futebol, mulheres, negócios ou a administração - uns apolíticos...

[119]  - “Todo o mobiliário do salão era de verga e de palhinha. Feito localmente por um velho lunda especialista em verga.” Yaka, p.206.

[120]  - Herói civilizador no romance de Pepetela, Lueji, o nascimento dum Império.

[121]  - Iniciar e não realizar plenamente, porque Alexandre Semedo não entendeu a voz de Yaka:” Não escreverás, abandonaste a escrita, porque tens medo. Ias chegar à conclusão te sentes bem com essa imagem de ti próprio. Que tudo é máscara. Crítico passivo duma situação, dela vivendo. Crítico, para ter a consciência tranquila. Mas lutar, romper com tudo? Por isso é melhor parar de escrever, para não ir fundo demais e depois não poder voltar atrás.” Yaka, p. 279.

[122]  - “As memórias paravam com a revolta do Seles, de que ele hoje tinha uma opinião radicalmente diferente. Foi escrevendo que se separou delas e hoje as sentia como punhaladas do passado. (...) Mas era exclusivamente para ele, pois se tratava de ter uma visão diferente do antigamente. Não ia convencer ninguén.” Yaka, p. 278.

[123]  - Profetizar, no sentido que lhe é atribuído por Maurice Blanchot : “Mais la parole prophétique annonce un impossible avenir, ou fait de l’avenir qu’elle annonce et parce qu’elle l’annonce quelque chose d’impossible, qu’on ne saurait vivre et qui doit bouleverser toutes les données sûres de l’existence. Quand la parole devient prophétique, ce n’est pas l’avenir qui est donné, c’est le présent qui est retiré et toute possibilité d’une présence ferme, stable et durable. In Le Livre à venir, p.117-118.

[124] - “O medo, aquele medo que Alexandre conhecia muito bem por o sentir desde que nasceu, esse medo estava em cada um deles. Não nele, tinha ultrapassado há muito.” Yaka, p. 367.

[125]  - “O símbolo mais acabado do colonialismo.” Yaka, p. 390.

[126]  - Yaka, p. 384-385: “Os Semedos todos, a começar por mim, sempre foram a bimba que está no meio do rio. As correntes levam-na para um lado ou outro. O Aquiles talvez pudesse ser a primeira excepção, se tivesse cabeça. Mas nunca teve.”

[127]  - Yaka, p. 386.

[128]  - “Ernesto era um catavento e cada década encontrou nele opiniões e acções diferentes. Só em relação às mulheres foi constante, sempre a mudar de negra para negra.” Yaka, p. 197.

[129]  - Esta tese era defendida pelo Jornal luandense A Defeza de Angola. Porém, a presença branca era claramente insuficiente quer face aos ingleses e alemães, quer face aos negros. Este realismo é assumido, embora por razões ideológicas diferentes, por Óscar Semedo e Agripino de Sousa. Yaka, p.86 e p. 92.

[130]  - Ernesto Tavares, em diálogo com Alexandre Semedo, rejeita a sua condição de português:

 “- Não somos portugueses?

 - Nada temos a ver com aquilo. Somos benguelenses, o que é muito diferente.” Yaka, p. 147.

Ernesto Tavares “representaria” o sentir da “gente miúda”: “No Bairro Benfica, as pessoas pensavam como ele. Brancos pobres, nascidos nas casas baixas, mulatos a trabalhar por conta própria ou para brancos, negros filhos de vimbali e pumbeiros, os habitantes do Benfica. “Yaka, p. 151.

[131]  - Em 1887, existia uma loja maçónica em Moçâmedes, segundo José Mattoso, História de Portugal, vol. V, p.210. Benguela seria maçónica sem o saber, “tão maçónica como a sua árvore sagrada, a acácia.” Yaka, p. 199.

[132]  “O discurso mudou, passou a berrar contra os comunistas, os anarcossindicalistas, os democratas (...) Traidores da Pátria Portuguesa vende Pátrias lacaios de Moscovo querem dar este País de mão beijada aos negros renegar Os Lusíadas!” Yaka, p.198.

[133]  - Cfr. Gerald J. Bender, Angola sob o domínio português - mito e realidade, p. 64.

Ernesto Tavares, de acérrimo autonomista acaba como o exemplo mais completo da rejeição do espírito luso-tropicalista: “Este era o Ernesto que levavam agora a enterrar, sempre fiel à mulher negra. Rico, nunca casou. Também não mantinha uma ligação por mais de três meses. Nunca reconheceu nenhum filho, não tinha família.” Yaka, p. 198.

[134]  - Yaka, p. 196.

[135]  - “- Fiquem com a vossa borracha, brancos. A Chitekulu ninguém rouba. Olhem, brancos, olhem a vossa borracha.”

[136]  - É esta mesma apologia do lugar primordial da palavra que encontramos na poema de Agostinho Neto: Sinto na minha voz as vozes duma multidão / no coração sinto um mundo / No meu braço um exército (...) in A Renúncia Impossível.

[137]  - A acção educativa dos missionários protestantes é alvo da desconfiança dos católicos. A doutrina protestante era designada sintomaticamente de gangrena protestante, e é sempre associada a todas as revoltas e manifestações de independência. Cf. Yaka: p. 48,49, 64, 108, 285, 289, 304, 317.

[138]  - Yaka, p. 109.

[139]  - Yaka, p. 159.

[140]  - O papel (de)formativo do jogo com base na História: “a guerra do Bailundo era melhor brincadeira tinham inventado”. Yaka, p. 66.

[141]  - Tuca não participou na violação. Fugia das lutas com os bandos porque “era o negro que todos queriam bater” (...) “Isso e as sessões colectivas com raparigas negras. Com brancas nem tinha dessas sessões, era pecado.” Yaka, p.68-69.

[142]  - “- Vão -se revoltar outra vez. Não vão esquecer o que lhes estão a fazer.” (...) “Mata-se para ficar com as terras.” (...) “Estamos só a deitar lenha no fogo. Qualquer dia há uma fogueira que ninguém apaga.” Yaka, p. 161.

[143]  - Yaka, p. 259.

[144]  - “Que [os brancos] deixassem intactos os objetos das mulheres, as casas, que não chegassem ao elao, onde só amigos podem sentar. O cheiro deles não podia conspurcar o fogo sagrado.” Yaka, p.228.

[145]  - “Cuvale não vende boi, como vai vender o pai e o filho? Yaka, p. 177.

[146]  - “Moma falava bem português, tinha mesmo andado numa escola qualquer, pois sabia ler. Provavelmente numa missão protestante...” Yaka, p. 288.

[147]  - [Os terroristas querem] “- Expulsar os brancos? Tão nossos amigos... Antes dos brancos virem, os pretos sabiam fazer o quê? Os brancos nos ensinaram a fazer tudo.” Yaka, p. 289.

[148]  - “Os vimbali, assim chamados porque imitavam os brancos - todos podiam fazer contas e alguns sabiam ler...” Yaka, p. 42.

[149]  - “Deus não é Suku, Suku nunca castigou Féti (...) este Féti nosso, nascido na água e que foi o primeiro homem...” Yaka, p. 317.

[150]  - Patrice Lumumba, dirigente do Movimento Nacional Congolês a partir de 1957, contrário às tendências secessionistas e defendendo o ideal da independência. Em 1960 torna-se primeiro-ministro, mas pouco tempo depois é assassinado.

[151]  - “A amante, Branca, uma negra liberta, não contava. O mais que tinha recebido do meu padrinho era esse nome de Branca, para substituir o indígena, indizível. (...) Quando ele morresse, ela voltava para o kimbo dos pais, sem nada.” Yaka, p. 30

[152]  - “Gozou que nem uma negra. (...) Ela não conta. (...)Vamos lá compreender os negros.” Yaka, p. 68.

[153]  - “Eram negros civilizados.” Yaka, p. 129.

[154]  - “Com branco nunca mais. Vou arranjar um homem, um dia, mas um igual. Não quero homem que de dia é uma coisa, de noite outra coisa.” Yaka, p. 163.

[155]  “Tinha outro nome, do Kimbo, mas Donana disse nunca vou pronunciar esse nome de negra, passas a ser Joana. Ela não queria, tinha o seu próprio nome, não era a patroa que a ia batizar à força. Mas teve de ceder, senão ia tundada de casa e precisava de emprego.” Yaka, p. 121.

