CONCLUSÃO
1. Literatura e relações
interculturais
Hoje, a leitura do romance YAKA - dupla imagem da relação de domínio que caracterizou a colonização e
da dissidência latente de uma minoria branca e, por isso, parte integrante do
sistema modelizante da angolanidade - deve ser realizada no âmbito de uma pedagogia intercultural,[1] porque,
tendo sido escrito em português, língua modelizante da lusofonia, isto é, da
cooperação entre povos que o falam como língua materna ou como língua segunda,
permite ao leitor, independentemente da sua nacionalidade, uma visão mais
apurada não só do que foi a colonização portuguesa, mas, sobretudo, permite-lhe
confrontar-se com os preconceitos que formam o seu próprio imaginário cultural
e, desse modo, poderá também interrogar-se sobre os objectivos e viabilidade do
projecto de interculturalidade lusófona.
Como vimos, de forma particular, neste romance, Pepetela
reivindica, não apenas para os povos, mas, também, para si enquanto pessoa -
entendida como relação primordial do eu com o outro -, a possibilidade de poder
participar na construção de uma angolanidade de matriz lusófona,
independentemente da origem, do passado e da cor.
Neste sentido, o romance YAKA - se abordado como representação pessoal - propõe
inserir-se na relação educativa do eu
com o outro, permitindo uma
interpretação menos despreconceituada das imagens
que cada um forma relativamente à cultura própria e à cultura alheia.[2]
Na medida em que, numa perspectiva pedagógica
intercultural, toda a obra deve ser objecto de “uma dinâmica relacional em que
as estratégias recíprocas dos projectos pessoais sobressaiam sem prejuízo da
admissão da interferência multirreferencial dos contextos,” e não apenas a
expressão da “reafirmação e descrição da diversidade cultural,”[3] YAKA,
enquanto discurso de passagem ou de dissidência
de Pepetela, torna-se exemplar da
abertura ao outro, embora, tragicamente, procure o reconhecimento da sua integração no seio da pluralidade étnica que habita o espaço angolano, a qual, por sua vez, ainda longe da unidade,
tende a ver na obra de Pepetela uma proposta
de mundo em que se dá “a passagem do que é múltiplo para o que é, ou será,
uníssono.”[4]
No essencial, esta obra literária, enquanto sistema
modelizante da angolanidade, revela um duplo movimento típico do período
pós-independência. Produzida por alguém que reparte a sua existência entre duas
culturas, a obra procura, para o seu autor, o reconhecimento pelo sua participação na construção da unidade;[5] por
outro lado, ela afirma-se, perante a conflitualidade étnica, como uma proposta de mundo[6]
capaz de restaurar a mítica unidade
matricial, perdida pela acção
demoníaca do colonialismo, tornando o mundo habitável.
Por isso, YAKA termina deixando a expectativa de uma fusão de horizontes axiológicos,[7]
porque apesar de, em 1983, a esperança
da convivialidade / habitabilidade de culturas ser uma certeza do escritor, o esclarecimento da dúvida sobre a realização dessa esperança
só pode ser feito pelo leitor.[8]
Encarada, deste modo, a obra literária,[9] produzida
num contexto de colonização ou de descolonização, surge como peça fundamental
no estudo das relações entre literatura e sociedade, não apenas como documento
sociológico, mas, sobretudo, como sistema modelizante dum imaginário colectivo,
no caso africano (e angolano), certamente que heterodoxo, se tivermos em conta
o mosaico etno-cultural.
É a consciência desta especificidade da obra de arte em
geral - e da obra literária em particular - que permite propor a sua abordagem
numa perspectiva pedagógica intercultural, na medida em que à pedagogia
intercultural compete fomentar a consciência
do papel do convívio com a obra [da
leitura[10]]
na formação do imaginário colectivo e, consequentemente, do seu impacto na
acção pessoal e, por extensão, das
sociedades, sobretudo, porque a obra literária - enquanto prática social - integra-se, de acordo com a respectiva
intencionalidade, em dois tipos discursivos manifestamente diferenciados, mas, de
forma latente, complementares: a comunicação
artística ou estética e a
comunicação ideológica.