[156]  - A mãe era "lavadeira" na casa de Heitor Espinha. Um outro indício da cor de Ruca é-nos dado através da gastronomia: "Joel (...) há dez anos que almoça aos sábados na casa dela, pirão de milho com calulu." Yaka, p. 374.

[157]  - “Para dar chapadas e pontapés, pôr os negros a trabalhar.” Yaka, p. 171.

[158]  - “Nesta vida de merda de branco numa terra de pretos.” Yaka, p. 184

[159]  - Yaka, p. 187.

[160]  - “Eu sou o herói, o mais forte, o mais conhecedor.” Yaka, p. 219.

[161]  - Neste sentido, não parece consistente a tese de Alexandre Pinheiro Torres que apresenta Aquiles como “um dos protagonistas de Yaka”, colocando mesmo a hipótese de ser o principal. Cfr. Yaka (ou o calcanhar de Aquiles?), in Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, p. 197.

[162]  - Para Alexandre Pinheiro Torres, Bartolomeu, “embora não se chame Orfeu terá de ir ao inferno, não para rever a amada, mas para chamar a si as terras dos negros “, creio, no entanto, que quem vê transformada a vida num inferno são os negros. Op. cit., p.200.

[163]  - Yaka, p. 171.

[164]  - “Terreno virgem para ocupar. Maior que metade sul de Portugal, à espera dele. Era só ter os meios.” (...) “Havia mesmo a árvore das patacas, não era aldrabice, o problema era saber escolher o momento e a maneira de a abanar.” (...) Para construir esse império, “precisava de um pequeno exército, cuja cúpula seriam os filhos e os sobrinhos.” Yaka, p. 286-287.

[165]  - “Os impérios não se criam pondo o dinheiro fora, mas investindo tudo. E ele estava quase a criar o seu império. Arriscou tudo por um império e perdeu.” Yaka, p. 364.

[166]  - Neste aspecto, Xandinho é a expressão acabada da sina dos Semedos (Óscar Þ AlexandreÞAquilesÞ Xandinho), como refere Bartolomeu: “Ele sempre foi um pobre de espírito, um fraco, parece sina dos Semedos, para fazer qualquer coisa precisava de receber ordens.” Yaka, p. 362.

[167]  - Yaka, p. 332.

[168]  - “Pois é, agora sou colonialista e vão fazer inquérito. Com certeza até vão dizer que não sou angolano. (...) E se falam de sangue (...) também temos sangue negro na família. Está aqui o Chico para o provar.” Yaka, p. 333.

[169]  - O pragmatismo de Bartolomeu foi contrariado pela influência de A. Semedo: Heitor “deveria ter ido para Portugal estudar Direito ou Agronomia” (...) mas ““foi estudar essas merdices de gregos...” Yaka, p. 287.

[170]  - Como dirá Bartolomeu: “É preciso alguém que saiba de leis na família, para poder driblá-las quando necessário.” Yaka, p. 287.

[171]  - Finalmente, A. Semedo descobre na família um ser capaz de fazer jus ao nome, e, por isso, batiza-o com o nome do “mais hábil e manhoso dos gregos” - Ulisses -, esperando que ele chegue a Ítaca, isto é, esperando que a angolanidade “integre” harmoniosamente o legado grego... Yaka, p. 384.

Se pensarmos a herança de A. Semedo, em termos prospetivos, verificaremos que a presença do homem branco em Angola tanto é assegurada através do neocolonialismo económico (Chico) como da influência cultural e ideológica ocidental (Joel/Ulisses).

[172]  - Em resposta ao convite de Nízia, Joel responde-lhe: “Não saio daqui, esta é a minha terra.” E pela primeira vez frente a Yaka, Joel informa o bisavô: “Vou ser soldado de Angola porque há um momento na vida em que tem de se escolher o seu próprio caminho (...) e agora (...) é preciso escolher o seu próprio país.”  Yaka, respectivamente, p. 376 e p. 384.

[173]  - Yaka, p. 387.

[174]  - “E os piores são esses brancos deles, como esse Bombó, no Leste comia criancinhas brancas todos os dias. “Yaka, p. 338.

[175]  - “Falava pouco, dizia só conheço Capangombe e Benguela, não sabia ler, se sentia amachucada pela erudição de Óscar Semedo. Às vezes se percebia que tinha ideias diferentes do marido, mas não contrariava.” Yaka, p. 33.

[176]  - A propósito da negra que Alexandre Semedo engravidara, Donana dirá: “Uma filha de escravos! Estes homens não têm vergonha, nem parecem brancos.” Yaka, p.101.

[177]  - “E o que vai andar ele a fazer à noite, ainda por cima com a cor que tem?” Yaka, p. 295.

[178]  - Yaka, p. 208.

Matilde não concorda com o acolhimento de Chico, em nome dos preconceitos sociais: “Tenho relações na alta e vão torcer o nariz quando virem que espécie de família temos.” Yaka, p. 299.

[179]  - Yaka, p. 262.

[180]  - Perante Joel, Chucha argumenta: “A vida aqui vai ser bem chata com os pretos a mandar. Yaka, p. 377. Ou ainda face à necessidade de ter de trabalhar em Portugal: “- Claro. Lá entre iguais... Lá não é vergonha trabalhar.” Yaka, p. 379.

[181]  - “Vivia na ansiedade de crença.” Yaka, p. 272.

[182]  - “Aí sim, há partidos e grupos que lutam pelos trabalhadores, que têm uma ideologia proletária segura é aí que se prepara a revolução socialista.” Yaka, p. 380.

[183]  - Yaka, p.122.

[184]  - Yaka, p. 196.

[185] - “Sacudida a cama de tábuas curvas de barril jaz desconjuntada no chão com Isidro sobre as tábuas partidas, uma lasca espetada na barriga, mas que não era ferida mortal”; Isidro foi enviado para Luanda de avião e “no meio do mar abriram a portinhola do avião e lhe empurraram com o pé...” Yaka, p. 313 e 316.

[186]  - “É que o Huambo não dá para viver. Está a ver a minha cor, não é?” Yaka, p.280

[187]  - “Os da casa não apreciavam mesmo nada a intromissão do passado vergonhoso de Alexandre no sapalalo e desaprovavam o convite feito ao mulato para viver com eles. “Yaka, p. 295

[188]  - “Conheço estas reações por causa da minha cor.” Ou “mas agora um tipo mais escuro é logo terrorista.” Yaka, respectivamente, p. 300 e p. 301.

[189]  -  Por pressão dos Semedos, Chico que tem consciência que “esse sangue negro sempre foi uma mancha na família, exceto para o avô” (...) “já se via negro e protetor de todos os brancos.” Yaka, respectivamente, p. 333 e p. 391.

[190]  - Yaka, p. 391.

[191]  - Yaka, p. 123.

[192]  - “Depois de casada é que sou perfilhada?” Yaka, p. 282.

[193]  - Yaka, p. 42.

[194]  - Devido ao extenso comentário desenvolvido anteriormente, não faço aqui referência explícita a Oscar e Alexandre Semedo nem a Acácio ou a Ernesto Tavares, que, à sua maneira, problematizam a relação intercultural enquanto a maioria das restantes personagens a cristalizam de forma primária.

[195]  - Estes dados “sont de nature politique, diplomatique, voire économique, et correspondent à l’époque contemporaine du texte ; ce sont aussi les lignes de force qui régissent une culture à un moment donné et dont l’examen permet de voir si le texte est en conformité ou non avec une certaine situation sociale et culturelle, à quelles traditions idéologique, culturelle, littéraire, esthétique il correspond (...) ; quel imaginaire il exploite et à quel imaginaire il s’adresse.” Op.cit. p. 69

[196]  - Adelino Almeida, A partilha de África no século XIX e a definição dos limites dos territórios portugueses, in Africana, Março, 1994.

[197]  - Como refere Carlos Pacheco - historiador angolano - em artigo publicado pelo “Público” (050595): “Angola reparte-se por um mosaico de povos distintos entre si étnica e culturalmente, sendo que os seus processos históricos se desenvolveram praticamente sem interrupção e de forma autónoma, durante séculos até à Conferência de Berlim. A chamada ‘soberania colonial portuguesa’ circunscrita até então ao litoral e a umas escassas centenas de milhas para o interior, pouco (ou nada) afetava esses povos do vasto sertão que, longe de viverem sujeitos à Coroa portuguesa, desfrutavam de limites de jurisdição territorial próprios.”

[198]  - Wilhelm H. Franz, Sobre a articulação dos modos de produção em Angola, in Análise Social, vol. XIX, 1983.

[199]  - Maria Manuela Lucas, Organização do Império, in História de Portugal, vol. V (direcção de José Matoso), Lisboa, 1993.

[200]  - Este processo de libertar Portugal, e, mais tarde, o Brasil dos “elementos nocivos” teve início nas primeiras décadas do séc. XV e só terminou em 1954.

[201]  - No que se refere ao papel dos degredados em Angola, cfr. Gerald J. Bender, capítulo Os degredados e o sistema da colonização penal, in Angola sob o domínio português.

[202]  - Em entrevista concedida a Michel Laban, Pepetela alude precisamente aos seus antepassados “brasileiros”: O meu trisavô, talvez, pertence à primeira leva de colonos que se instalaram em Moçâmedes - parece, eu não posso confirmar, mas que vindo de Pernambuco, no Brasil, parece...” in Angola - Encontro com Escritores, p. 784.

[203]  - “Todos os deportados (homens e mulheres) deveriam ficar aprisionados nestes depósitos e dali eram enviados para projectos de obras públicas.” G. Bender, op. cit., p. 120.

[204]  - G. Bender, op. cit. p. 133.

[205]  - Manuela Aguiar, in Políticas e Estratégias para as Comunidades Portuguesa I, Univ. Aberta, 1993/94.

[206]  - Luciano Cordeiro, Questões Coloniais, (org. por A. Farinha de Carvalho).

[207]  - Estas deveriam ter ao seu serviço: um comandante, um ou mais missionários, um médico (“naturalista” e “geógrafo”, se possível), alguns mestres de artes e ofícios e alguns ajudantes, alguns agricultores práticos. Estes deveriam instalar-se em casas e oficinas construídas em “sítios salubres e aptos para a agricultura e comércio” e dispor de máquinas, instrumentos, sementes e animais... Cfr. Ângela Guimarães, A questão colonial - introdução a um debate, p.1085-1086, Análise Social, vol. XIX, 1983.

[208]  - Manuela Aguiar, op. cit.

[209]  - Arnaldo Madureira, A colonização portuguesa em África - 1890 / 1910 -, p. 13.

[210]  - Manuela Aguiar, op. cit.

[211]  - Orlando Ribeiro, Destinos do Ultramar, p.68.

[212]  - Em 1920, os brancos eram 20.700 enquanto em 1924, esse número atingia os 36.192.

[213]  - “Tout comme Norton de Matos, Vicente Ferreira (1926-1928) croit en l’avenir blanc de l’Angola et à la colonisation ethnique de l’Afrique portugaise, grâce à la fondation de familles blanches stables, le métissage lui paraissant ‘une erreur grave’. Véritable théoricien de la colonisation blanche en Angola, il la veut saine, robuste et agraire, selon des modèles fort proches de la colonisation fasciste en Lybie.” René Pélissier, La Colonie du Minotaure, p.35.

Sobre a tese da colonização étnica [apresentada por Vicente Ferreira, na 22ª subsecção do II Congresso da União Nacional, em Maio de 1944], ver de Rui Ferreira da Silva, Racismo e colonização étnica de Angola, in Revista de História, Junho 95. Adepto da “colonização científica”, Vicente Ferreira defende que a colonização seja levada a cabo pelo Estado, envolvendo: capitalistas e empreendedores; técnicos e especialistas (emigrantes temporários, contratados pelo Estado ou por empresas privadas que, no caso de se dar aumento da população branca, acabariam por se tornar nos ‘criadores das novas nacionalidades portuguesas’; trabalhadores rurais que devem constituir o núcleo fundamental da ‘colonização étnica’. Defende a criação dos “casais de família” [isto é, a exploração fundiária de tipo médio] e a colonização política [a ocupação e exploração de terras menos férteis, mas, que por interesses estratégicos, justifiquem o seu povoamento com população branca - a exemplo do que aconteceu com a colonização promovida pelo Caminho de ferro de Benguela]. Partidário de um rigoroso segregacionismo racial, Vicente Ferreira rejeita a miscigenação, e por isso condena a colonização feita por “aventureiros e desclassificados” porque são eles que em geral fomentam a mestiçagem, difundem doenças, mendigam e sobrecarregam as obras de assistência.

[214]  - Em 1927, o número de brancos já atingia os 42.843.

[215]  - Em Angola, em 1950, só 2.746 brancos eram agricultores: Congo - 415; Malange - 110; Bié - 270; Benguela - 1146; Huila - 805.

[216]  - Em 1960, viviam em Angola 172.529 brancos, isto é, 3,6% da população do território a civilizar. 62% desses brancos viviam nas cidades. Do total de brancos, 50.921 tinham nascido no território.: 3153, em Benguela; 3118 em Moçâmedes; 8590, em Sá da Bandeira; 11761, em Luanda. Cfr.  R. Pélissier - La Colonie du Minotaure, p. 32.

[217]  - 9535 nascidos no território contra 8443 emigrantes, Pélissier, op.cit. p. 44-45.

[218]  - Em 1960, só havia 3.103 [Destes, os brancos estrangeiros seriam apenas 1820?] estrangeiros em Angola: 404 alemães (comunidade que estabilizara desde 1940), plantadores de café e de sisal; os restantes, eram quase todos missionários católicos (franceses, italianos e holandeses) e, sobretudo, protestantes. A presença dos missionários, em particular dos protestantes, era a mais preocupante para as autoridades portuguesas pela influência que exerciam sobre os nativos. 

[219]  - Gerald Bender, op. cit., p.29: “Para o luso-tropicalismo é central a crença de que os contactos culturais variados e intensivos dos primeiros habitantes de Portugal originaram uma civilização singular capaz de existir em termos amistosos com todas as outras civilizações.”

[220]  - Gilberto Freyre (1933) - Casa Grande &Senzala, 10ª ed., p.17.

[221]  - G. Freyre, op. cit., p.18.

[222]  - Mas como refere G. Bender, devem ser consideradas “duas importantes questões que determinam a relevância para as afirmações luso-tropicais destes séculos de ocupação e contactos estrangeiros: 1) Serão a adaptabilidade e a assimilação de traços estrangeiros peculiares aos Portugueses? 2) A assimilação de traços estrangeiros levará necessariamente ao comportamento luso-tropical? Op. cit. p. 29.

[223]  - G. Freyre, op. cit. p. 22.

[224]  - G. Freyre, op. cit. p. 29.

Na obra O Mundo que o Português Criou, Gilberto Freyre retoma o argumento da singularidade do homem português - produto de constante interpenetração de valores culturais diversos e de abundante miscigenação - como factor decisivo do seu comportamento no contacto com os outros povos. Destaca, nomeadamente: “a tendência para assimilar elementos estranhos. E assimilá-los sem violência, dada a oportunidade que sempre, ou quase sempre lhes tem dado, de se exprimirem. De modo que a assimilação se faz docemente e por interpenetração.” E explica que o facto de a colonização assentar na mestiçagem “não permitiu nunca que se endurecesse em antagonismos absolutos aquela separação dos homens em senhores e escravos, imposta pelo sistema de produção. Nem que se desenvolvesse exageradamente uma mística de branquidade ou de fidalguia. Op. cit., respectivamente, p. 36 e p. 41.

[225]  - O mestiço surgiria, deste modo, como a materialização da “perfection du processus intégrateur prêté au lusotropicalisme.” Todavia, por exemplo em Angola, teoria e prática divergiam: Em 1960, os mestiços estavam em regressão.  E dos 53.392 mestiços existentes em Angola, mais de dois mil seriam cabo-verdianos que, na Administração Pública, eram preferidos aos mestiços angolanos porque mais bem assimilados. Cfr. René Pélissier - La Colonie du Minotaure..., p. 54.

[226]  - G. Freyre - O mundo que o Português Criou, p. 46-47.

[227]  - Mª Helena Ortega Ortiz Assumpção designa este discurso como “um movimento de reavaliação da memória cultural”, em que apesar da acção do colonizador e dos manis - uma entidade mais antiga da nação angolana que detinha o poder religioso, militar e económico, Kuntuala (Futuro, em português) avista, no final da peça, a luz (a luz de Nanga) da independência nacional. In A identidade nacional na dramaturgia angolana, Actes du Colloque International, p. 52.