Parece, por outro lado, que a integração do estudo de
obras literárias - ou de obras de arte, em geral - produzidas em contextos de
colonização, de descolonização e de intensa imigração, num programa de estudos
interculturais ou, mesmo, multiculturais, permitiria ultrapassar certos
preconceitos que afectam muitos comparatistas,
para quem as obras produzidas nestes contextos sofreriam - numa abordagem
ecuménica - da mesma menoridade com que geralmente rotulam as culturas geradas
na fronteira ou fora da matriz ocidental.
A resposta dada a esta acusação de menoridade - remetendo
estas literaturas para o capítulo das “zonas problemáticas” ou das “literaturas
conexas” - está na base do movimento da negritude, ideologicamente anticolonialista,
que tenta, mas muitas vezes de forma autista, criar uma contracultura cujas raízes mergulhariam ora numa utopia abstrata - recriação do tempo puro,
liberto de todos os vícios
introduzidos pelo europeu - ora se inscreveriam numa utopia social.[11] Foi
de acordo com essa cosmovisão evolutiva - a que, de certo modo, corresponde uma
imagem anarquista da liberdade - que Pepetela produziu algumas obras como, por
exemplo, A Revolta da Casa dos Ídolos, ou desenhou a personagem Acácio ou a
cultura cuvale, em YAKA.[12]
O que aproxima Acácio (anarquista utópico)
de Vilonda ( cultura cuvale ) é a possibilidade de configurações
culturais de diferentes origens, mas unidas
na rejeição do presente (do colonialismo) como fundamento do futuro, contribuírem para a instauração da dissidência branca (Alexandre Semedo,[13]
Bombó, Joel), ajudando, assim, a compreender a génese do discurso de passagem de que YAKA é expressão original.
Neste sentido, em contextos de colonização e
descolonização ou de imigração, as práticas culturais são um dos meios
fundamentais para conhecer o modo como se processam as relações entre grupos de
origem distinta, e que forçosamente entram em contacto. A literatura é um dos
meios que melhor tipifica esse relacionamento quer no plano da apropriação,
interferência ou rejeição linguística quer no plano da modelização do mundo (proposta
de mundo). Por exemplo, de acordo com esta perspectiva, os estudiosos da
História da Literatura Angolana dever-se-iam ocupar prioritariamente , em
descrever a natureza das relações estabelecidas entre colonizadores e
colonizados e entre grupos étnicos, de modo a estabelecer, por hipótese, um
quadro interpretativo que, de forma sumária, pode ser marcado pela valorização
do paradigma literário ocidental,[14]
pela rejeição mais ou menos categórica desse paradigma,[15] e
pela instauração de um discurso de passagem,[16]
cujos contornos ainda não estão definitivamente estabelecidos.
Esta opção é certamente o discurso possível dos que veem
na literatura um valor absoluto, na medida em que o sentido da obra literária deixa de existir em si (de ser imutável e definitivo), para que a obra, como
mediador cultural, passe a existir enquanto tema de diálogo com..., e o sentido possa emergir[17]
na efemeridade do estilo comunitário
que parece dominar neste final de século.[18] Esta
opção decorre duma deslocação do olhar-
pousado- sobre- a- obra para a
necessidade de a- ver- com.[19]
Nesta perspectiva dinâmica e estética da vida, a obra
literária produzida em contextos de copresença de diferentes culturas, pode
ocupar, assim, um lugar importante no estudo das relações interculturais, cada vez mais legitimadas pela mudança de
paradigma,[20] decorrente,
em grande parte, da cada vez maior mobilidade de indivíduos e de grupos
diferenciados.