[228]  -  Gerald J. Bender (1976): “Talvez pelo facto de os primeiros contactos portugueses com os Bacongos terem sido os mais igualitários nos cinco séculos de Portugal em África é que este período surge frequentemente citado pelos escritores luso-tropicais como resumindo a natureza das relações raciais e culturais de Portugal em África.” In Angola sob o Domínio Português - Mito e Realidade, ed. Sá da Costa, Lisboa, 1980.

[229]  - Mário António F. Oliveira, na palestra  Uma primeira experiência de cooperação entre a Europa e a África (Évora, Junho 1980) exalta essa cooperação do seguinte modo: “aqui trazemos a experiência longínqua entre Portugal e o Reino do Congo, a que não faltaram os atributos que hoje honram e enobrecem os actos de cooperação mais dignos, desde o escrupuloso respeito pela soberania nacional da outra parte à atenção rigorosa e às prioridades por ela estabelecidas.” p. 35, in Reler África, Inst. de Antropologia da Univ. de Coimbra, 1990.

[230]  - ver reflexão minha (não publicada) Que futuro para a cooperação com África?, no âmbito do módulo “Políticas e Estratégias para a Cooperação”, Out. 1994.

[231]  - O que nos prova que não existe cooperação plena: nela encontramos sempre o quadro de referência cultural dos intervenientes, quer na retaguarda quer no terreno, tornando extremamente difícil encontrar um mediador cultural capaz de assegurar a passagem entre esferas culturais diferenciadas. Ver Robert Muchembled, L’invention de l’homme moderne, éd. Fayard, Paris, 1988.

[232]  - in Angola - Apontamentos sobre a Ocupação e o Início do Estabelecimento dos Portugueses no Congo, Angola e Benguela - Extraído de documentos históricos, por Alfredo de Albuquerque Felner, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933, pp. 383-390.

[233]  - D. Afonso reinou entre 1506 e 1543.

[234]  - Essa intenção de D. Manuel I manifestou-se, em particular, no capítulo religioso: ao fazer educar, em Lisboa, D. Henrique - filho do rei D. Afonso -, que acabou por ser nomeado bispo de Utica pelo Papa - o primeiro bispo africano.

[235]  - “Há neste documento (o dito Regimento), como noutros, um calor de digna fraternidade que não se repetiria muitas vezes na História das relações entre Europeus e Africanos (...) Essas relações não poderiam apenas ter sido cimentadas pelos interesses recíprocos - que os havia - mas também pelo catolicismo comum.” Mário Oliveira, op. cit., p. 37.

[236]  - Usurpador porque, de acordo com José Redinha, a regra sucessória “é hereditária, matrilinear, cabendo ao primogénito da irmã mais velha do chefe reinante, em virtude de a linha feminina defender a estirpe e os direitos de sangue pela evidência da maternidade. (...) O sistema matrilinear é observado para o efeito do direito sucessório, de cargos, de títulos e até de ofícios.” p. 69, in Etnossociologia do Nordeste de Angola, Ag. G. do Ultramar, Lisboa, 1958

[237]  - Devido ao contacto com a cultura portuguesa (batismo), “Nzinga-a-Nkuvu” passou a chamar-se D. João I, e o seu filho mais velho, “Mbemba Nzinga”, D. Afonso, que tivera mais de dez anos de instrução em Lisboa. “Mas o povo chamou-lhes sempre pelos seus nomes. “in A Revolta da Casa dos Ídolos, p. 18.

[238]  - De acordo com Bender, op.cit., pp. 36-37: “Enquanto nas duas primeiras décadas do contacto, cerca de 60.000 escravos tinham sido retirados do Congo, de 1506 a 1575 foram exportados 345.000. Inclusive, muitos sacerdotes, enviados para evangelizar a pedido de Afonso, entregaram-se à prática lucrativa de comprar e vender escravos.”

[239]  - Silveira terá morrido pouco depois da sua chegada ao Congo.

[240]  - “(...) Os estrangeiros, os que nos trouxeram a guerra e a traição, as sotainas e a perfídia...” Op. cit., p. 17.

[241]  - Op. cit., pp. 46-47.

[242]  - “Negro burro”, “um cachorro assanhado”, referindo-se a um dos elementos (Nanga) da “negralhada” Op. cit., pp. 85, 87. Também, o Capitão, embora genericamente, se refere às mulheres como “lindas porcas”. p. 89.  O Lopes trata os populares como cães: “Soldados, matem esses cães!” p. 138. Anteriormente, Mpanzu-a-Nzinga comparara a presença portuguesa no Congo ao convívio com uma “cobra venenosa”. pp. 23-24

[243]  - Op. cit., p. 57.

[244]  - “A água benta era um feitiço grande.” (...) “O Rei pensava que era uma força maior que a dos espíritos. Ele supunha que a força dos portugueses vinha da água benta!” Op. cit., pp. 26-27.

[245]  - O Padre “dizia que nós éramos pagãos, que é uma doença que só se cura pelo fogo. Fiquei admirado, pois o fogo queima mas não cura.” Op. cit., p.41

[246] - “0 primeiro eleitor do Reino, o guarda dos espíritos dos antepassados.” Op. cit., p. 19.

[247]  - Enquanto pela norma sucessória africana, o rei deveria ser proposto pelo primeiro eleitor do Reino e aprovado pelo Colégio eleitoral, a norma europeia consagrava a sucessão directa de pai para filho. É neste contexto que Mpanzu-a-Nkuvu, o principal candidato, e sobrinho do Rei, foi morto e substituído por D. Afonso, com o apoio dos canhões portugueses e dos principais congoleses - manis -, mais interessados no comércio dos escravos e do marfim do que em preservar as tradições.

[248]  - Tal como afirma Bender, op. cit., p. 37: “O seu regimento (...) constituía um plano magistral para a aculturação dos Bacongos.”

[249]  - A réplica do ferreiro Nimi mostra bem a intenção de Pepetela de (re)criar a implantação do sistema matrilinear: “Desconfiar do meu sobrinho, eu? Do filho mais velho de minha irmã? Daquele que receberá tudo o que hoje é meu e que de mim já está a receber a arte de trabalhar o ferro, a minha arte? Estás louco. “Op. cit., p. 16

[250]  - Novamente o ferreiro Nimi: “(...) Os portugueses e os canhões colocaram-se, claro, do lado do usurpador. Este, com um exército menos numeroso, mas com os canhões, conseguiu vencer. O herdeiro legítimo ficou com os seus homens, morto no terreno de combate.” pp. 24-25, op. cit.

[251]  - Depois de ter sido vendido por seu tio, Masala é-lhe devolvido, como refere Mani-Vunda: “O Mani-Soyo ficará contente de o reaver... Além disso, é sobrinho dum mani. É um gesto de boa vontade em relação ao Mani-Soyo...”, op.cit., p. 135.

[252]  - Um bom exemplo do discurso luso-tropicalista é nos dado por José Osório de Oliveira: “Simpatia pelos Negros, não creio que outro povo colonizador tenha tido mais do que o nosso. O que não tivemos. até há pouco tempo, foi curiosidade científica pelo Negro, exatamente por o considerarmos nosso semelhante, e não objecto de análise.” p. 20, Contribuição portuguesa para o conhecimento da alma negra, Lisboa, 1952.

 Também José Redinha sintetiza eloquentemente a nossa original visão do mundo: “A colonização portuguesa, sinónimo de cultura, bem expressa no seu método de assimilação cultural, caracteriza-se por factos da maior importância, como sejam a ausência de ódios religiosos, de teorias de espaço vital, de sistemas de segregação, ou dessas deploráveis atitudes etnocidas modernamente sistematizadas sob a designação de genocídio.” Op. cit., p. 212.

[253]  - É durante esta revolta que o tenente João Carlos de Saldanha de Oliveira e Daun, conde de Almoster é morto, tendo provocado no Portugal de 1897-1898 uma enorme emoção.

[254]  - Mutu-ya-Kevela, na perspectiva dos missionários norte-americanos, revelou-se um reformista, defendeu o fim da arbitrariedade colonial e a liberdade, opôs-se ao comércio de escravos e de aguardente.