Deste modo, certas perguntas colocadas, no âmbito dos
estudos literários comparados, como, por exemplo, “o que é que diferencia um
romance escrito por um africano de um romance colonial produzido por um
europeu?” só poderão obter uma resposta relativa e situada, se esta for
procurada na proposta de mundo,
revelada pelo texto,[21]
produzido num contexto preciso. Por isso procurar, de forma abstrata, a africanidade ou a angolanidade, numa obra[na literatura ou na arte, em geral], não
passa muitas vezes da necessidade de
fundar ou legitimar um novo poder, estabelecendo novas fronteiras entre os
homens,[22]
tendo como suporte a existência de uma proposição
de mundo, estática e axiologicamente hierarquizada, quando a análise de
cada cenário[23] nos permitiria compreender que
qualquer proposta de mundo veiculada
pelo texto literário, que não esteja explicitamente ao serviço de uma qualquer
ideologia,[24]
está sujeita a um enorme leque de variações utópicas.
É quando se chega a este ponto que se compreende que a
maioria dos critérios utilizados para interrogar o texto, produzido em
contextos marcados pela copresença de diferentes culturas, servem
fundamentalmente para preservar ou inverter a ordem, marginalizando todos
aqueles textos que instituem as grandes ou pequenas utopias.[25] Todavia,
estes (con)textos, em que homens de origem, cor, classe social e sistemas de
valores diferentes coabitam, geram a cada momento, nos mínimos gestos
quotidianos, pequenas utopias que só o olhar atento dos estudos interculturais
pode impedir que sejam completamente assimilados pela ideologia dominante. Por
isso, os estudos interculturais devem ocupar-se do diálogo entre os sistemas
modelizantes primários e secundários, isto é, das propostas de mundo, independentemente da sua expressão maioritária
ou minoritária, que a todo o momento e em qualquer ponto do universo, nos são
feitas, porque só a mediação dessas propostas de mundo poderá contribuir para
uma intervenção intencional,[26] razão
de ser da criação deste mestrado em relações interculturais.
2. Este tempo exige uma pedagogia intercultural
Num
tempo em que, em consequência da descolonização e da desemigração, a paleta
demográfica se enriqueceu de forma visível - de facto, Portugal é, hoje, um
país de imigração africana e tem, em muitas escolas, um elevado número de
jovens negros e mestiços que são portugueses de jure - o risco do desenvolvimento de atitudes xenófobas e,
sobretudo, racistas é cada vez maior, com a consequente tentação de sublimar o
passado, exacerbar o patriotismo e ignorar o diálogo intercultural.
Num tempo em que as fronteiras são, mais do que nunca, culturais - somos (ou queremos ser?)
portugueses, ibéricos, europeus, lusófonos -, só o incremento, nas escolas, de
uma pedagogia intercultural pode
ajudar a construir uma identidade, que, pela diversidade que nos constitui, tem
que ser plural e intercultural para que ninguém seja desapossado por inteiro das
suas raízes.
Sendo a escola o lugar privilegiado para que cada jovem
possa interrogar a identidade e descobrir a alteridade, esta necessita de
repensar seriamente o ensino da língua portuguesa e das literaturas de língua
oficial portuguesa, na medida em que, se a primeira
é um espaço vivo no qual uma extensa
comunidade de falantes tem vindo a constituir as suas identidades, as segundas
são a epifania de modos plurais de
estar no mundo. Por isso, a aposta na leitura
de autores lusófonos significa dialogar com uma parte escondida de nós mesmos,
significa redescobrir na língua portuguesa não apenas aquilo que devemos à raiz
greco-latina, mas a nossa contemporaneidade,[27] escrita
ainda a Norte, mas cachoando no Sul.
Num tempo em que a aposta na cooperação parece ser uma decisão incontornável, é fundamental
desenvolver uma cultura de cooperação,
que dê aos decisores e aos mediadores culturais uma formação intercultural -
nomeadamente, nos domínios das línguas (portuguesa, bantas e crioulos) e das
literaturas escritas e orais -, que obste a que esses agentes continuem,
apenas, a atuar em conformidade com os preconceitos que emergem do respetivo
imaginário colectivo.
A título meramente exemplar, se tomarmos em consideração
as dificuldades sentidas na execução do projecto de leitura imagológica de YAKA
- no âmbito dos estudos interculturais -, é fácil perceber que, para que um
estudioso possa levar a cabo essa tarefa com alguma honestidade intelectual,
necessita de formação específica em saberes que, por razões inerentes ao
próprio modelo de colonização, foram e continuam a ser descurados e, sobretudo,
necessita de afinar o (seu) horizonte
axiológico.
Deste modo, parece razoável propor que, de forma gradual,
os estudos interculturais integrem, no seu currículo, o estudo das
principais línguas bantas, dos crioulos
e das grandes línguas de colonização, visto que a sua área de irradiação
ultrapassou no passado - o que aconteceu, nomeadamente, com o português, até ao
Congresso de Berlim em 1884 ou até ao Ultimato Inglês em 1890 - e continua a
ultrapassar, no presente, as zonas consideradas, tradicionalmente, sob a sua
influência, como acontece, por exemplo, na Guiné-Bissau com o francês, e em
Moçambique, com o Inglês.
Só essa decisão permitirá demonstrar como é que os
sistemas modelizantes primários - as línguas - agiram entre si. Por outro lado,
sem o estudo das línguas bantas e dos crioulos torna-se impossível compreender
como é que a oratura:
|
· determina
transformações mais ou menos profundas na língua portuguesa falada como
língua materna ou língua segunda em cada um dos novos países lusófonos; · interage
com a literatura, nomeadamente no
domínio dos géneros literários, da crioulização
ou da reoralização da literatura;[28] · fornece
à literatura um texto palimpséstico,[29]
cuja identificação e análise da proposta de mundo possibilitará a compreensão
do modo como o autor se apropria, dialoga e nos faz aceder a um outro
imaginário colectivo. |
E finalmente, o
currículo dos estudos interculturais deve integrar - sob a forma de pequenos
projectos de investigação - o estudo sistemático de toda a literatura,
geralmente esquecida ou considerada menor, produzida no contexto da expansão e
da colonização ( e em particular da guerra colonial), porque só essa
revisitação impedirá o branqueamento
da conflitualidade que caracterizou as relações entre a Europa e a África,
estabelecer os critérios de individuação de cada literatura, e reconhecermo-nos em todos aqueles que,
também eles, vítimas da cegueira teológica ou mercantilista, tiveram a coragem
de procurar os caminhos de passagem para... o Outro ou se preferirem a passagem
para... o Mesmo através do Outro.
[1] - De modo a dar ênfase ao valor educativo das
relações entre pessoas e grupos culturalmente diversificados, em clara oposição
aos preconceitos que neste terreno assiduamente se levantam. Cf. Adalberto Dias
de Carvalho, A Educação como Projecto
Antropológico, p. 58.
[2] - A.
D. de Carvalho, op. cit. p. 62.
[3] - A. D. de Carvalho, op. cit. p. 62.
[4] - J. C. Venâncio, Literatura e poder na África Lusófona, p. 95.
[5] - Apesar de “dividido” entre duas culturas, o
objectivo do escritor é que o leitor olhe
efetivamente o texto “comme le
surgissement d’une conscience enracinée hic
et nunc.” Cf. Jacques Chevrier, Les
littératures africaines dans le champ de la recherche comparatiste, op.
cit. p. 216.
[6] - P. Ricoeur, op. cit. p. 122: “O que se
deve, de facto, interpretar num texto é uma proposta de mundo, de um mundo tal
que eu possa habitar e nele projetar um dos meus possíveis mais próximos.”
[7] - A noção horizonte
axiológico é aqui utilizada para significar os valores específicos de cada
interlocutor. Como refere M. Bakhtine: “É o horizonte axiológico que assume a função mais importante na organização da
obra literária e, em particular, dos seus aspectos formais.” Cf. Théorie de
l’énoncé, op. cit. p. 74.
[8] - “Minha criação está aí em torrentes de
esperança, a anunciada chegou. (...) Ou será melhor aguardar ainda?” Yaka, [Epílogo,
Luanda, 83] p.397.
[9] - Entendida como “mediação pela qual nós nos
compreendemos a nós mesmos.” Cf. P. Ricoeur, op. cit. p. 123.