[255]  - Cfr.  René Pélissier - História das Campanhas de Angola - resistência e revoltas 1845-1941, vol. II, p. 81

[256] - Apesar da “velha aliança” com Inglaterra e de esta ter dado um contributo essencial para a construção do caminho de ferro de Benguela, a acção educativa, social e espiritual dos missionários ingleses e norte-americanos foi sempre associada pelos portugueses ao fomento da sublevação dos nativos, gerando-se, sobretudo, nos momentos de maior crise, uma atitude colectiva de anglofobia. Porém, esta atitude não era mais do que um aspecto particular da xenofobia portuguesa que, apesar de algumas exceções, sempre limitou a entrada e controlou a presença de estrangeiros em Angola. Significativamente, esta atitude, cujo fundamento é de raiz religiosa, materializou-se respectivamente num estereótipo e numa personagem-tipo: “a gangrena protestante” e o “catequista /enfermeiro protestante”.

[257]  - Os espiritanos franceses - de origem alsaciana - instalaram-se inicialmente na Huíla, em 1881, por iniciativa do Pe. Duparquet, com o objectivo de barrar a passagem aos protestantes alemães, que tinham aberto duas missões no Cuanhama. Como agentes civilizadores instruíram uma pequena camada de futuros artífices, empregados comerciais e outros colaboradores do mundo branco.

 A acção dos espiritanos, à semelhança de outras missões católicas, foi bem aceite pelos portugueses, na medida em que estes não punham em questão o modelo de colonização português: um modelo fundado na expansão do catolicismo e, por isso, menos aberto ao comércio livre, à livre iniciativa, à emancipação do homem.

[258]  - René Pélissier, op. cit. p. 83.

[259]  - A força inicial de Pais Brandão era composta por 42 soldados de primeira linha e 36 de segunda, uma peça, 100 obuses e 40.000 cartuchos. Mutu-ya-Kevela, por seu lado, teria 6.000 homens, mas mal preparados para se opor ao fogo inimigo.

[260]  - René Pélissier, op. cit. p.92-94.

[261]  - Samacaca há mais de 10 anos que constituíra um pequeno bando sempre pronto a pelejar e que durante a construção do caminho de ferro de Benguela se revelou um poderoso obstáculo à sua prossecução.

[262]  - René Pélissier, op. cit. p.191-192. Estas páginas são uma fonte fundamental para Pepetela, quando dá a palavra ao soldado-testemunha que, bêbedo, narra a humilhação portuguesa.

[263]  - Yaka, p. 109.

[264]  - René Pélissier, op. cit. p.134-137.

[265]  - Segundo o “comando das forças em operação (...) os insurretos batem-se bem e são arrogantes, facto que tende a demonstrar que são dirigidos por Alemães que atuam por intermédio de “nativos civilizados” e assimilados. “René Pélissier, op. cit. p. 47.

[266]  - Este é um outro comportamento repetidamente atribuído aos criados africanos em situações de sublevação e que efetivamente parece um estereótipo gerado pelo próprio imaginário do colonizador, na medida em que nas restantes situações estes criados são dedicados e dóceis.

[267]  - Os Ovimbundos temiam, contudo, ao embarcar do Lobito e de Benguela que alguma traição os encaminhasse para as roças de S. Tomé. Cfr. René Pélissier, op. cit. p. 56.

[268]  - Sobre Bula Matari (Bulamatari) não se sabe nada de concreto: seria um desconhecido ou o “misterioso Dr. Pierre, “luxemburguês” e assimilável, portanto, a um belga? Este desconhecido teria dado ordem para que fossem mortos todos os brancos e todos os negros que soubessem português.

[269]  - “As montanhas tinham sido testemunhas de suplícios horrorosos. O sangue avermelhara a terra até às fronteiras do Bailundo. O incêndio reduzira a cinzas tudo quanto o braço humano havia edificado.” António Leite de Magalhães, Província de Angola. Distrito do Cuanza-Sul..., p. 16.

[270]  - René Pélissier: “Um cuvale era um homem que não se vergava nem perante os cipaios nem perante os brancos pelo simples motivo de que ninguém ousava aventurar-se nas secas montanhas onde dissimulavam os seus bois.” Op. cit. p. 268

Hoje, como no passado, “le groupe de gens qui se disent  et sont dits Kuvale est formé de populations qui pratiquent l’élevage et une maigre agriculture à partir de rivières le plus souvent à sec qui à la saison des pluies portent une partie des abondantes précipitations des plateaux de Benguela et de la Huila jusqu’à l’Atlantique (...) Ils constituent avec les “Mundombe” et les Kwando au Nord, les Nguendelengo au Nord-Est, les Kakahona et les Ndimba au Sud-Est, les Kwanyioka et les Himba au Sud , les formations sociales de langue et références culturelles herero qui aujourd’hui, à la suite de la partition coloniale et de la formation étatique actuelle, se retrouvent en territoire angolais.” Ver R. Duarte de Carvalho, Les pasteurs Kuvale, in Politique Africaine - L’Angola dans la guerre, nº57, p. 87.

[271]  - “On a sans doute réactivé avec la dernière énergie toutes les possibilités de circulation des personnes et du bétail par les voies de la succession et de l’alliance, des classes d’âge et sur toutes les bases de solidarité. Toute la force de travail disponible fut parallèlement investie dans la pratique de l’agriculture du maïs, qui dans des conditions normales répugne nettement aux hommes, dans le travail aux docks du port de Moçâmedes (aujourd’hui Namibe), canalisant avec obstination et ténacité le produit de ce travail vers l’acquisition de bétail. Tout cela permit qu’en peu de temps les Kuvale rétablissant leur manière de vivre, consacrée à la possession et à la reproduction de bétail. Dès ce moment, la prestation de services à tiers se vit de nouveau réduite au minimum suffisant pour payer en liquide l’impôt - qui semble d’ailleurs avoir été déjà au départ du malheur souffert en 1941.” R. Duarte de Carvalho, op. cit. p. 91.

[272]  - “ Mweneputo, expression composée dans laquelle mwene signifie maître et puto Portugal. Ver R. D. de Carvalho, op. cit. p.89.

[273]  - Com a independência de Angola, os cuvales recuperaram o território e o gado abandonados pelos europeus, e, ao alistarem-se nas Fapla, puderam retomar a antiga prática da razia, visto que a cultura cuvale continua a identificar guerra e razia.

[274]  - “Os terroristas? Querem expulsar os brancos, destruir as fazendas, queimar as casas. Foi o Lumumba que mandou. Yaka, p. 289.

[275]  - Em torno desta operação existe ainda hoje controvérsia, na medida em que quer o MPLA quer a UPA reivindicam a sua autoria. Segundo o historiador Carlos Pacheco quem organizou a operação terá sido a UPA, com apoio de organizações norte-americanas. A UPA terá sido criada em 1954, sob a sigla UPNA (União das Populações do Norte de Angola). Em 1960, a UPA detinha o controle da situação política em Luanda e, face ao aumento da repressão, defende a acção directa contra o regime colonial, com ataques simultâneos em várias regiões, derrube de postes eléctricos e a tomada de postos emissores. Apesar do desacordo de Holden Roberto, que desconfiava da fidelidade dos mulatos ao movimento nacionalista, com o apoio do American Committee on Africa - através, sobretudo, da acção das missões protestantes e, em particular, de Melvin Blake -, uma centena de operários negros lançou o ataque quixotesco que provocou uma violenta reação portuguesa. Todavia, esta operação foi reivindicada pelo MPLA, reforçando, deste modo, a tese salazarista da mão vermelha de Moscovo.  Cf. José Eduardo Agualusa, in “Público” de 4 de Fevereiro de 1995.

João Paulo Guerra, sem partilhar plenamente a tese do MPLA sobre a autoria da operação, não deixa de aceitar os objectivos definidos por Mário de Andrade sobre a insurreição: “libertar dirigentes nacionalistas presos” e “aproveitar o impacto da presença dos jornalistas estrangeiros em Luanda à espera do Santa Maria.” in Memória das Guerras Coloniais, p. 177.

[276]  - De acordo com Rui Ramos, a 5 de Fevereiro de 1961, teriam sido mortos 5.000 africanos. Por sua vez, no dia 15 e 16 de Março do mesmo ano, a UPA teria eliminado 2.000 colonos e 10.000 bailundos. Cf. As décadas da sangria, in Expresso, de 2 de Fevereiro de 1991.

[277]  - João Paulo Guerra citando o missionário Malcom McVeeigh, op. cit. p.178-179.

[278]  - Cf. Adriano Moreira, Política de Integração, in Boletim Geral do Ultramar, nº 434-435.

[279]  - Adriano Moreira, op. cit., p. 12.

[280]  - Adriano Moreira, op. cit. p. 14.

[281]  - Adriano Moreira, op. cit. p. 19.

[282]  -  O mês de Abril (de 1968), mês da morte do herói nacional e patrono da juventude -Hoji ia Henda- tornou-se, para o MPLA, num símbolo da luta pela independência de Angola.

[283]  - Para Angola foi traçado o seguinte plano: cessar-fogo com todos os movimentos de libertação; governo provisório de coligação, em que estariam representados os agrupamentos étnicos mais representativos, o que obviamente incluía a etnia branca; dois anos mais tarde, eleição de uma Assembleia Constituinte por sufrágio universal, que faria a nova Constituição e marcaria novas eleições legislativas.

[284]  - Os BM 21 (lança-roquetes de 40 canos) eram conhecidos na gíria local pelos “Mona Caxitos).

[285]  - Como recorda Vieira de Almeida: “A maioria teimava em permanecer, porque não tinha percebido logo o que se estava a passar: oriundos de meios pobres, pouco cultos, tinham-se estabelecido em Angola como se estivessem no Minho ou em Trás-os-Montes. É provável que nunca se tivessem reconhecido numa Angola independente. Cf. Público Magazine de 2 de Julho de 1995.

[286]  - À determinação de Gonçalves Ribeiro terá ficado a dever-se em grande parte o êxito da Operação de Repatriamento de Angola. Gonçalves Ribeiro abandonou Angola às 23 h e 55 m do dia 10 de Novembro de 1975.

[287]  - Sobre a história do termo “etnia”, ver  Catherine Coquery-Vidrovitch - Du bon usage de l’éthnicité, in Le Monde Diplomatique de Juillet 1994 - que explica a diversa e frequentemente contraditória utilização do termo desde 1787: até meados do século XIX, as “etnias” eram os povos não cristãos (os “pagãos”; os “selvagens”); por volta de 1880, com o surgimento do imperialismo colonial, o termo é recuperado pela etnografia, sendo popularizado pelos investigadores alemães a partir de etnikum, gerando uma enorme confusão entre o sentido racial, linguístico e psico-social; com o início da descolonização, nos anos 50 deste século, os antropólogos regeneraram-lhe o sentido ao defenderem a ideia de que os povos pré-coloniais tinham, como os outros, uma história tão digna de interesse como os outros.

[288]  - Cf. Mário António F. Oliveira, O Português em África: Língua de élites ou língua de massas? in Reler África, p. 390. De notar que não há nenhuma certeza sobre o número efectivo de falantes do português em Angola. Por exemplo, referindo-se ao período pós-independência, e a propósito das vantagens do ensino do Português como L2 em Angola,  Pilar Vasquez Cuesta caracteriza a situação linguística angolana do seguinte modo: “Daí que o ensino do português tenha de distinguir entre esse escasso 20% de falantes que têm o português como língua materna e o restante 80%, integrado por monolingues ou poliglotas nas diferentes línguas africanas do país e indivíduos que, tendo como materna uma língua africana, possuem conhecimentos mais ou menos superficiais da portuguesa.” Ver O Ensino do Português enquanto Língua 2 em Angola, in Angolê, nº1, Março de 1990.

[289]  - No essencial, a situação do português não é diferente da do francês ou do Inglês, como refere    François Grosjean, Life with two languages, in Introduction to Bilingualism: “English and French are barriers between the elite (an estremely small minority, often educated in Britain and France) and the masses.”

[290]  - Ver René Rodrigues da Silva, Síntese da Situação Educacional em Angola, 1966: Entre 1957 e 1966, o número de alunos que frequentaram as escolas angolanas quase que quadruplicou, apesar do sucesso escolar raramente ultrapassar os 55%; para o ensino primário, o número de estabelecimentos de ensino triplicou, tendo quase quadruplicado o número de professores, numa campanha designada levar a escola à sanzala. Da leitura desta Síntese fica, porém, uma certeza: apesar do ensino em Angola “não deixar de considerar as características da realidade sociológica da Província”, sobretudo, na pré-primária e na primária, o facto é que todo o aluno que entrasse na escola ficava sujeito “ao plano nacional português”. E note-se que a classe pré-primária, 1ª classe do ensino infantil, instituído em 1927 pelo Alto-Comissário Vicente Ferreira, visava a prática do uso oral corrente da língua portuguesa, independentemente da língua materna de cada aluno.

[291]  - De acordo com dados referentes a 1990, e sendo o português língua oficial de Angola, o analfabetismo rondava os 58,3%; a taxa global de insucesso atingia 50,2%, com a repetência a 25,9% e a taxa de abandono escolar a 24,3%.

[292]  - Cf. Jonuel Gonçalves, Angola - o retrato de um mosaico etno-cultural, in Público de 31 de Maio de 1991. Ver também Mário António F. Oliveira, Línguas de Angola. O Quimbundo, op. cit.

[293]  -  Para melhor compreendermos, no passado, a resistência à ocupação portuguesa, e, no presente, o conflito com o poder central, é importante recordar, como refere Mário A. Oliveira, “que entre os Bundos, mais do que entre quaisquer outras populações de Angola, a alfabetização nem sempre foi simultânea com a lusofonização.” Op. cit. p. 77.

[294]  - Embora o Presidente angolano, Agostinho Neto, no discurso da sessão solene de proclamação da União de Escritores de Angola, tenha afirmado: “O uso exclusivo da língua portuguesa, como língua oficial, veicular e utilizável actualmente na nossa literatura, não resolve os nossos problemas.” in Manuel Ferreira, Que futuro para a Língua Portuguesa em África?, p. 42.

[295] - Françoise et Jean-Michel Massa, Mondes lusophones d’Afrique, écritures lusographes, in Revue de Littérature Comparée, janvier-mars 1993 : “Presque jamais le portugais n’est (ou n’était) langue maternelle. Toutefois grâce à un enseignement dopé depuis l’indépendance, grâce au prestige de l’école, à la radio (et la télévision quand elle existe) l’aire du portugais gagne spectaculairement du terrain.” p. 72.  

[296]  - Mário António Oliveira, op.cit. p. 75.

[297]  - É preciso tomar em consideração que o colonizador na sua relação com a colónia, a passou a ver como uma parte de um todo, como uma província de uma nação multirracial, cuja língua -o português- deveria desempenhar um papel fundamental na consolidação de uma frágil fronteira permanentemente ameaçada do exterior, e, quantas vezes, do interior. Ora a fronteira reivindicada pela lusofonia parece sofrer da mesma fragilidade da pretérita e suposta nação multirracional.

[298]  - Como refere, numa visão optimista, Manuel Ferreira ao reportar-se às opções governamentais dos PALOP: “A língua portuguesa como língua oficial, e as línguas maternas como meios de expressão originária da cultura africana e meio de comunicação fundamental para as populações, aguardando-se a oportunidade material para a concretização de acções capazes de as tornar num instrumento na aprendizagem da leitura e veículo de outros saberes elaborados.” op. cit. p. 23.

[299]  - Obra publicada:

As Cinco Vidas de Teresa (1962), in Novos Contos de África, col. Imbondeiro, Sá da Bandeira

Muana Puó (1969), 1ªed., ed. 70, 1978; 2ª ed. D. Quixote, 1995

As aventuras de Ngunga (1972), 1ª ed., ed. 70, 1976.

A Corda (1976), U.E.A., 1978.

A revolta da Casa dos Ídolos (1979), 1ª ed., ed. 70, 1980.

Mayombe (1971) U.E.A.; ed.70, 1980.

Yaka (1983), ed. D. Quixote.

O Cão e os Caluandas, ed. D. Quixote, 1985.

Lueji, o Nascimento dum Império, D. Quixote, 1990.

A Geração da Utopia, ed. D. Quixote, 1992.

O Desejo de Kianda, ed. D. Quixote, 1995.