[10] - O que implica - no plano do estudo das
relações interculturais - dar muito mais atenção à empatia (identificação) e à exotopia
(recuo em relação a esse distanciamento) do recetor da obra, enquanto no plano
dos estudos literários, Bakhtine se preocupou, sobretudo, em explicar os
mecanismos da atividade criadora (do autor). Cf. Tzvetan Todorov / M. Bakhtine,
Anthropologie philosophique, op. cit. p. 152-154.
Como que corroborando a
aplicabilidade deste modelo ao domínio das relações interculturais, Eduardo
Prado Coelho defende que o modelo de Bakhtine “pode generalizar-se a toda a
relação de um sujeito com outro.” In E rudo/O Resto - É Literatura, Universos da Crítica, p. 480.
[11] -
Ernst Bloch: “Ainsi la liberté et l’ordre, rigoureusement opposées dans les
utopies abstraites, se mêlent intimement dans la dialéctique matérialiste,
s’assistent mutuellement.” In Le Principe
Espérance II - Les épures d’un monde meilleur, p. 110.
[12] - Acácio que condenava a propriedade, como o
fizera o 1º Proudhon na obra “O que é a propriedade?, ao responder: “a
propriedade é um roubo”. A utopia de
Proudhon “veut donc abolir à la fois le capitalisme et le prolétariat (...)
produzindo “un nivellement ou une harmonisation par le milieu.” Cf.
Ernst Bloch, op. cit. p. 153-154. O mesmo Acácio que, na linha de Michel
Bakunine, defendia a destruição do Estado como acto criador.
[13] - Apesar da esperança inicial do degredado
Oscar Semedo de que Alexandre Semedo pudesse ser o fundador de um império, à
semelhança do que acontecera com Alexandre o Grande - “censé porter
l’hellénisme jusqu’aux extrémités de la terre.” Cf. François Medeiros, op. cit.
p. 203-204.
[14] - Que
se caracteriza por uma relação de domínio teológico ou mercantilista, em que
impera o extermínio ou, em alternativa, a assimilação e o fascínio pela
“superioridade” da cultura estrangeira.
[15] - Relação de conflitualidade aberta e
trágica, em que o colonizado reivindica para a sua cultura um estatuto, muitas
vezes de superioridade ética e estética, assente na recriação dos mitos
fundadores ou no desejo de realizar, no imediato, a utopia social.
[16] - Relação de aproximação, em que o estatuto
diferenciado de colonizador e de colonizado é progressivamente e, por vezes, de
forma trágica posto em causa, podendo levar, contudo, a uma efectiva cooperação
cujo êxito pressupõe o incremento de uma pedagogia intercultural.
[17] -
Possa emergir como diálogo intercultural mediado por “une littérature qui est
en même temps l’espace problématique d’un imaginaire situé à l’intersection
d’une pluralité de races et de cultures.” J. Chevrier, op. cit. p. 217.
[18] -
“ La marche royale du Progrès a fait son temps. De même l’ethnocentrisme
occidental n’est plus de mise. Les cultures s’interpenètrent et leurs diverses
temporalités contaminent les manières d’être et de penser. Pour le dire en
termes plus tranchés encore, l’histoire assurée d’elle-même laisse la place à
une mythologie plurielle et diversifiée.” M. Maffesoli, op. cit. p. 131-132.
[19] -
Esta deslocação do olhar corresponde
a uma importante mudança de paradigma, cuja principal consequência se manifesta
na revisão do próprio objecto da estética, visto que, como refere M.
Maffesoli, op. cit., p. 45: “l’esthétique en question n’est nullement celle que
l’on peut cantonner dans le domaine des beaux-arts: elle les englobe, mais
aussi s’étend à l’ensemble de l’existence sociale. La vie, comme oeuvre d’art,
en quelque sort, ou encore l’esthétique comme manière de sentir et
d’éprouver en commum.”