 

[300]  - Mikhaïl Bakhtine (T. Todorov / M. Bakhtine le principe dialogique) p. 51-52.

[301]  - Daniel-Henri Pageaux, op. cit. p. 69.

[302] - Entrevista a Rodrigues da Silva, JL de 29 de Março de 1995.

[303]  - O escritor afirma-se "furiosamente benguelense", assim acentuando "um certo bairrismo" anti Luanda, que remonta ao séc. XVII quando aquilo que hoje designamos por Angola estava dividido entre a colónia desse nome e o reino de Benguela.

O conquistador de Benguela terá sido Manuel Cerveira Pereira, chegado àquela terra em 1617, depois de anteriormente ter sido um odiado governador de Angola. Ilibado das graves acusações que lhe eram feitas, o rei Filipe nomeou-o, em 1615, governador e conquistador de Benguela, que passou a gozar de estatuto independente de Luanda.

Sobre a atribulada vida do primeiro governador de Benguela, ver Pepetela: Cidade das Acácias Rubras, Público de 16 de Maio de 1993; O Conquistador de Benguela, Público de 27 de Novembro de 1994.

[304]  - Pepetela: “Lembro-me que li os anarquistas - com 12, 13 anos de idade... Os Bakunine e tal, os portugueses do anarco-sindicalismo, que depois desapareceram. (...) O meu pai tinha uma biblioteca razoável de romances clássicos. (...) E eu sempre li muito (...) e penso que isso começou a caldear certas ideias, sei lá, de igualdade, fraternidade, Revolução Francesa, a literatura dessa fase - Saint Simon, Proudhon.” p. 780, in Michel Laban, Angola - Encontro com Escritores, II vol.

 Não é difícil encontrar ecos das fontes e do pensamento veiculado pelas obras mencionadas no desenho de personagens como Acácio (um tio-avô, que fora degredado para Angola por razões políticas, e o tio jornalista) ou Óscar Semedo (o pai de Alexandre Semedo) em YAKA. A educação de Alexandre Semedo reflecte claramente a de Artur C. M. P. dos Santos.

[305]  - “Chego ao Lubango e encontro uma sociedade em que o racismo era a nota predominante.” (...) “Lubango e Huambo deviam ser as cidades mais racistas de Angola.” in Michel Laban, op.cit. p. 781 e 783. Este confronto entre cidades está bem expresso em YAKA, quando Chico - neto mestiço de Alexandre Semedo - foge do Huambo para Benguela, porque, apesar de assimilado, se sentia totalmente discriminado. Por outro lado, é, sobretudo, no Lubango que o jovem Artur Santos descobre uma outra diferença, não de cor, mas entre brancos nascidos em Angola e brancos oriundos da metrópole, importante na construção de algumas personagens de YAKA, como, por exemplo, Bartolomeu Espinha: o branco do Lubango era “um pequeno agricultor em Portugal, um explorado, de repente tinha terras e tinha pessoas em quem mandar... Eu acho que é o pior tipo de gente que há, é aquele que vai defender os privilégios até à morte.” in Michel Laban, op. cit., p. 783.

[306]  - Pepetela: “Porque era o único que falava de Angola na sua plataforma eleitoral. Todos os outros falavam de Portugal e das colónias como parte integrante de Portugal. Ele começava a separar Angola. in M. Laban, op. cit., p. 782.

[307]  - Na Casa dos Estudantes do Império conheceu ou reencontrou Costa Andrade, Daniel Chipenda, Júlio de Almeida, Paulo Jorge, Portela Santos, Carlos Ervedosa ... que o “orientaram” para a área da literatura.

[308]  - Romance publicado em 1992.

[309]  - É na Mensagem que publica alguns contos. Em 1962, publica em Novos Contos de África, As cinco Vidas de Teresa.

[310]  - Participou, em 1964, na criação do Centro de Estudos Angolanos com “o Abranches, o Adolfo Maria, o Kasesa, e o João Vieira Lopes” e cujo objectivo era produzir documentação sobre Angola, de modo a “fazer o levantamento de (...) todas as áreas possíveis da realidade angolana (...) e também ajudar o MPLA no sentido da propaganda exterior.” in Michel Laban, op. cit. p. 789.

Este Centro de Estudos em 1969 foi transferido para Brazzaville, tendo a sua atividade sido muito reduzida a partir de 1972.

[311]  - Nessa altura, assinava Carlos Pestana. Antes de passar a assinar Pepetela, ainda assinou Artur Pestana

[312] - "A consciência desse destino literário possui-a o escritor desde a adolescência em Angola, quando se lhe revelam os brasileiros Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego, ou desde Portugal onde descobre Hemingway, com Faulkner, Steinbeck e Horace McCoy, uma das suas referências (ao lê-lo estamos sempre a vê-lo como personagem principal, e ele escreve sobre o quotidiano como se fosse ao ritmo do próprio dia." Em Portugal, Pepetela descobre também Eça ("foi o escritor que me tocou mais", responsável pela reprovação na disciplina de Literatura Portuguesa, no exame de 7º ano no Liceu Pedro Nunes.) Ibidem

[313] - "Independentemente do dever patriótico, sentia que a guerrilha me era necessária como experiência literária. E a literatura foi sempre o que eu quis fazer. O resto aconteceu em função disso. Ibidem.

[314]  - As aventuras de Ngunga (1972) são expressão dessa preocupação didática... o mesmo acontecendo, de certo modo com a peça de teatro A Corda (1976).

[315]  - Mayombe (1971) é talvez a obra que melhor exprime as contradições vividas pelo comissário político, Pepetela.

[316]  - Esta participação na acção militar encontra-se, também, referenciada em A Chana (1972), 2ª parte de A Geração da Utopia.

[317] - Entrevista ao FORUM

[318]  - De que se orgulhava, como podemos antever pela apreciação que faz do trabalho realizado: "Até 1980, havia escolas nos sítios mais recuados do país, onde nem havia militares, polícia ou administrador local. Os livros escolares eram distribuídos gratuitamente. Um milhão de adultos estava alfabetizado." Em termos de política educativa defendia: a ligação da Escola ao Meio; o aproveitamento das línguas locais; o respeito pela tradição.

[319]  - Enquanto esteve no Ministério da Educação, fotocopiou e leu toda a documentação, sobretudo, histórica que encontrou referente à região de Benguela. E, principalmente, tomou como referência principal as obras do historiador René Pélissier.

[320]  - YAKA “é uma alegoria ou um rito da nacionalidade. Por isso, a estátua (...) é dali, desse povo aparentado com os jagas - aparentado ou não, porque ninguém sabe muito bem quem são esses jagas -, mas é para dar uma ideia, de facto, da unidade - que talvez seja um termo forte de mais -, mas de pontos comuns em todo o território...” in Michel Laban, op. cit. p. 803.

[321]  Esta tese defendida por muitos etnólogos é, no entanto, problematizada por Mesquitela Lima, para quem o grupo Jaga - encontrado por Battel, entre 1600-1601, próximo da foz do rio Keve, onde, em 1617, seria fundada Benguela-a-Velha /Porto Amboím - “poderia não ser mais do que (...) um grupo de caravaneiros ou uma horda de guerreiros, que fazia “razzias” aos outros povos.” in Os Kyaka de Angola, p.174-175.

A primeira referência aos Jagas é feita por Almada, em 1594, no “Relatório Anual dos Jesuítas”, ao afirmar que os Jagas eram Iakas e que em Angola, eram conhecidos pelo termo ginda.

[322]  - Michel Laban, op.cit. p. 800.

[323]  - Op. cit., p. 230

[324]  - Literatura e Poder na África Lusófona, p. 24.

[325]  - J.C. Venâncio em Uma perspectiva etnológica da literatura angolana, p. 121, estabelece que foi a “geração de 50" que lançou as bases culturais da mudança socio-política, que é a partir desse momento que se pode falar de uma "literatura angolana e duma estética da angolanidade."