[20] - “No sentido metafísico, o paradigma está antes e é mais extenso do que
qualquer teoria. No sentido sociológico, o paradigma é algo de mais concreto e
diferenciável: é um conjunto de procedimentos, hábitos e instrumentos
metodológicos. É esta deslocação que se afigura fundamental: quer se diga que o
paradigma está acima da teoria,
porque é uma determinação mais ampla e difusa, quer se diga que o paradigma
está abaixo da teoria, na medida em
que é uma espécie de conhecimento tácito que pode funcionar em moldes não
consciencializados ou explicitados...” Eduardo Prado Coelho, Entre o Dito e
o Interdito, o Paradigma - as Teses de Kuhn, op. cit. p. 42.
[21] - “O que há a compreender numa narrativa não
é, em princípio, aquele que fala por detrás do texto, mas aquilo de que se
falou, a coisa do texto, a saber, a espécie de mundo que, de certa forma, a
obra revela pelo texto.” P. Ricoeur,
op. cit., p. 169.
[22] -
O que explica a ideia assaz repetida e reducionista de que: “les littératures
modernes trouvent leur origine commune à la fois dans le fait colonial et dans
une réaction à ce même fait colonial, assortie d’une revendication d’identité
culturelle.” J. Chevrier, op. cit. p. 225.
[23] - A análise do cenário, na aceção de Pageaux, é facilitada pela divisão do mundo
em microcosmos, tal como foi feito
por Pepetela em YAKA, com as implicações hermenêuticas que encontramos,
precisamente, na reflexão de M. Foucault sobre os “limites do mundo”, a
propósito da natureza do saber no séc. XVI: “C’est donc un savoir qui pourra, qui devra procéder par entassement
infini de confirmations s’appelant les unes les autres.” Les mots et les choses, op. cit. p. 45.
[24] - A ideologia deixa de exercer a função de
integração e, nesse sentido, a obra
torna-se, ela própria num instrumento de dissimulação e de distorção da
realidade, de modo que um qualquer grupo possa preservar os privilégios,
entretanto, acumulados. Cf. P. Ricoeur, op. cit. p. 229.
Numa leitura superficial, poder-se-á pensar
que, e tendo em conta a receção de uma certa crítica e de certos meios, uma
obra como YAKA exerceria precisamente essa função de dissimulação da realidade. A análise da receção da obra parece ser
um dos temas essenciais a privilegiar no âmbito dos estudos interculturais, na
medida em que, por exemplo, esta mesma obra teve um acolhimento frio da parte
do poder angolano porque viu nela não uma dissimulação
da realidade mas a expressão crítica
dessa mesma realidade.
[25] - “O que torna difícil um tratamento
simultâneo da utopia e da ideologia é que a utopia,
diferentemente da ideologia, constitui um
género literário declarado. A utopia reconhece-se a si mesma como utopia.
Ela reivindica em voz alta o seu nome.” P. Ricoeur, op. cit. p. 230.
No caso de Pepetela, ele
reivindica a utopia não apenas para si mas, sobretudo, para todos aqueles que
se comprometeram com a ideologia da
libertação, elevando-os à categoria de heróis no romance A GERAÇÃO DA UTOPIA e consagrando essa
mesma ideologia como utopia, face a
uma realidade que parece ter-se encarregado de desmentir a pureza de intenções
com que sonhavam o mundo.
[26] - Noção formulada pelo filósofo finlandês von
Wrigt, citado por P. Ricoeur, op. cit. p. 174.
[27] - No sentido em que “não é demais sublinhar a
importância ética e científica de viver o contemporâneo.” Mª de Lourdes Pintasilgo, Uma prática social efectiva.
[28] - Os fenómenos de crioulização dão-se “em culturas em que o sistema semiótico da
literatura oral coexiste com o sistema semiótico da literatura escrita” enquanto
o fenómeno da reoralização da
literatura é típico de uma “cultura dominada por meios de comunicação
audiovisual”. Cf. Vítor M. A. e Silva, op. cit. p. 144.
[29] - “Isto é, um texto absorvido e apagado por
outro texto, para uma “camada” textual anterior que interfere na
“estratificação” de outro texto e que aflora, sob forma latente ou sob forma
explícita, na estrutura de superfície desse outro texto.” Vítor M. A. Silva,
op. cit. p. 626.
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