[326]  - Michel Laban, Encontro com Pepetela (Luanda, 4-4-1988), in Angola - Encontro com Escritores, II vol., p. 771

[327]  - Sobretudo obras como A Corda e Mayombe cujo objectivo era a mobilização das pessoas, ou mesmo como acontece com As aventuras de Ngunga, escritas para serem utilizadas como “textos” nas escolas... Todavia, a preocupação com a realidade colonial já se revelara em As cinco vidas de Teresa, que denuncia o preconceito racista, numa sociedade benguelense extremamente mestiça. Descreve os costumes brancos, sempre prontos a abusar das jovens pretas. Manuel, escriturário, rapaz branco para quem a educação aproxima Teresa das raparigas brancas. Mas “à posse feliz da virgem segue-se o rictus de nojo... perante o beijo procurado por Teresa”. Manuel rejeita com um último argumento: “Até seria despedido da firma se casasse com uma negra.”

 Em As Aventuras de Ngunga, Ngunga, órfão de 13 anos - que fora adoptado e explorado pelo presidente Kafuxi, responsável pela população de uma série de aldeias -, queria saber se em toda a parte os homens eram iguais, só pensando neles. Ngunga que “nunca tinha visto um branco”, criado do chefe da Pide, recusa o patrão colonialista. A escola era uma grande vitória sobre o colonialismo.

[328] - De certo modo, Pepetela realiza, nesta fase, o tópico clássico de “numa mão a pena e na outra a espada”.

[329]  - Embora confrontada com uma matriz ideológica aparentemente anticolonialista e, consequentemente, antiportuguesa.

[330]  - Mayombe, pp. 139-140, 3ª ed., ed. 70, Lisboa, 1988.

[331]  - in Michel Laban, pp.814-815.

[332]  - in Michel Laban, p. 815.

[333]  - no sentido da “procura” quotidiana da Heimat (pátria), tal como é definida pelo filósofo alemão Ernst Bloch. Neste contexto, a “procura” da angolanidade surge intimamente ligada à defesa da liberdade. Cfr. Entrevista Pepetela: um construtor da angolanidade, in José Carlos Venâncio, Literatura e poder na África lusófona, pp. 95-99.

[334]  - in Michel Laban, p. 812.

[335]  - Annette Endruschat, A língua falada como força motriz do desenvolvimento do português angolano, p. 8, in Angolê, nº1, Março de 1990.

[336]  - Face à transformação do português de Angola, Pepetela mostra-se muito mais comedido do que outros escritores angolanos (p. ex. Óscar Ribas, Jofre Rocha, Uanhenga Xitu, Boaventura Cardoso, Luandino Vieira...):” Há uma estrutura de palavras - certas palavras que hoje são nacionais: maka, mujimbo..., que provavelmente nunca mais se perderão, não vão ser substituídas por outro modismo qualquer. Ao passo que há muitas palavras ou expressões, ou até estruturas, que podem ser ocasionais. E, portanto, há o risco de uma pessoa utilizar isso num livro e, daqui a dez anos, ser preciso pôr uma nota de rodapé...” Michel Laban, op. cit. p. 815-816.

[337]  - Daniel-H. Pageaux - La littérature générale et comparée, p. 69.

[338]  - M. Bakhtine, op. cit., p. 51-52.

[339] - A propósito da diferença de estatuto entre autor e escritor, cf. Carlos Reis, in O Conhecimento da Literatura, p. 54-55.

[340]  - No sentido que L. Goldmann atribui ao conceito “visão do mundo” : “ ensemble des aspirations, des sentiments, et des idées qui réunit les membres d’un groupe et les oppose aux autres groupes.” in Théorie littéraire, Sociologie de la littérature par Edmond Cros, p. 143. 

[341]  - A diferença, entendida enquanto traços diferenciais, cuja importância reside não na substância em si, mas na significação que lhe é atribuída ao longo dos tempos. Cf. Albert Memmi, Le racisme, p. 55-56.

[342]  - Toda a passagem supõe uma porta ..., porém, no caso angolano, ela parece ter-se fechado já que as últimas obras de Pepetela - como acontece com outros autores angolanos - se tornaram discurso de desilusão.

[343]  - Paradoxalmente, esta explicação, pelas circunstâncias em que o escritor se vê obrigado a publicar a sua obra e pelo facto de ela atingir cada vez mais um público não angolano, surge, sobretudo, como uma poderosa esquematização do conflito colonial.

[344] - A noção ixiptla é nos explicada por Gruzinski, e citada por Michel Maffesoli, La Contemplation du Monde - figures du style communautaire, p.110-111.

[345]  - Modelo estético, no sentido em que M. Maffesoli define “estilo estético” : “La vie comme oeuvre d’art, en quelque sorte, ou encore l’esthétique comme manière de sentir et d’éprouver en commun.” Op. cit., p. 45

[346]  - Neste sentido, a imagem é portadora de cultura, na medida em que proporciona uma atitude radicalmente diferente da atitude de domínio. A imagem remete para a Verwindung heideggeriana, visto que permite retomar, aceitar, distorcer elementos arcaicos em uma situação contemporânea..., isto é, em vez de uma atitude de discriminação, favorece o “sentir com”. Cf. M. Maffesoli, op. cit., p. 105.

[347] - Apesar de habitar o sapalalo - símbolo do colonialismo - Alexandre Semedo acaba por acumular no quarto uma grande quantidade de objetos “familiares” de YAKA: punhal cuvale, esteiras, cestarias, máscaras, cinzeiros com esculturas de animais, quindas, mobília de verga, etc. Mesmo no jardim, encontramos uma pitangueira e uma mangueira.

[348]  - “Também pressinto (...) que ela fala duma compreensão entre os homens. (...) Já estamos a lutar juntos, homens de raças diferentes.” Yaka, p. 388-389.

[349]  - A transfiguração é a passagem de uma figura a outra. Neste sentido, o romance YAKA - enquanto imagem - tem como duplo objectivo legitimar a actual presença branca, porque herdeira da dissidência, que lentamente aprendera a “sentir com” e, por outro lado, divulgar essa transfiguração, porque, como refere M. Maffesoli, “il n’y a pas de produit sans une image qui le fasse connaître et permette de le diffuser ou de le vendre.” Op. cit. p.111. 

[350]  - Relembremos, todavia, que Alexandre Semedo, entre 1917 e 1940, interrompe as suas “conversas” com a estátua Yaka.

[351]  - Como vimos em Yaka, o medo é um dos traços caracterizadores de personagens centrais como Oscar Semedo, Alexandre Semedo, Agripino de Sousa, Xandinho, Chico, Tuca, Soba Moma. Apesar da diferença de cor, o medo é, em cada caso, expressão da situação de minoria: minoria branca, minoria mestiça e minoria negra assimilada.

[352]  - Estratégia essa alicerçada no luso-tropicalismo freyriano.

[353]  - Como vimos, em A cor do Outro, a propósito da relevância da cor como isotopia classificadora e fundadora de uma diferenciação racista.

[354] - O discurso do colono branco recorre, em particular, a campos semânticos específicos -a cor, a religião, a instrução, o sexo - para criar a imagem de inferioridade do outro que lhe permita afirmar a sua superioridade racial.

[355]  - As múltiplas revoltas contra a presença branca, sobretudo, contra o modo de agir do colonizador, serviram sistematicamente para que as autoridades, ou os próprios colonos, levassem a cabo genocídios de maior ou menor dimensão.

[356]  - Albert Memmi, op. cit. p. 50.

[357]  - O complexo de inferioridade que na metrópole marcava o futuro colono / emigrante português - pobre, analfabeto; degredado ou exilado - encontra nas colónias o terreno adequado à superação dessa inferioridade, reproduzindo, em grande parte, ou aperfeiçoando os métodos de que fora vítima ao longo dos séculos: o eterno explorado torna-se no explorador implacável, porque, apesar de tudo, continua na situação de minoria.

[358]  -  François de Medeiros : “L’accoutumance qui s’est produite des siècles durant, avec la répétition des clichés abondamment orchestrés par les encyclopédistes dans les livres de merveilles et les auteurs de moralités et d’allégories sommaires, semble avoir laissé des traces dans la mentalité de la société médiévale et préparé une entreprise de domination.” Op. cit. p. 268.

[359]  - No sentido em que o sistema modelizante é definido por V.V. Ivanov: “o programa de comportamento do indivíduo ou da coletividade.” Cf. Vítor M. de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 8ª ed., p. 92.

[360]  - O que ajuda a compreender as nossas conclusões sobre o modo diferenciado como Pepetela encara o bilinguismo e o biculturalismo em Angola: o que está efetivamente em causa é a função matricial da língua portuguesa e a consequente desvalorização das línguas africanas.

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